artes plásticas aleijadinho – 200 decienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v67n1/v67n1a19.pdf · a...

3
TEATRO DE MADEIRA E PEDRA-SABãO Es- cultor, entalhador e arquiteto, Aleija- dinho é um dos mestres que ajudou a construir os cenários do barroco mineiro dos quais o conjunto arqui- tetônico do Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas (há 70 quilômetros de Belo Horizonte) é um dos exemplos mais impressio- nantes. Reconhecido pela Unes- co como Patrimônio Mundial em 1985, ele é composto por seis capelas que abrigam 64 peças de madeira re- presentando o calvário de Cristo e se completa no santuário principal em cujas escadarias estão os 12 profetas em pedra-sabão (veja box 1). 58 “Gênio virgem, puro e inocente, artífice exemplar e original, um dos fundadores de uma tradição artística nacional”, assim Mário de Andrade descreveu Aleijadi- nho, no estudo “A arte religiosa no Brasil”, publicado na Revista do Brasil, em 1920, consagrando An- tônio Francisco Lisboa, cuja morte completou 200 anos em novembro passado, como um dos símbolos da arte e da identidade brasileiras. As comemorações da data contaram uma série de eventos, como semi- nários e exposições, em todo o país. “Comemorações em torno das efe- mérides são sempre positivas. Di- versas obras foram publicadas e as discussões sobre a mitologia rela- cionada ao Aleijadinho e ao Barro- co se reacenderam um pouco. Isso faz com que muitas pessoas, sobre- tudo jovens, que ainda não tinham tido contato com essas questões, comecem a se interessar por elas”, afirma a historiadora e professora do Instituto de Filosofia Artes e Cultura, da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Guiomar de Grammont. Entrar em uma das inúmeras igre- jas de Ouro Preto, uma das cidades históricas de Minas Gerais, é pene- trar em outro mundo, um universo dramático de devoção religiosa. Se- gundo Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) e atual secretário de Cultura de Mi- nas Gerais, no século XVIII, Ouro Preto é um espaço que teatraliza a vida individual e coletiva sob a égi- de da religiosidade, cujos símbo- los se espalham por toda a cidade, dentro e fora das igrejas. Aleijadi- nho está imerso nessa cultura, ele é produto e também agente dessa re- ligiosidade. Um tipo de fé que, na- quele momento, busca criar uma experiência com o divino por meio dos sentidos. Daí a importância das imagens e dos cenários criados em cada igreja. Fotos: Horacio Coppola/ Acervo Instituto Moreira Salles ARTES PLáSTICAS ALEIJADINHO – 200 ANOS DE ENCANTAMENTO Esculturas em pedra sabão em Congonhas do Campo, MG, 1945. À direita, detalhes dos profetas Hababuc e Jonas

Upload: truongtruc

Post on 11-Nov-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

teatro de Madeira e pedra-sabão Es-cultor, entalhador e arquiteto, Aleija-dinho é um dos mestres que ajudou a construir os cenários do barroco mineiro dos quais o conjunto arqui-tetônico do Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas (há 70 quilômetros de Belo Horizonte) é um dos exemplos mais impressio-nantes. Reconhecido pela Unes-co como Patrimônio Mundial em 1985, ele é composto por seis capelas que abrigam 64 peças de madeira re-presentando o calvário de Cristo e se completa no santuário principal em cujas escadarias estão os 12 profetas em pedra-sabão (veja box 1).

58 59

“Gênio virgem, puro e inocente, artífice exemplar e original, um dos fundadores de uma tradição artística nacional”, assim Mário de Andrade descreveu Aleijadi-nho, no estudo “A arte religiosa no Brasil”, publicado na Revista do Brasil, em 1920, consagrando An-tônio Francisco Lisboa, cuja morte completou 200 anos em novembro passado, como um dos símbolos da arte e da identidade brasileiras. As comemorações da data contaram uma série de eventos, como semi-nários e exposições, em todo o país. “Comemorações em torno das efe-mérides são sempre positivas. Di-versas obras foram publicadas e as discussões sobre a mitologia rela-cionada ao Aleijadinho e ao Barro-co se reacenderam um pouco. Isso faz com que muitas pessoas, sobre-tudo jovens, que ainda não tinham tido contato com essas questões, comecem a se interessar por elas”, afirma a historiadora e professora do Instituto de Filosofia Artes e Cultura, da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Guiomar de Grammont.Entrar em uma das inúmeras igre-jas de Ouro Preto, uma das cidades históricas de Minas Gerais, é pene-trar em outro mundo, um universo dramático de devoção religiosa. Se-gundo Ângelo Oswaldo de Araújo

