análise de as melhores intenções de ingmar bergman

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Análise de as Melhores Intenções, de Ingmar Bergman, à Luz da Terapia por Contingências de Reforçame Análise de as Melhores Intenções, de Ingmar Bergman, à Luz da Terapia por Contingências de Reforçamento (TCR) Hélio José Guilhardi * Resumo: Discute-se a inter-relação de um casal, desde o namoro até o final de suas vidas, mostrando que, apesar das boas “intenções”, eles não conseguem estabelecer uma relação conjugal e familiar harmoniosa. Aparentemente unidos, as necessidades afetivas não satisfeitas de cada um os mantêm, no entanto, afastados como parceiros e como pais. Assim, são infelizes no amor e não estabelecem uma relação saudável e afetiva com os filhos. A análise do texto propõe que as relações interpessoais são fruto da interação entre as histórias de contingências de reforçamento de cada parceiro. Além disso, as relações atuais são instaladas e mantidas por 1 / 113

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Análise de as Melhores Intenções, de Ingmar Bergman, à Luz da Terapia por Contingências de Reforçamento (TCR)

Análise de as Melhores Intenções, de Ingmar Bergman,à Luz da Terapia por Contingências deReforçamento (TCR)

Hélio José Guilhardi*

Resumo: Discute-se a inter-relação de umcasal, desde o namoro até o final de suasvidas, mostrando que, apesar das boas“intenções”, eles não conseguem estabeleceruma relação conjugal e familiar harmoniosa.Aparentemente unidos, as necessidadesafetivas não satisfeitas de cada um os mantêm,no entanto, afastados como parceiros e comopais. Assim, são infelizes no amor e nãoestabelecem uma relação saudável e afetivacom os filhos. A análise do texto propõe que asrelações interpessoais são fruto da interaçãoentre as histórias de contingências dereforçamento de cada parceiro. Além disso, asrelações atuais são instaladas e mantidas por

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contingências de reforçamento presentes, asquais desenvolvem comportamentos deaproximação e de fuga-esquiva, deaproximação e de contracontrole, ao lado desentimentos de bem-estar e de sofrimento. Asrelações não são construídas por “intenções”,nem mesmo pelas “melhores”. São resultantesda interação da rede de contingências dereforçamento que teceram em seu universofamiliar.

Palavras-chave: contingências dereforçamento, psicoterapia de casal, Bergman,relacionamento familiar, intenções.

 

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As Melhores Intenções é o nome do filmedirigido por Bille August (1992) com roteiro deIngmar Bergman. Mostra a história dos pais deBergman a partir da época em que seconheceram, até o momento em que a mãeestá grávida de Ingmar, seu segundo filho. Em1909, Henrik, então estudante de teologia, quevivia em condições humildes com a mãe,conheceu Anna, irmã de um de seus amigos,que pertencia a uma família abastada. Apesarda explíicita oposição das mães de ambos, secasaram e foram morar numa pequenacomunidade no norte da Suécia, onde Henrikassumiu a função de pastor luterano. O filmerevela os conflitos vividos pelo casal e amaneira tortuosa como a relação se arrastoudurante todo o casamento.

 

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Trata-se de uma obra autobiográfica deBergman, que oferece um extraordináriomaterial para estudos psicológicos. O presentetexto se propõe a oferecer algumas reflexõespara os amantes de cinema e estudiosos daPsicologia.

 

O título As Melhores Intenções pode ser umaironia. Como se pode viver tanto tempo, deforma tão infeliz, apesar das melhoresintenções? Desde o namoro, a trágica vida adois, a três, a quatro, a cinco se anuncia.

 

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Está tudo preparado para o casamento ocorrercom pompas em Uppsala. Dias antes, Henrikleva Anna para conhecer o vilarejo para ondese mudarão após o casamento. Lá Henrikiniciará suas atividades de pastor junto a umacomunidade simples do interior.  Ele a convidoupara visitarem uma construção abandonada,que será reformada para abrigar a capela ondeHenrik exercerá seu ofício pastoral. O diálogoque ocorre no local antecipa, de modoassustador, como ambos conduzirão osrelacionamentos de casal pelo resto de suasvidas. Henrik, possivelmente, justificaria a suainesperada proposta de mudança do local docasamento e de toda a preparação para acerimônia como movida pelas “melhoresintenções”... melhor seria interpretá-lo comotendo “outras intenções”, quais sejam isolarAnna de seu mundo familiar e social esubmetê-la ao seu exclusivo domínio, distantede todos e de tudo o que lhe era lhe caro.Dentro da capela iniciaram um áspero duelo.Como em todos os outros confrontos que virão,

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cada qual ataca duramente o outro, até ummomento de desfecho, em que, quaseaniquilados –, ora um, ora outro –,  propõemuma reconciliação – a qual, como se verá, seráapenas uma trégua temporária – movida pelaexaustão de lidar com o incompreensível,jamais torneada pela aceitação genuína dasexpectativas do outro. Cada qual, no últimomomento – naquele que precede a rupturadefinitiva da relação – cede para evitar a dorimediata maior, mas perpetua, nas entranhasda solidão afetiva, do diálogo jamaisconsumado, a resignação empapada demágoas, as quais vão se acumulando sem sesublimarem jamais. O que é um diálogo, se nãoa busca dos determinantes últimos quecontrolam as verbalizações de cada um? Nodiálogo se procura alcançar, usando aterminologia do filme, as verdadeiras intenções.Mas, nos diálogos de Henrik e Anna, tal buscaconduz ao desespero, pois cada qual sabequais são as reais intenções do outro e elasnão agradam, pelo contrário, assustam e

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ameaçam. O diálogo entre eles não visa aoentendimento e à conciliação, mas buscamudar e subjugar os valores mais íntimos dooutro. As concessões não são regidas poramor, pois têm a cor da derrota, da impotênciae não da liberdade. Ficam juntosessencialmente por fuga-esquiva, temerososde perder um ao outro e de se entregarem aosabor da vida que lhes seria mais natural. Ascontingências de reforçamento que modulam arelação conjugal são coercitivas. Não foramfeitos um para o outro; mas condenados um aooutro. Segue-se o diálogo:

 

H: ─ O velho Gransjo [é o pastor local] podecelebrar nosso casamento?

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A: ─ Claro, se você quiser.

 

H: ─ Aqui.

 

A: ─ Aqui? Não entendi sua decisão. Quer quenos casemos aqui?

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H: ─ Só nós, Gransjo e duas testemunhas.Concorda?

 

A: ─ Não nos casaríamos em Uppsala? Umcasamento com todas as pompas... commadrinhas, padrinhos, coro, família, amigos...Já combinamos isso, Henrik.

 

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H: ─ Podemos...

 

A: ─ Já tínhamos combinado.

 

A: ─ Você combinou. Você até quis o coroacadêmico! Você e Ernst [irmão de Anna]decidiram tudo, já esqueceu?

 

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H: ─ E se mudarmos isso? É impossível?

 

A: ─ Claro que é.

 

H: ─ Por quê?

 

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A: ─ Porque quero um casamento de verdade!Quero uma excelente e notável festa! Querocomemorar um grande casamento.

 

H: ─ E o que sugeri?

 

A: ─ Paremos de discutir. Senão acabaremosbrigando.

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H: ─ Não estou discutindo.

 

A: ─ Mas, eu estou.

 

H: ─ Reflita, Anna.

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A: ─ Já refleti. Já decidimos. Você queria umcasamento tão lindo quanto nossa felicidade.Devia ter objetado na época, mas deve ter tidomedo.

 

H: ─Deixe de tolices. Nós vamos viver aqui,morar aqui! Não entende? É importantecomeçarmos uma nova vida aqui nesta igreja.

 

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A: ─ Para você, mas não para mim.

