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Page 1: Análise de um empreendimento de economia solidária filecomo proposta discutir o trabalho na perspectiva da economia solidária, analisando as vivências dos trabalhadores de um empreendimento,

Ciências Sociais Unisinos

ISSN: 1519-7050

[email protected]

Universidade do Vale do Rio dos Sinos

Brasil

Veríssimo Veronese, Marília

Análise de um empreendimento de economia solidária sob a ótica da sociologia das ausências e das

emergências

Ciências Sociais Unisinos, vol. 41, núm. 2, mayo-agosto, 2005, pp. 89-99

Universidade do Vale do Rio dos Sinos

São Leopoldo, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=93820813004

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Page 2: Análise de um empreendimento de economia solidária filecomo proposta discutir o trabalho na perspectiva da economia solidária, analisando as vivências dos trabalhadores de um empreendimento,

Ciências Sociais Unisinos41(2):89-99, maio/agosto 2005@ 2005 by Unisinos

Análise de um empreendimento de economia solidáriasob a ótica da sociologia das ausências e das emergências

Analysis of a solidary enterprise under the view of sociologyof absences and emergencies

Marília Veríssimo Veronese1

[email protected]@unisinos.br

Resumo

Esse artigo é resultado de uma pesquisa em nível de doutorado em psicologia, um estudode caso realizado junto a uma cooperativa urbana situada em Porto Alegre (RS). Temcomo proposta discutir o trabalho na perspectiva da economia solidária, analisando asvivências dos trabalhadores de um empreendimento, bem como as questões da subjetivi-dade ligadas aos processos laborais. Seus principais articuladores teóricos são Boaventurade Sousa Santos, com a proposição da sociologia das ausências e das emergências, FernandoGonzalez Rey e Felix Guattari, com as teorizações acerca da subjetividade, respectivamen-te compreendida como processo de produção simbólica de sentidos e produção histórico-social que assume uma forma serializada na contemporaneidade capitalista. Os principaisachados, na análise da trajetória do empreendimento, apontam para as grandes dificulda-des encontradas pelos sujeitos que trabalham no campo da economia solidária, que em-bora identificados com formas alternativas de viver e trabalhar, percebem o processo deapropriação da autogestão como acima de suas possibilidades. Desejam diferenciar-se dosmodos de gestão capitalista, mas experimentam a tentativa como um labirinto no qual sesentem perdidos, autodepreciando-se e culpabilizando-se pelas dificuldades encontradas.As constelações relacionais de poder dão-se de forma não dialógica e assimétrica. Contu-do, vislumbram possibilidades de recomeçar, mostrando que o campo apresentapotencialidade emancipatória, onde o coletivo pode permitir a singularização do sujeitoque a partir dele se reconhece e constitui.

Palavras-chave: trabalho, subjetividade, economia solidária, sociologia das ausências edas emergências.

Abstract

This paper is a result of a doctorate research in psychology, a case study done in an urbancooperative society in Porto Alegre (RS). Its goal is to discuss the work in the solidaryeconomy, analyzing the experiences of workers in an enterprise, as well as the subjectivityquestions linked to laboral processes. Its main theoretical frames are Boaventura de SousaSantos, with the sociology of the absences and emergencies, as well as Fernando GonzalezRey and Felix Guattari, with the theorizations on subjectivity, respectively understood as aprocess of a symbolic sense production and a social-historical production that assumes aserial pattern in the capitalist contemporaneity. The main findings, in the enterprise

1 Mestre em psicologia social e da personalidadepela Pontifícia Universidade Católica do RioGrande do Sul; Doutora em psicologia pelaPontifícia Universidade Católica do Rio Grandedo Sul. Docente e pesquisadora do curso Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas daUniversidade do Vale do Rio dos Sinos(UNISINOS).

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90ANÁLISE DE UM EMPREENDIMENTO DE ECONOMIA SOLIDÁRIA SOB A ÓTICA DA SOCIOLOGIA DAS AUSÊNCIAS E DAS EMERGÊNCIAS

CIÊNCIAS SOCIAIS UNISINOS

Introdução

A origem deste texto é a realização de uma pesquisa naárea da psicologia social do trabalho, que se ocupou de discu-tir uma experiência laboral vivenciada no campo da econo-mia solidária. Tratava-se de um estudo de caso sobre umacooperativa de distribuição e comercialização de produtos paraabastecimento familiar (Veronese, 2004). O empreendimen-to analisado existiu no período de 2000 a 2003, tendo nesteúltimo ano sido extinto, em meio a graves problemasinstitucionais. Um pequeno grupo de pessoas, remanescen-te da experiência original, iria tentar novamente empreenderno campo do trabalho solidário, inaugurando uma nova coo-perativa, chamada Ética e Ação Popular; tal processo mobili-zou fortemente suas vidas e trajetórias, e foi o objeto de aná-lise na investigação. Esta última se estruturou como uma nar-rativa, realizada a partir da ótica de seus atores/narradores.

Tal narrativa, enquanto pesquisa científica, esteve em-bebida da lógica da sociologia das ausências e das emergên-cias (Santos, 2002), numa tentativa de dar a conhecer evalidar modos alternativos de conhecimento e de práticassociais. Esse procedimento psicossociológico parte de umapreocupação com o desperdício da riqueza de experiênciassociais, em curso ao redor do mundo, incluindo formas di-versas de economia solidária, descredibilizadas porque seusagentes ocupam um lugar de “não existência”, um lugarinferiorizado na perspectiva da lógica hegemônica, conside-rando o sistema-mundo globalizado como arena pública oci-dental contemporânea.

Este artigo, construído a partir de alguns pontos im-portantes daquela pesquisa, traz conceitos que, na áreada psicologia social do trabalho, podem auxiliar na com-preensão das dificuldades experimentadas por aquelesque se arriscam a empreender formas alternativas de tra-balhar. Almeja contribuir na compreensão sobre os mo-dos de viver e trabalhar contemporâneos, a partir dissodesenvolvendo inter venções com perspect ivasemancipatórias, no trabalho e para além dele.

Priorizo, inicialmente, uma análise sócio-histórica dacontemporaneidade, utilizando autores críticos que possamoferecer versões emancipatórias de futuro, a seremconstruídas a partir do presente. Apresento brevemente con-cepções de sujeito e subjetividade, articulando-as com mi-nha interrogação - problema central de pesquisa - sobre aconfiguração do trabalho na perspectiva de uma experiênciade cooperativismo em bases de economia solidária, e comoisso repercute na subjetividade dos trabalhadores que nelaatuam; ou o que acontece com suas relações intersubjetivas,seus sistemas de crenças, suas emoções e vivências.

