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ANA CRISTINA APARECIDA DE PAIVA NARRATIVAS PUBLICITÁRIAS: UMA ABORDAGEM SOCIOCOGNITIVA DOS PROCESSOS DE PRODUÇÃO E COMPREENSÃO DO SENTIDO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA Novembro de 2013

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ANA CRISTINA APARECIDA DE PAIVA

NARRATIVAS PUBLICITÁRIAS: UMA ABORDAGEM SOCIOCOGNITIVA DOS PROCESSOS DE PRODUÇÃO E

COMPREENSÃO DO SENTIDO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA

Novembro de 2013

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ANA CRISTINA APARECIDA DE PAIVA

NARRATIVAS PUBLICITÁRIAS: UMA ABORDAGEM SOCIOCOGNITIVA DOS PROCESSOS DE PRODUÇÃO E

COMPREENSÃO DO SENTIDO

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Letras da Universidade Federal de São João del-Rei, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras. Área de Concentração: Teoria Literária e Crítica da Cultura Linha de Pesquisa: Discurso e Representação Social Orientador: Prof. Dr. Antônio Luiz Assunção

PROGRAMA DE MESTRADO EM LETRAS: TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA

Novembro de 2013

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ANA CRISTINA APARECIDA DE PAIVA

NARRATIVAS PUBLICITÁRIAS: UMA ABORDAGEM SOCIOCOGNITIVA DOS PROCESSOS DE PRODUÇÃO E

COMPREENSÃO DO SENTIDO

Banca Examinadora:

Prof. Dr. Cláudio Márcio do Carmo (UFSJ)

Profa. Dra. Nádia Dolores Fernandes Biavati (UESB/BA) - Titular

Prof. Dr. Guilherme Jorge de Rezende (UFSJ) - Titular

Prof. Dr. Cláudio Márcio do Carmo Coordenador do Programa de Pós-Graduação: Mestrado em Letras

São João del-Rei, Novembro 2013

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Dedico

aos meus queridos pais, Tarcísio e Tânia, que sempre me apoiaram e me motivaram.

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Agradecimentos

Ao meu orientador professor Antônio Luiz Assunção, grande mestre, pela confiança

no meu trabalho e pela competência.

Ao REUNI / CAPES pela concessão da bolsa de estudos.

À Universidade Federal de São João Del Rei, especialmente ao Programa de Pós-

graduação em Letras, e aos professores do Mestrado e da Graduação em Letras

pela imensa contribuição para a minha formação.

À professora Dylia, que me orientou com extrema boa vontade e competência no

estágio de docência.

Aos professores da banca examinadora, pela leitura da dissertação e pelas

contribuições.

Aos meus colegas do mestrado, pelos momentos que serão sempre lembrados.

Ao meu irmão Tarcísio Júnior, minhas irmãs Sueli, Suelaine e Beatriz, e meus

sobrinhos, Luís Otávio e Maíra, joias preciosas.

Ao meu querido pai, exemplo de força, que fez sempre o melhor em prol da minha

educação. E à minha amada mãe, que sempre vibrou a cada conquista minha, mas

partiu desta vida enquanto este trabalho vinha sendo realizado.

Ao meu marido, Rodrigo, exemplo de fé e de caráter, especialmente por ter superado

com paciência os momentos em que estive ausente. Ao nosso filho, João Marcelo,

um presente de Deus, que nasceu junto à realização deste trabalho, e que traz mais

sentido para minha vida. E a Deus, pela vida e por tudo que sou capaz de realizar.

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NARRATIVAS PUBLICITÁRIAS: UMA ABORDAGEM SOCIOCOGNITIVA DOS

PROCESSOS DE PRODUÇÃO E COMPREENSÃO DO SENTIDO

Resumo

Neste trabalho, tivemos como objetivo estudar a relação entre a experiência

humana e o processamento cognitivo, ou seja, o papel da cultura nos processos

cognitivos. Essa questão tem sido foco dos pesquisadores na área dos estudos

cognitivos da linguagem, como também na área dos estudos discursivos. Os

primeiros têm se preocupado, em seus últimos estudos, com uma concepção na qual

os conceitos e o modo de percepção do mundo em que estamos inseridos derivam

da interação entre o indivíduo e sua experiência corpórea (cf. Lakoff & Johnson,

2002). Para os segundos, falta aos estudos discursivos uma concepção de mente

que seja capaz de dar conta do processamento cognitivo do sentido produzido nas

interações sociais. Para nós, esse estudo torna-se importante, na medida em que

devemos levar em consideração que os indivíduos estão inseridos em um momento

e em um espaço específicos e, portanto, como indivíduos histórica e culturalmente

situados. Sob essa perspectiva, parece-nos interessante pensar como a cultura está

relacionada com o processo cognitivo desses indivíduos. Nessa discussão,

assumimos com Turner (1996) o caráter literário da mente humana, compreendendo,

a partir dessa presunção, que a percepção humana dos objetos do mundo organiza-

se narrativamente e, portanto, que os objetos, eventos e atores são percebidos pela

mente humana como um complexo organizado. Ainda que sob uma perspectiva

distinta e com objetivos diferentes, László (2008), concebe a construção dos sentidos

como resultante das experiências do indivíduo e, a partir de uma concepção da

psicologia narrativa, presume a inseparabilidade entre sentido e narrativa. Ao

compreender o papel da narrativa no processo de produção de sentido, bem como

das experiências do indivíduo na constituição dessas narrativas, temos que levar em

consideração as questões discursivas envolvidas.

Palavras-chave: Estórias; cognição humana; sentido.

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ADVERTISING NARRATIVES: A SOCIOCOGNITIVE APPROACH OF THE

PROCESSES OF PRODUCTION AND COMPREHENSION OF THE MEANING

Abstract

In this study, we aimed to study the relationship between human experience and

cognitive process, ie, the role of culture in cognitive processes. This question has

been the focus of researchers in the area of cognitive studies of language, but also in

the field of discourse studies. The first ones have been concerned, in their latest

studies, with a conception in which the concepts and the way we perceive the world in

which we operate are derived from the interaction between the individual and his

bodily experience (cf. Lakoff & Johnson, 2002). For the second ones, there is a lack

in the discoursive studies about a conception of mind that could be able to account for

the cognitive process of meaning produced in social interactions. For us, this study is

important once we must take into account that individuals are involved in specific time

and space and therefore as individuals historically and culturally situated. From this

perspective, it seems interesting to consider how culture is related to the cognitive

process of these individuals. In this discussion, we assume with Turner (1996 ) the

literary character of the human mind, including , from this assumption , that human

perception of objects in the world is organized narratively and therefore that the

objects, events and actors are perceived by the human mind as an organized

complex . Although in a different perspective and with different purposes, László

(2008) sees the construction of the meanings as a result of the experiences of the

individual and, from a conception of narrative psychology, assumes the inseparability

of meaning and narrative. By understanding the role of narrative in the process of

production of meaning as well as the experiences of the individual in the creation of

these narratives, we have to take into account the discursive issues involved.

Keywords: Stories; human cognition; meaning.

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Sumário

Introdução.....................................................................................................................9

Capítulo 1 – A NARRATIVA NA PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA COGNITIVA

NARRATIVA, O CONTEXTO CULTURAL E O SUJEITO..........................................12

1.1 As estórias na psicologia..................................................................................12

1.2 A narrativa, a linguagem e a representação ....................................................18

1.3 A narrativa e a cultura.......................................................................................23

Capítulo 2 – A NARRATIVA NA PERSPECTIVA DA LINGUÍSTICA COGNITIVA.....30

2.1 Narrativa: uma operação fundamental..............................................................31

2.2 As narrativas espaciais e os esquemas de imagem.........................................34

2.3 Os espaços mentais e as mesclagens conceituais na formação de narrativas

projetadas...............................................................................................................36

2.4 Estórias, Tempo e Mente Humana...................................................................41

Capítulo 3 – ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO, COGNIÇÃO E PUBLICIDADE.....47

3.1 O papel da representação na Análise Crítica do Discurso...............................48

3.2 Mesclagem Conceitual, Narrativa e Análise Crítica do Discurso......................49

3.3 Análise Crítica do Discurso - Procedimento de Análise dos Textos.................53

3.4 Mídia, cultura e publicidade – uma visão panorâmica......................................57

Capítulo 4 – PEQUENAS NARRATIVAS: COGNIÇÃO E CULTURA; ANÚNCIOS

PUBLICITÁRIOS – UM ESTUDO DE CASO..............................................................65

4.1 As narrativas nos anúncios...............................................................................65

5. Considerações finais...............................................................................................87

Referências bibliográficas...........................................................................................89

Anexos........................................................................................................................92

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Introdução

A produção de sentido não pode ser compreendida sem levar em conta que

somos seres históricos e sociais, e, como somos indivíduos situados, apreendemos o

mundo em que vivemos antes de representá-lo, ou mesmo, representamos o mundo

a partir do nosso processamento cognitivo. Nesses termos, as produções de sentido

são produções socioculturais, mas também são cognitivas e, por isso, precisam ser

processadas para serem compreendidas, o que nos leva a presumir que, por um

lado, há questões sociais e culturais envolvidas, como por exemplo, aspectos

ideológicos que subjazem a toda produção de sentido em uma determinada

sociedade, sem desconsiderar, no entanto, por outro lado, os aspectos cognitivos

envolvidos na produção do sentido. Nessa perspectiva discursiva e cognitivista, o

modo como nós processamos os conceitos e construímos as representações sociais

relevantes para agir e interagir em sociedade, parece-nos, está submetido ao

conjunto de valores que organizam o modo de estar no mundo.

Para o desenvolvimento dessa hipótese, tomamos como objeto de análise

alguns exemplares da prática discursiva da publicidade. É necessário ressaltar que

nossa preocupação não se voltou para essa prática discursiva em si mesma, pois o

foco dos estudos recai sobre o processamento cognitivo do sentido, mais

precisamente para o modo como os indivíduos processam os sentidos produzidos a

partir da materialidade textual.

Para atender a nossos objetivos, tomamos como objeto de análise cinco

peças publicitárias1, publicadas na revista Veja do mês de dezembro de 2010 e

estudamos esses dados sob a perspectiva da Linguística Cognitiva (LC). No decorrer

do trabalho, contamos com algumas proposições da Análise Crítica do Discurso

(ACD), que nos auxiliou na análise das representações sociais como sentidos

cognitivamente processados. Optamos pelo diálogo entre esses dois quadros

1 Todas as peças publicitárias se encontram no corpo do texto, mas também nas páginas de anexo,

em tamanho maior, para melhor visualização.

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teóricos por considerar necessária uma compreensão da produção de sentido que

leve em conta os aspectos cognitivos, discursivos e culturais. Essa perspectiva

adotada resulta do reconhecimento da relação entre um sujeito, historicamente

situado, e o sentido, cognitivamente construído. Contamos também com

contribuições da Psicologia Cognitiva Narrativa, conforme proposto por János László

(2008), por acentuar a importância das narrativas na construção psicológica do

sujeito, o que significa reconhecer, de um lado, a individualidade do sujeito histórico

social e, de outro, o papel da narrativa para a construção das experiências do sujeito.

A partir desse quadro teórico, pudemos definir o objetivo deste trabalho,

observando que pretendemos investigar a produção de sentido atentando para o

processamento cognitivo dos recursos simbólicos e para o papel das condições

socioculturais na produção e compreensão do anúncio. Com base na relevância que

László (2008) atribui às narrativas e à nossa compreensão do papel da cognição no

processo de representação social, como sentidos socialmente produzidos,

buscamos:

a) examinar o papel da narrativa – na concepção cognitivista de Mark Turner

(1996) - como elemento organizador do processamento cognitivo, responsável pela

produção e compreensão dos sentidos postos em cena pela textualidade do anúncio;

b) situar discursivamente o anúncio publicitário para investigar o papel do

contexto sociocultural no processamento cognitivo desses eventos discursivos, o que

implicou considerar as questões ideológicas presentes.

