apoio: patrocínio: realização - virtual books · 4 contos de hans christian andersen hans...

36
1

Upload: ngodung

Post on 02-Jan-2019

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

1

Page 2: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

2

Apoio:

Patrocínio:

Realização:

Page 3: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

3

Hans Christian Andersen

A SEREIAZINHA

Page 4: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

4

Contos de Hans Christian Andersen

Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 deabril de 1805, e faleceu em Conpenhague em 1875. Autorde inúmeros contos infanto-juvenis, traduzido por todo omundo. Considerado por muitos com o pai da LiteraturaInfanto-Juvenil. Temos aqui uma seleção de seus melho-res contos.

Page 5: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

5

A SEREIAZINHA

BEM no fundo do mar a água é azul como as folhasdas centáureas, pura como o cristal mais transparen-te, mas tão transparente, mas tão profunda que seriainútil jogar ali a âncora e, para medi-la, seria precisocolocar uma quantidade enorme de torres de igrejaumas sobre as outras a fim de verificar a distânciaque vai do fundo à superfície.

Page 6: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

6

Lá é a morada do povo do mar. Mas não pensem queesse fundo se compõe somente de areia branca; não,ali crescem plantas e árvores estranhas e tão leves,que o menor movimento da água faz com que elas seagitem, como se estivessem vivas. Todos os peixes,grandes e pequenos, vão e vêm entre seus galhos,assim como os pássaros o fazem no ar.

No lugar mais profundo está o castelo do rei do mar,cujos muros são de coral, as janelas de âmbar amare-lo e o teto é feito de conchas que se abrem e fechampara receber a água e para despejá-la. Cada umadessas conchas encerra pérolas brilhantes e a menordelas honraria a mais bela coroa de qualquer rainha.

Há muitos anos que o rei do mar estava viúvo e suavelha mãe dirigia a casa. Era uma mulher espiritual,mas tão orgulhosa de sua linhagem, que usava dozeostras na cauda, enquanto que as outras grandespersonagens não usavam senão seis.

Ela merecia elogios, pelos cuidados que tinha paracom as suas netas bem-amadas, todas princesas en-cantadoras.

No entanto, a mais moça era ainda mais linda do queas outras; sua pele era suave e transparente comouma folha de rosa, seus olhos eram azuis como umlago profundo seus longos cabelos louros como o tri-go; todavia, não possuía pés: assim como suas ir-mãs, seu corpo terminava por uma cauda de peixe.

Page 7: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

7

Durante o dia inteiro, as crianças brincavam nas gran-des salas do castelo, onde flores viçosas apareciamentre os muros. Assim que se abriam as janelas deâmbar amarelo, os peixes entravam como fazem ospássaros conosco e comiam na mão das pequenasprincesas, que os acariciavam.

Em frente ao castelo havia um grande jardim comárvores de um azul profundo e um vermelho de fogo.Os frutos brilhavam como se fossem de ouro, e asflores, agitando sem cessar suas hastes e suas fo-lhas, assemelhavam-se a pequenas chamas.

0 solo se compunha de areia branca e fina, ornadoaqui e ali de delicadas conchas e uma luminosidadeazul maravilhosa, que se espalhava por todos os la-dos, dava a impressão de se estar no ar, no meio doazul do céu, ao invés de se estar no mar. Nos dias decalmaria, podia-se perceber a, luz do sol, semelhantea uma pequena flor cor de púrpura que despejasse aluz de sua corola.

Cada uma das princesas tinha seu terreno no jardim,o qual ela cultivava a seu belo prazer.

Uma lhe dava a forma de uma baleia, a outra, a deuma sereia; mas a menor fez o seu em forma de sol eplantou nele flores rubras como ele.Era uma jovem estranha, silenciosa e pensativa.

Enquanto suas irmãs brincavam com diferentes objetosprovenientes dos navios naufragados, ela se divertiaolhando para uma estatueta de mármore branco, re-

Page 8: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

8

presentando um rapaz encantador, colocada sob umchorão magnífico, cor-de-rosa, que a cobria de umasombra cor de violeta.

Seu maior prazer era ouvir as estórias sobre o mundoem que viviam os homens. Todos os dias pedia à avóque lhe falasse dos objetos, das cidades, dos homense dos animais.

Admirava-se, principalmente, de que na terra as flo-res exalassem um perfume que não havia sob a águado mar e de que as florestas fossem verdes. Enquantosuas irmãs brincavam com diferentes objetos prove-nientes dos navios naufragados. . . objetos, das cida-des, dos homens e dos animais.

Não podia imaginar como é que os peixes cantasseme saltitassem entre as árvores. A avó os chamava depássaros: assim mesmo, ela não compreendia.

�Quando você completar quinze anos�, disse a avó,�eu lhe darei permissão para subir à superfície do mare de sentar-se ao luar sobre os rochedos, para ver osgrandes navios passarem e para tomar conhecimentodas florestas e das cidades. Você verá um mundo todonovo�.

No ano seguinte a primeira das jovens completariaquinze anos, e, como não havia senão um ano dediferença entre cada uma delas, a mais moça teriaque esperar ainda cinco anos para subir à superfíciedo mar.

Page 9: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

9

Mas uma prometia sempre à outra contar tudo, o quevisse na sua primeira saída, pois o que a avo contavaainda era pouco e havia tantas coisas que elas aindadesejavam saber!

A mais curiosa era realmente a mais jovem; muitasvezes, durante a noite, ela ficava perto da janelaaberta, tentando perceber os ruídos dos peixes quebatiam suas nadadeiras e suas caudas. Olhava bempara o alto e conseguia ver as estrelas e a lua, maselas lhe pareciam muito pálidas e muito aumentadaspelo efeito da água.