Assim, pretendo afinal refletir sobre como podemos ex-pandir o presente, através do reconhecimento de modos deser e de trabalhar que estão fora das prescrições hegemônicas,feitas tanto à sociedade (neoliberalismo globalizado) como aosujeito (individuação em lugar da singularização). Essa ex-pansão pode ser empreendida de várias formas e em muitoscontextos; trata-se, aqui, de compreender melhor uma expe-riência de trabalho no campo da economia solidária, com suasvicissitudes e aprendizagens, no sentido de ampliar o seucampo de saberes. É conveniente lembrar que o saber nãoconstitui uma dimensão exclusivamente cognitiva, mas flui-da e dinâmica, constituída por emoção, cognição, semantizaçãoe apropriação do mundo.

Contemporaneidade, subjetividade etrabalho

A noção de subjetividade é relevante para a compreen-são das configurações societais contemporâneas e indissociávelda questão do trabalho, para a psicologia social. Antes de seruma instância individual, ela é instância coletiva, social e his-tórica. Reafirma-se que o trabalho pode ser considerado comofonte de subjetivação, portanto questão central na psicolo-gia, segundo coloca Grisci (2000). Em sua tese dedoutoramento essa autora, apoiando-se nas idéias de FelixGuattari, dentre outros autores, adverte que a subjetividade

course analysis, show great difficulties found by the subjects who work in the solidaryeconomy field that, although identified with alternative ways of living and working, perceivethe appropriation process of self management as something beyond their possibilities.They want to differ from the capitalist management, but feel this trial as a labyrinth inwhich they feel lost. They also undervalue and blame themselves because of the founddifficulties. The power relationships are not dialogical and asymmetrical. However, theyseek possibilities of a new beginning, showing that the field presents emancipatorypotentiality, where collective can permit the subjects particularization, which can berecognized and constituted by themselves.

Key words: work, subjectivity, solidary economy, sociology of the absences andemergencies.

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VOLUME 41 • NÚMERO 2 • MAIO/AGOSTO 2005

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é uma instância resultante do entrecruzamento de produ-ções coletivas, sociais, culturais, econômicas, tecnológicas,de mídia; que irão produzir efeitos no marco singular da indi-vidualidade e constituir formas de ser sujeito no mundo.

Para Rey (2003), a subjetividade pode ser definida comoum processo complexo de construção simbólica de sentidos,sobre si e o mundo, simultaneamente um fenômeno da pes-soa ou sujeito singular e de seu lugar sócio-histórico.

Conforme Guattari (1992), a subjetividade é plural,polifônica, e as origens de sua produção não podem seranalisadas nem no indivíduo, nem somente em termos infraou supra-estruturais. Os processos de semiotização queestão em sua base não têm qualquer fixidez, portanto elavai além de categorias sociais rígidas, além de incluir as-pectos etológicos e ecológicos.

Outro aspecto fundamental do conceito é a linguagem.O sujeito precisa de elementos lingüísticos para se represen-tar, se constituir; a atividade representacional não pode pres-cindir de elementos lingüísticos. Assim, na linguagem, naação cotidiana e na relação inter-subjetiva, produz-se o sujei-to. Produz-se a partir da concretude das experiências, da ati-vidade que o liga ao mundo e à alteridade. A dimensão daação aparece também na definição de Boaventura Sousa San-tos, ao ser questionado diretamente sobre sua definição desujeito, posto que respondeu: “(...) sujeito é a recusa em serobjeto”.2 Vamos falar, então, de modos de subjetivação, ouprocessos através dos quais se produz um dado sujeito emcontextos concretos, como por exemplo na esfera laboral.

Ao analisar a relação entre trabalho e modos desubjetivação, ou modos de constituição de sujeito, vejamos oquão esclarecedor é o que afirma ainda Grisci:

(...) já é possível notar-se a pertinência contida na verificação denovas formas de subjetivação utilizadas pelo capital, no sentidode produzir trabalhadores que correspondam aos novos modos detrabalhar e de se relacionar, já que o trabalho pode ser considera-do como categoria central em suas vidas (Grisci, 1998, p. 30).

A autora refere-se, aqui, aos modos de trabalhar tipica-mente capitalistas. O capitalismo desenvolve seus modos degestão contemporâneos conforme as exigências da produção,da lucratividade e dos mercados, demarcando o que é desejá-vel em termos de ser e de trabalhar. As mudanças advêm daemergência de um regime de acumulação globalizado, cadavez mais centrado no trabalho vivo, imaterial, que demandahabilidades comunicacionais e intelectuais; as formas de ex-ploração eventualmente mudam e a contradição não se dá so-mente ao compararmos esses novos modos de trabalhar com otaylorismo/fordismo, mas também no interior deles próprios(Cocco, 2001). O que acontece com o proletariado urbano,

especialmente na periferia do sistema mundo globalizado?Como vivencia as transformações que envolvem “trabalhoimaterial e subjetividade” (Lazzarato e Negri, 2001, p.25), casoesteja atuando nas empresas de novos designs?

Mas e se estiver excluído - ou precariamente incluído -do mercado de trabalho, para onde vai, que experiências oaguardam? A partir dessas considerações e indagações, deli-neou-se o meu problema de pesquisa, na investigação da qualsurge este artigo, através da abertura para o campo da econo-mia solidária. Esta última já pode ser considerada importanteespaço social onde reside uma das alternativas consistentespara os setores de baixa renda e as classes trabalhadoras, di-ante dos processos de empobrecimento e de desempregoestrutural que os atingem, segundo aponta Gaiger (1999). Ocampo do trabalho associativo, cooperativo e solidário propi-ciará experiências diversas aos trabalhadores que nele atua-rem, em muitos sentidos. Na sua constituição hibrida, com-plexa e contraditória, ele abriga empreendimentos de dife-rentes origens, segmentos e desenhos organizacionais, en-volvendo trabalhadores e agentes mediadores como Univer-sidades, ONG’s, setor público etc.

Destaca-se a importância da vivência, como a dimensãosubjetiva da experiência. Os significados atribuídos à experi-ência de trabalho compõem a maneira como o sujeito apre-ende e expressa seu recorte singular do mundo, vivenciando-o no espaço da subjetividade. “(...) existe uma dinâmica daconstrução da cultura que está vinculada, de modo direto, àsexperiências vividas em um determinado momento” (Tittoni,1994, p. 29). A atualidade traz, na sua própria dinâmica, trans-formações no sujeito que se relaciona com a produção, o con-sumo, a exploração e as demais interfaces sociais que vivencia.A forma como cada pessoa se apropria do contexto social, oudas prescrições de cada modo de gestão, no caso do trabalho,incorporando essas dimensões do seu jeito e no seu tempo,vai demarcando seu espaço subjetivo, que é um espaço deprodução de sentidos, incluindo uma dimensão identitária euma dinâmica relacional e emocional complexa.