Por fim, no exame dos processos cognitivos envolvidos, analisamos as

mesclagens conceituais a partir dos trabalhos de Gilles Fauconnier e Mark Turner

(2003). Com o estudo dessas mesclagens, procuramos compreender como as peças

publicitárias sob análise são organizadas em pequenas narrativas para a produção

do sentido. Para isso, adotamos o conceito de narrativas projetadas, proposto nos

trabalhos de Mark Turner (1996, 2008). Identificados os esquemas cognitivos

utilizados na produção dos anúncios, atentamos para o seu funcionamento no

discurso. Para essa etapa do trabalho, utilizamos alguns conceitos da Análise Crítica

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do Discurso (ACD), com ênfase aos trabalhos de Norman Fairclough (1994, 2001) e

Teun Van Dijk (1997, 2001).

No primeiro capítulo, apresentamos a discussão promovida por János László

acerca da narrativa sob uma perspectiva da psicologia cognitiva. No segundo

capítulo, abordamos a narrativa na visão da Linguística Cognitiva, principalmente nos

trabalhos de Turner (1996) sobre a mente literária. No terceiro capítulo, realizamos

uma discussão sobre aspectos metodológicos da Análise Crítica do Discurso, bem

como discutimos sobre a relação entre a ACD e as narrativas. Ainda, visando situar

nosso objeto de análise abordamos algumas questões sobre a publicidade na sua

relação com a cultura e a mídia. Por fim, no quarto capítulo, descrevemos e fazemos

uma análise das peças publicitárias sob a perspectiva de sua apreensão cognitiva,

focando o caráter narrativo, no sentido de Turner (1996-2008), da mente humana.

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Capítulo 1

A NARRATIVA NA PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA COGNITIVA NARRATIVA, O

CONTEXTO CULTURAL E O SUJEITO

1.1 As estórias na psicologia

Neste capítulo, gostaríamos de pensar o papel das estórias para a

constituição de nosso entendimento, seja ele do mundo, dos outros ou de nós

mesmos. Apesar de entendermos que o termo mais adequado para uma sequência

narrativa sobre fatos reais constituem uma história (history), e não uma estória

(story), continuaremos usando somente o termo estória, tendo em vista que alguns

teóricos também o fazem. János László (2008), por exemplo, faz uso dos dois

vocábulos: stories e histories.

Partimos do pressuposto da importância das narrativas para a construção dos

saberes que organizam nosso estar no mundo. Afinal, contar e ouvir estórias faz

parte da formação de nossa identidade, de nosso mundo; enfim, contar estórias

constitui condição fundamental da natureza humana de partilhar experiências. As

estórias, poderíamos dizer, são mais conhecidas, ou seja, todos sabem o que é uma

narrativa, ou estória. Desde a infância, ou melhor, desde antes do nascimento,

somos envolvidos por várias narrativas, que são contadas para explicar diferentes

fatos ocorridos, ou mesmo inventadas para encantar, divertir, amedrontar etc. Desse

modo, para Brockmeier e Harré,

a origem do interesse pela narrativa nas ciências humanas parece ser a “descoberta”, na década de 1980, de que a forma de estória, tanto oral quanto escrita, constitui um parâmetro lingüístico, psicológico, cultural e filosófico fundamental para nossa tentativa de explicar a natureza e as condições de nossa existência. (BROCKMEIER E HARRÉ, 2003, p. 526)

Como os autores observam, por meio das narrativas, os indivíduos percebem

as condições de existência de suas experiências, sendo capazes de ampliar sua

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compreensão de contextos mais diferenciados e mais complexos de sua interação

com o mundo e com seus semelhantes. Para Brian Boyd, em seu Sobre a Origem

das Histórias, por exemplo, há uma compulsão humana para a narração, e a

capacidade narrativa deve ser vista como um princípio de adaptação e

sobrevivência. É essencialmente esta noção que tem sido objeto de diferentes

investigações, que incluem estudos sobre as formas pelas quais organizamos

nossas memórias, intenções, estórias de vida e os ideais de nosso eu, ou nossas

identidades pessoais, em padrões narrativos. Arquivamos na memória diferentes

estórias do passado, algumas tomadas como verdadeiras, dadas seu vínculo com

alguma experiência daquele que narra, outras fantasiosas, pela ausência de vínculo

direto com algum acontecimento no qual o narrador estivesse envolvido. Contudo,

independentemente de seu caráter imaginário ou não, em geral as estórias que

registramos são aquelas que, de uma forma ou de outra, estão ligadas ao nosso lado

emocional, narram alguma experiência que nos comoveu ou que, por algum motivo,

se tornou importante para nós. Ou, ainda, guardamos as estórias relacionadas com

aquilo que já sabemos, portanto, para quem gosta de esportes, por exemplo, lembrar

o que aconteceu na final de uma copa do mundo há trinta anos é mais fácil do que

para alguém que se interessa mais por música do que por esportes.

Carla Fonte (2006) explica que a ciência e a psicologia de orientação

positivista confiavam na possibilidade de encontrar uma resposta, verdadeira e

universal, para as perguntas acerca da natureza, do universo e do ser humano.

Acreditaram, além disso, que esse objetivo era tanto mais alcançável quanto mais se

tornasse possível a eliminação da subjetividade humana, em prol de uma

objetividade científica, metodológica (p. 123). No entanto, segundo Fonte, Gergen

expõe que esse paradigma, que procura a constituição de verdades absolutas, tem

dado lugar a uma concepção de ciência classificada como pós-empiricista, não

fundamentada ou pós-moderna, que se destaca pelo confronto que estabelece com

os princípios que tradicionalmente dominaram a produção de conhecimento. E nessa

nova perspectiva, o conhecimento emerge da interação entre o sujeito e o seu

contexto, sendo esta interação continuamente interpretada a partir dos quadros de

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referência do sujeito. O indivíduo, com a emergência da ciência pós-moderna, deixa

de ser considerado um mero processador de informação para ser visto como um

construtor ativo de significados.

É na compreensão dessa importância da narrativa que a psicologia narrativa

desenvolveu-se no final do século vinte e teve pelo menos quatro tendências ou

paradigmas desde seu início. János László (2008) observa que o termo psicologia

narrativa foi introduzido por Theodor Sarbin e, a partir daí, muitas foram as

contribuições. Para o autor, sua contribuição, esboçada no livro The Science of

Stories: an Introduction to Narrative Psychology, resulta do fato de tentar traçar um

projeto de psicologia narrativa que, apesar de aproximar-se das tradições científicas

do estudo da psicologia, avança procurando desenvolver um estudo empírico da

construção psicológica do significado.

László procura demonstrar como a forma de acordo com a qual as pessoas

contam suas estórias pode ser indicativa de como elas constroem seus mundos e

suas identidades. Compreendendo que esse modo de interação com o mundo possa

ser explicado a partir das narrativas produzidas pelos indivíduos, o autor propõe uma

metodologia que possibilite, por meio da análise linguística da materialidade das

narrativas, revelar os processos psicológicos implícitos.

Relacionamos os estudos no campo da psicologia com nossas discussões

para observarmos a importância das estórias na pesquisa científica. Schank e

Abelson (1995 apud LÁSZLÓ, 2008, p.7) defendem que todo conhecimento humano

tem uma natureza narrativa, todo conhecimento é baseado em estórias construídas

em torno de experiências passadas, e que novas experiências são interpretadas em

termos de experiências antigas. Segundo László, esses teóricos afirmam que a

compreensão significa associar as estórias do outro com as nossas, o que significa

dizer que nós só podemos compreender coisas que se relacionam com nossas

experiências2. Portanto, sempre que surge algo novo na nossa vida, precisamos

relacioná-lo com algo que já conhecemos para que haja a compreensão.

Imaginemos, por exemplo, que fosse possível fazermos uma viagem para o passado

2 No original: we can only understand things that relate to our experiences.

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ou para o futuro. Há mil anos as coisas e as pessoas eram bastante diferentes do

que são hoje. Assim como o serão daqui a mil anos. Um indivíduo que fosse

mandado do presente para o passado ou para o futuro não compreenderia muitas

das ações, dos eventos e dos objetos existentes, pois estes teriam pouca relação

com o que ele conhece do presente. Entretanto não precisamos ir tão longe para

percebermos essa dificuldade. Quando estamos em contextos diferentes daqueles

com os quais estamos acostumados, ou quando estamos aprendendo alguma coisa,

dificuldades podem ser muito grandes dependendo da experiência que temos para

relacionar com o novo que se apresenta.

Conforme Gonçalves (2000 apud ARRUDA, 2005) no processo hermenêutico

intrínseco humano, o homem atribui significados e interpreta seu mundo para

conhecê-lo. Assim, compreender-se através de narrativas, favorece transformações

de significação passada (através da ressignificação). Desse modo, a atitude narrativa

é o sinônimo da saúde mental, ou seja, um indivíduo com a mente sã é capaz de

contar as narrativas da própria existência. E à medida que contamos nossas

narrativas, estas podem se modificar e outras novas serão criadas. Ao contrário,

configura-se uma patologia a atitude não-narrativa, o não ser capaz de se expressar

através das estórias, o que pode ser considerado como um viver automático e

psicopatológico.

Segundo Gonçalves (1996, 2000 apud FONTE, 2006, p.127-128), a nossa

identidade pessoal e a coerência narrativa da nossa vida estão largamente

dependentes da construção de significados, que surgem, deste modo, como um

organizador central no nosso funcionamento. E Fonte defende que a narrativa tem

uma natureza inerentemente significadora, permitindo a organização da diversidade

da experiência num mundo de sentidos. Tal como sugere Gonçalves, organizar

narrativamente a experiência é, sobretudo, dar-lhe um sentido. Nesta linha de

compreensão teórica, têm sido desenvolvidos diversos estudos que procuram

aprofundar o conhecimento sobre as narrativas e o seu papel no processo de

construção de significados, aplicadas a problemáticas e vivências específicas.

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Sarbin (1986 apud FONTE, 2006, p.129) defende que nós pensamos,

fantasiamos, compreendemos e fazemos escolhas de acordo com uma estrutura

narrativa, segundo a qual, além da construção de significado para as experiências

passadas, planejamos experiências futuras. Assim, cabe aos sujeitos a interpretação

da diversidade de experiências e acontecimentos numa construção dotada de

sentido. Manita (2000, ibid) também partilha dessa idéia ao sugerir que organizar

narrativamente a experiência é, acima de tudo, conferir-lhe sentido, sentido esse que

se desenrola ao longo da trajetória existencial, inevitavelmente repleta de

experiências diversificadas como é característico dos seres humanos.

Dentro dessa proposta de construção de sentidos a partir das experiências,

László (2008, p.32) esboça uma versão da psicologia narrativa que aceita que

mente e sentido não podem ser desmontados em partes fixas, e ele procura provar

que a narrativa é uma entidade suficientemente estável, mas igualmente flexível que

pode servir como uma base para uma psicologia científica cultural e evolutiva.

No processo terapêutico, várias estórias são contadas pelo paciente. Umas

mais recentes, outras que relembram experiências antigas vividas. Não é possível

saber se todas as estórias que contamos aconteceram exatamente da forma como

contamos. E isso, na verdade, não importa, conforme defendem Schafer (1980) e

Spence (1982 apud LÁSZLÓ, 2008, p 13). Para eles, do ponto de vista da principal

meta da terapia, que é restaurar a saúde mental do paciente, parece ser de menor

importância se a estória contada é ‘historicamente verdadeira’ (grifo do autor), tendo

em vista que, nas palavras dos autores: psicanálise não é pesquisa arqueológica.