 

H: ─ Não entende o que estou dizendo?

 

A: ─ Não quero entender.

 

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H: ─ Se me amasse, entenderia.

 

A: ─ Tolice. Também posso dizer que, se meamasse, faria uma festa.

 

H: ─ Sua teimosia é demais. Não entende oque explico?

 

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A: ─ Vou dizer o que entendo. Você detestaminha família. Quer humilhar minha mãe. Quervingar-se de maneira dura, mas sofisticada.Admita isso!

 

H: ─ Você interpreta mal as coisas.Notavelmente mal. Mas, vejo que está do ladoda sua família, contra mim.

 

A: ─ Você está maluco. Quase matei minhamãe para voltar para você.

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H: ─ Só pedi um pequeno sacrifício.

 

A: ─ Às vezes, você me parece ser de umaclasse bem inferior. Tem a mania de se mostrarpior do que é! Finge ser o que não é! Alardeiasua pobreza, sua sofrida infância e sua pobremãe!

 

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H: ─ Lembro-me de quando eu disse que aFrida [namorada anterior de Henrik] eragarçonete... do seu tom de voz e do seudesdém!

 

A: ─ Você não precisa usar camisas e meiasfuradas... nem ter caspas e unhas sujas! Àsvezes, cheira até a suor!

 

H: ─ Você passou dos limites.

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A: ─ E, você não tolera a verdade!

 

H: ─ Não tolero sua crueldade.

 

A: ─ Está bem. Foi bom conversarmos agora.

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H: ─ Sim, agora sabemos onde pisamos e oerro que cometemos!

 

A: ─ Meu bom Deus, perdoai-me. Henrik...Henrik, me perdoe. Eu disse coisas horríveis.Pode me perdoar? Precisa me perdoar.

 

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H: ─ Suma daqui! Não quero mais vê-la! Você émá! Suma daqui! [Henrik deu-lhe umabofetada...]

 

A: ─ Você é louco! Agora entendo o receio quemamãe tinha de você!

 

H: ─ Ótimo. Vocês duas se abraçarão... e darãograças a Deus por você ter perdido apenas avirgindade.

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A: ─ Como você é grosseiro! E, é um mentirosodo pior tipo, pois nunca sabe quando mente!Você deve procurar sua garçonete Frida e secasar com ela!

 

H: ─ Cale-se!

 

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A: ─ Começo a reconhecer minha vida. Ela estávoltando a ser o que era. Eu estava sonhando.Agora acordei.

 

A: ─ Aqui estou, em uma casa em ruínas nomeio do nada. Eu! Que loucura! Um estranhogritando comigo... E, planejávamos ter filhos!Três filhos! Como podemos continuar?

 

H: ─ Não sei.

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A: ─ Tínhamos um somatório de amor e odesperdiçamos futilmente.

 

H: ─ É verdade.

 

A: ─ Por mim o casamento pode ser emqualquer lugar. Isso agora pouco importa. Não

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nos casaremos. Posso ser sua governanta,Henrik...

 

Apesar de tudo, alheios às evidências, eles secasaram e tiveram três filhos. Ocomportamento humano não é determinadopela lógica, nem pelo “entendimento darealidade”, mas por contingências dereforçamento. Em geral, nem mesmo peladescrição que se faz das contingências dereforçamento em operação, mas pelo genuínocontato das pessoas com elas.

 

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Enquanto houver esperança, não haverádesespero. “Na dúvida, ninguém desespera.”(JACOBSEN, 2001, p. 65). Henrik e Annaadentram tão profundamente no abismo dodesencontro que se acabam as esperanças.Logo, o desespero. A única saída é fingir queas agressões são fruto de um impulso que,superado, restaurará a relação entre eles, e,assim, lhes é-lhes devolvida a esperança.

 

 Só quando a última porta se fecha à nossafrente é que se cravam em nosso peito asgeladas garras da certeza, que pouco a poucoinjetam, lá dentro do nosso coração, a finíssimateia da esperança da qual pende a nossafelicidade. Então, rasgam-se os fios dessa teia,então cai e só então é destruído o que eles

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ainda sustentavam, e então ecoa agudo peloespaço o grito de desespero.  (JACOBSEN,2001, p. 65).

 

Mas o que as pessoas são capazes de fazercom seu desespero? O que muitos fazem:“Fecham os olhos à realidade, não queremouvir o não que ela opõe aos nossos desejos;esquecem o abismo profundo que os separa doseu objeto. Desejam realizar os seus sonhos.Mas a vida não toma em consideração ossonhos; não há um só obstáculo real que elespossam superar, e o homem afinal acordagemendo no fundo do abismo, que não mudou,é o mesmo de sempre.” (Jacobsen, 2001, p.70). Henrik e Anna, ao dizerem “sim” um para ooutro, acreditaram que o sonho poderia superar

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a realidade. Enganaram-se, porém. O “sim” nãoos aproximou; acentuou-lhes o abismo.

 

Há homens que são capazes de assumir osseus sofrimentos até o fim, naturezas vigorosasque experimentam as suas forças justamentesob o peso da infelicidade, enquanto outros –mais fracos – abandonam-se à dor semresistências, como vítimas de uma moléstia. Ecomo uma moléstia penetra-os o sofrimento,embebe-se no âmago do seu ser, identifica-secom eles, assimilando-se através de uma lutaprolongada e desaparece com a volta dasaúde. (...) Mas, existem também seres para osquais o sofrimento significa um atentado à suapessoa, uma crueldade, e nunca umaprovação, um castigo ou um mero capricho do

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destino. Tomam-no como um golpe de tiraniaodiosa e dele guardam sempre uma cicatriz nofundo do coração. (JACOBSEN, 2001, p. 77).

 

Henrik retrata claramente esta última posição:“A cicatriz no fundo do coração” nunca se fechacompletamente. Para ele, o fato de Anna amarsua mãe, tios e irmãos, significa não amá-lo, eessa ‘crueldade’ dela tinha que ser domada.Ela sofre por querer paz – longe de Henrik – epor buscá-la perto de quem a ama – sua famíliade origem. Henrik se comporta como umacriança, “pois as crianças nunca se contentamcom o vago e o incerto, mas reclamam sempre,com um instinto igual ao de conservação, umsim ou um não categórico, um pró ou contra,para que possam saber exatamente o que

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devem odiar e o que devem amar.” (Jacobsen,2001, p. 81).

 

O comportamento de fuga-esquiva é areconciliação. Não é um ato de amor, pois émantido por reforçamento negativo: fogem dascontingências que produzem a ruptura e que oslançam ao desespero. Fogem da dor; nãocaminham para o amor. Há uma confusãoafetiva, por certo, e o sentimento de alívio queocorre quando se reaproximam é confundidocom o sentimento de amor. Cada qualentendeu que a vida lhes produzia medo: daperda, da solidão, do esquecimento pelo outro.Medo, enfim. Compreenderam também quequando um homem é condenado a sofrer, nãose trata de poesia nem de uma simples

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ameaça; trata-se de ser arrastado à câmara detorturas e ser de fato torturado, e não há, noúltimo momento, salvação como nos contos deaventuras nem despertar súbito como nospesadelos.  (JACOBSEN, 2001, p. 71).