Quando se coloca a produção de subjetividade serializada,massificada por sistemas relacionais, institucionais, maquínicose midiáticos, como o faz Guattari (1992), está-se falando daprodução de indivíduos, que consomem modos de ser ditadospor agentes sociais dominantes; sejam midiáticos, sejam mo-dos de gestão do trabalho, seja tudo que eventualmente ditarpadrões de comportamento universais, massificadores,homogeneizantes. Para o autor, tal processo denomina-seindividuação; em contrapartida, refere-se ao processo desingularização, que implica em reinvenção ou em criação deum modo singular de ser ou fazer. Nele é prioritário a busca dedireções que permitam navegar num território singular, a ou-sadia de criar um território individual ou grupal que demarque

2 Em reunião de orientação na Universidade de Coimbra, julho de 2003, com bolsa sandwich concedida pelo CNPq.

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CIÊNCIAS SOCIAIS UNISINOS

rupturas com as prescrições contidas na sociedade, nas insti-tuições ou nos modos de gestão. O que no circuito das subje-tividades seriadas do contexto capitalístico - o sufixo ístico éutilizado por Guattari para demarcar o que vai além da dimen-são econômica nas sociedades capitalistas -, parece um riscogrande demais, ou mesmo uma impossibilidade.

Como a subjetividade é um fenômeno ao mesmo tempodo sujeito individual e do mundo social, só podemoscompreendê-la através da diluição de fronteiras entre o sabersociológico, psicológico, econômico ou ainda outros camposde conhecimento. Essa interdisciplinariedade visa cercar o ob-jeto epistemologicamente - no caso, a subjetividade - numatentativa de melhor compreendê-lo. Foi na sociologia crítica deSantos (2000; 2002; 2003, 2004) que busquei elementos paraentender como certos processos de singularização eventual-mente são limitados à categoria de ausência produzida, já queo processo de individuação é tido como o padrão adequado aosinteresses hegemônicos do capital e conseqüentemente da or-ganização e da gestão do trabalho que ele engendra.

Para uma psicossociologia das ausências edas emergências

Reconhecer e validar as ausências do mundo é compro-misso da ciência aderente à dupla ruptura epistemológica (San-tos, 2000). A primeira ruptura é a que o conhecimento cien-tífico faz com o senso comum, para constituir-se enquantoconhecimento diferenciado e rigoroso; a segunda é a rupturacom a própria ruptura, ou seja, voltar a hibridizar-se com osenso comum, considerando-o um saber importante e neleimpactando com vistas a transformá-lo e ser por ele transfor-mado, numa dialética de alianças produtivas entre formas di-versas de conhecimento.

O senso comum teve que ser banido, arrancado da ciên-cia moderna, para que esta obtivesse seus privilégiosepistemológicos e extra-epistemológicos, no que o autor de-nomina como a primeira ruptura epistemológica. Grande partedo saber da humanidade foi arrastado à condição de ausên-cia, graças a essa ruptura. Em cima desse tema, surgem asteorizações da sociologia das ausências e das emergências. Oproblema das ausências, tal como se configura na modernidadee na contemporaneidade, está profundamente vinculado aotipo de ciência hegemônica que temos praticado, lembrandoque hegemônico não se confunde com totalidade, havendosempre contradições nesses processos, que são também ge-radores de suas próprias antinomias. Ao vincular formas deconhecimento às práticas sociais, a crítica abrange essas duasdimensões articuladas. Vejamos, no trecho citado abaixo:

Desde o século XVII, as sociedades ocidentais têm vindo a privi-legiar epistemológica e sociologicamente a forma de conheci-

mento que designamos por ciência moderna. Quaisquer quesejam as relações entre esta ciência e outras ciências anteriores,ocidentais e orientais, a verdade é que esta nova forma de co-nhecimento se auto-concebeu como um novo começo, uma rup-tura em relação ao passado, uma revolução científica, como maistarde viria a ser caracterizada. Desde então, o debate sobre oconhecimento centrou-se na ciência moderna, nos fundamen-tos da validade privilegiada do conhecimento científico, nas re-lações deste com outras formas de conhecimento (filosófico,artístico, religioso, etc.), nos processos (instituições, organiza-ções, metodologias) de produção da ciência e no impacto da suaaplicação (Santos, 2004, p. 10).

Uma globalização alternativa à neoliberal articula-se apartir de múltiplos atores sociais, muitos deles ocupandoposições sociais de ausência produzida, excluídos de even-tuais privilégios extra-epistemológicos que os conhecimen-tos científico-tecnológicos da ciência moderna podem con-ferir aos seus agentes.

A partir de um projeto de pesquisa transnacional (envol-vendo Brasil, Moçambique, Portugal, Colômbia, Índia e Áfricado Sul) que visava compreender em que medida a globalizaçãoalternativa está emergindo na periferia e semiperiferia do sis-tema mundo, Boaventura Sousa Santos avança na sua crítica darazão indolente - aquela que tem “preguiça” de imaginar novasalternativas para o conhecimento e para a sociedade - e propõeo modelo de razão cosmopolita - aquela que se esforça porimaginar e validar novas alternativas, em escala global.

Para tanto, procura apoiar-se em três procedimentos so-ciológicos: A sociologia das ausências, das emergências e a teo-ria da tradução. A des-coberta do que é produzido para estarausente do mundo da globalização neoliberal é a sociologia dasausências, uma espécie de escavação do presente; a possibili-dade de novos futuros possíveis a partir dessas experiênciasagora tornadas presentes, é a sociologia das emergências; e acriação de inteligibilidade mútua entre as diversas experiênci-as é o procedimento de tradução (Santos, 2002; 2003).

Estas construções teóricas têm origem na sociologiacrítica, sendo que, a meu ver, estão profundamente ligadasà questão da subjetividade, dos modos de viver e dos mo-dos de trabalhar; essa articulação tornou-as fonte de ampa-ro teórico para a investigação que realizei, na interface dapsicologia social do trabalho e da economia solidária.

Da mesma forma, o co-orientador no exterior da pes-quisa, Boaventura Sousa Santos, tornou-se um autor centralna investigação; o pós-modernismo de oposição ou crítico,corrente a qual este autor se filia, reconhece a urgente ne-cessidade de uma sociedade melhor. Entretanto, concebe queexistem muitos futuros possíveis, inclusive eventuais versõesdemocráticas do socialismo, que nem sabe, entretanto, se seconcretizarão. Rompe, assim, com parte da perspectiva dateoria crítica moderna, ela própria fruto da razão indolenteem alguma medida; sustenta que não existem soluções mo-dernas para os problemas modernos (Santos, 2000; 2004).

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A razão moderna desperdiça as experiências que trans-cendem seus paradigmas. Ao vincular-se estreitamente com alógica capitalista, pode transformar a prática social numa meradimensão da técnica; o campo da economia presta-se sobrema-neira a tal leitura, em que pese a primazia absoluta do modeloimposto ao mundo pelo consenso de Washington, a despeitoda geração de pobreza e desemprego em larga escala, deledecorrentes.