Parece ser muito mais importante que, ao final da terapia e com a ajuda do

terapeuta, uma narrativa que o paciente possa aceitar sem nenhum conflito seja

estabelecida3. Desse modo, é essencial que o paciente encontre-se em meio às

narrativas que possam estar confundindo sua mente, seus sentimentos e, muitas

3 No original: psychoanalysis is not archaeological research. It appears to be much more important that

by the end of the therapy a narrative should be established with the help of the therapeutic expert which the patient can accept without any conflict.

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vezes, causando transtornos. Em muitos casos, o simples fato de contar já cura o

paciente. Essa é a finalidade da psicanálise, a cura pela fala. E, em algumas

situações, é necessário que se reconte as estórias por um outro ângulo, e assumindo

um outro ponto de vista, para que a cura aconteça. Suponhamos alguém que tenha

passado por um trauma grande, uma situação de perda de um ente querido por

exemplo. Ao contar as narrativas relacionadas a esse fato, essa pessoa pode sofrer

imensamente, dependendo daquilo que ela escolher contar. A partir do momento em

que esse indivíduo escolhe, com ajuda de um terapeuta, ou mesmo por um outro

motivo, dar ênfase a outras narrativas relacionadas à perda, o sofrimento pode ser

menor. É comum ouvirmos enunciados do tipo: É preciso viver o luto, mas é também

necessário sair dele, que demonstram essa necessidade de criar na mente narrativas

que, ao ser lembradas e repetidas para si mesmo ou para os outros, provoquem

menos dor.

A narrativa não tem apenas uma função de memorização. Para Villegas (1995

apud FONTE, 2006, p. 126), ao contarem as suas histórias, os indivíduos não

pretendem somente reter em memória e reelaborar a sua experiência, mas

pretendem, igualmente, convencer, persuadir ou impressionar terceiros, com o

objetivo de obter dos mesmos compreensão, aceitação, valorização, ajuda ou

recompensas. Isto significa que a memória episódica retém dos acontecimentos uma

estrutura esquemática mais coerente com os interesses do sujeito e menos fiel aos

fatos, pois os fatores emocionais interferem na memória dos acontecimentos,

distorcendo-os ou atuando seletivamente sobre a sua retenção e recordação. Daí

que, como defende Spence (1982, apud FONTE, 2006,p.126), nunca podemos

aceder à verdade dos fatos, devendo, portanto, fazer a distinção entre “verdade

histórica” e “verdade narrativa” (grifos do autor). Spence concebe as narrativas como

construções interpretativas, e a interpretação é sempre um ato criativo cuja verdade

histórica não pode ser determinada. A finalidade dessa construção é a de

proporcionar ao indivíduo uma história coerente da sua vida.

Ao contar estórias muitas vezes relacionamos passado, presente e futuro.

Para László (2008), ao propor uma relação entre a memória e a organização

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temporal, estamos diretamente envolvidos na narrativa, tendo em vista que presente,

passado e futuro, isto é, a experiência humana de tempo está intimamente

relacionada com a capacidade narrativa. László também salienta que é através da

narrativa que somos capazes de trazer experiências passadas ou eventos futuros

para o presente e torná-los parte da existência presente (p. 36). E completa que uma

narrativa desenvolvida não é simplesmente uma descrição do que aconteceu, mas

implica muito mais sobre as perspectivas psicológicas tomadas em relação àqueles

acontecimentos. Assim sendo, uma razão profunda pela qual contamos estórias para

nós mesmos ou para os outros é, precisamente, para fazer sentido acerca do que

estamos encontrando no curso de vida.

Brockmeier e Harré (2003) também compartilham dessa ideia, enfatizando

ainda que a visão de narrativa que eles apresentam não se direciona apenas para os

mundos literários de imaginação e fantasia como opostos ao mundo da realidade

ordinária – que representa a visão do senso comum. Ao contrário, argumentam que

as opções exploratórias e experimentais da narrativa são inextrincavelmente fundidas com a nossa realidade transitória propriamente dita: com a realidade material fluida e simbólica de nossas ações, mentes e vidas. Ao que tudo indica, é definitivamente a função narrativa que preenche a condição humana com sua particular abertura e plasticidade. Assim sendo, uma razão – talvez até mesmo um leitmotiv – para se estudar as realidades narrativas deveria ser a investigação da qualidade de abertura presente na mente discursiva e o descobrimento das formas multifacetadas de discursos culturais em que elas se realizam. (BROCKMEIER E HARRÉ, 2003, p. 534)

1.2 A narrativa, a linguagem e a representação

Constatamos acima o fato de que os seres humanos são contadores de

estórias e que, segundo Fonte (2006, p. 124), o pensamento é essencialmente

metafórico e imaginativo e a manipulação do pensamento é caracterizada por uma

procura intencional de significação. Brockmeier e Harré (2003) partilham desse

pensamento ao afirmar que viver é atribuir significado a uma vida; na verdade, o

processo de construção de significado pode ser visto como o centro da vida humana

(p. 530).

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Arruda (2005), por exemplo, ao realizar um projeto de terapia cognitiva

narrativa em grupos terapêuticos de mulheres de terceira idade, destaca que

o encontro do existir de cada membro, alinhavado pela temática comum do grupo, pode ser comparado a um trabalho artesanal de patchwork, em que cada parte é plena de sentido e, ao mesmo tempo, participa do conjunto maior completando o significado coletivo. (ARRUDA, 2005)

Ou seja, nesses grupos terapêuticos, cada indivíduo dá sentido a sua vida

através de suas narrativas, mas também se identifica com as estórias contadas pelos

outros membros do grupo, e, assim, resignifica suas próprias estórias.

Wigren (1994 apud FONTE, 2006, p.126) também define a narrativa como o

modo em que as experiências quotidianas são processadas, permitindo a sua

compreensão. Wigren concorda que a narrativa permite a criação de ligações entre o

próprio indivíduo e os outros. E Arruda (2005) ressalta, ainda, em conformidade com

Brockmeier e Harré (2003), que a tríade narrativa, identidade e vida, torna-se foco

central do projeto existencial humano (coletivo e individual), uma vez que viver

narrativamente, numa troca dialética e infinita com o mundo, amplia o sentido de vida

e da existência humana, com maior riqueza de significações. Assim, as narrativas

não devem ser concebidas como a apresentação de uma versão externa de

entidades mentais. Apresentar algo como uma narrativa não significa externalizar

algum tipo de realidade interna nem oferecer uma delimitação linguística para essa

tal realidade. Ao contrário, narrativas são formas inerentes ao nosso modo de

alcançar conhecimentos que estruturam a experiência do mundo e de nós mesmos.

Em outras palavras, a ordem discursiva através da qual nós tecemos nosso universo

de experiências emerge apenas como um modus operandi do próprio processo

narrativo. Ou seja, estamos lidando primariamente não com um modo de

representação, mas com um modo específico de construção e constituição da

realidade. A fim de estudar esse modo de construção, nós devemos examinar

cuidadosamente as maneiras pelas quais as pessoas tentam dar sentido às suas

experiências de mundo, utilizando-se de formas narrativas. Então, como essas

pessoas dão contorno ou definição às suas intenções, desejos e medos? Como elas

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chegam a lidar com tensões, contradições, conflitos e dificuldades? A questão, pois,

não é como as pessoas usam a narrativa como meio tendo a finalidade de relatar,

mas, sim, quais são as situações concretas e as condições nas quais elas contam

estórias e dessa forma, implicitamente, definem o que vem a ser a narrativa

(BROCKMEIER e HARRÉ, 2003, p 531).

Devemos ter em mente também que pode haver um número de estórias

diferentes a serem contadas sobre os complexos assuntos humanos, tais como, por

exemplo, a estória de uma vida. Como é discutido na pesquisa autobiográfica, uma

estória de vida geralmente envolve diversas estórias de vida que, além disso,

modificam-se ao longo do curso da vida. Existe um engano em se supor que existe

apenas uma realidade humana à qual todas as narrativas devem, por fim, se

reportar. Essa crença, conforme Brockmeier e Harré (2003), talvez seja proveniente

do delineamento muito próximo e paralelo entre o conhecimento do mundo natural e

o conhecimento do mundo social. O primeiro é realmente múltiplo, mas cada versão

distingue um aspecto daquele único universo físico. De acordo com uma visão

generalizada, na Psicologia Cognitiva, mas também nas teorias discursivas e em

outras ciências humanas, existe algo no mundo que se toma como sendo a realidade

dos seres humanos. Nosso conhecimento sobre essa realidade, e através dessa

própria realidade, é representado, entre outras formas, através da linguagem. De

acordo com essa visão, as representações lingüísticas sobre a realidade geralmente

assumem a forma de narrativa. Nós denominamos a concepção de uma única,

subjacente e verdadeira realidade humana a ser representada pela descrição

narrativa como a falácia representacional (BROCKMEIER e HARRÉ, 2003, p. 530)

(grifo do autor).

Ao refletir sobre a realidade Guidano (1994, apud FONTE, 2006) expõe, em

conformidade com as idéias apresentadas, que nós vivemos numa pluralidade de

mundos e realidades possíveis criados pelas nossas próprias distinções perceptivas.

Há tantos domínios de existência quantos os tipos de distinção construídas pelo

observador. E Fonte conclui que,

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Deste modo, a realidade é encarada como algo que só fará sentido depois de ser construída pelo próprio sujeito. Assume-se a possibilidade de existirem construções múltiplas desta mesma realidade, fomentando a multiplicidade do conhecimento, que está dependente do próprio sujeito. (FONTE, 2006, p.124)

László (2008, p. 12) também argumenta sobre a questão da referência da

narrativa expondo que, de acordo com Scholes (1980), a narrativa é um texto que

parece se referir a um conjunto de eventos fora de si mesma. Na literatura, por

exemplo, a narrativa se refere a uma realidade imaginada. Isso não se configura um

problema à medida que os mundos imaginados são todos relacionados com o mundo

real. No entanto, o problema da referência da narrativa, não só da ficcional, é que a

referência é ambígua, já que a narrativa sempre cria sua própria ‘realidade’ (grifo do

autor), aquilo a que ela se refere, como acontece no caso do sentido de uma palavra,

que é determinado pelo lugar e função na sentença. Isso é o que decide, por

exemplo, se pensamos em uma instituição financeira ou na área ao longo de um rio

quando usamos a palavra banco.

É precisamente à luz dessas novas abordagens que a linguagem se vai

assumir como elemento central. Esta passa a ser considerada não como um reflexo

de uma realidade psicológica que lhe preexiste, mas como o próprio fenômeno

psicológico (FONTE, 2006, p. 124), afastando, assim, a perspectiva

representacionista tradicional que a encarava como um reflexo do mundo, passando

a vê-la como uma forma de co-construir algo com o interlocutor. É através da

linguagem que construímos intencionalmente a nossa experiência, que depois dá

lugar a uma configuração narrativa. No mesmo sentido, MacNamee e Gergen (1992,

apud FONTE, 2006, p. 124) argumentam que as construções que fazemos do mundo

e de nós próprios são limitadas pelas nossas linguagens, pois é através da

linguagem que os seres humanos conseguem expressar e comunicar a sua

experiência. Construímos conhecimento e significado através da ação da linguagem,

que exprime e potencia o que vivemos (GONÇALVES, 2000, apud FONTE, 2006, p.

124). Assim Fonte (2006) coloca que

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Gergen e Gergen (1986), definem a narrativa como a capacidade para estruturar acontecimentos com coerência e com um sentido de movimento e direção no tempo. Polkinghorne (1988) salienta que a narrativa organiza os acontecimentos da nossa experiência numa sequência coerente e numa dimensão de continuidade temporal.