 

No entanto, para eles, “dois” (juntos) e “um”(separados) não tinham o mesmo significado.Para Anna, “dois” incluía necessariamenteacrescentar, ao lado da família composta porHenrik e os filhos, a mãe, os tios, os irmãos,viagens, teatro, outras pessoas amigas... Era aforma de viver bem a vida: com alegria,diversidade, variedade; “um” era a solidão, aimutabilidade, a resignação ao lado de Henrik edos filhos. Por sua vez, Henrik precisava daomesmicesmo, da repetição, do indivisível, da

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ausência de intromissão. Que distância entreos dois mundos de Henrik e de Anna! Nenhumdeles podia mais reinar absoluto dentro doterritório que cada um demarcou em suasfantasias de poder e de liberdade. Não mais.Agora cada um deles era um ser a serviço dealguém mais; não há mais solidão, pois ambosfazem parte de uma multidão, aquelaconstituída por um mínimo de participantes;apenas os dois. O estandarte a ser empunhadoe conduzido agora tinha que ser compartilhado,e ele não é mais de uma única cor. Elas são,pelo menos, duas, que nunca se fundem,jamais se diluem; mantêm-se inalteradas,mesmo que separadas apenas por uma linha,“sem uma fronteira comum.”

 

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As oposições os mantiveram juntos. O sonhode fagocitar o parceiro nunca se concretizou. Aimportância de domar o outro podedesaparecer exatamente quando o processo secompleta. A submissão encerra a luta; nãoproclama a vitória. Assim, Jacobsen descreveua conquista de um dos seus personagens:

 

[Ele] via com olhos hostis e invejosos asinclinações e opiniões, os gostos e concepçãode vida [dela]; para conquistá-la lutou comtodas as armas, com fina eloqüência, comlógica cruel e rude autoridade, com ironia quese disfarçava em compaixão – e ganhou-a parasi e para sua concepção de vida. Porém, tãologo sua causa da verdade fora vitoriosa e suaamada tornara-se igual a ele, percebeu que

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ganhara demais, fora além do que desejara,que sempre a amara com as suas ilusões epreconceitos, suas quimeras e seus erros, enão como ela era agora. Descontente consigomesmo, com ela [...] partiu para longe e nãovoltou mais. (JACOBSEN , 2001, p.105).

 

Concluo: só é possível o amor sem os atosconscientes de transformar o outro; se não lheserve como é, basta. Nada além pode ser feito.Nem deve ser tentado. Talvez o título do filmepossa ser compreendido a partir do queBergman (1987) escreveu:

 

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Uma coisa compreendo sem dificuldade maior:que a nossa família era gente de boasintenções, mas todos os seus membrosarrastavam uma herança catastrófica deexigências desmedidas que impunham a sipróprios, além de sofrerem remorsos e umsentimento de culpa. (BERGMAN, (1987, p.291).

 

As tormentas maritais foram previstas porKarin, mãe de Anna, no início dorelacionamento entre ambos. Veja o diálogoque Karin e Henrik mantiveram a sós:

 

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K: ─ Serei franca com você.

 

K: ─ Mesmo que eu tenha que ferir seussentimentos.

 

K: ─ Minha antipatia [por você] é apenas emfunção de Anna.

 

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K: ─ Creio que conheço bem minha filha.

 

K: ─ Acho que uma relação entre vocês doisresultará em catástrofe.

 

K: ─ É uma palavra forte e posso estarexagerando, mas devo usar a palavra“catástrofe”.

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K: ─ Não imagino que haja pior e mais funestacombinação do que a de nossa Anna e você.

 

K: ─ Anna é uma moça muito mimada,decidida, emotiva, de bom coração.

 

K: ─ Ela precisa de um homem maduro que a

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trate com amor, firmeza e generosa paciência.

 

K: ─Você é um jovem imaturo, inexperiente,talvez com profundos e antigos traumas jáincuráveis.

 

H: ─ Posso dizer uma coisa?

 

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K; ─ Sim. Claro.

 

H: ─ Não converso nesses termos.

 

K: ─ O fato é que, com meu poder e por todosos meios, impedirei que minha filha o aceite.

 

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H: ─ Não poderá impedir.

 

K: ─ Espere e verá.    

 

Karin avaliou mal a própria capacidade deconduzir o destino da filha: Anna e Henrik secasaram. Não errou, porém, na sua previsão: ocasamento foi uma catástrofe para ambos epara os filhos que geraram.

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Quando a mãe lhe dissera o que pensavasobre Henrik, Anna se mostrou incrédula. Tudoque há por se conquistar nos parece maisvalioso. O desconhecido nos espanta epodemos querê-lo como um talismã que nosdará acesso ao supremo bem: a felicidade.Para ambos – Henrik e Anna – o espanto quecada um despertava no outro os atraía. Nãoquero me furtar de apresentar uma imagem deJacobsen (2001) que dá contornos aos sonhosde Anna:

 

Em sonhos e histórias imaginava as paisagens

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como na margem oposta de um lago, a névoada distância envolvia sugestivamente osdetalhes da realidade, grandes traços reduziamas formas a uma unidade ideal e o silêncio dadistância ampliava o efeito do conjunto, tornavatão fácil surpreender a beleza... Agora que elaestava no centro do quadro e cada linha seacentuava diante dela e produzia os múltiplosacentos da realidade, agora que a beleza sedividia como a luz através de um prisma, agoraela não conseguia fundir as suas impressões,não conseguia transpô-las para o outro lado dolago, e com profundo desânimo deviaconfessar a si própria que se sentia pobre detodas essas riquezas de que não conseguiadispor. (JACOBSEN, 2001, p. 139).

 

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Anna fala no seu diário do fiasco que foi suavida. Um fiasco completo que ela nãoconsegue esconder de si mesma. Mas queHenrik se nega a reconhecer. Ele não entendede que fiasco ela está falando. Quantaalienação!

 

Karin, porém, nunca desistiu de amparar afilha, mesmo Anna se portando de maneira quecontraria os conceitos de Karin sobre orelacionamento do casal. Veja a transcriçãoque Bergman fez do diário da mãe, escrito emjulho de 1918:

 

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Nosso filho [trata-se do Ingmar] nasceu namanhã de 14 de julho, um domingo. Teve logofebre alta e diarréias difíceis de debelar. Parecemais um esqueleto com um narigão vermelhodo que outra coisa. Recusa-se a abrir os olhos.Devido à minha doença, uns dias depois doparto já não tinha leite para amamentá-lo. Foientão que o batizaram de emergência, aqui nohospital. Demos-lhe o nome de Ernest Ingmar.Minha mãe, que está exasperada com aincapacidade do Henrik para resolver osproblemas do dia-a dia, levou-o consigo paraVaroms, onde contratou uma ama. Henrik, porsua vez, está ofendido com a intromissão deminha mãe em nossa vida. E eu aqui doente,sem poder agir. Às vezes, quando estou só, meponho a chorar. Minha mãe diz que se o bebêmorrer, ela tomará conta do Dag (irmão maisvelho de Ingmar) para que eu possa exercerminha profissão. Ela quer que eu me divorciedo Henrik o mais depressa possível, ‘antes queele faça outra loucura levado pelo ódio quealimenta dentro de si’, mas eu acho que não

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tenho o direito de deixá-lo. Ele andasobrecarregado de trabalho e esteve mal dosnervos durante toda a primavera. Minha mãediz que ele é fingido, mas eu não acredito. Nasminhas orações imploro a Deus, ainda que semgrande fé. A vida é assim mesmo,: cada umtem de se arranjar o melhor que puder”. (BERGMAN, 1987, p. 291 – 292).

 

O título do filme pode, por outro lado, revelar acondição humana: capaz de visualizar, pensar,imaginar como gostaria de viver com marido,mulher, filhos..., como gostaria de tratá-los epor eles ser tratada, a pessoa quase sempre sevê desamparada e impotente para concretizarseus sonhos! Numa linguagemcomportamental, imaginar quais contingências

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de reforçamento positivas amenas deveriamestar operando nas interações familiares nãohabilita ninguém a colocá-las em prática.Intenções podem conter descrições decontingências de reforçamento (auto-regras)que produzem um relacionamento feliz.  Noentanto, enunciar uma auto-regra é diferente dese comportar sob o controle dela.