A compreensão do mundo excede - ou deve exceder -em muito a compreensão ocidental do mundo. As concepçõesde tempo e de temporalidade modernas são unívocas eexcludentes, contraem o presente, que diminui em importân-cia e intensidade e expandem o futuro, para o qual vive-se, naspromessas de futuro brilhante, contidas no imaginário da (esobre a) ciência moderna.

Ao modelo de racionalidade indolente o autor contra-põe a racionalidade cosmopolita, que ao contrário, ao reco-nhecer e validar outras experiências não ocidentais, não pa-triarcais, não capitalistas, expande as possibilidades do pre-sente e contrai o futuro, que passa a ser construído no pre-sente. A necessidade de expandir o presente reside no fatode que só construiremos um futuro melhor a partir de umpresente mais digno e inclusivo, o qual deve atrair as aten-ções e os esforços. O tipo de racionalidade cosmopolita seriadefinido por sua amplitude de linguagens e sua absoluta re-cusa em excluir o diferente. Por isto o termo cosmopolitismo,que não se confunde com o “cidadão do mundo”, mas simcom uma forma de ser e de entender que respeita, conside-rando credíveis, concepções diversas da sua, vindas de luga-res diversos; mesmo interessa-se por elas, ao invés de pre-tender silenciá-las.

A busca é a da transformação qualitativa do senso comum, nosentido emancipatório, num senso comum solidário, participativo,reencantado (Santos, 2000). Esse senso comum transformado,por assim dizer, poderia efetivar-se nas heterotopias, termo quefoi consagrado no trabalho de Michel Foucault e que Santosretoma. A heterotopia é o lugar da deslocação radical. Sobreesse conceito, argumenta o autor: “Em vez da invenção de umlugar totalmente outro, proponho uma deslocação radical den-tro de um mesmo lugar, o nosso” (Santos, 1996, p. 235).

Dessa forma, se não nos deslocarmos de nosso lugarpara nomear as ausências, a produção de heterotopias não épossível. Na razão indolente, não há lugar para deslocamen-tos ou desvios da noção de desenvolvimento, de progresso,univocamente concebido; o processo de singularização des-crito por Guattari passa, portanto, pela produção/experimen-tação das heterotopias.

A indolência da razão funda-se em alguns princípios deracionalidade, típicos da modernidade ocidental, expressos por:razão impotente, que nada pode contra uma necessidade exte-rior a ela; razão arrogante, que é incondicionalmente livre;

razão metonímica, que é a única (a metonímia é uma figura dalinguagem que significa a parte pelo todo) e razão proléptica,que sabe tudo do futuro (a prolepse é uma técnica narrativa quesignifica antecipação, conhecimento do futuro no presente).

A expansão do presente como uma novarelação com o espaço-tempo: Sociologia dasausências, ou a crítica da razão metonímica

O que é produzido para permanecer ausente da esferapública global não será reconhecido como alternativa credívelsob a égide da razão indolente, que produziu tanto o capita-lismo industrial e posteriormente neoliberal quanto as pró-prias alternativas a ele, a exemplo do socialismo. Durante osséculos XIX e XX, a esquerda que combatia o capitalismocentrou-se numa referência também excludente emetonímica, pois previa um desenrolar histórico, a revoluçãoe o socialismo, - com um ator social primordial para realizá-lo,a classe operária, - desconsiderando uma série de outras ques-tões referentes a essa classe operária, vista de forma equivo-cadamente homogênea.

Conferir credibilidade às diversas alternativas (no plural)seria o objetivo da prática da sociologia das ausências. Numaversão psicossocial, a psicossociologia das ausências é aquelaque procura conhecer, validar e creditar alternativas em ter-mos de modos de ser, viver, amar, trabalhar, sentir, parecer,nutrir, consumir (ou o que seja) diferentes dos tradicionais ouconsiderados como válidos. O resultado pode ser o da expan-são ou dilatação do presente, que fica mais rico com o reco-nhecimento da diversidade de experiências que o compõem,e o interesse nos processos de singularização como contrapontoaos de individuação, na perspectiva de Guattari (1992).

Existem algumas formas de produzir não-existências, que secorporificam em algumas lógicas de pensamento, inerentes ao capi-talismo e sua forma de racionalidade. São cinco as lógicas de produ-ção das não-existências identificadas por Santos (2002; 2004), queconstituem monoculturas nas dimensões epistemológica, tempo-ral, de classificação social, escalar e produtiva.

A monocultura do saber, ou do rigor do saber: Ciên-cia moderna e alta cultura são o padrão único de verdade equalidade estética, respectivamente.

Monocultura do tempo linear: O que é contemporâ-neo quem decide são os países centrais do sistema-mundoocidental-capitalista e o tempo é linear, rumo ao progressofuturo.

Lógica da classificação social: São categorias sociaisque naturalizam hierarquias, desigualdades e injustiças soci-ais. Assimetrias entre raças, sexos, gêneros, etnias e classessociais assumem caráter natural, e quem é “inferior” jamaisserá alternativa credível para quem é “superior”.

Lógica da escala dominante: Qual a escala padrão, a

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CIÊNCIAS SOCIAIS UNISINOS

única que vale? O global da globalização hegemônica (neo-liberal) é a escala dominante por excelência; o local e o parti-cular não constituem alternativas credíveis, a não ser que sesubmetam às regras dominantes.

Lógica produtivista ou monocultura da produtividadecapitalista hegemônica: O crescimento econômico é objetivoracional inquestionável. Tanto a natureza quanto o trabalho,devem estar a serviço dessa lógica. Assim, respectivamente oestéril e o desqualificado para o trabalho não servem, deven-do ser descartados. Formas alternativas de produzir, comomodos familiares de agricultura orgânica, ou produção em pe-quena escala oriunda de desenhos organizacionais alternati-vos, são “atrasados” ou “primitivos”, eventualmente conside-rados até anti-desenvolvimento. Os recursos, naturais e huma-nos, podem ser explorados de forma predatória, em nome dodesenvolvimento econômico, objetivo inquestionável. A lógicada competitividade é sacrossanta.

No comentário de Milton Santos, acrescenta-se maisum elemento à crítica:

A busca da competitividade, tal como apresentada por seus de-fensores – governantes, homens de negócio, funcionários inter-nacionais - parece bastar-se a si mesma, não necessita qualquerjustificativa ética, como, aliás, qualquer outra forma de violên-cia. A competitividade é um outro nome para a guerra, destavez uma guerra planetária, conduzida, na prática, pelasmultinacionais, as chancelarias, a burocracia internacional, ecom o apoio, às vezes ostensivo, de intelectuais de dentro e defora da Universidade (Santos, 1994, p. 19).

