artigo de miíase vulvar

7
291 RBGO - v. 25, nº 4, 2003 Relato de Caso 25 (4): 291-295, 2003 RBGO RESUMO A miíase de localização vulvar é doença rara. O objetivo do presente relato é descrever um caso de miíase vulvar por larvas de Cochliomyia hominivorax em mulher de 77 anos, com precários hábitos higiênicos, apresentando dor, prurido e secreção de odor fétido na região genital há 10 dias. O exame ginecológico demonstrou lesão ulcerada no grande lábio vulvar, com seis centímetros, que se estendia ao monte do pube, preenchida por larvas. A doente evoluiu favoravelmente após remoção das larvas, desbridamento cirúrgico e curativos diários, sendo realizada, quatorze dias após o desbridamento, rotação de retalho cutâneo. Apresentou evolução satisfatória, estando assintomática dois meses após a intervenção. A miíase vulvar deve ser considerada no diagnóstico diferencial das doenças infecciosas vulvares de doentes com hábitos de higiene precários. PALAVRAS-CHAVE: Parasitismo: miíase. Vulva: infecções. Miíase Vulvar: Relato de Caso Vulvar Myiasis: a Case Report Carlos Augusto Real Martinez, Gilberto Romani, Denise Gonçalves Priolli, Ademir Aparecido de Campos, Vicente de Paulo Pereira Carneiro, Cassiano Alfredo Garcia Dalbem Disciplinas de Cirurgia Geral e Ginecologia da Faculdade de Medicina da Universidade São Francisco, Bragança Paulista, São Paulo. Correspondência: Carlos Augusto Real Martinez Rua Rui Barbosa,255 apto. 32 09190-370 – Santo André – SP Tel/fax: (11) 4438-9203 e-mail: [email protected] Introdução A miíase humana é enfermidade comum nas zonas rurais dos países tropicais 1 . É provocada por larvas de moscas, existindo várias classifica- ções conforme a localização da doença, o inseto vetor e o tipo de tecido acometido 2 . As míiases do tipo furunculóide são provocadas por larvas biontófagas parasitárias dos tecidos sadios, sendo as moscas das espécies Dermatobia hominis, Cochliomyia hominivorax e Oestrus ovis as principais responsáveis 3 . Outro tipo decorre da invasão por larvas com afinidade por tecidos necrosados (necrobiontófagas), sendo as mais freqüentes as moscas dos gêneros Sacophaga, Lucilia e Callitroga 3 . A doença atinge, na maioria das vezes, áre- as descobertas do corpo, onde a oviposição é mais fácil, mulheres de baixo nível socioeconômico com hábitos precários de higiene, doentes com distúr- bios psiquiátricos, diabéticos e imunodeprimidos 4 . A miíase de localização vulvar é evento raro, a jul- gar pelo pequeno número de artigos publicados 2 . O objetivo do presente relato é apresentar um caso de miíase vulvar provocada por larvas da mosca Cochliomyia hominivorax tratada, com suces- so, pelo desbridamento local, com posterior rota- ção de retalho cutâneo da parede abdominal. Relato do caso Mulher, 77 anos, com deficiência intelectual, procedente da zona rural de Bragança Paulista, vivia isolada da família, em péssimas condições habitacionais e com precários hábitos de higiene corporal. Procurou o Pronto Socorro do Hospital Universitário com dor na região vulvar com 10 dias de duração. Referia que há três semanas princi- piou com pequena ulceração vulvar, intensamen- te pruriginosa, que aumentou progressivamente de tamanho, com secreção purulenta de odor féti- do. Relatava sensação de movimentos larvários no interior da lesão e nos últimos três dias apresen- tava febre diária, de caráter vespertino, e piora acentuada do quadro doloroso. Negava anteceden- tes de diabetes. Ao exame físico encontrava-se desnutrida, temperatura de 37,8ºC, pulso de 98 bpm e pres-

Upload: mfernandoazevedo9872

Post on 27-Jun-2015

348 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

Page 1: Artigo de miíase vulvar

291RBGO - v. 25, nº 4, 2003

Relato de Caso25 (4): 291-295, 2003RBGO

RESUMOA miíase de localização vulvar é doença rara. O objetivo do presente relato é descrever umcaso de miíase vulvar por larvas de Cochliomyia hominivorax em mulher de 77 anos, comprecários hábitos higiênicos, apresentando dor, prurido e secreção de odor fétido na regiãogenital há 10 dias. O exame ginecológico demonstrou lesão ulcerada no grande lábio vulvar,com seis centímetros, que se estendia ao monte do pube, preenchida por larvas. A doenteevoluiu favoravelmente após remoção das larvas, desbridamento cirúrgico e curativos diários,sendo realizada, quatorze dias após o desbridamento, rotação de retalho cutâneo. Apresentouevolução satisfatória, estando assintomática dois meses após a intervenção. A miíase vulvardeve ser considerada no diagnóstico diferencial das doenças infecciosas vulvares de doentescom hábitos de higiene precários.