A narrativa surge, assim, não como uma representação de uma realidade

cognitiva essencial, mas como um elemento central da experiência do indivíduo, uma

forma de construir um conhecimento indissociável da experiência de existir. Segundo

Fonte, a ligação da dimensão do significado à condição da existência humana é

referida por vários autores. Polkinghorne (1988, p. 9), afirma que o estudo da

construção do significado é central para as disciplinas preocupadas com a explicação

da experiência humana. Nesta mesma linha, Gonçalves (2000) defende que a

existência humana é caracterizada por um processo contínuo de construção de

significado. Desta forma, a psicologia cognitiva narrativa, na sua estreita ligação com

a compreensão da existência humana, é uma psicologia da significação. Preocupa-

se essencialmente com a forma, ou com o processo, pelo qual o sujeito cria

significações. E esta construção de significação está associada a uma visão do

sujeito como uma unidade temporal que faz parte de uma comunidade onde existem

inter-relações de natureza linguística e cultural. (FONTE , 2006, p.127)

Nessa perspectiva o sujeito e o objeto são inseparáveis e o conhecimento

surge como um produto da interação entre os dois, conforme defende Piaget (apud

FONTE, p. 127). Para que o sujeito conheça o objeto, deve operar sobre ele num

processo que envolve a transmissão mútua. Por isso, o conhecimento não é uma

cópia da realidade, dependendo antes da atividade do sujeito. Além disso, a

realidade é vista como uma estrutura complexa e multipotencial, preferencialmente

acessada através de dispositivos de natureza hermenêutica e narrativa (FONTE,

2006, p 124).

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1.3 A narrativa e a cultura

Assim como acontece com diversos conceitos, o uso do termo narrativa

tornou-se exagerado. Este exagero é de certa forma surpreendente, de acordo com

Brockmeier e Harré (2003), dada a longa tradição do estudo da narrativa na teoria

literária e na lingüística. Conseqüentemente, seu potencial conceitual e analítico

tende, algumas vezes, a tornar-se pouco claro. Existem algumas razões pelas quais

geralmente não é tão fácil propor uma definição exata de narrativa. Uma delas se

refere ao aspecto da onipresença das narrativas. Uma vez que crescemos em meio

ao repertório de contar estórias típicos de nossa linguagem e de nossa cultura desde

a infância, e o utilizamos de forma familiar e espontânea, assim como usamos a

linguagem em geral, esse repertório tornou-se “transparente” (p. 529). Como todos

os tipos de discurso comuns, ele é universalmente presente em tudo que dizemos,

fazemos, pensamos e imaginamos. Mesmo os nossos sonhos são, em uma larga

extensão, organizados como narrativa. Em conseqüência, sua existência

assumidamente garantida pode facilmente ser considerada como uma existência

natural, como um modo dado, natural, de pensamento e ação.

Fonte (2006) coloca que, na sequência da emergência da linguagem como

aspecto central da construção do conhecimento, uma grande variedade de autores

têm vindo a sugerir a idéia de narrativa, à medida que esta tem sido objeto de

crescente atenção na Psicologia, especialmente a partir de 1980:

Várias definições de narrativa têm emergido, havendo alguns teóricos a argumentar que todos os pensamentos são narrativos (HOWARD, 1991), enquanto outros descrevem as narrativas como uma forma distinta de expressão de acontecimentos humanos com significado (BRUNER, 1986). Outros autores têm sugerido que as narrativas “iluminam” os significados humanos (POLKINGHORNE, 1988; SARBIN, 1986), definindo narrativa como uma estrutura de significação que organiza os acontecimentos e acções humanas numa totalidade, atribuindo deste modo significado às acções e acontecimentos individuais de acordo com o seu efeito de totalidade (POLKINGHORNE, 1988). Sarbin (1986, p. 9) define a narrativa como: “A forma de organizar episódios, acções e relatos de acções, é uma realização que junta factos reais e de ficção onde o tempo e o espaço são incorporados. (Fonte, 2006, p. 125)

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De fato, este princípio organizador da experiência humana presente na

narrativa está subjacente à definição de narrativa apresentada por diversos autores.

Mishler (1986 apud FONTE, 2006) define narrativas como cursos de ação coerentes

e significativos com princípio meio e fim. Van Den Broek e Thurlow (1991 apud

FONTE, 2006) vêm sublinhar a dimensão da temporalidade ao longo da vida e

estabelecem a associação entre a narrativa e a identidade. Assim, a nossa

identidade é a narrativa coerente da nossa vida e constitui um princípio organizador

central. As pessoas organizam a experiência no mundo social, conhecem-no e

estabelecem transações através de narrativas.

Quanto mais completa é a narrativa, mais coerente é o significado da

experiência. É através do processo de estruturação das experiências, dentro desta

estrutura narrativa, que o ser humano encontra coerência e significado na sua vida

(HENRIQUES, 2000, apud FONTE, 2006, p 126). A definição de Bruner (1990, apud

FONTE, 2006, p. 126) vem salientar a vertente cultural, chamando a atenção,

especificamente, para a questão da idiossincrasia como uma originalidade em

relação ao culturalmente previsto, e para a função da narrativa na interação social.

Ou seja, a narrativa lida com a ação e a intencionalidade humana, mediando o

mundo previsto culturalmente com o mundo idiossincrático dos desejos, crenças e

esperanças.

Em seu sentido mais corrente e geral, a narrativa é o nome para um conjunto

de estruturas lingüísticas e psicológicas transmitidas cultural e historicamente,

delimitadas pelo nível do domínio de cada indivíduo e pela combinação de técnicas

sócio-comunicativas e habilidades lingüísticas e, de forma não menos importante, por

características pessoais como curiosidade, paixão e, por vezes, obsessão - como

denominado por Bruner (1991, apud BROCKMEIER e HARRÉ, 2003). Esses últimos

explicam que

ao comunicar algo sobre um evento da vida – uma situação complicada, uma intenção, um sonho, uma doença, um estado de angústia – a comunicação geralmente assume a forma da narrativa, ou seja, apresenta-se uma estória contada de acordo com certas convenções. (BROCKMEIER e HARRÉ, 2003, p. 526)

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Apesar das narrativas tratarem de versões da realidade muito específicas à

situação e ao sujeito, elas se utilizam de formas lingüísticas convencionais tais como

gêneros, estruturas de enredo, linhas de estória e diferentes modalidades retóricas.

Assim sendo, a estória, seus interlocutores (aqueles que falam e os que ouvem) e a

situação em que a própria estória é contada, tudo isso se relaciona a uma base

histórico-cultural de produção. Em outras palavras, nosso repertório local de formas

narrativas é entrelaçado a um cenário cultural mais amplo de ordens discursivas

fundamentais, que determinam quem conta qual estória, quando, onde e para quem.

(BROCKMEIER e HARRÉ, 2003, p. 527).

Gonçalves (1998 apud FONTE, 2006, p. 126) também concorda que as

narrativas só têm existência num processo interpessoal de construção discursiva e

como tal são inseparáveis do contexto cultural onde ocorrem, e ainda acrescenta que

a narrativa não é um acto mental individual, mas uma produção discursiva de

natureza interpessoal e culturalmente contextualizada. Portanto, é a dimensão

narrativa do pensamento que vai abrir a porta para o estudo dos significados

humanos. No entanto, a construção de significado para a nossa experiência não é

desligada dos significados culturais e históricos veiculados nas narrativas em que

nascemos, nos desenvolvemos e que ordenam as nossas relações, as nossas

práticas e os contextos das nossas interacções (FERNANDES, 2001, apud FONTE,

2006, p. 127). Ou seja, a narrativa estrutura os significados da nossa vida numa

estreita ligação com os significados sociais e culturais. Fonte coloca que Blumer, já

nos anos 1920/30, destacou o fato dos sujeitos agirem em função dos significados

que as situações ou os eventos têm para si, sendo que esses significados são um

produto social resultante das interações entre os indivíduos. Isto é, o indivíduo é um

ser que produz significações diversas, orientadoras da sua ação.

Apesar de desempenhar um papel fundamental na construção de

significados dos seres humanos, emergindo como um processo mediador entre

significado e existência humana, as narrativas não recriam literalmente a experiência.

As estórias que contamos são construídas para dar significado à nossa experiência.

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Por isso, não é qualquer estória que “serve” (FONTE, 2006 p. 129). A identidade

pessoal, como já foi referida, e a coerência narrativa da vida estão amplamente

dependentes da construção de significados. Contudo, o significado narrativo não se

constitui como algo eterno e permanente, mas, pelo contrário, está sempre sendo

transformado na contínua atividade de construção sobre a nossa experiência. Como

participantes numa cultura, transportamos conosco um estoque de significados

acumulados ao longo da nossa história pessoal e social (POLKINGHORNE, 1988,

apud FONTE, p. 129). Não concebemos a nossa ação vazia de significado, pois,

perante determinado acontecimento ou experiência (pessoal e social), somos

levados a reinterpretar sucessivamente a realidade, na busca de uma mais completa

compreensão subjetiva dessa experiência, mas numa estreita ligação com os

significados sociais e culturais dominantes. Assim, as narrativas que nos preexistem

nos orientam para darmos sentido ao que vivemos.

Do mesmo modo, Brockmeier e Harré afirmam que as narrações não podem

ser consideradas como uma invenção pessoal ou individual, como afirmam os

subjetivistas, nem tampouco simplesmente representam a descrição objetiva das

coisas tal como ocorreram, como querem nos convencer os positivistas. As estórias

são contadas a partir de proposições, ou seja, elas acontecem segundo ordens

morais locais, nas quais os direitos e deveres das pessoas como falantes influenciam

a localização da voz autoral primária. As estórias devem ser ouvidas como

articulações de narrativas particulares, a partir de pontos de vista particulares e

localizadas em vozes particulares. (BROCKMEIER e HARRÉ, 2003, p. 529). Mas

esses autores refletem sobre as seguintes perguntas: Se as estórias guiam a vida, o

que guia as estórias? Será que contar estórias acerca de um episódio da vida é

semelhante a contar qualquer outro episódio? Para eles, é preciso refletir se contar

uma vida e viver uma vida é essencialmente a mesma coisa, mas afirmam que talvez

eles entendam que vida e estória de vida estejam intrinsecamente interligadas em

uma contínua produção de significado e sentido. Eles comentam sobre duas teorias

intimamente relacionadas, sobre como a ordem é criada na vida social através de

limitações relativas ao enredo. Essas são a teoria de script (SCHANK e ABELSON,

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1975) e a teoria de regras e papéis (role-rule theory, HARRÉ e SECORD, 1972).

Ambas presumem um tipo de abstração de padrões a partir das experiências que

são, assim, eficazes ao orientar a ação, tais como livros de etiqueta, instruções, e

assim por diante. Nos dois casos, há uma aplicação de um modelo específico, no

qual a ação é orientada por uma atenção explícita ao discurso instrutivo. Nos casos

em que as pessoas vivem sua vida de uma maneira ordenada, essas teorias

presumem que exista um manual de instruções encoberto, mas nenhuma destas

oferece uma explicação de como a conformidade com aquele manual é alcançada.

Isto não pode ser realizado através do monitoramento consciente da ação do sujeito

à luz das instruções porque, por hipótese, não existe nem monitoramento, nem

atenção à regra ou ao script. Na opinião de Brockmeier e Harré (2003) uma terceira

teoria deve ser proposta no sentido de refinar a noção de senso comum de um

costume enraizado, já que nós não recebemos instruções especiais para contar

estórias e nem as construímos simplesmente por nós mesmos, mas sim somos

habituados a um vasto repertório de linhas de estória, pois, como dito anteriormente,

crescemos dentro de um padrão cultural de modelos narrativos. Esse processo de

educação narrativa e discursiva inicia quando as crianças, como vários

pesquisadores apontaram (BAMBERG, 1997b; ENGEL, 1995; MILLER, 1994),

começam a ouvir estórias – um processo que se inicia antes mesmo da criança

começar a falar. Desde muito cedo, as crianças aprendem como se expressar e

apresentar o seu ponto de vista (apud BROCKMEIER e HARRÉ 2003, p. 532).