São cinco, conseqüentemente, as principais formas so-ciais de não-existência que assume aquele sujeito ou gruposocial que foi excluído como alternativa credível, como pos-sibilidade de presença reconhecida e válida na esfera soci-al. Então, o não-existente será o ignorante, o residual, oinferior, o local e o improdutivo. Nessa última instância, ascooperativas, as pequenas associações, não podem ter umaprodução tão “agressiva” quanto o mercado neoliberal exi-ge. E a lógica produtivista, evidentemente, não pode serquestionada. A produtividade vem antes da saúde dos quetrabalham, vem antes da preservação ambiental, vem emprimeiro lugar sempre.

A produção social dessas ausências resulta na subtraçãodo mundo, na contração do presente e no desperdício da ex-periência. A sociologia das ausências coloca a necessidade depor em questão cada uma dessas lógicas. Nessequestionamento, propõe substituir monoculturas por ecologi-as, o que possibilitaria a disputa epistemológica entre diferen-tes saberes, a vivência de temporalidades diversas da frenéticamáxima que tempo é dinheiro, a não identificação da diferençacom a desigualdade, a recuperação do que no local não é efei-to da globalização hegemônica, a valorização de sistemas alter-nativos de produção e consumo, como os presentes no campo

da economia solidária: cooperativas operárias, empresasautogeridas, pequenas associações, etc.

Essas iniciativas, consideradas como parte do amplo espectro deexperiências reunidas sob a denominação de economia solidá-ria, abrangem uma gama variada de expectativas, empreendi-mentos e práticas. Como princípios geradores de sua ética, es-tão os valores de boa convivência humana entre si e com oambiente, superando aqueles de concentração de lucro ehedonismo consumista característicos do capitalismo contem-porâneo. Muitas experiências populares de produção econômi-ca e de geração de renda, no Brasil e em outros países, estariamformando uma economia popular fundada na cooperação solidá-ria e integrada à economia de mercado, segundo uma lógica nãoexclusivamente mercantil (Singer, 2001; 2002a; 2002b).

Comum às ecologias, é a idéia de que a realidade nãopode ser resumida ao que existe, e o que existe é muito maisrico do que os agentes da globalização neoliberal - órgãosmultilaterais, mídias hegemônicas, instituições financeiras etc- consideram como válido. Isso exige imaginaçãoepistemológica e imaginação democrática. Implica emdesconstrução e reconstrução em patamares, lógicas e pa-drões diferenciados de existência. Portanto, assunto de inte-resse da ciência comprometida com mudança social.

A contração do futuro: Sociologia dasemergências, ou a crítica da razão proléptica

O progresso sem limites torna o futuro infinito.“Sabe-se” (na razão proléptica) como será o futuro: a ci-ência resolverá o problema da fome, das doenças e ou-tros flagelos do mundo. Ou, ao menos, esse ideário estápresente no seu campo semântico; dessa forma, ele podenão ser objeto de cuidado concreto, a curto prazo. Faz-senecessário conscientizar-se da escassez do futuro, paraque ele torne-se objeto de cuidado hoje. Contraí-lo nãoé diminuir sua importância, pelo contrário. A sociologiadas emergências é uma ampliação simbólica dos saberes,práticas e agentes, concebendo futuros possíveis e tra-balhando na sua construção.

O conceito vital aqui é o de ainda-não (Bloch, 1986).Ele pode revelar a totalidade - que é inesgotável e está sem-pre para além - do mundo. Ele é capacidade (potência) epossibilidade (potencialidade). Por outro lado, é incerto, podetrazer o inesperado. O fato é que se reconhece que nãosabemos do futuro: as sínteses que o trarão estão em aber-to. Por isso o perigo iminente que faz Ernst Bloch (1986)dizer que junto a cada esperança, há um caixão à espera.Não sabemos, por exemplo, se a economia solidária se cons-tituirá numa alternativa credível e ocupará espaços impor-tantes na economia mundial, ou se sua fragilidade resultará

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em seu desaparecimento. O certo é que precisamos cuidar,no presente, desse futuro incerto: por isso contraí-lo en-quanto certeza, não importância. Bloch incita-nos a “agar-rar” as três dimensões do sentido de tempo humano, ofere-cendo uma análise dialética do passado que ilumina o pre-sente e pode nos dirigir a um futuro melhor. O passado -aquilo que foi - contém os sofrimentos, tragédias e falhas dahumanidade, que estão aí para serem evitados, bem comocontém suas esperanças e potenciais não-realizados, quepoderiam ter sido e podem ainda ser. Sobretudo, ele desen-volve uma filosofia da esperança e do futuro, um sonharpara a frente, uma projeção e a visão de um possível - masnão garantido - futuro de liberdade.

Enquanto a sociologia das ausências se move no campodas experiências sociais, a sociologia das emergências move-seno campo das expectativas sociais. As expectativas modernaseram grandiosas e abstratas, falsamente infinitas e universais.Justificaram a morte, a destruição, o desastre, a guerra, pelaredenção sempre vindoura, sempre futura, em nome da qualeventualmente se praticaram barbaridades. Mas repudiar essacaracterística da modernidade não significa o niilismo ou a ce-lebração do gozo imediato. Contra o niilismo, propõe-se umanova semântica das expectativas (Santos, 2002).

Teoria da tradução: A impossibilidade deuma teoria geral na contemporaneidade

Qual a alternativa à grande teoria unificada? Se con-siderarmos que uma teoria que provê uma única possibili-dade de emancipação social não responde mais, num con-texto de descentramento do sujeito, de fragmentação eatomização do real, precisaremos produzir alternativas quenão conduzam à apatia política ou ao niilismo.

A esta altura, surge o trabalho de tradução no lugar dateoria geral. A tradução é o procedimento que permite criara inteligibilidade recíproca entre as experiências do mundo.Se o movimento associativo na esfera laboral não puderentender que a causa do movimento negro, dos gays ou dasmulheres oprimidas situa-se igualmente no campo da resis-tência ao conservadorismo, colonialismo e patriarcalismo,enfraquecerá todo o campo da resistência e da possibilida-de de mudança social. Por isso é necessário que os agentestraduzam, uns para os outros, as preocupações isomórficasno que se refere à transformação do instituído e a novasconcepções de mundo.

A tradução entre saberes assume a forma dahermenêutica diatópica. Essa forma de hermenêutica consis-te no trabalho de interpretação entre duas ou mais culturascom vistas a identificar preocupações similares entre elas.Os topoi - ou lugares de produção de saberes, discursos epráticas - podem hibridizar-se sem perder suas características

e sua riqueza conceitual e prática. Todas as culturas são in-completas e podem se enriquecer com o diálogo com outras,no momento em que é reconhecida a impossibilidade dacompletude cultural.