PALAVRAS-CHAVE: Parasitismo: miíase. Vulva: infecções.

Miíase Vulvar: Relato de CasoVulvar Myiasis: a Case Report

Carlos Augusto Real Martinez, Gilberto Romani, Denise Gonçalves Priolli,Ademir Aparecido de Campos, Vicente de Paulo Pereira Carneiro,

Cassiano Alfredo Garcia Dalbem

Disciplinas de Cirurgia Geral e Ginecologia da Faculdadede Medicina da Universidade São Francisco, BragançaPaulista, São Paulo.Correspondência:Carlos Augusto Real MartinezRua Rui Barbosa,255 apto. 3209190-370 – Santo André – SPTel/fax: (11) 4438-9203e-mail: [email protected]

IntroduçãoA miíase humana é enfermidade comum

nas zonas rurais dos países tropicais1. É provocadapor larvas de moscas, existindo várias classifica-ções conforme a localização da doença, o insetovetor e o tipo de tecido acometido2.

As míiases do tipo furunculóide sãoprovocadas por larvas biontófagas parasitárias dostecidos sadios, sendo as moscas das espéciesDermatobia hominis, Cochliomyia hominivorax eOestrus ovis as principais responsáveis3. Outro tipodecorre da invasão por larvas com afinidade portecidos necrosados (necrobiontófagas), sendo asmais freqüentes as moscas dos gêneros Sacophaga,Lucilia e Callitroga3.

A doença atinge, na maioria das vezes, áre-as descobertas do corpo, onde a oviposição é maisfácil, mulheres de baixo nível socioeconômico comhábitos precários de higiene, doentes com distúr-bios psiquiátricos, diabéticos e imunodeprimidos4.

A miíase de localização vulvar é evento raro, a jul-gar pelo pequeno número de artigos publicados2.

O objetivo do presente relato é apresentarum caso de miíase vulvar provocada por larvas damosca Cochliomyia hominivorax tratada, com suces-so, pelo desbridamento local, com posterior rota-ção de retalho cutâneo da parede abdominal.

Relato do casoMulher, 77 anos, com deficiência intelectual,

procedente da zona rural de Bragança Paulista,vivia isolada da família, em péssimas condiçõeshabitacionais e com precários hábitos de higienecorporal. Procurou o Pronto Socorro do HospitalUniversitário com dor na região vulvar com 10 diasde duração. Referia que há três semanas princi-piou com pequena ulceração vulvar, intensamen-te pruriginosa, que aumentou progressivamentede tamanho, com secreção purulenta de odor féti-do. Relatava sensação de movimentos larvários nointerior da lesão e nos últimos três dias apresen-tava febre diária, de caráter vespertino, e pioraacentuada do quadro doloroso. Negava anteceden-tes de diabetes.

Ao exame físico encontrava-se desnutrida,temperatura de 37,8ºC, pulso de 98 bpm e pres-

Page 2: Artigo de miíase vulvar

292 RBGO - v. 25, nº 4, 2003

são arterial de 120 x 80 mmHg. Na região genitalnotava-se lesão ulcerada de aproximadamente 6cm de diâmetro, estendendo-se do grande lábiovulvar esquerdo ao monte da pube, profunda, comnecrose das bordas, estando completamente pre-enchida por larvas vivas de coloração amarelo-esbranquiçada, com aproximadamente 1 cm decomprimento (Figura 1).

A evolução pós-operatória foi favorável, comregressão do processo inflamatório e da linfoade-nopatia inguinal, não havendo necessidade denovos desbridamentos. No 14º dia pós-operatório,a ferida apresentava evidente tecido de granulaçãono fundo e bordas da lesão. Em virtude da exten-são da área cruenta e pela dificuldade da enfermaem realizar curativos domiciliares diários, optou-se por recobrimento da ferida residual com reta-lho cutâneo rodado da região inferior esquerda daparede abdominal (Figura 3).