Santos, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) e atual secretário de Cultura de Mi-nas Gerais, no século XVIII, Ouro Preto é um espaço que teatraliza a vida individual e coletiva sob a égi-de da religiosidade, cujos símbo-los se espalham por toda a cidade, dentro e fora das igrejas. Aleijadi-nho está imerso nessa cultura, ele é produto e também agente dessa re-ligiosidade. Um tipo de fé que, na-quele momento, busca criar uma experiência com o divino por meio dos sentidos. Daí a importância das imagens e dos cenários criados em cada igreja.

Fotos: Horacio Coppola/ Acervo Instituto Moreira Salles

artes Plást icas

alEijadinho – 200 anos dE EncantamEnto

Esculturas em pedra sabão em Congonhas do Campo, MG, 1945. À direita, detalhes dos profetas Hababuc e Jonas

7_Cultura_p56a68.indd 58 3/11/15 6:31 PM

a arte colonial de modo geral, são eleitos como os maiores expoentes da identidade nacional. “O maior problema da mitificação do Alei-jadinho é que inúmeros artistas foram esquecidos ou deixaram de ser estudados, devido ao agiganta-mento dessa figura. É um jogo de espelhos, é como se não quisésse-mos conhecer nada, apenas nos re-conhecer no século XVIII. Tentar realizar a crítica dessas operações é um exercício do melhor espírito científico”, acredita Grammont.O estudo de Aleijadinho e de sua obra exigem uma leitura interdis-ciplinar, acredita Lucienne Maria de Almeida Elias, pesquisadora do curso de conservação e restauração de bens culturais móveis, da Esco-la de Belas Artes, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). As questões relacionadas à autoria, por exemplo, não podem ser guia-das apenas por um parâmetro. “Por exemplo, as indagações quanto aos olhos amendoados. Será que existe um padrão, uma maneira peculiar na fatura do escultor, será que te-mos obras que não se enquadram a essa característica e são de auto-ria ou atribuídas a Aleijadinho?”, questiona a pesquisadora.Novas descobertas sobre a obra de Aleijadinho podem surgir a partir do trabalho da comissão especial de assessoramento sobre a obra de An-tônio Francisco Lisboa, criada em agosto de 2014, no contexto das comemorações do bicentenário do escultor, pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Na-cional (Iphan). De acordo com Elias, que integra a comissão, a ideia é fazer

58 59

um levantamento e revisão de fontes bibliográficas e documentos para elaborar critérios de identificação da obra arquitetônica, ornamental e escultórica de Aleijadinho. “Quere-mos criar um catálogo geral da obra, avaliar seu estado de conservação, as intervenções realizadas, registrar até que ponto os materiais originais es-tão presentes e se ocorreram acrésci-mos ou modificações”, explica.

arte da reprodução Se, por um lado, a mitificação de Aleijadinho produziu algumas distorções, por outro, sua transformação em artis-

Se a arte de Aleijadinho é fruto do seu tempo, o artista Aleijadinho é uma criação mais recente. No sé-culo XVIII e início do século XIX, época em que ele viveu, não havia noções de artista e autoria. “Nós é que as aplicamos anacronicamente ao passado, supondo no Aleijadi-nho motivações semelhantes às dos artistas contemporâneos”, lembra Guiomar de Grammont, que tam-bém é autora do livro Aleijadinho e o aeroplano (2008). Segundo a histo-riadora, Antônio Francisco Lisboa nem sempre foi visto como o artista romântico que ficou consagrado na história. “O mito do Aleijadinho como o artista-herói só começa a ser construído a partir do século XIX e sua supervalorização acontece no sé-culo XX”, afirma. “Para atender en-comendas das irmandades ele traba-lhava com dificuldades semelhantes às dos outros artífices do seu tempo. Não tinha preocupação com origi-nalidade ou estilo e sequer assinava suas obras”, explica. Era comum ainda que trabalhasse em conjunto com outros artífices em seu ateliê, por isso, muitas peças atribuídas a ele são, na verdade, fruto de uma criação coletiva.