Construir alianças entre diferentes saberes é tambémpoder ver o que é considerado subalterno fora da relação desubalternidade. Pois se só vemos o subalterno dentro do jogodialético opressor-oprimido, fica difícil perceber o que aque-le grupo, sujeito ou comunidade oprimida poderia produzir,caso estivesse fora da relação de subalternidade. A traduçãoé um trabalho intelectual e também político. Diferente douniversalismo moderno, o topoi comum global de dignidadehumana básica pode expressar-se em várias línguas, e pos-suir muitos rostos, na contemporaneidade.

A razão cosmopolita prefere imaginar um mundo me-lhor a partir do presente, reinventando experiências e utili-zando o trabalho de tradução para criar sentidos e direçõestalvez precários, mas concretos, e certamente não baseadosem falsas promessas. Criar justiça social global a partir daimaginação democrática seria um projeto aberto, a ser com-pletado de forma multicultural (Santos, 2002; 2004).

A desmercadorização da instância produtiva edistributiva faz-se necessária para a desmercadorização e so-cialização da esfera econômica e da vida em geral. Aqui aeconomia solidária destaca-se como campo de ação e empre-endimento social. Em âmbito mundial, são identificadas vári-as iniciativas promissoras no campo, apesar de em constanteperigo devido à sua fragilidade. São citadas:

(...) por exemplo, as cooperativas de trabalhadores informais –desde os lixeiros na Índia e na Colômbia às donas de casa dasfavelas de São Paulo – bem como as cooperativas de trabalhado-res da indústria despedidos durante os processos de downsizingde grandes empresas, têm sabido utilizar com imaginação o di-reito estatal – e as brechas que aí se encontram – para avançarcom formas solidárias de distribuição de bens e produtos (San-tos, 2003a, p. 59)

A busca de desenhos institucionais alternativos éapontada como característica central da sociologia das au-sências e emergências. Na perspectiva do trabalho comopossível locus de singularização, é preciso pensar se taisinstituições estariam permitindo, através de suas conste-lações relacionais de poder, processos de singularização.Nesse sentido, o estudo empírico propicia a discussão so-bre as práticas alternativas em curso.

Análise do registro empírico: a trajetória deuma cooperativa

Durante o percurso da investigação empreendida, oquestionamento central era sobre como se configurava tra-

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balho na perspectiva de uma experiência de cooperativismoem bases de economia solidária e como isso repercutia nasubjetividade dos trabalhadores que nela atuavam. Estesúltimos, em sua maioria, ocupavam um lugar social de au-sência produzida, tendo seus saberes e trajetóriasdesqualificados sob o ponto de vista formal.

Para procurar responder a uma questão de relativa com-plexidade, o processo investigativo deu-se através de observa-ções do campo, entrevistas individuais e grupais com enfoquenarrativo (Jovchelovitch e Bauer, 2002), além da participaçãonas reuniões de sócios cooperativados, procurando acompa-nhar e compreender os processos institucionais, envolvidos naexperiência, através da realização um estudo de caso.

O empreendimento investigado foi, durante os anos de2000 a 2002, uma cooperativa que tinha como meta o abaste-cimento familiar, vendendo produtos alimentícios, de limpezaetc. Possuía no início do processo da pesquisa cerca de quatro-centos sócios, sendo o grupo administrador propriamente ditocomposto por aproximadamente dez pessoas. Nas questões deformação, o grupo refletia sobre economia solidária e orientavapara a prática do consumo ecológico (CAMP, 2001).

A cooperativa adquiria os produtos de fornecedores va-riados, alguns originários da economia solidária, outros iden-tificados como oriundos da economia de mercado tradicio-nal, sem compromisso com os princípios solidários. A partirdaí, organizava os estoques em um galpão, num prédio cedi-do pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre, em região cen-tral. Trabalhando com listas de produtos e entrega de ran-chos a domicílio, buscava cooptar clientes entre associaçõesde moradores e outros produtores da economia solidária.

Possuía também uma cozinha industrial que atendiaeventos como coquetéis e festas, além de servir refeições,durante um certo período, na sua própria sede, com enfoqueem alimentação naturalista, produtos integrais e orgânicos. Aequipe de nutricionistas e cozinheiras dividia as sobras deseu trabalho e pagava uma taxa pelo uso dos equipamentosda cozinha aos outros sócios do empreendimento.

Havia em torno de dez pessoas diretamente ligadas àgestão da cooperativa, sendo que um deles ocupava a função,ou estava, segundo os relatos, administrador principal. As di-ficuldades no processo de gestão revelaram-se de forma con-tundente nas narrativas coletadas; a cooperativa enfrentou,ao longo de dois anos e meio, muitos problemas de relaciona-mento interno e com os parceiros aos quais ligava-se. Os pro-blemas ocorreram na condução dos seus processos adminis-trativos, e eram de variadas ordens (financeira, administrati-va, relacional), o que culminou em perda de sócios, de crédi-to e em graves dificuldades que determinaram a inviabilidadedo empreendimento.

As narrativas coletadas reconstroem as enormes difi-culdades de constituir uma cooperativa dentro dos parâmetrose valores solidários, que se apresentavam para os participan-

tes do empreendimento através dos discursos/saberes quecirculavam no campo. Essas zonas de sentido incluíam umaforte expectativa de transformação e superação, identificaçãodos projetos da economia solidária com uma sociedade me-lhor e mais justa; esteve presente, no caso, a grande frustra-ção de ver que, na prática, não foi bem assim. Houve umagrande disparidade entre expectativa e experiência, causan-do desdobramentos que impactaram fortemente na vida dosparticipantes daquele grupo. Experimentaram, como refereSantos (2002), um excesso de sentido, mas um déficit dedesempenho.

Existia, contudo, certa heterogeneidade no que serefere aos objetivos dos sócios da cooperativa. Convivendocom companheiros de perfil militante pela transformaçãosocial, havia aqueles que objetivavam apenas uma rendasuficiente para viver, excluídos do mercado formal de traba-lho; mesmo esses, porém, entravam em contato com umcampo de formas simbólicas valorativo, de práticas sociaisalternativas que buscavam a solidariedade.

A perspectiva da sociologia das ausências e emergênci-as foi entrelaçando-se com a pesquisa de forma muito inten-sa, justamente a partir das trajetórias dos seus narradores enarradoras – já que eu estava tratando as informações obti-das como narrativas –, muitas vezes invisibilizados/as pelasua condição de ausência produzida pelas monoculturas (dosaber, da classificação social, da produtividade etc).