Miíase vulvarMartinez et al

Figura 1 - Aspecto pré-operatório, mostrando lesão ulcerada da região vulvar totalmentepreenchida por larvas.

Às margens, a ulceração possuía sinaisflogísticos que se estendiam à região abdominalinferior e grandes lábios vulvares, atingindo a re-gião ínguino-crural esquerda. A compressão dostecidos adjacentes à ulceração provocava saídade secreção purulenta, de odor fétido. Os gângliosda cadeia superficial dos linfonodos ínguino-crurais esquerdos estavam aumentados de tama-nho e dolorosos à palpação. Com diagnóstico demiíase vulvar, foi submetida a desbridamentocirúrgico, sob anestesia, estendendo-se a excisãoao tecido infectado que circundava a lesão. Aslarvas, em número de 50, foram totalmente re-movidas e algumas delas ainda movimentavam-se espontaneamente.

A extirpação cirúrgica removeu boa parte domonte do pube, porção superior do grande lábiovulvar esquerdo e parte da comissura vulvar an-terior, não havendo, todavia, necessidade deremoção do clitóris (Figura 2).

O exame histopatológico revelou processoinflamatório agudo, com necrose das camadasdérmicas e focos de micro-abscessos espraiadospor todo tecido removido.

Após a excisão cirúrgica, a doente recebeuantibioticoterapia (cefoxitina), antiinflamatório nãohormonal (cetoprofeno), analgésico, antitérmico(dipirona) e profilaxia antitetânica. Foram realiza-dos curativos diários com iodopovidona tópica.

Figura 2 - Aspecto pós-operatório imediato da região vulvar após o desbridamentocirúrgico, com remoção das larvas.

Figura 3 - Aspecto pós-operatório da região vulvar doze dias após a rotação de retalhocutâneo.

No momento a paciente encontra-se bem,com cicatrização completa da ferida cirúrgica eresultado estético satisfatório, tendo sido encami-nhada para programa social de assistência ao ido-so, onde recebe visitas periódicas de profissionaisde saúde e assistentes sociais.

A publicação do presente relato foi autoriza-

Page 3: Artigo de miíase vulvar

293RBGO - v. 25, nº 4, 2003

da pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universi-dade São Francisco, Bragança Paulista.

DiscussãoHope em 19405 definiu miíase (do grego myia

= mosca, ase = doença) como “infestação de verte-brados vivos por larvas de dípteros que, pelo me-nos durante uma fase do desenvolvimento, alimen-tam-se dos tecidos vivos ou mortos do hospedeiro,de suas substâncias corporais líquidas ou do ali-mento por ele ingerido”. Trata-se de dermatosefreqüente em países tropicais, acometendo maiscomumente habitantes das zonas rurais6. Nasregiões de maior desenvolvimento urbano a doen-ça geralmente é encontrada em pacientes psiqui-átricos, etilistas, diabéticos, desnutridos, imuno-deprimidos e, sobretudo, em pessoas com precári-os hábitos higiênicos e baixo nível de instrução3,4.

Vários gêneros de moscas são de interessemédico por infestarem o homem, podendo as lar-vas ser divididas em dois grupos principais(biontófagas ou necrobiontófagas), dependendo dotipo de tecido que infestam4. Assim, as que inva-dem tecidos sadios, denominadas biontófagas, cau-sam a forma furunculóide da doença6. Nesse gru-po destacam-se as miíases provocadas pelas es-pécies Dermatobia hominis, Cochliomyia hominivoraxe Oestrus ovis2,6. Já as necrobiontófagas invademexclusivamente tecidos necrosados, destacando-se os gêneros Sarcophaga, Lucilia, Phaenicia,Calliphora (Callitroga ou Cochliomyia macellaria),Musca, Muscina e Fannia1,2,5,7-9. Cabe lembrar ain-da o gênero Muscidae, que caracteristicamenteprovoca a miíase cavitária (orbital, sinusoidal)6.

O estudo entomológico das larvas retiradasda doente do presente relato, constatou que per-tenciam ao gênero Callitroga. Duas espécies nes-te gênero apresentam interesse médico: aCochliomyia hominivorax (Callitroga americana), quedurante a fase larvária desenvolve parasitismoobrigatório, e a Cochliomyia macellaria (Callitrogamacellaria), em que o parasitismo da fase larváriaé facultativo10. Apesar de ambas as espécies per-tencerem ao mesmo gênero (Callitroga), as larvasda espécie Cochliomyia hominivorax são biontófagas,nunca se desenvolvendo em tecidos necrosados,ao passo que as da Cochliomyia macellaria sãonecrobiontófagas5.