 

São duas histórias de contingências dereforçamento: a de Henrik, o marido, e a deAnna, a mulher, que muito pouco têm emcomum. O que é reforçador para ela: a própriafamília de origem, uma vida alegre, os filhoscriados num ambiente mais democrático e, osconfortos que um salário melhorproporcionamproporciona. Tudo isso se, se

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opõem àquilo que controla o marido:isolamento familiar, vida espartana, poucoslazeres, relações inter-pessoais autoritárias -exigindo submissão - tudo isso oculto por umaredoma inexpugnável, urdida com os axiomasda religião.

 

Frida parece compreender perfeitamente comoHenrik se comporta e se sente. Leiam o diálogoque manteve com Anna, enquanto Henrik,então envolvido com ambas, não se decidia pornenhuma das duas.

 

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F: ─ Quero lhe falar sobre Henrik.

 

    F: ─ Peço-lhe que o aceite de volta. Eleestá... está... cada vez mais arrasado.

 

    F: ─ É estranho lhe dizer isso, mas nãoconheço melhor termo.

 

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    F: ─ Ele estuda até tarde da noite e está tãoabatido que dá pena.

 

    F: ─ Pouco sei sobre o que houve entrevocês. Ele não disse, só imaginei.

 

    F: ─ Tento não ficar zangada ou magoada.

 

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F: ─ Não se pode ocultar o que se sente. Nãoposso evitar ficar furiosa, por exemplo. Ouevitar gostar dele, embora ele se mostreinseguro.

 

F: ─ Sabe o que eu acho?

 

F: ─ Que somos três infelizes que sofrem echoram em segredo.

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F: ─ E, tenho que ser a primeira a reagir. Parameu próprio bem.

 

F: ─ Não quero mais me deixar ser magoada ehumilhada.

 

F: ─ Ele se deita na minha cama e chora por

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outra mulher.

 

F: ─ É humilhante.

 

F: ─ Direi uma coisa que penso o tempo todo...o coitado não tem uma vida real. Nada vale apena.

 

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A: ─ O que devo fazer?

 

F: ─ Aceite-o de volta. Decida-se.

 

F: ─ Henrik é a melhor pessoa que já conheci.

 

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F: ─ Ele é gentil e bom, não há ninguémmelhor.

 

F: ─ Quero que ele se dê bem. As coisas nuncaderam certo para ele.

 

F: ─Ele precisa gostar de alguém, para nãoodiar tanto a si mesmo.

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Só há entre eles um ponto comum: adependência de um em relação ao outro,mantida por contingências coercitivas intensase contínuas, interrompidas por eventuaismomentos de reforçamento positivo.

Corrijo-me: melhor do que dizer ilhotas dereforçamento positivo, num oceano de controleaversivo, seria entender que não hápropriamente reforço positivo, mas pausas deaversãoividade que geram sentimentos dealívio. Como é saboroso o paladar do alívio,quando se interrompe a dilacerante teia dosfios que tecem a falsa manta da felicidadeconjugal. Mas, a ruptura é fugaz e o alívio pordemais breve.

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Frida não foi altruísta desistindo de Henrik, emfavor de Anna. Foi mais sensível que Anna àscontingências aversivas provindas de Henrik.(“Não quero mais me deixar ser magoada ehumilhada”.). O comportamento de Frida foi defuga-esquiva. Quando ela diz que Henrik é boapessoa, não está tentando enganar Anna.Minha interpretação é que ela conseguiudiscriminar que os comportamentos de Henrik,que lhe eram aversivos, eram emitidos semque ele tivesse consciência da função quetinham: Henrik se comportava mais sobcontrole das contingências presentes e dasauto-regras produzidas pela sua história decontingências, do que sob controle doscomportamentos e sentimentos da outrapessoa com quem interagia (Frida e Anna).Seus próprios comportamentos e sentimentoslhe eram mais importantes do que qualquer

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outra manifestação humana ao seu redor.Desta maneira, numa linguagem cotidiana, elenão agia com a intenção de feri-la (não estavasob controle dos comportamentos dela), maspor déficits de repertório (ele não dialogava, erainseguro, segundo Frida) e por reagir acontingências de sua história pessoal. A opçãode Anna, de ficar com Henrik, revela diferenteshistórias de contingências. Há pelo menos doispontos importantes na vida de Anna quesugerem caminhos para compreender suaescolha. O primeiro deles é que Anna se sentiuamada pelo pai. Veja o diálogo [Anna acorda opai com um beijo]:

 

A: ─  Dormindo, papai?

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P:  ─  Sim, estou.

 

P: ─ Estou dormindo e sonhando que estoudormindo. Sonhando que estou  dormindo aquisentado.

 

P: ─  Então, a porta se abre e entra a mais

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linda... a mais dedicada e carinhosa  de todasas mulheres.

 

P: ─ Ela se aproxima de mim... sopra em meurosto com seu doce hálito... e pergunta seestou dormindo.

 

P: ─  Então, sonho e penso: “Deve ser assimque se acorda no paraíso.”

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Não é uma bela declaração de amor paterno?Tais contingências desenvolvem sentimentosde auto-estima. Além disso, por generalizaçãopodem ser formuladas auto-regras tais como:“homens sabem ou aprendem a amar... logoHenrik aprenderá a me dar amor com carinho”.

 

O segundo ponto diz respeito à rica história decontingências de reforçamento positivo deAnna [Karen afirmou para Henrik  que Anna era“mimada”], em particular na interação com amãe, com quem fala o que pensa, faz o quequer e ─ agradando ou não à mãe ─ não perde

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o seu amor, pois Karin, afinal, sempre acolhe afilha, mesmo quando o comportamento destalhe era aversivo. (Contingências dereforçamento positivo amenas produzemsentimentos de liberdade, de segurança, debem-estar, de auto-estima. Produzem tambémvariabilidade comportamental, emissãoespontânea de comportamentos, iniciativas...Tais características comportamentais eemocionais de Anna, fruto de sua história decontingências, virão a ser um insuportávelobstáculo para Henrik.). Anna, deve tergeneralizado para a relação conjugal o mesmopadrão de relacionamento que teve com a mãe.A auto-regra poderia ser assim formulada:“Posso ser franca, direta, tomar minhasdecisões ─ mesmo que contrariem Henrik ─,que ele me acolherá e me amará como o fazminha mãe.”

 

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Anna, infelizmente, errou em ambas asgeneralizações... Henrik não se comportou deacordo com as auto-regras de Anna. Afinal,eram auto-regras geradas pela história decontingências dela; não eram contingênciasatuando sobre Henrik. Não basta desejar queas relações interpessoais aconteçam da formaque sonhamos. Elas precisam ser construídascom o adequado manejo das contingências dereforçamento. Tarefa que, quando possível, éextremamente difícil. As “melhores intenções”não instalam comportamentos, nemsentimentos.

 

O filme não é sobre amor, mas sobre o ódiodisfarçado com aromas de bem-me-quer. Vejacomo Bergman descreveu a transformação da

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mãe, a partir de um estudo fotográfico [mais doque uma galeria de fotos, Bergman revela odesenvolvimento da mãe]:

 

Há alguns anos fiz um documentário curtosobre o rosto de minha mãe... Começa comuma fotografia de quando ela tinha três anos etermina com uma fotografia para o passaporte,tirada uns meses antes de ter sofrido o últimoenfarte cardíaco.