Assim que alguma nuvem as escurecia, ela sabia seruma baleia ou um navio carregado de homens, quenadavam sobre ela. Certamente esses homens nempensavam em que uma encantadora sereiazinha es-tendia suas mãos brancas para o casco do navio quefendia as águas.

Chegou finalmente o dia em que a princesa mais ve-lha completou quinze anos; então ela subiu à superfí-cie do mar, a fim de descobrir o mundo; o desconheci-do.

Ao voltar, estava cheia de coisas para contar.� �Oh!disse ela, é delicioso ver, estendida ao luar sobre umbanco de areia, no meio do mar calmo, as praias dagrande cidade, onde as luzes brilham como se fos-sem. centenas de estrelas; ouvir a música harmonio-sa, o som dos sinos das igrejas, e todo aquele baru-lho de homens e de seus carros!�Oh! como sua irmãzinha ouvia atentamente!

Page 10: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

10

Todas as noites, em frente da janela aberta, olhandoatravés da enorme massa de água, ela sonhavalongamente com a grande cidade, da qual a irmã maisvelha falara com tanto entusiasmo, com seus ruídos esuas luzes, seus habitantes e seus edifícios e pensa-va ouvir os sinos tocarem bem perto dela.

No ano seguinte, a segunda obteve a permissão parasubir. Muito contente, ela emergiu a cabeça no mo-mento em que o céu tocava o horizonte e amagnificência desse espetáculo levou-a ao auge daalegria.

�0 céu inteiro, disse ela ao voltar, parecia ser de ouroe a beleza das nuvens estava além de tudo aquilo quepodemos imaginar. Passavam à minha frente, verme-lhas e roxas e no meio delas voava em direção ao sol,como se fosse um longo véu branco, um bando decisnes selvagens. Eu também quis nadar na direçãodo grande astro vermelho; mas de repente ele desa-pareceu e também a luz rosada que havia em cimadas águas e as nuvens desapareceram.

Depois chegou a vez da terceira irmã. Era a mais im-prudente, e assim, subiu pela embocadura do rio e foiseguindo o seu curso. Avistou admiráveis colinas plan-tadas de vinhedos e árvores frutíferas, castelos e fa-zendas situados no meio de florestas soberbas e imen-sas.

Ouviu o canto dos pássaros e o calor do sol obrigou-a a mergulhar muitas vezes na água, a fim de refres-

Page 11: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

11

car-se.

No meio de uma baía, ela viu uma multidão de sereshumanos que brincavam e se banhavam. Quis brincarcom eles, mas todos se assustaram e um animal pre-to - era um cão - começou a latir com tanta força, queela ficou com muito medo e fugiu para o mar alto.

A sereia jamais pôde esquecer as soberbas florestas,as colinas verdes e as gentis crianças que sabiamnadar, embora não possuíssem cauda de peixe.

A quarta irmã, que era menos afoita, gostou mais deficar no meio do mar selvagem, onde a vista se perdiaao longe e onde o céu se arredondava em volta daágua, como um grande sino de vidro. Percebia os na-vios ao longe; os delfins brincalhões davam camba-lhotas e as baleias colossais lançavam jatos de águapara o ar.

E o dia da quinta irmã chegou; estavam exatamenteno inverno: e assim ela viu o que as outras não pude-ram ver. 0 mar perdera sua cor azul e adquirira um tomesverdeado e por todo lado navegavam, com formasestranhas e brilhantes como diamantes, montanhasde gelo. �Cada uma delas, dizia a viajante, parece-secom uma pérola maior do que as torres da Igreja emque os homens são batizados.

Ela se sentou sobre uma das maiores e todos os na-vegadores fugiam daquele lugar, onde ela abandona-va seus cabelos ao sabor do vento.À noite, uma tempestade cobriu o céu de nuvens.

Page 12: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

12

Os relâmpagos brilhavam, o trovão ribombava, en-quanto que o mar, negro e agitado, elevava os gran-des pedaços de gelo, fazendo-os brilhar ao clarão dosrelâmpagos.

0 terror espalhou-se por todos os lados; mas ela, tran-qüilamente sentada sobre a sua montanha de gelo,viu a tempestade cair em ziguezague sobre a águarevolta.

A primeira vez que uma das irmãs subia à superfície,ficava sempre encantada com tudo o que via; masdepois de crescida, quando podia subir à vontade, oencanto desaparecia, ela dizia que lá embaixo eratudo melhor que nada valia o seu lar. E renunciavabem depressa às suas viagens por lugares distantes.

Muitas vezes, as cinco irmãs, de mãos dadas, subiamà superfície do mar. Possuíam vozes encantadoras comonenhuma criatura humana poderia possuir, e, se poracaso algum navio cruzava o seu caminho, elas nada-vam até ele entoando cantos magníficos sobre a be-leza do fundo do mar, convidando os marinheiros avisitá-las.

Mas estes não podiam compreender as palavras dassereias e nunca viram as maravilhas que elas descre-viam; e assim, quando o navio afundava, os homensse afogavam e somente seus cadáveres chegavamaté o castelo do rei do mar.

Durante a ausência de suas cinco irmãs, a mais jovem

Page 13: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

13

ficava ao pé da janela, seguia-as com o olhar e tinhavontade de chorar. Mas uma sereia não chora, e as-sim, seu coração sofre muito mais.