A Cochliomyia hominivorax é mosca de tama-nho médio, corpo curto e grosso, peças bucais bemdesenvolvidas de tipo lambedor, encontrando-se notórax verde-metálico três faixas longitudinais ne-gras e largas5,10. Distingue-se da Cochliomyiamacellaria, na fase adulta, pela presença de pêlos

escuros na fronte e ausência de manchas claraslaterais no último segmento abdominal10. Duran-te a fase larvária, a espécie possui tubos traqueaispigmentados em longa extensão do segmento ter-minal, enquanto na Cochliomyia macellaria os tu-bos traqueais apresentam tonalidade mais clara5.A disposição dos espiráculos anteriores, dos espi-nhos dorsais e das placas estigmáticas tambémpermite a diferenciação entre as duas espécies5,10.A análise dessas características permitiu o diag-nóstico da espécie Cochliomyia hominivorax comoa responsável pela miíase da enferma descrita.

As fêmeas da Cochliomyia hominivorax geral-mente depositam, de uma só vez, 20 a 400 ovosem feridas ou escarificações da pele e, em menosde 24 horas, as larvas eclodem e passam a se nu-trir dos tecidos orgânicos periféricos10. Cabe des-tacar que as moscas geralmente são atraídas portecidos infectados, necróticos e com odor fétido;as larvas, porém, só se alimentam de tecido são5.No homem, tanto a pele quanto as cavidades na-turais podem ser infectadas, durando o parasitismocerca de uma semana, quando as larvas madurascaem ao solo para pupar10. A duração completa dociclo biológico é de aproximadamente 25 dias.

A doença atinge geralmente as áreas maisexpostas do corpo humano, devido à facilidade deoviposição da mosca. A infestação genital femini-na é ocorrência excepcional, uma vez que o localé habitualmente protegido pelas vestes, sendoassim pouco acessível ao contato dos insetos2,11. Araridade do acometimento vulvar pode ser maisbem avaliada pelo pequeno número de casos pu-blicados na literatura mundial1-3,7-9,11,12. Contu-do, cabe destacar que, devido à benignidade e atransitoriedade da maioria dos casos e à maiorprevalência no meio rural, a verdadeira incidên-cia pode estar sendo subestimada3.

Várias espécies de larvas foram descritas naliteratura mundial acometendo a região vulvar eentre elas destacam-se as pertencentes aos gê-neros Dermatobia13, Wohlfahrtia1,9, Sarcophaga3,4,Chrysomyia8 e Piophila14. No Brasil, só pudemosencontrar três relatos de miíase vulvar2,7,12, sen-do que em duas oportunidades a doença eraprovocada por larvas do gênero Sarcophaga7,12. Emlevantamento dos casos de miíase vulvar publica-dos a partir de 1966, consultando duas bases dedados (LILACS e Medline), a infestação por larvaspertencentes à espécie Cochliomyia hominivoraxainda não havia sido descrita no Brasil.

A miíase vulvar geralmente ocorre em mu-lheres com baixo nível socioeconômico e com há-bitos de higiene precários, quando se analisa amaioria dos casos publicados que fazem referên-cia a esta particularidade1-4,7-9. Acreditamos quevários fatores contribuíram para o surgimento da

Miíase vulvarMartinez et al

Page 4: Artigo de miíase vulvar

294 RBGO - v. 25, nº 4, 2003

doença na enferma que pudemos acompanhar,merecendo destaque a baixa condição socioeco-nômica, idade avançada, rebaixamento intelectual,estado nutricional, moradia localizada em regiãorural com precárias condições sanitárias e, prin-cipalmente, o isolamento familiar.

Gomes et al.7, em 1996, publicaram caso demiíase vulvar em doente de 18 anos portadora decondiloma vulvo-vaginal e molusco contagioso, cha-mando a atenção para a importância dos hábitosprecários de higiene e vida sexual promíscua nodesenvolvimento da miíase vulvar. Mais recente-mente, Passos et al.4, em 1997, publicaram caso demiíase vulvar em jovem de 19 anos, com múltiplosparceiros e portadora de sorologia positiva para sí-filis e AIDS. Os autores inferem que a miíase vulvarestá normalmente associada à promiscuidade e queno caso observado, a presença de lesões sifilíticasgenitais acompanhadas de outras infecções, emvirtude do odor fétido exalado, permitiram a atra-ção do inseto. Reafirmam, ainda, a necessidade dese realizarem os testes sorológicos para sífilis e anti-HIV em toda doente portadora de miíase vulvar comvida sexual promíscua4.