 

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Durante dias seguidos estudei centenas defotografias através da lente de aumento: a damenina altiva, arrogante mas simpática, queera a filha preferida de um pai já idoso; a dagarota em idade escolar com os coleguinhas deturma da professora Rosa, em 1890, voltando orosto num gesto de desagrado e vestida numavental enorme, bordado, que a distingue detodos os outros que não usavam; a fotografiaem que está vestida para a primeira comunhão,parecendo uma menina das peças deTcheknov; nesta foto a vemos com uma blusacara, branca e com ramagens, de corte russo,o olhar é lânguido e enigmático; a que tirouquando era uma jovem enfermeira, deuniforme, uma mulher preparada para começara trabalhar, decidida e confiante; depois a fototirada em Orsa, em 1912, no dia em que ficou

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noiva, que é uma imagem genial, reveladora deuma compreensão intuitiva: o noivo estásentado a uma mesa, muito bem penteado,todo prosa na sua primeira sotaina, e lê umlivro; à mesma mesa, com um bordado, umatoalha que ela estendeu ao mesmo tempo quese inclinou para a frente, fixando a máquinafotográfica; nesta fotografia a luz vem de cimae escurece o olhar que é ávido, emborasombrio – uma imagem da solidão de duaspessoas sem uma fronteira comum. Umafotografia comovente é aquela em que minhamãe está sentada num cadeirão, tendo diantedela um perdigueiro que a contempla comdedicação, o que a faz rir – uma das rarasfotografias em que a vemos alegre. Esta foto étambém a imagem de uma mulherrecém-casada, livre dos pais.

 

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Depois a fotografia de uma pequena paróquiano interior de uma floresta da província deHälsing, quando ainda não existia o ódio entreminha mãe e o ‘bom pastor’ (como elachamava meu pai). A foto da primeira gravidez:minha mãe, numa atitude de cansaço, seencosta ao ombro do marido que sorri com arprotetor, ainda que só o bastante para se notar.Os lábios de minha mãe estão inchados comose tivessem beijado muito, o olhar é turvo, asfeições são suaves e francas.

 

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A seguir, as fotos tiradas na capital: o lindocasal com os filhos bonitos e bem cuidados, noandar claro de um prédio situado em rua depouco movimento do bairro de Östermalm.Aquelas em que se vê minha mãe, bempenteada, elegante, o olhar simulado, o sorrisocerimonioso, usa jóias bonitas, é uma mulhercom vida, com encanto. Tanto meu pai comominha mãe tinham assumido os seus papéis erepresentavam com entusiasmo.

 

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Há uma outra fotografia em que podemos verminha mãe a rir: foi tirada na escada davaranda de nossa casa de Varoms; eu teria, naépoca, uns quatro anos e estou sentado nosseus joelhos. Meu irmão, que tinha oito anos,está encostado ao corrimão. Minha mãe usaum vestido de algodão, leve, e apesar do calorque fazia, calça botinas. Segura-me comambas as mãos à volta da cintura, aquelasmãos pequenas, fortes, secas, suaves deunhas curtas e pele maltratada. Do que merecordo melhor, no entanto, é da profunda linhada vida na palma da mão, das ramagensazuladas formadas pelas veias salientes,parecendo ora flores ora animais. Mãos queexpressavam sentido de responsabilidade,esmero, força. E vez por outra, ternura.

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Continuo a folhear os álbuns. Minha mãeaparece cada vez menos nas fotografias, nasquais aparecem cada vez mais parentes. Umafotografia a mostra pouco depois de ter sidooperada, intervenção em que lhe extraíram oútero e os ovários. Está sentada com os olhossemicerrados, usa um vestido bonito, claro eseu sorriso já não ilumina o olhar. Outras fotos.Uma, em que a vemos endireitando as costasdepois de ter estado curvada, plantando umasflores. As mãos estão sujas de terra e caem-lheinertes ao longo do corpo. Cansaço, talvezansiedade, agora que tanto meu pai como elaestão sós. Os filhos e os netos já não estão em

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casa, são filhos bergmanianos que aprenderamque não se deve incomodar os outros e quetampouco devemos ser intrometidos.

 

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Finalmente a última fotografia, a do passaporte.Minha mãe adorava viajar, tanto como adoravateatro, livros, cinema, convívio. Meu pai, essedetestava fazer viagem, visitas improvisadas,gente estranha. Por ter piorado da sua doença,ele sentia vergonha das suas maneirasdesajeitadas, da dificuldade que tinha emmanter a cabeça firme, em andar. Isto

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restringiu cada vez mais a liberdade de minhamãe, mas vez por outra ela ia à Itália. Comoseu passaporte tinha caducado, ela precisoutirar aquela fotografia para renová-lo. Minhairmã casara naquela época, fora viver naInglaterra, e minha mãe sofrera o segundoenfarte. Nessa foto, parece que um ventogélido lhe perpassa o rosto, modificando-lhelevemente as feições. O olhar é velado, e ela,que lera durante toda a sua vida, já nãoconsegue fazê-lo. O coração é avaro na suafunção, o cabelo tem uma cor cinzenta, estápuxado para trás, deixando visível a testa larga.Sorri a custo, pois não é obrigatório sorrir nasfotografias? A pele macia das maçãs do rostoestá frouxa, enrugada, os lábios não mostramfrescura alguma. (BERGMAN, 1987, p. 288 a290).

 

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O esmorecimento progressivo de Anna ficouevidente. Ela, ao que parece, parou de viver;passou a durar (termo que me inspirouFernando Pessoa (1995) na poesia‘Aniversário’). Empresto de Jacobsen (2001) aspalavras, que ele não escreveu para Anna, masas repito por serem próprias para asindagações de Ingmar:

 

[Anna] estava cansada, e das suas frustradasesperanças de amor seu cansaço espalhara-serapidamente por todo o seu ser, por todas assuas faculdades e todos os seus pensamentos.Agora estava fria e isenta de paixão... Então,viera o cansaço, suave e balsâmico, e tornaraos seus nervos insensíveis à dor, o sanguedemasiado frio para o entusiasmo, o pulso

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demasiado fraco para a ação. E mais do queisso, o cansaço a preservara das recaídasdesse amor, dando-lhe a mesma prudência, omesmo egoísmo de uma convalescente.(JACOBSEN, 2001, p. 199).

 

Eu diria a Ingmar: ela se esgotou parasobreviver. E não houve reserva para amar osfilhos, tanto quanto eles necessitavam. Umamá escolha sempre produz vítimas. Nãoimporta quem são elas... os filhos não ocupamnenhum lugar especial na vida de uma mãedesamparada, que os poupe da indiferença edo abandono. Sinto muito, Ingmar. Faça o quepuder de sua vida, sozinho! Talvez Annapudesse olhar para Ingmar e pedir-lhe como amãe de Niels [personagem de Jacobsen]:

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“Niels, leve-me contigo no pensamento, meufilho, quando algum dia você participar de todosesses esplendores que eu não verei jamais...”(JACOBSEN, 2001, p. 137 - 138).

 

Regras e auto-regras que constroóem umabismo

 

Anna era uma mulher que se comportavabasicamente sob controle de suas emoções e

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sentimentos (buscava o que lhe erareforçador), e de auto-regras. Era poucosensível a conseqüências amenas providaspelo marido, mas respondia sob controlecoercitivo intenso e “explosões de amor”mescladas com culpa manifestadas por Henrik.O comportamento de fuga-esquiva se mostravana maneira de conduzir a rotina da família, narelação que mantinha com os filhos, nasubmissão aos serviços religiosos e sermõesde Henrik (no diário, ela deixa claro que nãoconcordava com muitos dos seus sermões.Provavelmente, porque ele não vivia o quepregava...). Sempre triste, distante. Os únicosmomentos em que revelava genuíno prazer eraquando tinha contatos com a família, emespecial com a mãe. A relação entre Anna e amãe era extremamente aversiva para Henrik,mas Anna nem por isso evitava os encontros.Aliás, os usava para puni-lo. As auto-regrasestavam mais ligadas ao casamento e àmanutenção – mesmo que conflitual – dasrelações familiares: pais e filhos. As “explosões

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de amor” tinham para Anna a função demandos verbais: os reaproximava, mas não osunia. A cena final do filme, quando Henrik aprocura e pede-lhe que volte para casa,sintetiza com imagens o que digo compalavras. Estão de volta, juntos novamente,porém separados no banco por um abismoinsuperável de desamor. Anna morre casada.Henrik prossegue sua vida lutando contra oremorso, negando os adjetivos depreciativosque ela lhe atribuiu.