Para László (2008, p. 19) o script é uma forma de narrativa canônica e a

noção de scripts foi definida por Schank e Abelson (1997) como uma série de ações

estereotipadas definindo uma situação conhecida. Diferentes tipos de restaurantes

possuem diferentes scripts, por exemplo. Há restaurantes em que o cliente é servido

e outros em que ele próprio se serve. Entre uma narrativa baseada em script e uma

narrativa propriamente dita há diferenças. Rubin (1995 apud LÁZSLÓ, 2008, p.20)

exemplifica essa diferença com um fato ocorrido com sua filha, que gostava de dizer

para si mesma quais atividades diárias ela tinha que fazer. Quando aprendeu a

escrever, a menina escreveu: "Quando nos levantamos pela manhã, arrumamos a

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cama, tomamos café, em seguida, escovamos os dentes, e depois nos vestimos." Ao

elogiar sua filha por escrever uma bela estória, Rubin se supreendeu com o firme

protesto da menina que disse que não havia escrito uma estória, mas havia

simplesmente anotado o que ela tinha que fazer depois de se levantar. Este exemplo

demonstra não só que a menina poderia distinguir claramente uma estória de uma

narrativa baseada em script, mas também que, utilizando um sujeito na primeira

pessoa do plural no presente do indicativo, que é desprovida de uma dimensão

histórica, ela poderia fazer essa distinção.

As estórias contêm algum tipo de complicação, um desvio no curso natural

dos eventos. Alguns autores, por exemplo Prince (1973, apud LÁZSLÓ, 2008, p. 21),

defendem que qualquer mudança de estado é um critério suficiente para constituir

uma estória. Nessa visão, uma estória deve ter pelo menos três componentes: um

estado de partida, um evento e um estado modificado. De acordo com Prince, o

seguinte texto também se caracteriza como um estória: Estava quente. Começou

uma onda de frio. O tempo ficou ruim4. No entanto, a maioria dos autores, segundo

Lázsló, acreditam que estoricidade requer alguma ação com um objetivo e

personagens representando em um determinado tempo.

Chegar a uma conclusão do que seja uma narrativa ou das diferentes

narrativas como podemos perceber não é uma questão simples. O que importa para

nós aqui é observar, como colocam Brockmeier e Harré (2003) que a narrativa tem

por característica essencial ser um guia destacadamente sensível à fluida e variável

realidade humana, uma vez que essa é, em parte, a natureza da própria narrativa (p.

533). A narrativa funciona como uma estrutura aberta e maleável, que nos permite

conceber uma realidade em constante transformação e constante reconstrução. Isso

inclui a opção de dar ordem e coerência às experiências da condição humana

fundamentalmente instável e alterar tal ordem e coerência à medida que nossa

experiência, ou os seus significados, se transformam.

É preciso ressaltar que, conforme nos orientam Brockmeier e Harré, os

gêneros e formas do conhecimento narrativo são altamente dependentes do contexto

4 No original: It was hot. A cold front set in. The weather got bad.

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cultural em que são usados. As narrativas operam como formas de mediação

extremamente mutáveis entre o indivíduo (e sua realidade específica) e o padrão

generalizado da cultura. Vistas dessa maneira, as narrativas são ao mesmo tempo

modelos do mundo e modelos do eu. É através de nossas estórias que construímos

a nós mesmos como parte de nosso mundo.

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Capítulo II

A NARRATIVA NA PERSPECTIVA DA LINGUÍSTICA COGNITIVA

A Linguística Cognitiva (LC) constituiu-se institucionalmente como paradigma

científico há cerca de duas décadas, com a criação da International Cognitive

Linguistics Association e a realização da primeira International Cognitive Linguistics

Conference na Alemanha em 1989. A idéia fundamental da LC, de acordo com

Augusto Soares da Silva (2004, p. 2), é a de que

a linguagem é parte integrante da cognição (e não um ‘módulo’ separado), se fundamenta em processos cognitivos, sócio-interacionais e culturais e deve ser estudada no seu uso e no contexto da conceptualização, da categorização, do processamento mental, da interação e da experiência individual, social e cultural.

Para ele, provavelmente mais do que qualquer outra abordagem

contemporânea da linguagem, a LC reconhece explicitamente, não só que a

capacidade para a linguagem se fundamenta em capacidades cognitivas gerais,

como também que todas estas capacidades são culturalmente situadas e definidas.

Ela assume e desenvolve uma concepção inteiramente contextualizada do

significado, claramente exposta em Langacker (1997) (SILVA, 2004, p.7).

Desse ponto de vista, a produção de sentido se dá através de processos

cognitivos, mas isso só é possível a partir da experiência do indivíduo e de sua

interação com o social e o cultural. Nesse sentido a Linguística Cognitiva é oposta à

tradição formalista, uma vez que, enquanto a Linguística Cognitiva toma a linguagem

como meio da relação epistemológica entre o sujeito e o objeto e procura saber

como é que ela contribui para o conhecimento de mundo, a Linguística Gerativa toma

a linguagem como objeto da relação epistemológica e quer saber como é que esse

conhecimento da linguagem é adquirido. Nas palavras de Silva,

a Linguística Cognitiva assume que fatores situacionais, biológicos, psicológicos, históricos e sócio-culturais são necessários e fundacionais na

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caracterização da estrutura linguística, ao passo que a Linguística Gerativa os toma como secundários ou auxiliares. (ibid, p. 3)

Conforme Silva, a LC se desenvolveu em diferentes lugares e de diferentes

formas, graças, sobretudo, aos trabalhos dos norte-americanos George Lakoff,

Ronald Langacker e Leonard Talmy. Para esses e outros importantes teóricos, a

linguagem serve para categorizar o mundo e, por isso, o significado linguístico não

pode ser dissociado do conhecimento de mundo, ou seja, a linguagem é um meio de

interpretar, construir e organizar conhecimentos que refletem as necessidades, os

interesses e as experiências dos indivíduos e das culturas (ibid). Nesses princípios

assenta a própria posição filosófica e epistemológica do movimento cognitivo, que

Lakoff e Johnson (LAKOFF 1987, JOHNSON 1987, LAKOFF e JOHNSON 1999,

JOHNSON e LAKOFF 2002) caracterizam como sendo experiencialismo ou, em

versão mais recente, realismo corporizado ou encarnado. (ibid).

A Linguística Cognitiva possui algumas vertentes às quais determinados

teóricos se dedicam mais. Na investigação de estruturas conceituais que combinam

categorias individuais em modelos mentais coerentes destacam-se, por exemplo, a

teoria da metáfora conceitual, protagonizada, sobretudo, por George Lakoff (LAKOFF

e JOHNSON 1980, dentre outras obras), e a teoria dos espaços mentais e das

mesclagens conceituais de Gilles Faucounnier e Mark Turner (TURNER e

FAUCONNIER 2003).

Dentre esses importantes estudos temos a contribuição de Mark Turner

(1996, 2008) sobre a imaginação narrativa, que o mesmo considera o instrumento

fundamental do pensamento.

2.1 Narrativa: uma operação fundamental

Em The literary mind (1996), Turner nos mostra como projetamos algumas

estórias da nossa experiência em outras estórias para interpretarmos o mundo.

Temos a impressão de que interpretamos os signos com facilidade, entretanto, na

visão de Turner (1996, p. 6), essa facilidade com que os significados são construídos

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é enganosa, pois, apesar de não sentirmos como se estivéssemos realizando

alguma ação, ao ouvir ou ler sobre o mundo em que estamos inseridos, por exemplo,

a compreensão dos signos percebidos por nós, ainda que automática, resulta da

combinação de diversos procedimentos e, como observa o autor, da utilização

inconsciente de vários conhecimentos.

Turner, sob uma perspectiva cognitivista, observa que os procedimentos da

narrativa não estão presentes apenas em textos literários, mas fazem parte da

cognição humana. A partir desse raciocínio, o autor considera, por exemplo, o

conceito de parábola e sugere que sua essência consiste de uma combinação

complexa entre duas das nossas formas básicas de conhecimento: estória e

projeção. Isso implica reconhecer e caracterizar a parábola, a projeção de uma

história sobre outra, como resultante inevitável da natureza do nosso sistema

conceitual. Identifica-se, assim, uma função importante para a imaginação narrativa

como atividade ordinária da vida humana: qual seja uma forma de olhar o futuro, de

prever, por exemplo, modos de atuação no mundo em que os indivíduos se inserem,

enfim, de planejar. Para Turner, essa capacidade é tão indispensável e fundamental

que, ele observa, o indivíduo não precisa esperar ser atingido para agir, quando

alguém toma um objeto para lhe atirar, tendo em vista o poder de previsão desse

princípio narrativo. Do mesmo modo, quando uma gota de água cai do telhado sobre

nossa cabeça, tentamos imaginar uma narrativa que explique esse evento.

Para Turner (1996, p. 106), conceitos básicos como aquele de “casa, por

exemplo, que parece estático, coeso e independente, são ilusórios, pois a palavra

“casa” ao ser produzida implica a construção de determinadas condições de acordo

com as quais serão ativadas, ligadas e projetadas determinadas configurações de

espaços, frames e modelos cognitivos. Isso pode ser percebido quando

consideramos que uma grande variedade de espaços é ativada para a palavra casa,

tais como: abrigo, segurança contra invasores, investimento financeiro, objetos, lugar

de encontros, entre outros. Qualquer uso da palavra casa para qualquer propósito

envolverá a construção de sentido como uma operação de integração seletiva sobre

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essas várias estórias distribuídas, ou seja, diferentes espaços são ativados para a

mesma palavra em diferentes situações e espaços sociais e históricos.

A projeção mental que fazemos de diversas estórias a todo momento nos

previne de tomar certas decisões e nos impulsiona a tomar outras. Ainda que nada

do que prevíamos venha a acontecer no futuro, na medida em que a todo instante,

há a sobreposição de estórias entre si. Essa projeção obedece a uma organização

segundo a qual projeta-se uma estória, que, por ser a origem, chamamos de fonte,

em uma outra história que, por receber os efeitos da projeção para se constituir,

caracteriza-se como uma estória alvo (ibid, p.6), ressaltando-se que uma mesma

estória-fonte pode ser projetada em diferentes estórias-alvo. Em um de seus

exemplos, o conhecido provérbio Quando o gato sai, os ratos fazem a festa, Turner

mostra que a sua compreensão requer a projeção dessa narrativa, envolvendo os

personagens “gato” e “ratos” e suas ações “sair” fazer a “festa”, e uma outra

narrativa, cujos personagens seriam “chefes” e “subordinados” em uma outra

configuração, aquelas das relações humanas de trabalho. Como observado acima,

como narrativa fonte, essa história poder ser realizada em outras configurações que

envolvessem algum tipo de relação de controle ou de poder, como por exemplo

numa sala de aula ou numa situação de infidelidade conjugal. Famosas são as

parábolas bíblicas nas pregações de Jesus Cristo, cuja função consistia em fazer os

ouvintes projetarem as pequenas histórias narradas para organizar seu modo de

ação nas suas vidas e no seu mundo.

Turner conclui, sob essa perspectiva, que seria impossível interagir no meio-

ambiente, seja ele físico ou social, sem considerar essas habilidades imaginativas

extremamente sofisticadas, uma vez que a compreensão dos conceitos, como

proposto por ele, realiza-se como pacotes de significado. Ou seja, são atribuídos

rótulos, como por exemplo, casamento, nascimento, morte, força, eletricidade,

tempo, amanhã, a determinados eventos, buscando com isso assegurar estabilidade

aos significados produzidos. O conceito e o uso da parábola comprovam uma visão

diferente do significado como resultado de conexões entre mais de um espaço

mental. Assim, o significado não se caracteriza como um elemento em um depósito,

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ao contrário, ele se define por sua natureza viva, ativa e dinâmica, distribuído e

construído para finalidades específicas de conhecimento e ação. O significado,

portanto, caracteriza-se como uma operação complexa de projeções, ligações,

mesclagens e integração de múltiplos espaços mentais. O sentido é parabólico e

literário (TURNER, 1996, p. 57).