�Oh! se eu tivesse quinze anos! dizia ela : - Sintodesde já que amarei muito o mundo lá em cima e oshomens que ali moram.�

E chegou o dia em que ela também completou quinzeanos.

�Você vai partir, disse-lhe a avó e velha rainha: venha,para que eu faça a sua �toalete�, assim como fiz asuas irmãs.�

E ela colocou em seus cabelos uma coroa de líriosbrancos, em que cada folha era a metade de umapérola; depois prendeu à cauda da princesa oito gran-des ostras, para designar a sua linhagem elevada.�Como elas me machucam!, disse a sereiazinha.

- Quando se quer ser elegante é preciso sofrer umpouco, replicou a velha rainha.

Entretanto, a sereiazinha teria dispensado todos es-ses luxos e a pesada coroa que levava na cabeça.Gostava muito mais das flores vermelhas de seu jar-dim; todavia, não ousava fazer observações.

�Adeus!�, disse ela; e, ligeira com uma bola de sabão,atravessou a água.

Assim que sua cabeça apareceu na superfície da água,

Page 14: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

14

o sol acabava de se deitar; mas as nuvens brilhavamainda, como rosas de ouro e a estrela vespertina ilu-minava o meio do céu. 0 ar estava doce e fresco e omar aprazível.

Perto da sereiazinha estava um navio de três mas-tros; não levava mais do que uma vela, por causa dacalmaria e os marujos estavam sentados nas vergas éno cordame. A música e as canções ressoavam semcessar e, a aproximação da noite, tudo ficou ilumina-do por cem lanternas penduradas por toda a parte:podia-se acreditar estar vendo as bandeiras de todasas nações.

A sereiazinha nadou até a janela do grande aposento,e, de cada vez que se alçava, percebia através dosvidros transparentes uma quantidade de homensmagnificamente trajados. 0 mais belo deles era umjovem príncipe muito elegante, de longos cabelosnegros, com a idade ao redor dos dezesseis anos eera para celebrar sua festa que todos aqueles prepa-rativos estavam sendo realizados.

Os marujos dançavam no convés, e quando o jovempríncipe ali apareceu, cem tiros ecoaram no ar, des-prendendo uma luz como aquela do dia.

A sereiazinha mergulhou imediatamente; mas assimque reapareceu, todas as estrelas do céu pareceramcair sobre ela. Ela nunca vira fogos de artifício; doisgrandes sóis de fogo rodavam no ar, e todo o mar,puro e calmo, brilhava. Sobre o navio podia-se vislum-brar cada cordinha e melhor ainda, os homens. Oh!

Page 15: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

15

como o jovem príncipe era lindo! Ele apertava a mãode todos, falava e sorria a cada um, enquanto a mú-sica enviava para o ar os seus sons harmoniosos.

já era muito tarde, mas a sereiazinha não se cansavade admirar o navio e o belo príncipe. As lanternas nãobrilhavam mais e os tiros de canhão já haviam cessa-do; todas as velas tinham sido içadas e o veleiro seafastava a grande velocidade. A princesa o seguiu,sem desviar os olhos das janelas.

Mas logo a seguir o mar começou a agitar-se; as on-das aumentaram e grandes nuvens negras se agrupa-vam no céu. À distância brilhavam os relâmpagos euma terrível tempestade se preparava. 0 veleiro sebalançava sobre a água do mar impetuoso, numa marcharápida. As vagas rolavam sobre ele, tão altas comomontanhas.

A sereiazinha continuou com a sua viagem acidenta-da; divertia-se bastante. Mas assim que o veleiro,sofrendo as conseqüências da tempestade, começoua estalar e a adernar, ela compreendeu o perigo e teveque tomar cuidado para não ferir-se nos pedaços demadeira que vinham até ela.

Por um instante fez-se uma tal escuridão, que não seavistava absolutamente nada; outras vezes, os re-lâmpagos tornavam visíveis os menores detalhes dacena.

A agitação tomara conta do pessoal do navio; maisuma sacudidela! ouviu-se um grande barulho e o bar-

Page 16: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

16

co partiu-se ao meio; e a Ísereiazinha viu o príncipe mergulhar no mar profundo.Louca de alegria, ela imaginou que ele fosse visitar asua morada; mas depois lembrou-se de que os ho-mens não podem viver dentro da água e que, em con-seqüência, ele chegaria morto ao castelo de seu pai.

Então, para salvá-lo, ela atravessou a nado a distân-cia que a separava do príncipe, passando pelos des-troços do navio, arriscando-se a se machucar, mergu-lhou profundamente nas águas por várias vezes e assimpôde chegar até o jovem príncipe, justamente no ins-tanteem que suas forças começavam a abandoná-lo e quan-do ele já fechava os olhos, a ponto de estar paramorrer.

A sereiazinha levou para o alto das águas, sustentousua cabeça fora delas, depois abandonou-se com eleao capricho das ondas.Na manhã seguinte o bom tempo voltou, mas já qua-se nada restava do veleiro. Um sol vermelho, de raiospenetrantes, parecia chamar à vida o jovem príncipe;mas seu olhos continuavam cerrados. A sereiazinhadepositou um beijo em sua fronte e ergueu seus ca-belos molhados.

Achou-o parecido com a sua estátua de mármore dojardim e rezou pela sua saúde. Passou em frente àterra firme, coberta por altas montanhas azuis, noalto das quais brilhava a neve branca. Perto da costa,no meio de uma soberba floresta verde, havia umacidade com uma igreja e um convento.

Page 17: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

17

As casas possuíam os tetos vermelhos. Em volta dascasas havia grandes palmeiras e os pomares estavamcheios de laranjeiras e limoeiros; não longe dali o marformava um pequeno golfo, entrando por um rochedocoberto de fina areia branca.