 

Anna não fazia concessões a Henrik: não erasensível àquilo que lhe era aversivo (nãopoupava, nem minimizava sua dor); tambémnão lhe era reforçadora. Submetia-se aoscontroles coercitivos e Henrik sabia que assim

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funcionava a relação entre eles. Ossentimentos de rejeição que ele sentia eramevidentes e procurava minimizá-los punindo oscomportamentos de Anna de se afastar dele. Écomo se dissesse para si mesmo: “Tenho queser amado; não importa se, de fato, o sou.”

 

Henrik, desde pequeno, viveu isolado com amãe, sujeito a privações financeiras eisolamento social. O avô materno rejeitou afilha e o neto. A amargura da mãe a distancioudo próprio filho: o queria por perto comoantídoto contra a solidão. Nunca aceitou Anna,talvez não aceitasse mulher alguma para seufilho. Henrik carrega o sentimento de rejeiçãoconsigo. Não aprendeu a emitircomportamentos que produzem conseqüências

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sociais reforçadoras positivas. Pune aspessoas, afasta-se delas e parece que a únicaevidência de afeto que aceita é aquele dadocontingente a comportamentos punitivos emrelação ao outro. Não basta ser amado; énecessário ser amado precisamente quando semostra cruel. Aquilo que é reforçador paraAnna lhe é aversivo e pune os comportamentosque ela emite que podem trazer a ela reforçossociais generalizados positivos. Suasauto-regras são: “se me ama, então passaráprivações ao meu lado; se me ama, então, sesubmeterá aos meus desejos; se me ama,então, se isolará de sua família; se me ama,então, gostará exatamente daquilo que eugosto”. A maior dificuldade de Henrik é sersensível às conseqüências de seucomportamento. Não fica sob controle dafunção que seus comportamentos têm sobre osoutros. Fica sob controle dos comportamentosdo outro que lhe são aversivos. Parece, noentanto, ignorar que são seus próprioscomportamentos que evocam o pior do outro.

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Henrik também espera que do outro venhamsoluções para suas dificuldades, assumindo,como um pressuposto, que não lhe cabe sereavaliar, se modificar, se reinventar. QuandoAnna vai embora para morar perto da mãe, eleatribui o comportamento da mulher a umcapricho dela (como se ela estivesse assimagindo em função daquilo que só é reforçador para ela – seria, neste caso, uma pessoaegoísta. Não ocorre a ele que ela estavaemitindo um comportamento de fuga-esquivadas contingências aversivas por ele criadas). E,também, que a partida de Anna estava sobcontrole dos caprichos da mãe (neste caso elaseria uma marionete de outrem, quandodeveria ser apenas fantoche dele). Em ambasas alternativas, Henrik não fazia nenhumarelação entre seus comportamentos e oscomportamentos de Anna evocados pelos dele.Henrik era inflexível e insensível àscontingências (essencialmente coercitivas, queele produzia e que infestavam a relação docasal). Quando Anna se afastava dele (ou se

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propunha a fazê-lo), os comportamentos deHenrik se resumiam a dois padrões, queocorriam em sucessão: em primeiro lugar,punia o comportamento da mulher, queinvariavelmente cedia, recuava e permaneciaao seu lado. Em segundo lugar, quando eladava sinais de que realmente poderiamanter-se distante, ele a procurava. Aindiferença dela se tornava tão aversiva que eleemitia o comportamento de fuga-esquiva deprocurá-la, se desculpar (eventualmente commanifestações intensas, aàs quais denomineide “explosões de amor”) etc. Após arecuperação da relação, o ciclo se reiniciava.

 

Aliás, tal padrão de comportamento de Henriknão se limitava às interações com Anna. Veja o

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relato de Bergman sobre um episódio que viveucom o pai, quando iam juntos de bicicleta parauma pequena comunidade, onde Henrik iriaconduzir a cerimônia do domingo:

 

Naquele dia em que íamos a Amsberg eu iasentado na proa de um barco [que ostransportava de uma margem para outra do rio]e refrescava os pés na água, o que me aliviavadas picadas dos mosquitos em torno dostornozelos. De repente, fui agarrado pelosombros e atirado para trás, ao mesmo tempoque levei um bofetada. Era meu pai. Estavazangado. ‘Quantas vezes já lhe disse que nãodeve fazer isso? Não entende que a correntepode puxá-lo?’ E me deu outra bofetada, masnão chorei porque estava diante de gente que

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não conhecia. Não chorei mas senti ódio. Sentiódio por aquele maldito homem que gostava debrigas, que me batia constantemente. Voumatá-lo pensei. Não o perdoarei. [...] Ele seaproximou, me deu um leve empurrão nascostas. ‘Não compreende que me pregou umsusto? Você podia ter morrido afogado semque ninguém visse nada.’ Me deu outroempurrão, depois pegou a bicicleta e,levando-a pela mão, passou à prancha dedesembarque. [...] Já em terra, estendeu suamão e agarrou a minha. Como por encantotoda a fúria que sentia dentro de mimdesapareceu. Compreendi que ele tinha levadoum susto, e quando sentimos medo, tendemosa nos zangar. Sim, era compreensível. Agorameu pai estava bonzinho, se arrependia de terme batido com tanta força!”(BERGMAN, 1987,p. 272-3)

 

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Tanto Anna como Henrik exerciam um fortecontrole coercitivo, um sobre o outro, o que ostransformava em dois indivíduos infinitamenteemboscados, os quais viviam sob controle deperenes ameaças. Nada resta aos filhos quesão “tratados” (uso o termo no sentido em quesão “tratados” os animais, para não pereceremde fome, de frio, de doença...) e não “amados”.Não que, necessariamente, fossem incapazesde amar, mas não lhes sobravamcomportamentos, nem afetos a serem emitidosem benefício de ninguém mais, excetocomportamentos de fuga-esquiva esentimentos de medo, raiva, ansiedade, com osquais conviviam em meio da tempestade queum representava para o outro.

 

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O que a relação entre os pais produziu emBergman

 

Bergman [já adulto e diretor consagrado] foi àigreja num domingo de dezembro, para ouvir ooratório de Natal de Bach. Após sair dacerimônia, passou pela rua onde moraram seuspais. Ambos já haviam morrido. A visão dacasa e os sentimentos que Bach lhe despertou,levaram-no à seguinte narrativa:

 

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Aproveitei, então o estado eufórico em que meencontrava [...] entrei na casa de meus pais.Precisamente como há cinqüenta anos, elaainda cheira a detergente e a santidade(Bergman, 1987) [neste ponto o tradutor dotexto faz um alerta: Bergman passa darealidade à fantasia ao descrever sua visita, empensamento, a casa paterna. Observo, não obstante ser uma fantasia, que ela é reveladorados sentimentos que a história decontingências entre Bergman e a mãeproduziram nele.]

 

Minha mãe está sentada à secretária, tem osóculos na ponta do nariz, e o cabelo ainda nãoenfraquecido, está um pouco em desordem.Curvada como a vejo, ela escreve no seu diário

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[...] “Súbito volta a cabeça e dá comigo ali. (Oh,como eu ansiava por este momento! Desdeque minha mãe morreu que sinto umanecessidade de recordá-lo.) Tem um sorrisoum tanto cerimonioso, fecha imediatamente odiário, tira os óculos. Dou-lhe um beijo filial natesta e outro na mancha acastanhada que temjunto ao olho esquerdo.