2.2 As narrativas espaciais e os esquemas de imagem

Executamos, cotidianamente, pequenas estórias nomeadas por Turner de

estórias espaciais, e que, para ele, são as que melhor conhecemos. Quando

servimos uma xícara de café, quando uma criança atira uma pedra, ou quando uma

baleia nada, estórias espaciais estão sendo executadas. Elas constituem nosso

mundo e cada uma delas ocorre bilhões de vezes ao dia, mas não costumamos

pensar que essas sejam estórias interessantes, e, como objeto de investigação,

essas pequenas estórias espaciais podem parecer cansativas. Por isso Turner

coloca que

devemos adotar uma perspectiva científica para ver por que algo que nós já sabemos como fazer sem esforço ou atenção consciente pode apresentar um quebra-cabeça científico extremamente difícil e importante.

5 (ibid, p. 13)

As estórias espaciais são essenciais para nossa sobrevivência já que,

através delas, nós distinguimos uns objetos de outros, uns eventos dos outros e,

evidentemente, distinguimos objetos de eventos; isto é, nós os categorizamos. Nós

categorizamos um objeto como pertencente à categoria cadeira e reconhecemos o

que uma pessoa faz com a cadeira como pertencendo à categoria ato de sentar-se.

Ao reconhecer pequenas histórias espaciais, não estamos reconhecendo

apenas uma sequência de objetos específicos envolvidos em determinados eventos,

mas também uma cadeia de objetos que pertencem a categorias envolvidas em

eventos que, por sua vez, também pertencem a categorias específicas. Por exemplo,

5 No original: We must adopt a scientific perspective to see why something we already know how to do

without effort or conscious attention can pose an extremely difficult and important scientific puzzle.

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garfo e faca pertencem à categoria talheres e o ato de servir um prato de comida

pertencem ao evento refeição, que, por outro lado, pode pertencer a uma categoria

mais ampla como, por exemplo, jantar ou almoço. Conforme Turner (1996, p.19)

exemplifica, toda vez que percebemos uma pessoa servindo um prato de comida,

tanto suas ações quanto aquilo que é servido serão em algum aspecto um pouco

diferentes, também nossas ações em resposta ao que é percebido serão diferentes.

Isto é, podemos presenciar esse evento e agir de diversas maneiras, podemos,

talvez, também nos servir de um prato de comida ou, quem sabe, comentar as ações

daquele que se serve diante de nós. Ainda que nosso comportamento diante do

evento percebido possa ser diferente, reconhecemos os objetos como sendo

essencialmente os mesmos; ou seja, como pertencentes à mesma categoria: pratos,

talheres, comida, refeição, nesse exemplo específico que estamos comentando.

Noutros termos, reconhecemos uma história geral: nossas experiências podem diferir

em detalhes, mas fazem sentido para nós por consistirem em um repertório de

pequenas estórias espaciais, repetidas inúmeras vezes durante nossa vida.

A forma como reconhecemos objetos, eventos e estórias tem a ver, em

parte, com o que Turner e outros teóricos, dentre eles Mark Johnson e Leonard

Talmy, chamam de esquemas de imagem, modelos básicos de percepção

construídos a partir de nossa experiência sensorial e motora. Consideremos, por

exemplo, o esquema de imagem recipiente, que, para Turner, contém três partes: um

exterior, um interior e uma parte limítrofe, que as separa. Nós experienciamos muitas

coisas como recipientes: uma casa, uma garrafa, sendo que duas coisas de maior

importância para nós que são experienciadas como recipientes são nossas cabeças

e nossos corpos.

Os esquemas de imagem surgem da percepção, mas também da interação,

ou seja, nós percebemos a água sendo derramada em um copo e interagimos com

ela quando é derramada no nosso corpo. Criamos, a partir dos esquemas de

imagem, uma base para ação, por sermos capazes de reconhecer um mesmo

esquema de imagem repetidas vezes, ou seja, por percebermos uma categoria

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existente entre uma porta e outra, uma pedra e outra, uma ação de derramar um

líquido e outra.

Quando projetamos um conceito em outro os esquemas de imagem são

responsáveis por fazer grande parte do trabalho. Um exemplo disso é quando

projetamos espacialidade em temporalidade, ou seja, pensamos em tempo, que não

tem nenhuma forma espacial, como tendo uma forma linear ou circular. Da mesma

forma, quando pensamos em continuidade, extensão e completude do tempo,

estamos projetando esquemas de imagem de espaço no tempo. Segundo Turner

(ibid, p. 18) nossa capacidade de falar sobre conceitos abstratos se dá em grande

parte porque nós projetamos estrutura de esquema de imagem de um conceito

espacial em conceitos não-espaciais. Um exemplo disso é quando dizemos “a

vergonha o forçou a confessar”, ainda que nenhuma força física esteja envolvida.

2.3 Os espaços mentais e as mesclagens conceituais na formação de

narrativas projetadas

Espaços mentais, de acordo com os estudos de Gilles Fauconnier, são

pequenos conjuntos de memória de trabalho que construímos enquanto pensamos e

falamos. Nós os conectamos entre si e também os relacionamos a conhecimentos

mais estáveis (COSCARELLI, 2005, p.1). Para a Teoria dos Espaços Mentais,

postulada por Fauconnier (1994,1997), a compreensão se dá através da criação,

articulação e integração de espaços mentais, pois eles trazem representações

parciais de elementos e relações entre eles em um dado cenário que pode ser

percebido, compreendido, imaginado, lembrado, sonhado, etc.

Para Turner (1996), é espantoso que pensemos ter uma visão total de um

evento. Quando vemos uma criança sacudindo um chocalho, por exemplo, temos um

único ponto de vista de cada vez. Podemos focar no sorriso da criança, nas mãos,

no chocalho, nos ombros sacudindo. Nosso foco muda, mas sentimos que

continuamos a olhar a mesma história: a criança está brincando com o chocalho. Nós

somos capazes de unificar todas essas percepções, todos esses diferentes focos.

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Todos os espaços mentais correspondentes aos diferentes focos terão uma criança,

um chocalho, o movimento do chocalho etc. Se passarmos para o outro lado do bebê

nossa experiência visual pode mudar consideravelmente, mas, ainda assim, o

espaço mental do novo ponto de vista terá um bebê, um ombro, uma mão, um

chocalho e o movimento do chocalho, e nós ligaremos esses elementos aos seus

correspondentes nos espaços de outros pontos de vista, permitindo-nos pensar em

diferentes pequenas estórias espaciais que vemos como uma estória, vista de

diferentes pontos de vista e com diferentes focos. Na imaginação, somos capazes,

ainda, de construir outros espaços que nós acreditamos ser um ponto de vista

distinto (p. 117), para qualquer estória, na medida em que podemos desdobrar essas

estórias em uma grande variedade de espaços mentais, dependendo das

perspectivas assumidas. Para a narrativa mais simples, como aquela do bebê

sacudindo o chocalho, podemos imaginar os espaços mentais da estória, sendo vista

espacialmente de cima, de um lado, do outro lado e assim por diante.

Além de mesclar diferentes espaços, integramos também diferentes

conceitos. Estudado por Gilles Fauconnier e Mark Turner (2003, 2008), entre outros,

o conceito de mesclagem e integração conceitual está, para esses autores, na raiz

do funcionamento cognitivo da mente e opera na prática cotidiana dos indivíduos,

definindo seu modo de pensar e constituindo a sua produção de sentido. Tanto o

produtor quanto o leitor de um texto realizam um complexo processo de mesclagem

e integração conceituais na organização e na busca de sentidos para esse texto.

Para Turner (1996), a mesclagem conceitual define-se como uma atividade

dinâmica que liga espaços input, projetando uma estrutura parcial dos espaços input

para um outro espaço, chamado “mescla”, resultando em um espaço mesclado

imaginário que está vinculado a essas entradas (inputs) que lhe deram origem. O

espaço mesclado produz conhecimento e, embora ligado ao espaço de entrada, não

é resultado da intersecção ou união das entradas, mas da projeção de determinados

aspectos de um domínio sobre outro. Não é uma maquete básica ou estática de

alguns elementos dos inputs, mas tem existência própria (TURNER, 1996, p. 83).

Uma mescla conta como uma unidade que pode ser manipulada eficientemente,

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fornecendo acesso completo às estruturas input sem recorrer continuamente a eles.

Um espaço de mescla tem espaços input e há uma projeção dos espaços input para

a mescla. Vimos que diferentes espaços podem ser ligados pela estrutura que eles

partilham. Em particular vimos que a estrutura partilhada por dois espaços input,

contida em um espaço genérico que se refere aos dois, estabelece ligações

correspondentes entre os dois. (1996, p. 122)

Na verdade, a maior parte dos eventos mentais parecem envolver

mesclagem de um tipo ou de outro. Sempre que vemos alguma coisa como alguma

coisa, ou seja, um objeto como um objeto, um evento como um evento – quando

olhamos para a rua e vemos uma mulher entrando em um carro, por exemplo –

estamos mesclando nossa experiência sensorial (a experiência de ver) com uma

estrutura conceitual abstrata. Não que esses dois componentes possam ser

separados: a percepção de alguém entrando em um carro não aparece fragmentada,

com uma parte correspondendo à experiência visual e outra parte à ação específica.

A percepção e a concepção aparecem para nós como um todo, mas elas envolvem a

mesclagem (TURNER, 1996, p. 112).

Quando percebemos alguma coisa que sabemos ser parte de um todo maior

(parte de um evento, parte de uma pequena história, parte de uma melodia, etc)

estamos mesclando experiência de percepção com a memória daquele todo. E

sempre que categorizamos uma nova informação, nós estamos mesclando a nova

informação e a categoria estabelecida. Outro exemplo dado por Turner (1996, p.113)

é de um simples evento mental, como olhar para a rua e lembrar-se do carro

vermelho que ali passara ontem, que depende de uma mesclagem: a experiência de

percepção que se tem, hoje, da rua e a lembrança da experiência perceptual da rua

que se teve ontem. Esse é um exemplo da mesclagem de realidades que pertencem

a diferentes espaços temporais e que é parte do nosso entendimento diário.

Nos primeiros estudos, os teóricos explicavam que, para conectar dois

espaços, nós convocamos uma metáfora convencional, colocando os dois espaços

em uma relação fonte-alvo. A metáfora convencional foi também estudada por Lakoff

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e Johnson (1980)6. Sendo tradicionalmente considerada uma figura de linguagem, as

teorias linguísticas não reservavam um lugar à metáfora no campo de seus estudos.

Com o advento dos trabalhos de Lakoff e Johnson abriram-se novos caminhos para

o estudo da metáfora. Essa reviravolta deveu-se à construção de um sistema de

metáforas convencionais que organizavam a percepção de mundo e, portanto, o

sistema conceitual dos falantes, possibilitando a organização da experiência

humana. Segundo Lakoff, há uma série de evidências que sustentam a existência

desse sistema convencional de metáforas conceituais. A partir disso, a metáfora

passou a ser vista como um modo de representação da realidade, podendo até

mesmo constituí-la, uma vez que diz respeito ao modo como os falantes conceituam

um domínio mental específico em termos do outro.

Como exemplifica Turner (1996, p.77), convocamos, por exemplo, a metáfora

convencional PESSOAS SÃO PLANTAS COM RESPEITO AO CICLO DE VIDA para

fundamentar expressões cotidianas como “Ele ainda é um brotinho”. Mais

recentemente Fauconnier e Turner, no texto Rethinking Metaphor (2008), fizeram

uma complementação aos seus trabalhos anteriores e à discussão feita por George

Lakoff e Mark Johnson (1980). Nesses termos, Fauconnier e Turner (2008), ao invés

de considerar apenas os dois espaços mentais de input (fonte e alvo), propõem uma

rede de integração que indicaria uma estrutura mais rica do que as meclagens

constituídas tradicionalmente aos pares em trabalhos anteriores, pois, segundo eles:

produtos conceptuais nunca representam o resultado de um único mapeamento. O que nós chamamos metáforas conceptuais, como TEMPO É DINHEIRO ou TEMPO É ESPAÇO, vem a ser construções mentais envolvendo muitos espaços e muitos mapeamentos em redes de integração elaborados, construídos por meio de princípios gerais universais. Essas redes de integração são muito mais ricas do que os feixes de ligações aos pares tratados em teorias recentes da metáfora (FAUCONNIER; TURNER, 2008, p. 2)

7.