Foi ali que a sereia colocou o príncipe com cuidado,tomando cautela para que ele ficasse com a cabeçaalta e pudesse receber os raios do sol. Pouco a poucoas cores foram voltando ao rosto do príncipe desmai-ado.

Daí a pouco os sinos da igreja começaram a tocar euma quantidade enorme de moças apareceu nos jar-dins. A sereiazinha afastou-se nadando e escondeu-se atrás de umas grandes pedras para observar o queacontecia ao jovem príncipe.

Logo depois, uma das moças passou por ele; no iníciopareceu assustar-se, mas logo a seguir, foi buscaroutras pessoas, que começaram a tratar do príncipe.A sereia viu-o recobrar os sentidos e sorrir a todosaqueles que tratavam dele; só não sorriu para ela,pois não sabia que o havia salvo. E assim, logo que oviu ser conduzido para uma grande mansão, ela mer-gulhou tristemente e voltou para o castelo de seu pai.

A sereiazinha sempre fora silenciosa e pensativa; apartir desse dia, ficou muito mais ainda. Suas irmãsperguntaram-lhe o que ela vira lá em cima, mas elanão quis contar nada.

Page 18: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

18

Mais de uma vez, à noite e pela manhã, ela voltou aolugar onde deixara o príncipe. Viu as flores morrerem,os frutos do jardim amadurecerem, viu a neve desa-parecer das altas montanhas, mas jamais viu o prín-cipe; e voltou cada vez mais triste para o fundo domar.

Lá, seu único consolo era sentar-se em seu pequenojardim e abraçar a linda estatueta de mármore que separecia tanto com o príncipe, enquanto que suas flo-res negligenciadas e esquecidas, cresciam pelas alhei-as como umas selvagens, entrelaçavam seus longosgalhos nos ramos das árvores, formando uma peque-na floresta que obscurecia tudo.

Finalmente essa existência tornou-se insuportável; eela contou tudo a uma de suas irmãs, que o contou àsoutras, as quais repetiram a estória a algumas ami-gas íntimas. E acontece que uma destas, que tambémvira a festa do navio, conhecia o príncipe e sabia ondeestava situado o seu reino.

�Venha, irmãzinha�, disseram as princesas; e, pas-sando os braços por suas costas, carregaram com asereiazinha pelo mar em fora, e depositaram-na emfrente ao castelo do príncipe.

0 castelo era construído de pedras amarelas e luzidi-as; grande escadaria de mármore levava até o jardim;galerias imensas estavam ornamentadas com estátu-as de mármore que pareciam vivas. As salas, magní-ficas, eram ornamentadas de quadros e tapeçariasincomparáveis e as paredes estavam cobertas de qua-

Page 19: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

19

dros maravilhosos.

No grande salão, o sol iluminava, através de umagrande janela de vidro, as plantas mais raras, queestavam num grande vaso e embaixo de vários jatosde água.

Desde então, a sereiazinha começou a ir a esse lugar,tanto durante o dia, como à noite; aproximava-se dacosta, ousava mesmo sentar-se sob a grande varandade mármore que projetava uma sombra em seus olhos;muitas vezes, ao som da música, o príncipe passavapor ela em seu barco florido, mas ao ver seu véu bran-co em meio aos arbustos verdes, pensava tratar-sede um cisne ao abrir suas asas.

Ela ouvia também os pescadores falarem muito bemdo jovem príncipe e então ela ficava feliz de lhe tersalvo a vida, o que, aliás, ele ignorava completamen-te.

Sua afeição pelos homens crescia dia a dia e cada vezmais ela desejava se elevar até eles. Seu mundo lheparecia muito mais vasto do que o dela; eles sabiamnavegar pelos mares com seus navios, subir pelasaltas montanhas até as nuvens; eles possuíam imen-sas florestas e campos verdejantes.

Suas irmãs não podiam satisfazer toda a sua curiosi-dade, então ela perguntou à sua velha avo, que co-nhecia muito o mundo mais elevado, o que muito jus-tamente era chamado de país à beira-mar.

Page 20: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

20

�Os homens vivem eternamente?, pergunta a jovemprincesa. Eles não morrem assim como nós?

- Sem dúvida, - respondia a velha, eles morrem e suaexistência é mesmo mais curta do que a nossa. Nósoutros vivemos algumas vezes trezentos anos; de-pois, ao morrermos, nós nos transformamos em espu-ma, pois no fundo do mar não existem túmulos parareceberem os corpos inanimados.

Nossa alma não é imortal; depois da morte está tudoacabado. Nós somos com as rosas verdes: uma vezcortadas, não florescem mais! Os homens, pelo con-trário, possuem uma alma que vive eternamente, quevive mesmo depois que seus corpos viram cinzas; essaalma voa até o céu e vai até as estrelas que brilhame mesmo que nós possamos sair da água e ir até opais dos homens, não podemos ir a certos lugaresmaravilhosos e imensos, que são inacessíveis ao povodo mar.

- E por que não possuímos a mesma alma imortal? -pergunta a sereiazinha muito aflita - eu daria de boavontade as centenas de anos que ainda tenho queviver para ser homem, nem que fosse por um dia epartir depois para o mundo celeste.

- Não pense em semelhantes tolices replicou a velha- nós somos muito mais felizes aqui embaixo, do queos homens lá em cima.