O relato extraído de uma das entrevistas ilustra como,dentro da própria cooperativa, as monoculturas eram a for-ma dominante das constelações relacionais de poder confi-gurarem-se:

Quer dizer, a economia solidária..., tem que saber administrarela, conversar bastante pra resolver problemas e aí é complica-do pois a maioria do povo... Tem dificuldade pra administrar,pois onde um se destacou, os outros ficam mudos. E sem con-versa não tem economia solidária. Aqui tinha reunião de trinta,trinta e cinco pessoas, na cooperativa. Toda a semana. Depoispassou a ser só um relato, pois poucos falavam. O pessoal seabalava lá da Lomba do Pinheiro, do fim do mundo, pra nãoparticipar? Pra não se envolver de verdade no processo de cons-trução? Aí não vem, não tem porquê. As pessoas que estão umpasso na frente, um pouco acima em termos de formação, tema tendência a assumir as coisas, a fazer sozinho.

São idealizadas, pelos atores da economia solidária, for-mas de se relacionar, sentir e agir; é como se a posição deidentidade solidária, participativa e autogestionária fosse algoobrigatório para eles. Eles precisam pedir – a si mesmos, amim, a todos – muitas desculpas por não conseguirem efetivartal posição, por não poderem impedir a vivência das relaçõesde poder como assimétricas e desiguais. Se comportar comocapitalista, pegar os vícios do capitalismo (conforme referemnas entrevistas), constituir uma relação de empregado com

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chefe é tido como algo vergonhoso, profundamente embara-çoso. A gente fica até com vergonha do que aconteceu, mastem que assumir e tentar, agora...

A culpa pelo fracasso é assumida individualmente pe-los remanescentes do grupo que iniciou o empreendimen-to, embora pretensamente o façam no coletivo: (...) somosnós, é um grupo, temos de assumir juntos as falhas; tu vê amentalidade da gente, deixar tudo isso acontecer, não ir atrásdos problemas antes que estourassem! Mas é um coletivoque pode ser considerado empobrecido, composto pela asoma dos indivíduos que compõem um grupo, e não pelaforça produzida nessas relações.

O modo de subjetivação capitalístico (Guattari, 1992),que no âmbito do trabalho é vivenciado através da máxima“manda quem pode, obedece quem precisa”, materializa-sepor constituir o repertório conhecido dos sujeitos narrado-res, sendo eles mesmos fruto daquele modo de subjetivação.

Egressos de uma forma tradicionalmente capitalista -capitalismo de periferia do sistema mundo globalizado - deprodução de riqueza e modos de trabalhar e viver, mesmoque em suas vidas tenham assumido posições de combate àsformas de subjetivação capitalistas, sendo alguns oriundosdo movimento sindical e outros movimentos sociais, os nar-radores são chamados a uma reestruturação subjetiva, a qualé experimentada como acima de suas forças. Sentem-se, por-tanto, em um labirinto, no qual se perdem e não chegam alugar nenhum. (...) a gente não tá parado, tá lutando comonunca, mas se sente parado porque corre, corre, corre e nãoparece sair do lugar... vai aqui, vai ali... mas ninguém temuma saída que dê pra dizer: “Bom, agora é por aqui, é só agente trabalhar.”

Ninguém oferece o fio de Ariadne; na ausência de diá-logo, de condições relativamente igualitárias de conversação,de relações de autoridade compartilhada, como avaliar se asfontes de recursos e de formação são adequadas? Como en-caminhar os problemas que sequer podem ser discutidos naesfera pública laboral?

Lembrando que a pesquisa foi uma tentativa de exercí-cio de psicossociologia das ausências e emergências, o obje-tivo de seus eventuais impactos seria sempre a substituiçãode monoculturas (do saber, dos reconhecimentos, da produ-tividade) por ecologias. Lida-se com os saberes e as práticas,que são a matéria de análise. O modo de subjetivação capita-lista, do paradigma ainda hegemônico, impõe monoculturas;ao tentarem, intuitivamente, propiciar as trocas de conheci-mento dentro da experiência de desenvolvimento, trabalho eprodução que empreendiam, os participantes “perderam-se”num labirinto cujo mapa, a princípio, ninguém tinha.

As ecologias de conhecimentos (e de re-conhecimen-tos) seriam, acredito, as responsáveis pelo processo coletivode traçar possíveis mapas de trânsito no labirinto. Este últi-mo, metáfora para as perplexidades daqueles que tentamnavegar nas águas do capitalismo leve e fluido (Bauman, 2001),exige uma instantaneidade de aprendizados e atos que o tem-po singular dos sujeitos que precisam aprender a enfrentá-lonão alcança, não sendo ele da ordem do instantâneo.

O heterogêneo grupo buscava a realização das suas as-pirações; estas últimas, para alguns dos sócios, estavam liga-das à construção de um novo tipo de sociedade e um novomundo do trabalho, vinculadas a todo um projeto de vida emsociedade, projeto tingido em matizes utópicas; e para ou-tros, à busca de uma renda suficiente para sobreviver digna-mente, o que a expulsão do mercado formal de emprego nãolhes permitia. Os três jovens recrutados pela cooperativa atra-vés do Programa Primeiro Emprego3 relataram em poucaspalavras sua perspectiva da autogestão: Autogestão é solidão.A falta de mecanismos institucionais de formação e acompa-nhamento foi fator de dificuldades e conflitos constantes parao grupo, como expressaram os jovens aprendizes.

Essas perspectivas diversas não apareceram na esferapública da cooperativa, para serem traduzidas e gerareminteligibilidade mútua, pois as suas reuniões acabaram viran-do preleções, relatos monológicos: dessa forma, não eramcoletivamente apreendidas. A apreensão coletiva das dificul-dades seria talvez um melhor caminho para traçar os mapasde enfrentamento das mesmas, pois a identificação de pon-tos em comum entre os diferentes haveria de facilitar as rela-ções de troca e aprendizado, propiciando condições mais fa-voráveis à prática da ecologia dos saberes.

Repetindo, entendo o saber não como uma dimensãoexclusivamente cognitiva, mas sim fluida e dinâmica entreemoção, cognição, semantização e apropriação de si mesmoe do mundo. Pessoas oriundas do que se considera o campopopular (associações de moradores, pequenos produtores,cooperativados), que optavam pelo abastecimento familiar e/ou comunitário na cooperativa, durante a trajetória como só-cios do empreendimento, entravam em contato com intelec-tuais engajados no projeto, com estrangeiros que atuavamem ONG’s de apoio, com militantes de movimentos sociaisdiversos e com delegados do Orçamento Participativo de dis-tintas origens. O campo de formas simbólicas, assim, engen-drava-se extremamente complexo e diversificado, compostopor todos esses encontros de realidades, culturas, discursose práticas. Mas a falta de democracia interna do empreendi-mento impossibilitou uma troca produtiva entre os diversosnarradores/atores que por ele circulavam, com maior ou me-

3 O Programa Primeiro Emprego integra a política de Desenvolvimento Econômico e Social do Governo do Estado promovendo a geração de empregos para jovens entre16 e 24 anos e o incentivo a empresas de quaisquer setor econômico, entidades sem fins lucrativos, proprietários rurais, profissionais liberais e autônomos. (Fonte: http://www.primeiroemprego.rs.gov.br/welc.html)

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nor freqüência, impedindo assim modos de subjetivaçãosingularizadores.