Jogo de espelhos De acordo com o pesquisador do curso superior em restauro, do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG), Alexan-dre Mascarenhas, a mitificação de Aleijadinho deve-se, em grande parte, ao projeto de um grupo de intelectuais, liderados por Mário de Andrade, que busca encontrar referências artísticas genuinamen-te brasileiras. Assim, em princípios do século XX, o escultor mineiro e

Pedra de Panela

A pedra-sabão, também

chamada pedra de talco, é uma

rocha macia, com aparência

de argila, largamente utilizada

para confecção de vasilhames

e pequenas peças. No Brasil, o

estado de Minas Gerais possui as

maiores reservas de pedra-sabão,

cujas cores podem variar do cinza

ao verde. Segundo Ângelo Oswaldo

de Araújo Santos, em artigo

publicado em 2006, pelo Centro

Cultural Banco do Brasil e que foi

reproduzido em 2014, no site do

Iphan, por conta do bicentenário

do artista, “Aleijadinho inaugura

o emprego da pedra-sabão no

universo da arte, altera a criação

de seu tempo e dá início a uma

linhagem de artistas cada vez mais

numerosos no contexto regional”.

7_Cultura_p56a68.indd 59 3/11/15 6:31 PM

60 61

ta-herói ajudou a preservar e a disse-minar sua obra ao longo do tempo. Isso é especialmente importante no caso do barroco mineiro já que gran-de parte das esculturas e dos projetos arquitetônicos atribuídos a Aleijadi-nho encontra-se em fachadas e adros de templos religiosos, em áreas ex-ternas. “Trata-se de um patrimônio exposto à ação das intempéries, à poluição, à falta de manutenção ade-quada e mesmo ao vandalismo”, ex-plica Alexandre Mascarenhas. “Entre 1938 e 1969, a pedido do recém-cria-do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), dezenas de réplicas de gesso e algumas em ci-mento de esculturas de Aleijadinho foram confeccionadas e distribuídas

por diversas instituições de caráter educacional e museológico dentro e fora do Brasil”, conta Mascarenhas. O objetivo do então presidente do Sphan, Rodrigo Melo Franco de Andrade, juntamente com Mário de Andrade, era criar um museu com réplicas que permitisse o estu-do e a divulgação da cultura brasi-leira no Brasil e no mundo. Segun-do Mascarenhas, o museu nunca saiu do papel, mas as réplicas – 113 já catalogadas – tornaram-se ins-trumentos de proteção e perpetu-ação da obra de Aleijadinho e hoje também são alvo de ações de cata-logação e de preservação.

Patrícia Mariuzzo

À esquerda, São João Evangelista adormecido Congonhas do Campo, MG, 1945. À direita, Pastor ajoelhado, figura do presépio em roca da igreja de São Francisco de Assis (atualmente no Museu da Inconfidência), Ouro Preto, MG

Fotos: Horacio Coppola/ Acervo Instituto Moreira Salles

Olhares sObre aleijadinhO

Um dos eventos em torno das

comemorações do bicentenário

de Aleijadinho foi a exposição de

fotografias "Luz, cedro e pedra:

esculturas do Aleijadinho" por

Horacio Coppola. Encerrada no

dia 1o de fevereiro deste ano, no

Instituto Moreira Salles, do Rio de

Janeiro, a mostra reuniu 81 imagens

feitas nas cidades mineiras de

Congonhas, Sabará e Ouro Preto

em 1945, pelo fotógrafo argentino

Horácio Coppola, morto em 2012.

As fotografias foram feitas durante

uma das viagens de estudo de

Coppola, que já o tinham levado

a cidades como Berlim, Paris e

Londres. Segundo o professor

da Faculdade de Arquitetura

e Urbanismo da USP, Luciano

Migliaccio, curador da mostra, as

fotografias expressam o caráter

decorativo intrínseco à poética

do escultor. Depois da viagem,

Coppola voltou para Buenos Aires

com um rico acervo de imagens

que, dez anos mais tarde, expôs nos

salões da Associação Amigos del

Libro e publicou no livro Esculturas

de Antonio Francisco Lisboa — O

Aleijadinho (1955). Em 2007, o

Instituto Moreira Salles incorporou

a suas coleções 150 dessas

imagens. Elas podem acessadas em:

www.fotografia.ims.com.br.

7_Cultura_p56a68.indd 60 3/11/15 6:31 PM