- No entanto, chegará o dia em que deverei morrer.Não serei mais do que uma espuminha; para mim,

Page 21: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

21

não mais o murmúrio das vagas, nada de flores nemde sol! Não há nenhum meio de conquistar uma almaimortal?

- Somente um, mas é quase impossível. Seria precisoque um homem concebesse por você um amor infinito,que você lhe fosse mais cara do que seu pai ou suamãe. Então, agarrado a você com toda a sua alma e oseu coração, ele unisse sua mão à de você com otestemunho de um padre, jurando fidelidade eterna,sua alma se comunicaria ao seu corpo e você seriaadmitida na felicidade dos homens.

Mas jamais isso poderá ser feito! 0 que é consideradomais lindo aqui no mar, que éa sua cauda de peixe, eles acham detestável na terra.Pobres homens! Para serem lindos acham que preci-sam daqueles suportes grosseiros que chamam depernas!�

A sereiazinha suspirou tristemente, olhando para asua cauda de peixe.�Sejamos alegres!, diz a velha, saltemos e nos divir-tamos durante os trezentos anos de nossa existên-cia; é um lapso de tempo muito agradável e nós con-versaremos mais tarde. Esta noite há um baile nacorte.�

Não se pode fazer idéia na terra de uma talmagnificência. A grande sala de baile era inteira decristal; milhares de ostras enormes, colocadas de cadalado, nos muros também transparentes, iluminavamo mar a grande distância. Viam-se muitos peixes na-

Page 22: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

22

dando, grandes e pequenos, cobertos de escamasluzentes como a púrpura, como ouro e prata.

No meio da sala corria um grande rio no qual dança-vam os delfins e as sereias, ao som de sua própria vozque era maravilhosa. A sereiazinha era a que cantavamelhor e ela foi tão aplaudida, que, por um instante,sua alegria fez com que esquecesse as maravilhas daterra.

Mas dentro em breve ela retornou à sua tristeza, pen-sando no belo príncipe e na sua alma imortal. Aban-donou os cantos e os risos, saiu silenciosamente docastelo e sentou-se no seu pequeno jardim. De lá elaouvia o som dos coros, que atravessava a água.

�Eis que passa, aquele que eu amo de todo o meucoração, aquele que ocupa todos os meus pensamen-tos e a quem eu desejaria confiar minha vida! Arrisca-ria tudo por ele e para ganhar uma alma imortal. En-quanto minhas irmãs dançam no castelo de meu pai,eu vou procurar a feiticeira do mar, que eu tanto temiaté agora. Talvez ela possa me dar conselhos e aju-dar-me.�

E a sereiazinha, saindo de seu jardim, dirigiu-se paraas rochas escuras onde vivia a feiticeira. Jamais elaseguira por esse caminho. Não havia nem uma flornem uma árvore. No fundo, a areia cinzenta e lisa,formava um redemoinho.

A princesa viu-se obrigada a atravessar esse terrívelturbilhão para chegar aos domínios da feiticeira, onde

Page 23: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

23

sua casa se elevava no meio da mais estranha flores-ta. Todas as árvores e as rochas não eram mais doque polidos, metade animal metade planta, parecidoscom as serpentes que saem da terra.

Os galhos eram braços ondeantes, terminados pordedos em forma de copos, que se mexiam continua-mente. Esses braços agarravam tudo que ; aparecia àsua frente e não os largavam mais.

A sereiazinha, tomada de pavor, teve vontade de re-troceder; todavia, ao pensar no príncipe e na sua almaimortal, armou-se de toda a sua coragem. Prendeuseu cabelo em torno da cabeça, para que os políposnão a pudessem agarrar, cruzou os braços no peito enadou assim, entre aquelas horríveis criaturas.

Chegou finalmente a um grande lugar no meio daque-la floresta, onde enormes serpentes do mar mostra-vam seus ventres amarelos. No meio do local estavaa casa da feiticeira, construída com ossos de náufra-gos, e onde a feiticeira, sentada numa grande pedra,dava de comer a um grande sapo, assim como oshomens dão migalhas aos passarinhos. Chamava suasserpentes de meus franguinhos e se divertia fazendo-as rolarem sobre seus ventres amarelos.

�Sei o que você deseja, falou ela ao ver a princezinha;seus desejos são idiotas; de qualquer forma, eu ossatisfarei, mesmo sabendo que eles só lhe trarão in-felicidade. Você quer desembaraçar-se dessa caudade peixe e trocá-la por duas peças daquelas com quemarcham os homens, a fim de que o príncipe se apai-

Page 24: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

24

xone por você, case-se com você e lhe dê uma almaimortal.�

Ao dizer isso, ela deu uma gargalhada espantosa, quefez com que o sapo e as serpentes rolassem no chão.

�Afinal, você fez bem em vir; amanhã, ao nascer dosol, vou preparar-lhe um elixir que você levará paraterra. Sente-se na costa e beba-o. Logo a sua caudase dividirá, transformando naquilo que os homenschamam de duas belas pernas. Mas eu lhe aviso queisso lhe fará sofrer como se lhe cortassem com umaespada afiada. Todo mundo admirará a sua beleza,você conservará sua marcha ligeira e graciosa, mascada um de seus passos doerá tanto, como se vocêcaminhasse sobre espinhos, fazendo o sangue correr.Se estiver disposta a sofrer tanto, eu poderei ajudá-la.

�Suportarei tudo!�, disse a sereia com voz trêmula,pensando no príncipe e na alma imortal.