6 LAKOFF, George and JOHNSON, Mark. Metaphors We Live By. University of Chicago Press,

1980.Traduzido em 2002 conforme se verifica nas referências bibliográficas. 7 Conceptual products are never the result of a single mapping. What we have come to call

"conceptual metaphors," like TIME IS MONEY or TIME IS SPACE, turn out to be mental constructions involving many spaces and many mappings in elaborate integration networks constructed by means of overarching general principles. These integration networks are far richer than the bundles of pairwise bindings considered in recent theories of metaphor.

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Portanto, as redes de integração são criadas a partir de vários espaços input,

não são construídas às pressas nem são estruturas convencionais preexistentes, ao

contrário, trata-se de um processo dinâmico. Essas redes, que fundamentam o

pensamento e a ação, são sempre uma mistura. De um lado, as culturas constroem

essas redes ao longo do tempo e essas são transmitidas de geração em geração.

Por outro lado, novas redes são também criadas em contextos particulares. Essa

associação resulta em redes de integração compostas de partes convencionais e de

novos mapeamentos. A memória humana ativa simultaneamente diferentes inputs e

oferece conexões temporárias. Um exemplo de Coscarelli (2009) parece-nos

apresentar de forma esclarecedora essa questão. Para a autora, ao enunciarmos

“Nessa novela, o Tony Ramos se casa com a Vera Fischer”,

vamos lidar com a articulação de dois espaços mentais input (realidade (R) e novela (N)), que geram uma mescla (I) – e é nessa mescla ou integração de espaços que somos capazes de entender que são as personagens interpretadas por Tony Ramos e Vera Fischer que se casam, e não os atores, em sua vida pessoal. A expressão “nessa novela”, neste caso, é um construtor de espaços que ativa o espaço da novela e nos faz construir um terceiro em que o espaço da vida real e o da ficção se misturam. Esses espaços são a projeção de um espaço genérico – espaço conceitual que fornece uma base para a integração – em que a ideia de casamento é apresentada de modo geral. (COSCARELLI, 2009, p.184)

Como podemos observar no exemplo de Coscarelli (2009), portanto, quando

interpretamos um enunciado, ativamos diversos espaços. Em The Mind is an

autocatalytic Vortex (2008), Turner revê o texto de 1996, explicando que essa

integração entre espaços é ainda mais complexa do que podemos pensar:

Em The Literary Mind (1996), eu defendi que a mente moderna deriva da nossa extraordinária capacidade de colocar em ação um grupo de operações mentais básicas – estória, projeção, mesclagem e parábola. Essas operações formam um pacote, um grupo, um ciclone que se autoalimenta, um vórtice autocatalítico, um reator, uma heterarquia dinâmica

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– escolha sua metáfora: elas trabalham juntas.8 (grifos do autor) (TURNER,

2008, p. 1)

Na revisão de 2008, Turner procura esclarecer possíveis mal entendidos que

podem ter surgido em The Literary Mind como a falsa impressão de que a

mesclagem é menos importante na cognição narrativa. Ao contrário, a cognição

narrativa não é possível sem a mesclagem conceitual. Para Turner, pensando na

evolução e no desenvolvimento humano, essa rede (que compõe as estórias)

formada por parábola, mesclagem e projeção antecede e é necessária para

atividades humanas específicas conhecidas por nós como, por exemplo, linguagem,

arte, música, matemática. Desse modo, a imaginação narrativa está constantemente

operando em nosso pensamento e as mesclagens conceituais são fundamentais

para o o seu funcionamento. As mesclagens, portanto, estão a serviço dessa

operação mental humana que é a produção de estórias no processo de organização

dos objetos percebidos no mundo no qual estamos inseridos para que esses objetos

possam ser reconhecidos e façam sentido.

2.4 Estórias, Tempo e Mente Humana

O tempo parece, para nós, algo linear, organizado por meio da sequência

passado, presente e futuro. Essa sensação de linearidade acontece porque,

obviamente, somos um só em cada um desses momentos e estamos em um só lugar

a cada momento considerado. Mas podemos dizer, de acordo com Turner (2008),

que nossa mente é a responsável por mesclar passado, presente e futuro, o que não

significa que somos apenas um nesses três momentos. A mescla contém apenas um

sujeito, enquanto os inputs de passado e futuro contêm sujeitos diversos, que podem

ser totalmente diferentes entre si.

8 No original: In The Literary Mind (1996), I argued that the modern mind derives from our remarkable

capacity to deploy a cohort of basic mental operations—story, projection, blending, and parable. These operations are a pack, a troupe, a selffeeding cyclone, an autocatalytic vortex, a breeder reactor, a dynamic heterarchy—choose your metaphor: they labor together. (grifos do autor)

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Todas essas estruturas conceituais podem ser ativadas em uma cena

particular e, de alguma forma, uma identidade é percebida nas diferentes

representações que são dadas à percepção humana. Por exemplo, em uma

recordação do passado, para que essa lembrança seja daquele que recorda, é

preciso que, mesmo diferentes as pessoas, os objetos recordados permitam o

reconhecimento de alguma identidade com as pessoas, os objetos no presente da

recordação. O “eu” do presente tem que se reconhecer, por mais diferente que

esteja, no “eu” do passado para que sua percepção de si nos dois momentos,

passado e presente, faça sentido. Torna-se possível, assim, a capacidade de

reconhecer uma outra face de si em outro tempo, em outro espaço.

Do mesmo modo, quando alguém se olha no espelho e algo, como uma

roupa, um sorriso, um penteado, faz com que se lembre de um outro “eu” do

passado, podemos compreender a cena como um sujeito de anos anteriores sendo

reconhecido por esse “eu” que olha no espelho. Conforme Turner, a pessoa pode

falar, e sua voz, nessa pequena estória não se liga ao corpo falando, mas à pessoa

mais jovem, dizendo para a pessoa mais velha: ‘Você fez tudo certo’9 (2008, p. 12).

Ou a mesma voz pode se ligar conceitualmente à pessoa mais velha dizendo: Eu

falhei com você, não falhei? A pessoa, nesse momento, não está maluca. Ao

contrário, sua habilidade de abranger conceitualmente a rede de integração é um

sinal da capacidade humana para a cognição narrativa avançada. Desse modo,

quando recordamos a cena, estamos criando, na mescla, um sujeito antigo e

projetando ali capacidades e elementos do sujeito do presente. Consequentemente,

qualquer cognição narrativa envolvendo nosso “eu” anterior como agente, incluindo

qualquer cognição narrativa que produza uma narrativa contínua que alcance o

presente, depende de mesclagem de duplo escopo (ibid, p.13).

Outra situação em que podemos observar a mesclagem de narrativas

passadas com narrativas presentes ocorre ao realizarmos uma ação no presente que

parece ter um certo valor, mensurado na ação que se faz no presente, mas então,

9 No original: She may speak, and her voice may in the little story attach not to the body speaking but

to the younger person, saying to the older person, “you’ve done all right.”

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uma ação diferente do passado vem à tona e parece haver uma analogia entre essas

duas ações, o que pode levar, por exemplo, o indivíduo a repensar a ação e o seu

valor no momento presente. Essa analogia resulta na compressão que traz uma nova

importância para a ação do presente. Essa também é uma ocorrência de projeção do

“eu” do presente em uma mescla que recebe input do passado.

Fauconnier e Turner (2002, p. 317) observam que, de um ponto de vista

objetivo de tempo e espaço, as atividades da memória humana são estranhas. Para

os autores, uma das hipóteses seria que memória e integração conceitual

desenvolveram-se para auxiliar uma a outra. Isso ocorre porque para fazer a

integração conceitual avançada, nós precisamos da habilidade de integrar e

comprimir inputs que são frequentemente muito diferentes e separados no tempo e

no espaço. Ainda que não possamos prever que inputs serão necessários para essa

integração conceitual, sabemos que inputs de muitas fontes precisam ser ativados

simultaneamente e ligados por relações vitais, ou seja relações necessárias para a

sua ativação, relações que garantam, enfim, sua existência.

Turner (2008, p.15) demonstra um outro fenômeno que resulta de uma

mesclagem do sujeito do presente e as memórias do sujeito do passado. Quando

estamos diante de uma situação análoga a uma situação vivida no passado, que

tenha tido uma carga emocional negativa, tudo indica que seja útil não ter que passar

por todas as decisões, avaliações e reações da nossa experiência atual. A nossa

memória parece ser capaz de evocar para o sujeito do presente uma reação análoga

à reação original e, quando os sujeitos são mesclados, e há a compressão desses

inputs, o resultado é uma indicação para o sujeito do presente de como reagir. Nesse

caso, a mesclagem do sujeito do presente com o do passado fornece sabedoria para

aquele. Para Turner, o sujeito do presente é um sujeito mais rico em cognição

narrativa pela sua mesclagem com o sujeito do passado.

Isso explica porque, muitas vezes, ouvimos no senso comum enunciados do

tipo Nós aprendemos com a experiência, ou Quanto mais se vive mais se aprende.

Não poderia ser diferente, tendo em vista que nossa mente armazena as

experiências vividas, que são integradas a novas experiências e provocam ou evitam

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um resultado já conhecido. Interessante pensar também em um outro enunciado que

costumamos ouvir: Aprendemos com os erros dos outros, pois isso nos mostra nossa

capacidade mental de mesclar a narrativa do outro, a estória que aconteceu com o

outro, à nossa cognição narrativa, podendo avaliar que atitude tomar diante de uma

determinada situação vivenciada por outro indivíduo. Desse modo, se mesclarmos

uma narrativa alheia positiva à nossa imaginação narrativa, podemos prever um

possível resultado, baseando-nos no bom resultado que o outro alcançou.

A construção mental desse “eu futuro” é de alguma forma diferente da

construção mental do “eu passado”. Por, obviamente, ainda não ter ocorrido, é

inevitável que a estrutura conceitual mesclada no “eu futuro” recorra ao

conhecimento do passado e do presente, como acontece no exemplo dado por

Turner (2008, p. 16). Nesse exemplo, alguém se imagina sentado, daqui a um ano,

na casa em que mora hoje e em que já morava há alguns anos, mas essa cena

futura não é temporalmente marcada como situada no passado. O “eu futuro”,

portanto, reconhece-se no “eu passado”, à medida que não nos parece possível

imaginar esse reconhecimento, já que falamos em identidade, se o “eu futuro”

imaginado trouxesse um outro sistema de referência: por exemplo, emoções,

conhecimento, e pensamento distintos, quando o cérebro entra em um estado de

ativação correspondente ao que poderíamos chamar de um futuro imaginado

hipotético. Em outros termos, para o “eu futuro hipotético” fazer sentido para nós,

temos que projetar para ele nosso aparelho mental presente. Portanto, qualquer que

seja nosso futuro pensado, imaginado, esse futuro hipotético que estamos pensando

só se torna possível a partir da ativação de nosso sistema de referência –

conhecimento, emoções, pensamento – do indivíduo do presente. Como resultado

dessa habilidade do ser humano de colocar juntos passado, presente e futuro, surge

a capacidade humana para as diversas possibilidades de julgamento das situações

nas quais os indivíduos estão envolvidos. É desse modo que buscamos agir e

influenciar nossas escolhas presentes pensando nas consequências futuras.