 

─ Sei que venho incomodá-la, mãe. É o únicomomento que tem para estar sozinha. Sei queé quando o pai repousa, antes do jantar, que amãe lê ou escreve no seu diário. Mas eu fui àigreja ouvir o oratório de Natal, de Bach, e foimuito belo, não imagina. E a luz, então! Edurante todo o tempo que ali estive, pensei:hoje vou fazer uma tentativa, desta vez vou ser

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bem-sucedido.

 

Minha mãe sorri ao ouvir isto. É um sorrisoirônico, sei muito bem o que está pensando!Você (Ingmar) passava pela Storgatan (rua dacasa dos pais) muitas vezes, a caminho doteatro, a bem dizer diariamente, e quase nuncase lembrava de nos visitar. Tem razão, mãe,mas sabe como sou bergmaniano: nãodevemos incomodar os outros, não devemosser intrometidos [...]

 

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 ─ Tenho uma pergunta muito importante a lhefazer, mãe. Há uns anos, creio que foi no verãode 80, estava sentado no meu escritório emFaro [...] vendo e ouvindo a chuva e, derepente, tive a sensação de que a mãe estavajunto a mim, a meu lado, que podia segurar-lhea mão se quisesse. Não julgue que eu estavaadormecido, porque não estava. Tenhoabsoluta certeza. Também não foi um dessescasos que se pensa serem do outro mundo,não. É esta a razão por que lhe queroperguntar se a mãe, naquele dia, de fato estevecomigo, no meu escritório, ou se tudo foi sófantasia minha. É que isto não me sai dacabeça, entende?

 

 ─ Não era eu, estou certa – responde-me com

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voz calma. – Ainda me sinto cansada demais.Tem certeza de que não se tratava de outrapessoa?

 

Abano a cabeça num gesto de desalento.Tenho a sensação de ser intruso.

 

─ Mas nós ficamos amigos mãe, não ficamos?Quero dizer, quando deixou de existir aquelarelação mãe-filho, podíamos falar francamenteum com o outro, com o coração nas mãos;

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ficamos amigos, não se lembra? Eu mepergunto, muitas vezes, se compreendi o quefoi a sua vida, ou se me faltou muito paracompreender. Terá sido a nossa amizadeapenas uma ilusão minha? Mãe, não julgueque estou aqui, torturado e cheio de remorsos,confundindo a mim mesmo. Não, não é isso.Mas onde está a amizade que devia haverentre nós? Porque afinal, os papéis querepresentávamos eram os mesmos, só asréplicas é que eram diferentes, era eu quemimpunha as condições. E o seu amor de mãe,onde está? Eu sei que na nossa família nãousamos essa palavra. O pai, na igreja, fala doAmor Divino, mas e aqui em casa? Lembra-seo que foi a nossa família, mãe? Como é quenos foi possível viver com os coraçõesfendidos, reprimindo o ódio que sentíamos?

 

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─ Vá falar com outra pessoa sobre isto. Eu mesinto demasiado cansada.

 

 ─ Com outra pessoa, mãe? Mas quem? Se eunem sequer posso falar de tudo isto comigomesmo!

Compreendo que se sinta cansada, mas olheque eu não estou menos. E o meu é umcansaço interior, nos nervos, nas entranhas. Amãe certa vez me disse: ‘Agora não tenhotempo para ficar com você. Vá brincar comseus brinquedos novos. Sabe que não gosto deafagos. Você é demasiado piegas, parece atéuma menina’.

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 ─ Certa ocasião a mãe me contou que a avónunca a amou verdadeiramente, que todo oamor dela se concentrou no filho mais novoque depois faleceu. Ora, eu queria saber paraquem foi o seu amor, mãe.

 

 ─ Eu sei para quem foi – digo muitorapidamente e sentindo um tremor que tenhodificuldade em dominar. – As flores em nossacasa cresciam, as trepadeiras se espalhavam,os rebentos vicejavam. As flores floriam, sim,mas nós? Por que fomos tão infelizes, mãe?Foram as inibições bergmanianas a causa, ou

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foi outra coisa?

 

 ─ Olhe, mãe, eu me lembro de quando meuirmão fez uma de suas travessuras. A mãetinha saído justamente deste quarto,atravessou a sala onde nós estávamos econtinuou como se nada tivesse acontecido. Eupensei: Finge que não vê, mas finge muito mal.Afinal, o que houve na nossa família foi isto:máscara em vez de rostos, histeria em vez desentimentos, vergonha e culpa em vez deternura e perdão.

 

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 Minha mãe leva a mão ao cabelo, seu olharsombrio permanece imóvel, sem pestanejar.

 

 ─ Como se explica que tenham tornado meuirmão um inválido para a vida, por quetransformaram minha irmã num grito de dor,por que vivi eu mesmo toda a vida com umaferida que nunca cicatrizou e se espalhou portodo o corpo? Não pense que quero agoramedir a extensão da sua culpa, não sounenhum cobrador. Quero é saber por que foinossa infelicidade tão grande sob a coberturade um prestígio social tão frágil? Por que meusirmãos sofreram tanto, a despeito doscuidados, do amparo e da confiança de queforam alvo? Como se explica que eu tenhaficado por tanto tempo incapaz de manter

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relações normais com as outras pessoas?

 

Minha mãe senta-se na cama, desvia o olhar,suspira fundo. Depois engole em seco váriasvezes.

 

 ─ Eu tenho mil e uma explicações para cadasentimento, cada gesto, para as minhasindisposições, posso explicar o motivo por queemprego as palavras que uso neste momento.Mas é assim mesmo que deve ser, dizem-me.

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Apesar disso me atiro de cabeça pelo abismoda vida. Soa grandiloqüente, eu sei, mas éassim mesmo, mãe. Me atiro de cabeça peloabismo da vida. Mas o abismo não tem fundo,daí o não poder me matar contra uma ravinapedregosa ou contra um espelho de água.Mãe! Estou chamando por você como semprechamei: quando era noite e eu tinha febre,quando voltava da escola, quando corria pelojardim do hospital, ao anoitecer, perseguido poralgum fantasma, quando naquela tardechuvosa em minha casa de Farö estendi a mãopara tocá-la. Não sei mais o que lhe dizer. Nãosei. Estamos os dois passando por um transe aque não sabemos dar solução. É verdade, sim,que tenho a pressão arterial alta. É umaconseqüência de um período da minha vida emque fui humilhado e aviltado. Neste mesmoinstante sinto o rosto arder e ouço alguém uivar– provavelmente sou eu mesmo.

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 ─ O que devo fazer é controlar-me, meacalmar, eu sei. Sabe, mãe, este encontro nãofoi nada do que eu tinha pensado. Imaginei-nosum tanto melancólicos enquanto falávamosdestes mistérios, em voz baixa. A mãe ouvindoe depois me dando explicações de umamaneira pura e perfeita como um coral deBach. A propósito, por que é que nuncapudemos dizer ‘puxa pai, você...’. ou ‘puxamãe, você...’? Porque fomos obrigados a nosdirigir a vocês em termos que só criavamdistância?

 

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Encontramos, num cofre, os diários que minhamãe escreveu. Depois da sua morte, meu paipassou os dois dias com uma lente, tentandodecifrar aquela caligrafia microscópica, estandoo texto, em parte, em código. Pouco a pouco,meu pai foi compreendendo que nunca tinhaconhecido a mulher com quem vivera durantecinqüenta anos. Por que razão minha mãe nãoqueimou seus diários? Teria sido umarepresália bem planejada de sua parte? ‘Agorasou eu quem fala e você não me pode tocar’,escreveu ela. ‘Do fundo do coração lhe digoque agora não pode continuar a me responder,como sempre fez, com seu silêncio, cada vezque eu suplicava, chorava, desesperava...’ [amãe assim se dirigia no diário ao marido]

 

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Foi nesta altura que notei que a imagem deminha mãe começou a de desintegrar [...]Embora sem grande entusiasmo, fiz mais umatentativa:

 

 ─ Mãe, um dia discutimos e a mãe me deu umtapa, e eu retribui da mesma maneira.Pergunto: Por que tínhamos de discutir , porque todas aquelas cenas, o bater de portas,lágrimas de fúria? Sim, por que tínhamos dediscutir? Não me lembro dos motivos, salvodaquela vez quando o pai estava hospitalizado.Me diga: eram ciúmes, tentativas de contato,ou simplesmente a sua maneira de educar?Também me lembro de nossas reconciliações,do alívio suave que infundiam em mim. Mas asmentiras que foram ditas, que fazer delas?