�Mas não se esqueça de que, continuou a feiticeira,uma vez transformada em ser humano, você não po-derá voltar a ser uma sereia! Você nunca mais verá ocastelo de seu pai; e se o príncipe, esquecendo-se deseu pai e de sua mãe, não se apegar a você de todoo coração e não se unir a você em casamento, vocêjamais terá uma alma imortal- No dia em que ele secasar com uma outra mulher, seu coração se quebraráe você não será mais do que uma espuma no alto dasvagas.

Page 25: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

25

- Concordo - disse a princesa, pálida como uma morta.

- Nesse caso - prosseguiu a feiticeira é preciso quevocê me pague; e eu não lhe peço pouca coisa. Suavoz é a mais linda do os sons do mar, você pensa comela encantar o príncipe, mas é justamente a sua vozque eu exijo como pagamento. Desejo o que você temde mais precioso, em troca do meu elixir; porque,para torná-lo bem eficaz, eu tenho que jogar dentrodele o meu próprio sangue.

- Mas se você tomar a minha voz, - perguntou asereiazinha - que me restará?

- Sua figura encantadora - respondeu a feiticeira, seucaminhar leve e gracioso e seus olhos expressivos,isso é mais do que suficiente para enfeitiçar qualquerhomem. Vamos! Coragem! Estire a língua para que eua corte, depois lhe darei o elixir.

- Seja - respondeu a princesa e a feiticeira cortou-lhea língua. A pobre menina ficou muda.

A seguir, a feiticeira colocou seu caldeirão no fogopara fazer ferver o seu magico elixir.

- A propriedade é uma bela coisa - disse ela apanhan-do um pacote de víboras para limpar o caldeirão. De-pois, dando um talho com a faca em seu próprio peito,deixou cair seu negro sangue dentro do caldeirão.

Um vapor elevou-se, formando figuras estranhas eassustadoras. A cada instante a velha juntava mais

Page 26: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

26

ingredientes e quando tudo começou a ferver, ela acres-centou um pó feito de dentes de crocodilo. Uma vezpronto, o elixir tornou-se totalmente transparente.

�Aqui está, disse a feiticeira, depois de ter derramadoo elixir num frasco. Se os polípos quiseram agarrá-laao sair, basta jogar-lhes uma gota desta bebida eeles se farão em mil pedaços.�

Este conselho foi inútil; pois os polípos, aperceben-do-se do elixir nas mãos da sereia, recuaram assusta-dos. E assim, ela pôde atravessar sem sustos a flo-resta e os redemoinhos.

Quando chegou ao castelo de seu pai, as luzes dagrande sala de danças estavam apagadas; todo mun-do dormia, mas ela não ousou entrar.

Não podia falar com eles e logo iria deixá-los parasempre- Parecia que seu coração se partia de dor. Aseguir foi até seu jardim, colheu uma flor de cada umdos de suas irmãs, enviou uma porção de beijos aocastelo e subiu à superfície do mar, afastando-se parasempre.

0 sol ainda não estava alto, quando ela chegou aocastelo do príncipe. Sentou-se na praia e bebeu oelixir; foi como se uma espada afiada penetrasse emseu corpo; ela de desmaiou e ficou estendida na areiacomo morta.

0 sol já estava alto quando ela acordou sentindo umador cruciante. Mas à sua frente estava o príncipe en-

Page 27: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

27

costado a um rochedo, lançando sobre ela um olharcheio de admiração. A sereiazinha baixou os olhos eentão viu que a sua cauda de peixe desaparecera,dando lugar a duas pernas brancas e graciosas.

0 príncipe perguntou-lhe quem era ela e de onde vi-nha; ela fitou-o com um olhar doce e aflito, sem poderdizer uma só palavra. Depois o jovem a tomou pelamão e levou-a para o castelo. Assim como dissera afeiticeira, a cada passo que ela dava, sentia doresatrozes; entretanto, subiu a escadaria de mármorepelo braço do príncipe, leve como uma bola de sabãoe todos admiraram o seu andar gracioso. Vestiram-nade seda, sem deixarem de admirara sua beleza; masela continuava muda. Escravas vestidas de ouro e pratacantavam para o príncipe; ele aplaudia e sorria para ajovem.

�Se ele soubesse, pensava ela, que por ele eu sacrifi-quei uma voz mais linda ainda!�

Depois de cantarem, as escravas dançaram. Mas as-sim que a pequena sereia começou a dançar nas pon-tas dos pés, quase sem tocar o solo, todos ficaramextasiados. Nunca haviam visto uma dança mais lindae harmoniosa. 0 príncipe pediu-lhe que não o deixas-se mais e permitiu-lhe que dormisse à sua porta, numaalmofada de veludo. Todos ignoravam o seu sofrimen-to ao dançar.

No dia seguinte o príncipe lhe deu um traje de amazo-na para que ela o seguisse a cavalo. Depois de teremsaído da cidade aclamados pelos súditos do príncipe,

Page 28: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

28

eles atravessaram prados cheios de flores, florestasperfumadas e alcançaram altas montanhas; e a prin-cesa, rindo-se, sentia seus pés arderem.

A noite, enquanto os outros dormiam, ela desciasecretamente a escadaria de mármore e ia até a praia,a fim de refrescar os pés doridos na água fria do mare a lembrança de sua pátria vinha ao seu espírito.

Uma noite, ela viu suas irmãs de mãos dadas; canta-vam tão tristemente ao nadarem, que a sereiazinhanão pôde deixar de fazer-lhes um sinal. Tendo-a reco-nhecido, elas lhe contaram como ela havia deixadotodos tristes. Todas as noites elas voltavam e umavez chegaram a levar a avó, que há muitos anos nãopunha a cabeça na superfície e o rei do mar com a suacoroa de coral. Os dois estenderam as mãos para afilha; mas não ousaram, assim como as rimas, apro-ximar-se da praia.