A sintomatologia surge à medida que ocorreo desenvolvimento das larvas. Nos primeiros diasa doente queixa-se de dor, mais freqüente no pe-ríodo matutino e noturno, referindo ainda a sen-sação dos movimentos do parasita na lesão4,5. Oprurido geralmente surge nas fases iniciais e élentamente substituído por dor aguda, de caráterlatejante, principalmente quando ocorre infecçãobacteriana secundária. À medida que as larvas sedesenvolvem, a destruição tecidual progride, ocor-rendo a formação de lesão ulcerada que aumentade tamanho, geralmente cercada por áreaflegmonosa, com secreção purulenta de odor féti-do. O exame da ferida pode revelar a presença delarvas vivas, movimentando-se no interior da ul-ceração9. Tais características foram observadas naenferma do presente relato, destacando-se o im-portante processo inflamatório dos tecidoscircunvizinhos e a linfoadenopatia satéliteinguinal, atribuídos a provável infecção bacteria-na secundária. Infelizmente não foram colhidasamostras da secreção para identificação dos agen-tes bacterianos envolvidos na infecção. O examehistopatológico constatou, entretanto, que todo otecido removido ao redor da ulceração possuía inú-meros focos de micro-abscessos, sugerindo presen-ça de infecção bacteriana adicional. A rápida me-lhora da celulite loco-regional bem como a regres-são da linfoadenomegalia inguinal, após a intro-dução do antibiótico, parecem consubstanciar es-tes fatos.

O tratamento da miíase vulvar depende daexistência e da intensidade da lesão tecidual. Nas

miíases com pouca destruição tecidual, o bloqueioanestésico local para remoção das larvas, seguidade vigorosa higienização local com soluções anti-sépticas e curativos diários, pode ser medida sufi-ciente1,3,9,15. O emprego de éter sobre a lesão, como intuito de matar as larvas e facilitar sua remo-ção, também tem sido utilizado4.

Nas lesões de maior tamanho onde a necrosetecidual é mais evidente ou quando existe celuli-te circunvizinha extensa, à semelhança da en-ferma do presente relato, preconiza-se a excisãocompleta do tecido desvitalizado, com remoção detodas as larvas identificadas7,8, sob anestesia ge-ral ou bloqueio anestésico raquimedular. O blo-queio anestésico facilita a extirpação do tecidonecrosado, além de conferir maior efetividade àremoção do maior número de larvas presentes.

Os curativos realizados no período pós-ope-ratório possuem importância fundamental para acompleta recuperação tecidual. Algumas vezes,principalmente nos enfermos nos quais a cirur-gia inicial foi realizada sem o emprego de aneste-sia, a remoção de todas as larvas pode não ser com-pleta, existindo a necessidade da retirada diáriacomplementar de eventuais larvas remanescen-tes1,8. A utilização de soro fisiológico com soluçõesanti-sépticas (iodopovidona, clorexedina) é efeti-va no controle da infecção local, entretanto, háautores que preconizam o uso de pomadas comagentes bactericidas2.

O emprego de antibioticoterapia sistêmicadeve ficar reservado aos casos mais graves nosquais existem, à semelhança da doente descrita,sinais de infecção bacteriana secundária. Os an-tibióticos mais freqüentemente empregados têmsido a penicilina, aminoglicosídeos, cloranfenicole cefalosporinas2,8,11. Deve-se lembrar a necessi-dade de cobertura antitetânica, ao considerarem-se os hábitos dos vetores responsáveis.

Como medidas preventivas ressalta-se aimportância do esclarecimento, principalmente àspopulações rurais de baixa condição socioeconô-mica, dos princípios básicos da adequada higienecorporal11. Medidas que melhorem as condiçõeshigiênicas das habitações, evitando a promiscui-dade e melhorando as condições sanitárias devemser preocupação constante dos órgãos responsá-veis pela saúde pública. Mulheres com hábitossexuais promíscuos devem ser alertadas quantoàs medidas preventivas, bem como a procuraremassistência médica sempre que apresentaremqualquer lesão vulvar sugestiva de doença sexu-almente transmissível4,12. Por último, cabe lem-brar ainda da atenção que deve ser fornecida aosdoentes idosos habitantes da zona rural, sobretu-do aos de vida solitária, quando já não podem cui-dar sozinhos da própria higiene pessoal.