As relações de poder, nas expectativas do grupo, deve-riam ter-se configurado segundo os padrões da autogestão,os quais, segundo Albuquerque, incluem:

(...) um conjunto de práticas sociais que se caracteriza pela na-tureza democrática da tomada de decisão, que propicia a auto-nomia de um coletivo. É um exercício de poder compartilhado,que qualifica as relações sociais de cooperação entre pessoas e/ou grupos (...) por expressarem intencionalmente relações soci-ais mais horizontais (Albuquerque, 2003, p. 20)

Entretanto, o mesmo autor discorre sobre a ambigüida-de do conceito, a ampla gama de significados que pode assu-mir, sendo apropriado de diferentes formas em contextosdiversos. Na experiência de trabalho investigada, seu sentidoa princípio unia-se a um ideal de mudança social, a um novoparadigma de relações de trabalho.

Entretanto, as práticas efetivas no empreendimentocorporificavam-se em redes que fixavam os sujeitos em posi-ções desconfortáveis, nas quais sofriam e autodepreciavam-se.As situações por eles vivenciadas ocasionaram esses sofrimen-tos singulares, e aparentemente sempre ligados a uma desva-lorização das competências do sujeito, como se individualmen-te (ou mesmo como grupo), não tivessem sido capazes de evi-tar o desastre, assumindo a culpa e nomeando-se incompeten-tes e acomodados.

Sob o ponto de vista psicológico, as desigualdades derecursos são percebidas com visível sofrimento psiquíco portodos, mas especialmente por parte daqueles que possuembaixo nível de educação formal. As competências do “eu” sãopercebidas como limitadas e inadequadas na esfera públicalaboral por parte dos entrevistados, aparecendo sempre a auto-culpabilização pelas falhas no processo. A percepção de sicomo inferior e incapaz acaba dando margem a desistênciasde ser sujeito da gestão do empreendimento e de produzir agestão compartilhada, que seria a autogestão. O sofrimentoque acompanha a suposta incapacidade e esse sentimento deinadequação, provavelmente está ligado à constante interpe-lação que é feita no sentido da autogestão, do domínio de sina relação com a alteridade e no espaço do trabalho solidário.

Ao não conseguir ser a um tempo gestor de si e dacooperativa, até porque não teve para isso um processoeducativo/reflexivo consistente que lhe permitisse trilharcaminhos possíveis nesse sentido, o trabalhadorcooperativado vivencia um sofrimento psíquico que vai de-pender - em termos de qualidade, intensidade e desdobra-mentos - de sua história pessoal e expectativas.

Quando concretizou-se a inviabilidade comercial, fi-nanceira e institucional da cooperativa, sendo impossívelcontinuar suas atividades, grande parte dos sócios já se ha-

via desligado e afastado; o grupo remanescente era peque-no, porém determinado a continuar e construir uma experi-ência diferente. Nessa etapa da trajetória surgem, das refle-xões conjuntas dos membros do grupo com alguns dos par-ceiros anteriores, idéias de continuidades possíveis para umanova cooperativa. As reuniões que passaram a ter como pal-co o Mercado Público de Porto Alegre eram abertas a quemquisesse ajudar a construir essa nova etapa.

O sentimento de “desta vez será diferente, não sere-mos passivos e complacentes” é compartilhado pelos rema-nescentes do grupo anterior, que tentam a toda pressa reco-meçar a trabalhar e não repetir a postura que permitiu oacúmulo de dívidas e o fracasso comercial. Decisões compar-tilhadas, modos de relações de poder simétricos e dialógicos,transparência absoluta e gestão coletiva são os ingredientesque, segundo os sócios (mesmo que não utilizem exatamen-te essa terminologia), poderão trazer satisfação e remunera-ção digna aos participantes.

O grupo elaborou novo estatuto e levou alguns mesese várias reuniões para validá-lo e chegar à redação final. Com-panheiros oriundos de movimentos associativos, do Orçamen-to Participativo, de ONG’s, da Prefeitura Municipal de PortoAlegre, de Universidades, juntavam-se ao grupo - em partici-pações flutuantes, ora constantes, ora ocasionais - para apro-var o novo estatuto e conseguir número de sócios suficientespara registrar a nova cooperativa e torná-la uma realidade.Aqueles/as que colocavam nela expectativas e sonhos, dese-jos, construções pessoais e coletivas, continuavam acreditan-do na possibilidade de realização no coletivo:

Ninguém vai concentrar lucro, a gente quer receber o valor jus-to pelo nosso trabalho, sem explorar ninguém. E a gente que odiga, nós quatro aqui, que ficamos botando a cara pra bater,quando todo mundo debandou... agora é uma nova fase, quere-mos trabalhar com oficinas para o Fome Zero, alimentação alter-nativa, formação para nutricionistas...

O mais importante da parte final da história narrada nes-sa pesquisa é a presença da capacidade de recomeçar; se aalteridade, para eles, foi num primeiro momento um modelo euma expectativa, resultando em decepção, agora significavanova expectativa e esperança. Há toda uma gama de capacida-des e possibilidades a serem agenciadas, através de dispositi-vos de ações e práticas inovadoras, singularizantes; apotencialização desse coletivo é encarada como possível, comopercebe-se na narrativa: A gente tem que cair pra depois levan-tar. Tem de reunir o grupo, ver onde tá pegando... Mas ao mes-mo tempo, as dificuldades também não se desvaneceram, comoficou claro na dificuldade enfrentada na reunião de validaçãodo novo estatuto, onde o grupo ainda lutava na sua tentativade consenso. Modos alternativos de trabalhar e de viver, espe-cialmente na periferia e semi-periferia do sistema mundo

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globalizado, estão sempre a perigo, sempre na expectativa docaixão de Ernst Bloch.

Mudar o modo de trabalhar é avançar no processoemancipatório, é a própria heterotopia - lugar da deslocação -proposta por Boaventura Santos (2000). É deslocar o âmagodaquilo que desejamos, um dia, nos tornar. Pode ser um pro-jeto que vale a pena, por mais que implique em momentosdifíceis tentando lutar com os minotauros do labirinto, oucom os caixões à espreita. Mas o mais interessante de tudo eque corrobora a proposição de Hanna Arendt (1983) sobre afaculdade humana do recomeçar, é que sempre é possíveltransformar. Mesmo se o caixão aniquilar uma experiência,um desejo, uma tentativa, é sempre possível – e plausível,além de desejável, recomeçar – e é exatamente o que ossócios da nova cooperativa fizeram, provando que suas lutas,seus erros e acertos não são vãos, são parte de sua experiên-cia e de sua contribuição para a comunidade humana.

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Recebido em 12/2004Aceito em 01/2005

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