Cada dia que se passava o príncipe mais a amava,como se ama uma criança bondosa e gentil, sem ter aidéia de transformá-la em sua esposa. No entanto,para que ela tivesse uma alma imortal, era precisoque ele se casasse com ela.

�Não me ama mais do que a todas as outras? eis oque pareciam dizer os olhos tristes da pequena muda,quando o tomava nos braços e depositava um beijona sua fronte.

- E� claro que sim - respondia o príncipe - pois vocêpossui o melhor coração de todas; você é mais devo-

Page 29: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

29

tada e se parece com a jovem que eu encontrei umdia, mas que talvez não veja nunca mais. Quando euestava num navio, sofri um naufrágio e fui depositadoem terra pelas ondas, perto de um convento habitadopor muitas jovens. A mais moça delas encontrou-mena praia e me salvou a vida, mas eu a vi somenteduas vezes. jamais neste mundo, eu poderia amaroutra que não a ela; pois bem! Você se parece comela, muitas vezes chega mesmo a substituir a ima-gem dela em meu coração.

- Ai de mim!, pensou a sereiazinha, ele ignora ter sidoeu a salvá-lo, e a colocá-lo perto do convento. Amauma outra! No entanto, essa jovem está encerradanum convento e jamais sai; talvez ele a esqueça pormim, por mim que o amarei sempre e lhe devotareitoda a minha vida�.

�0 príncipe vai-se casar com a linda filha do rei vizi-nho, disseram um dia; está equipando um soberbonavio sob o pretexto de visitar o rei, mas a verdade éque ele vai-se casar com a filha�.

Isso fez a princesa sorrir, pois ela sabia melhor do queninguém quais os pensamentos do príncipe. Ele lhedissera: �já que meus pais exigem, irei conhecer aprincesa, mas jamais eles farão com que eu a tomeem minha esposa. Não posso arriá-la; ela não se pa-rece, como você, com a jovem do convento e eu pre-feriria casar com você, pobre menina abandonada, deolhos tão expressivos, malgrado o seu eterno silên-cio.�

Page 30: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

30

E, depois de falar dessa maneira, ele depositou umbeijo em seus longos cabelos.

0 príncipe partiu.

�Espero que você não tenha medo do mar�, disse-lheele no navio que os levava.

A seguir falou-lhe nas tempestades e no mar furioso,nos estranhos peixes e em tudo que se encontrava nofundo do mar. Essas conversas faziam-na sorrir, poisela conhecia o fundo do mar melhor do que qualqueroutra pessoa.

Sob o luar, quando os outros dormiam, ela, então, sesentava na amurada do navio e alongava seu olharatravés da transparência da água, acreditando perce-ber o castelo de seu pai e os olhos de sua avó fixadosna quilha do navio. Uma noite suas irmãs aparece-ram; olharam-na tristemente agitando as mãos.

A jovem chamou-as por sinais e esforçou-se por dar-lhes a entender que tudo ia bem; mas no mesmoinstante um grumete se aproximou e elas desapare-ceram, fazendo crer ao pequeno marujo que ele virauma espuma no mar.

No dia seguinte o navio entrou no porto da cidade emque morava o rei vizinho. Todos os sinos repicaram, amúsica enchia a cidade e os soldados, no alto dastorres, balançavam as suas bandeiras. Todos os diashavia festas, bailes e noitadas; mas a princesa aindanão chegara do convento, onde recebera uma brilhan-

Page 31: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

31

te educação.

A sereiazinha estava muito curiosa para ver a suabeleza: e, finalmente, teve essa satisfação. Teve dereconhecer jamais ter visto uma tão linda figura, umapele tão branca e olhos negros tão sedutores.

�E� você!, gritou o príncipe ao vê-la, foi você que mesalvou quando eu estava na praia�. E apertou entre osbraços a sua noiva toda corada. �E� muita felicidade!,continuou ele, voltando-se para a sereiazinha. Meusdesejos mais ardentes se realizaram! Você comparti-lhará de minha felicidade, pois ama-me mais do quequalquer pessoa.�

A jovem do mar beijou a mão do príncipe, emborativesse o coração ferido.

No dia do casamento daquele que ela amava, asereiazinha devia morrer e transformar-se em espu-ma.

A alegria reinava por todos os lados; os arautos anun-ciavam o noivado em todas as ruas e ao som de suascornetas. Na grande igreja, um óleo perfumado bri-lhava nas lâmpadas de prata e os padres agitavam osincensários; os dois noivos deram-se as mãos e rece-beram a bênção do bispo. Vestida de seda e ouro, asereiazinha assistiu à cerimônia; mas ela só pensavana sua morte próxima e em tudo o que perdera nestemundo.

Na mesma noite, os recém-casados embarcaram ao

Page 32: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

32

som das salvas da artilharia. Todos os pavilhões esta-vam içados no meio do navio que estava pintado deouro e purpura e onde fora preparado um magníficoleito. As velas se inflaram e o navio afastou-se ligei-ramente sobre o mar claro.

Ao aproximar-se a noite, acenderam lanternas de vá-rias cores e os marujos começaram a dançar alegre-mente no convés. A sereiazinha lembrou-se da noiteem que ela os vira dançar pela primeira vez. E come-çou a dançar também, leve como uma borboleta e foiadmirada como um ser sobre-humano.