Miíase vulvarMartinez et al

Page 5: Artigo de miíase vulvar

295RBGO - v. 25, nº 4, 2003

Miíase vulvarMartinez et al

Referências1. Delir S, Handjani F, Emad M, Ardehali S. Vulvar

myiasis due to Wohlfahrtia magnifica. Clin ExpDermatol 1999; 24:279-80.

2. Deus MCBR, Santos JA, Quevedo JMA. Miíasevulvar. Femina 1989; 17:560-3.

3. Cilla G, Picó F, Peris A, et al. Miiasis genital humanapor Sarcophaga. Rev Clin Esp 1992; 190:189-90.

4. Passos MRL, Carvalho AVV, Silva ARL, et al.Miíase vulvar. DST J Bras Doenças Sex Transm1997; 9:9-11.

ABSTRACTMyiasis located in the vulva is a rarely described disease.The objective of the present report is to describe a case ofvulvar myiasis due to larvae of Cochliomyia hominivorax. A77-year-old woman with precarious hygienic habitspresented pain, pruritus and secretions with a fetid smell inthe genital region for 10 days. Gynecological examinationdemonstrated an ulcerated lesion in the labium majus of thevulva measuring six centimeters that extended to the monspubis and was found to be filled with larvae. The patientprogressed favorably after removal of the larvae, surgicaldebridement and daily dressings. Fourteen days after thedebridement, she was submitted to skin flap rotation, withgood local scar formation. Two months after the intervention,she remained asymptomatic. Vulvar myiasis must beconsidered in the differential diagnosis of infectious diseasesof the vulva in patients with precarious hygienic habits.

KEYWORDS: Ectoparasitic infestation. Myiasis. Vulvardiseases.

5. Hope FW. On insects and their larvae occasionallyfound in the human body. Trans Entomol Soc London1940; 2:256-71.

6. Pessoa SB. Parasitologia médica. 7a ed. Rio deJaneiro: Guanabara Koogan; 1969. p.857-61.

7. Gomes PA, Fukugava MFN, Cucé LC. Miíase vulvar.J Bras Med 1996; 70:106-8.

8. Koranantakul O, Lekhakula A, Wansit R,Koranantakul Y. Cutaneous myiasis of vulva causedby the muscoid fly (Chrysomyia genus). SoutheastAsian J Trop Med Public Health 1991; 22:458-60.

9. Yazar S, Özcan H, Dinçer S, Sahin I. Vulvar myiasis.Yonsei Med J 2002; 43:553-5.

10.Rey L. Bases da parasitologia médica. 1a ed. Rio deJaneiro: Guanabara Koogan; 1992. Dípterosciclorrafos: as moscas. p.296-303.

11.Pandolfo SM, Lima CR, Pandolfo MJ, Barroso RM.Fístula vesicovaginal extensa, com destruiçãocompleta da uretra, produzida por miíase, empaciente com prolapso genital total. Rev Para Med2000; 14:33-40

12.Miranda MVP. Miíase vulvar. Relato de um caso eestudo biológico do díptero responsável (Callitrogaamericana). J Bras Ginecol 1971; 72:309-18.

13.Mirande LM, Landolfi JM, Pedemonte LH, Pepe CM.Miíasis forunculóide por “Dermatobia hominis”. MedCutan Ibero Lat Am 1976; 4:421-5.

14.Saleh MS, el Sibae MM. Urino-genital myiasis dueto Piophila casei. J Egypt Soc Parasitol 1993;23:737-9.

15.Ennes DK, Bacci LC, Branco RF, Simões MJ,Guariento A. Miíase de colo uterino. J Bras Ginecol1987; 97:287-9.

Recebido em: 2/4/2003Aceito com modificações em: 8/5/2003

COMUNICADO AOS ASSOCIADOS E LEITORES

FEBRASGO naInternet

Para maiores informações temos à disposição quatro endereços eletrô[email protected]

[email protected]@febrasgo.org.br

[email protected]

Page 6: Artigo de miíase vulvar

296 RBGO - v. 25, nº 4, 2003

Page 7: Artigo de miíase vulvar

297RBGO - v. 25, nº 4, 2003