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(BERGMAN, 1987, p. 283 – 288)

 

Quantas privações de afeto! Bergman publicaem 87, com 69 anos, um apelo de amor, revelauma necessidade de compreender aquilo quevirou passado e que só Anna poderia lheresponder, mas... Nos versos de FernandoPessoa (1995, p. 379):

 

“O que sou hoje...

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  É terem morrido todos,

 

  É estar eu sobrevivendo a mim mesmo comoum fósforo frio...

 

  Comer o passado como pão de fome, semtempo de manteiga nos dentes!”

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E, numa metáfora pungente, Ingmar se atira noprecipício para a morte, sem conseguirencontrá-la, salvo pelo poço sem fim de Alice,que não lhe ceifa a vida, mas o condena acontinuar vivendo, e como é longa a vida quenão se quer viver. Não é por acaso, que ele(1987) cita a frase de Strindberg “A vida écurta, mas pode ser demorada enquanto avivemos.” (p. 276). As melhores intenções!Danem-se aquelas intenções, que não setransformam em contingências amenas dereforçamento positivo, pois se isto não ocorre,só resta às “boas intenções” a alternativa deproduzir sofrimento e dor, não importa quecomportamentos lhe servem de companhia...Comportamentos de fuga-esquiva, tais comoisolamento, silêncio, contenção na expressãode sentimentos, trabalho ininterrupto, gestossimuladamente mansos etc., podem ser

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significativos socialmente, mas sempre serãoparceiros da dor de quem se comporta!

 

Anna e Henrik procuravam o amor idílico (quemnão o busca?): amor terno e delicado. Masidílico também significa utópico, isto é, queacontece em lugar nenhum. Frustrados por nãoalcançarem a concretização do amor idílico,eles se acusam reciprocamente e cada qualculpa o outro pelo fracasso. Sempre seráassim: por causa dos desencontros – frutospré-marcados pela história de contingências,inconscientes ou não, mas jamais resolvidos –é que o amor idílico não ocorre. Nuncaocorrerá. Eles se castigam mutuamente e cadaqual gera no outro dor; raramente ternura ouacolhimento. Daí segue-se, que cada um deles,

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sob controle do sofrimento que causa no outro,manifesta sentimentos de compaixão (prefixocom e a raiz passio, que originariamentesignifica sofrimento). “A palavra compaixãosignifica que não se pode olhar o sofrimento dopróximo com o coração frio, em outraspalavras: sentimos simpatia por quem sofre....É por isso que a palavra compaixão inspira, emgeral, desconfiança: designa um sentimentoconsiderado de segunda ordem que não temmuito a ver com o amor. Amar alguém porcompaixão não é amar de verdade.” (Kundera,1983, pp. 25 e 26.{Itálico adicionado}).Ninguém pode oferecer ao outro o amor idílico:um amor sem conflitos, sem cenas dramáticas,sem dores, sem evolução. Tanto o homem quermudar sua mulher, como a mulher o seuhomem. Quando bastaria (mas é tão difícil!)que aprendessem reciprocamente umalinguagem comum, que lhes facilitasse aconvivência e a compreensão. Henrik e Annasentiam compaixão um pelo outro, enquantopermaneciam anestesiados dentro da própria

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redoma, de onde não se davam conta de que osofrimento de cada um era produzido pelooutro. Faço você sofrer para vê-lo fraco;vendo-o fraco posso amá-lo sem temor de suaforça. Essa me parece ter sido a constante darelação entre eles. Não se amavam: produziamdor para ter compaixão e, desta forma, seenganaraem, ambos com a crença alienada deque amavam o outro. Triste equívoco perpétuode dois seres incapazes de construir umarelação de amor. Morreram enganados pelacrença de que viveram pelo amor até que amorte os separou. A morte não os separou, osaliviou da dor da presença do outro, daobrigação de velar o amor.

 

Será possível entre seres humanos um amor

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desinteressado? “Há perguntas queatormentam os seres humanos: será que eleme ama? Será que gosta mais de mim do queeu dele? Terá gostado de alguém mais do quede mim? Todas estas perguntas queinterrogam o amor, o avaliam, o investigam, oexaminam, será que não ameaçam destruí-lono próprio embrião? Se somos incapazes deamar, talvez seja porque desejamos seramados, quer dizer, queremos alguma coisa dooutro (o amor), em vez de chegar a ele semreivindicações, desejando apenas sua simplespresença.” (Kundera, 1983, p. 298 – 299).

 

Quando a morte veio para Anna, a separaçãose fez. Só a morte foi mais forte que a vida.Com ela se concretizou o que desejavam sem

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querer. As palavras de Jacobsen são perfeitas:

 

Feliz é aquele que, em seu luto pela morte deum ente querido, pode consagrar todas aslágrimas ao vazio, ao abandono, à privaçãodaquele que se foi, pois mais penosos, maisamargos são os prantos que expiam a falta deternura que os dias passados presenciaram?Ccontra aquele que agora está morto – econtra quem cometeram-se crimes irreparáveis.Retornam então as palavras duras, asrespostas cuidadosamente envenenadas, acensura impiedosa e a cólera injustificada, etambém os pensamentos hostis que não seexternavam em palavras, os julgamentosprecipitados atravessaram o espírito, o dar deombros discreto e o riso oculto cheio de ironia e

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impaciência – voltam todos como flechasnocivas e cravam profundamente seusaguilhões no peito, seus aguilhões embotados,pois a ponta partida ficou no coração que nãobate mais. Este não vive mais, nada mais podereparar, nada. Agora há bastante amor em teucoração, mas agora é tarde; vai até o friotúmulo com o teu coração agora generoso!Chega bem perto... Planta flores e tece coroas:nem por isso estarás mais perto do morto!(JACOBSEN, 2001, p. 131)

 

Henrik sobreviveu a Anna sozinho. Desdeentão, só lhe restaram vagarosos passos atéseu próprio túmulo.  A vida é irreversível.Pode-se pensar em condenação mais cruel?Pobre dele! Nas palavras de Bergman:

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Meu pai faleceu no domingo às quatro e vinteda tarde. Não foi uma morte dolorosa. È difícilexpressar a sensação que senti ao ver seurosto, ele estava absolutamente irreconhecível.A melhor comparação que encontro é que elefazia lembrar um morto de campo deconcentração nazista. Era bem o rosto daMorte. Penso nele com todo o desespero doirremediável, mas com ternura. (BERGMAN,1987, p. 280).

 

Referências Bibliográficas

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AS MELHORES INTENÇÕES (The BestIntentions). EUA, 1991. 180 minutos. Direção:Bille August. Distribuição: Europa Filmes.

 

BERGMAN, I. Lanterna Mágica. Rio de Janeiro:Guanabara, 1987.

 

JACOBSEN, J. P. Niels Lyhne. São Paulo:Cosac & Naify, 2001.

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KUNDERA, M. A insustentável leveza do ser.Rio de Janeiro: Ed. Record, 1983.

 

PESSOA, F. Obra Poética. Rio de Janeiro:Nova Aguilar, 1995.

 

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