Mas é impossível descrever o que se passava em seucoração; no meio da dança, ela pensava naquele porquem deixara sua família e sua pátria, sacrificandosua bela voz e sofrendo inúmeros tormentos- Essaera a última noite em que ela respirava o mesmo arque ele, em que poderia olhar para o mar profundo epara o céu cheio de estrelas. Uma noite eterna, umanoite sem sonhos e aguardava, já que ela não pos-suía uma alma imortal. justamente até a meia-noitea alegria reinou em torno dela; ela própria ria e dan-çava, com a morte no coração.

Finalmente, o príncipe e a princesa retiraram-se paraa sua tenda armada no convés: ficou tudo silenciosoe o piloto quedou-se sozinho em frente ao leme. Asereiazinha, apoiando seus braços brancos na amuradado navio, olhava para o oriente, do lado do nascer dosol; sabia que o primeiro raio de sol a mataria.

De repente, suas irmãs saíram do mar, tão pálidas

Page 33: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

33

quanto ela mesma; elas nadaram em volta do barco echamaram por sua irmã que ficara muito triste: oslongos cabelos de suas irmãs não flutuava mais aovento, elas o haviam cortado.

�Nós os entregamos à feiticeira, disseram elas, paraque ela venha em seu auxílio e a salve da morte. Emtroca ela nos deu um punhal bem afiado, que aquiestá. Antes do nascer do sol, é preciso que você oenterre no coração do príncipe e, assim que o sangueainda quente cair aos seus pés, eles se unirão e setransformarão numa cauda de peixe. Você voltará aser uma sereia; poderá descer para a água junto denós e somente daqui a trezentos anos é que se trans-formara em espuma.

Venha, você ficará alegre novamente. Tornará ver nos-sos jardins, nossas grutas, o palácio, a sua voz mavi-osa será ouvida outra vez; junto a nós você percorreráos mares imensos. Mas não demore! Pois antes donascer do sol é preciso que um de vocês morra. Mate-o e venha, nós lhe suplicamos! Está vendo aquela luzvermelha no horizonte? Dentro de alguns minutos osol nascerá e tudo estará terminado para você! Ve-nha! Venha!�

A seguir, com um longo suspiro, elas mergulharamnovamente, a fim de irem encontrar-se com a velhaavó que esperava ansiosa pela sua volta.

A sereiazinha levantou a cortina da tenda e viu a jo-vem esposa adormecida, com a cabeça apoiada nopeito do príncipe. Aproximou-se dos dois e depositou

Page 34: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

34

um beijo na fronte daquele que tanto amara. A seguir,voltou seu olhar para a aurora que se aproximava,para o punhal que levava nas mãos e para o príncipeque pronunciava em sonhos o nome de sua esposa,levantou a mão que empunhava o punhal e ... lançou-o no meio das vagas. No lugar onde ele caíra, pare-ceu-lhe ver várias gotas de sangue rubro. A sereiazinhalançou mais um olhar para o príncipe e precipitou-seno mar, onde sentiu seu corpo dissolver-se em espu-ma.

�Nesse instante o sol saiu das vagas; seus raios be-néficos caíram sobre a espuma fria e a sereiazinhanão sentiu mais a morte; ela viu o sol brilhante, asnuvens de púrpura e em sua volta flutuarem milharesde criaturas celestes e transparentes. Suas vozes for-mavam uma melodia encantadora, mas tão sutil, quenenhum ouvido humano poderia ouvir, assim comonenhum olhar humano poderia ver as criaturas. A jo-vem do mar apercebeu-se de que possuía um corpoigual ao delas e que, pouco a pouco, ela se elevavasobre a espuma.

�Onde estou?, perguntou ela com uma voz da qualmúsica alguma pode dar uma idéia.

Junto com as filha do ar, responderam as outras. Asereia não possui uma alma imortal e só pode conse-guir uma, através do amor de um homem; sua vidaeterna depende de um poder estranho. Assim comoas sereias, as filhas do ar não possuem uma almaimortal, mas podem ganhar uma, por meio de boasações.

Page 35: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

35

Nós voamos para os países quentes, onde o ar pesti-lento mata os homens, para levar-lhes o frescor; es-palhamos pelos ares o perfume das flores por toda aparte por onde passamos, levamos o socorro e damossaúde. Depois que praticamos o bem durante trezen-tos anos, adquirimos uma alma imortal a fim de par-ticipar da felicidade eterna dos homens.

Pobre sereiazinha, você esforçou-se da mesma formaque nós; como nós você sofreu e, saindo vitoriosa desuas provações, elevou-se até o mundo dos espíritosdo ar e agora depende de você ganhar ou não umaalma imortal, por meio de suas boas ações.�

E a sereiazinha, levantando os braços para o céu,derramou lágrimas pela primeira vez. Os gritos dealegria foram ouvidos novamente sobre o navio; masela viu o príncipe e sua bela esposa olharem fixamen-te e melancolicamente para as espumas brilhantes,como se soubessem que ela se precipitara nas ondas.

Invisível ela abraçou a esposa do príncipe, lançou umsorriso aos recém-casados, depois subiu com as ou-tras filhas do ar para uma nuvem cor-de-rosa, que seelevou no céu.

FIM

Page 36: Apoio: Patrocínio: Realização - Virtual Books · 4 Contos de Hans Christian Andersen Hans Christian Andersen nasceu em Odensae, em 2 de abril de 1805, e faleceu em Conpenhague

36

Copyright © 2000, virtualbooks.com.brTodos os direitos reservados a Editora Virtual BooksOnline M&M Editores Ltda. É proibida a reprodução doconteúdo desta página em qualquer meio de comunica-ção, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita daEditora.