Sabemos que, no estágio evolutivo em que nos encontramos, somente o que

está contido dentro das nossas cenas locais de tempo e espaço pode nos afetar e,

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consequentemente, só a essas cenas podemos afetar. Para fazer boas escolhas no

presente em relação a situações futuras, precisamos acessar o sentimento que seria

provocado por aquelas situações. Afinal nós não estamos de fato vivenciando essas

situações, considerando que elas não estão no horizonte das nossas ações

possíveis, no universo presente no qual nos encontramos. Nesse sentido, ocorre a

possibilidade humana da mesclagem de duplo escopo, de acordo com a qual torna-

se possível trazer o futuro para o presente, ou seja, projetar a cognição incorporada

presente para operar no futuro e, assim, pensar agora, com o sentimento e as

condições do presente, sobre o futuro, e esses, sentimento e condições do presente,

serão projetados na mescla que contém o futuro.

Essa mesclagem do presente com o futuro também pode ser usada para

controlar o “eu” no presente a partir do momento em que, mesclar nossa cognição

presente com o “eu futuro”, pode ativar sentimentos acerca do que gostaríamos de

ter na situação presente (como comprar uma casa, ganhar na loteria, ter um filho

etc.), mas que achamos difícil de alcançar quando estamos imersos no presente. É

dessa forma que podemos sonhar com o futuro e, consequentemente, nos sentirmos

diferentes no presente.

Essa cognição narrativa sobre uma cena futura pode também gerar no

presente consequências que não gostaríamos, como quando nos imaginamos

perdendo alguém que amamos ou perdendo o emprego. Mesclar nossa cognição

incorporada presente com um “eu” futuro nessas situações desagradáveis pode ser

perturbador para nosso presente. Muitas vezes, para evitar o sentimento produzido

por essas preocupações, precisamos evitar a ativação dessas mesclagens. Sobre

essa questão, Turner observa que

os indivíduos e as culturas desenvolvem mecanismos para controlar as consequências dessa cognição narrativa avançada. Curiosamente, um desses mecanismos é o uso da linguagem – outro produto da mesclagem de duplo escopo – para criar expressões faladas e escritas – isto é,

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determinadas estórias – cujo propósito é induzir o ouvinte para uma cognição narrativa preferida.

10 (ibid, p. 18)

Ou seja, a linguagem, como qualquer outro mecanismo simbólico, possibilita,

dada sua natureza significativa e referencial, que se possa tornar presente aquilo que

se encontra ausente. Pela linguagem, os indivíduos instituem os objetos no mundo,

independentemente de esses mesmos objetos poderem ser vistos ou manipulados.

10

No original: Human individuals and cultures develop mechanisms for managing the consequences of this advanced narrative cognition. Interestingly, one of those mechanisms is the use of language—another product of double-scope blending— to create spoken or written expressions—that is, particular stories—whose purpose is to prompt the audience to preferred narrative cognition.

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CAPÍTULO III

ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO, COGNIÇÃO E PUBLICIDADE

Nesse capítulo, temos como objetivo apresentar um panorama do quadro

teórico da Análise Crítica do Discurso (ACD). Como ressaltamos, embora nossa

preocupação não tenha como foco analisar uma determinada prática discursiva sob

essa perspectiva teórica, temos assumido a importância da ACD como orientação

teórica, na medida em que compreendemos a linguagem como prática social e os

indivíduos como sujeitos situados histórica e culturalmente.

Desse modo, ainda que nossa atenção se volte para os processos cognitivos

na produção do sentido, entendemos que os indivíduos são sujeitos históricos e,

portanto, acreditamos ser necessário ter uma compreensão das práticas discursivas

nas quais os sentidos são produzidos. Seguindo essa linha de raciocínio,

apresentaremos algumas questões relacionadas à metodologia de abordagem das

publicidades e faremos uma breve descrição acerca das condições de produção da

publicidade na contemporaneidade.

Situados no quadro da ACD, portanto, assumimos uma concepção de

discurso na qual tomamos a linguagem como uma prática social e, como tal, em sua

relação dialética com o meio em que está inserida. O discurso, como fenômeno

determinado socialmente, também é visto como uma prática social, definida por sua

relação estreita com a sociedade, fazendo-se parte dela. Associamos a essa

perspectiva a ideia da linguagem como um processo, o que a situa em sua relação

com um tempo e um espaço históricos específicos.

Dessa relação entre discurso e prática social, concebemos as práticas

discursivas como processos sócio-cognitivos que requerem o acesso às várias

representações armazenadas na memória pelo falante seja na produção ou na

interpretação dos textos. Essas representações definem-se como protótipos de

experiências, linguísticas e sociais, vivenciadas e acumuladas pelo falante,

acessadas pelos membros de uma dada comunidade em suas práticas discursivas.

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Essas práticas, por serem interdiscursivas e intertextuais, caracterizam-se por

estarem ideologicamente modeladas e socialmente determinadas pelas gerações de

falantes.

Fundamental para a ACD, portanto, no que diz respeito às relações entre

linguagem, poder e ideologia, é a compreensão de que as práticas discursivas são

limitadas por uma rede de convenções discursivas que, como observa Fairclough

(1994), definem-se como as ordens do discurso, um conceito adaptado de Foucault

(1971). As relações de poder existentes, portanto, são legitimadas direta ou

indiretamente pelas ideologias subjacentes às ordens do discurso. Define-se, assim,

o poder como uma forma de controle social em que se atua sobre as representações

de mundo, das práticas sociais e dos agentes envolvidos nessas práticas.

Para Van Dijk, há três questões fundamentais no que diz respeito às

relações entre discurso e poder: o acesso às formas discursivas, a política, a mídia; o

entendimento de que as ações estão sob o controle da mente, pressupondo que

controlar a mente do outro, seu modo de conhecimento, implica controlar as suas

ações; e, terceiro, o discurso, manifestado através dos textos, escritos ou orais,

como fator fundamental no controle da mente e, portanto, das ações que o locutor

quer obter, através da persuasão e da manipulação (Van Dijk, 1998).

3.1 O Papel da Representação na Análise Crítica de Discurso

A representação dos eventos e dos atores sociais assume grande

importância para a Análise Crítica do Discurso, tendo em vista que os modos de

representar refletem as relações de poder. Van Dijk (1998), por exemplo, considera

as representações como modo de controlar as ações e os comportamentos dos

indivíduos numa dada sociedade. Van Leeuwen (1995), por sua vez, caracteriza o

processo de representação como um modo de codificar as atitudes e as diferentes

interpretações dos eventos e dos atores sociais. O autor considera, portanto,

importante estar atento para o modo como as ações dos grupos são representadas

no discurso.

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As escolhas na produção do texto, como Van Leeuwen (1995) observa, são

importantes, considerando-se que revelam o discurso que está atravessando o texto

que produzimos. O produtor do texto tem diante de si um sistema linguístico, cabe a

ele construir a sua representação do mundo e dos sujeitos sociais envolvidos através

da manipulação desse instrumental disponibilizado pelo sistema. Como Fairclough

adverte essas representações não são transparências, mas se definem como

versões da realidade e, como tais, estão sujeitas ao jogo de interesses, aos objetivos

e às posições sociais dos seus locutores.

Sob esse quadro teórico esboçado, estudaremos o modo como são

constituídas as práticas discursivas em um determinado domínio discursivo. Essa

parte do trabalho tem como objetivo examinar parte dessa construção das práticas

discursivas, mais especificamente, o funcionamento das estórias no discurso.

Através dos anúncios, pretendemos reconhecer o funcionamento das mesclagens de

estórias como procedimento de organização do discurso e no processo de

constituição de representações capazes de fazer valer as crenças ali presentes.

Desse modo, considerando que as representações mediadas pela linguagem

nas interações sociais não estão isentas do trabalho ideológico da linguagem,

entendemos que todos os processos constitutivos da produção textual escrita ou

falada podem ser objetos de investimento ideológico. Nessa perspectiva, buscamos

identificar o processo de constituição da publicidade, através de representações dos

produtos e dos consumidores, e propomo-nos a examinar o funcionamento

discursivo das mesclagens e projeções de estórias, como um procedimento que

possibilita uma representação de mundo e como tal assume uma grande importância

nos processos de constituição do sentido.

3.2 Mesclagem Conceitual, Narrativa e Análise Crítica do Discurso

Como modo de representar os domínios da experiência, as mesclagens de

narrativas interessam à Análise Crítica do Discurso, à medida que possibilitam o

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desvelamento dos processos de representação da realidade por um dado locutor

quando da elaboração de seu texto. Através do exame das mesclagens conceituais e

das narrativas e de suas manifestações linguísticas vamos observar as condições de

produção dos discursos, as restrições impostas e o modo como a ideologia trabalha

a linguagem.

Uma das grandes questões postuladas pela Análise Crítica do Discurso diz

respeito à concepção da linguagem. Dentre as várias definições da linguagem, há

aquela que a compreende como transparente, estabelecendo uma relação direta

com o mundo. Esta concepção implica o entendimento de que a linguagem funciona

como um espelho que apenas reflete o real. Contudo, a realidade que lemos em um

texto, ou que ouvimos em uma fala resulta da construção de um sujeito histórico que,

através do trabalho com a linguagem, representa o mundo por meio das relações

que constrói, por meio das escolhas que opera no sistema linguístico. Para Van Dijk,

o discurso é forma de dominação, em que se controlam e se manipulam as

representações sociais ou modelos mentais das pessoas, e as ideologias

são modelos conceptuais básicos de cognição social, partilhados por membros de grupos sociais, constituídas por seleções relevantes de valores socioculturais e organizados segundo um esquema ideológico representativo da autodefinição do grupo. ( 1997:111 ).

Elas desempenham não apenas uma função social ao defender os

interesses de um determinado grupo, mas, sobretudo, elas cumprem a função social

de organizar as representações sociais (atitudes, conhecimentos) do grupo. Assim,

elas orientam, indiretamente, as práticas sociais relativas ao grupo e,

consequentemente, as produções escritas e orais do mesmo.

A partir disso, a grande questão que se coloca é o modo como as

mesclagens e as narrativas, através do discurso, determinam os valores

fundamentais de uma cultura, já que as estórias estão presentes não só na

linguagem, mas constituem nosso pensamento e nossa ação. Os conceitos que

governam nosso pensamento não são somente questões do intelecto. Eles

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governam a nossa atividade e estruturam o que percebemos, a maneira como nos

comportamos no mundo e o modo como nos relacionamos com outras pessoas.

Sabendo que é difícil escapar à ideologia, é necessário observar que nos

discursos há sujeitos, que possuem um conjunto de crenças e que direcionam a sua

argumentação com vistas a defender os valores nos quais acreditam. Ao sujeito da

Análise do Discurso não devemos atribuir intencionalidade, visto que, ainda que ele

queira, não é capaz de controlar os sentidos produzidos pelo seu enunciado. Como

defende Van Dijk, há casos de Implicação, na qual os significados nem sempre são

expressos de maneira explícita. Algumas vezes podem estar implícitos a nível

semântico ou vir na sequência de outras expressões explícitas e seus significados.

Van Dijk completa:

Se ao exprimir o significado A, o enunciador quer também dizer B, os receptores apenas serão capazes de deduzir a implicação com base em inferências feitas a partir de um conhecimento – por eles partilhado a nível cultural – dos significados linguísticos ou, em termos mais gerais, com base no conhecimento que a todos é comum, incluindo um conhecimento do enunciador. (1997:139).

Pedro (1997, p.21) argumenta que na Análise Crítica do Discurso , encontra-

se um processo analítico que julga os seres humanos a partir da sua socialização, e

as subjetividades humanas e o uso linguístico como expressão de uma produção

realizada em contextos sociais e culturais, orientados por formas ideológicas, e

complementa que a tarefa da ACD é

a construção de um aparelho teórico integrado, a partir do qual seja possível desenvolver uma descrição, explicação, e interpretação dos modos como os discursos dominantes influenciam, indiretamente, o conhecimento, os saberes, as atitudes, a ideologia, socialmente partilhadas. Precisamos saber como é que as estruturas específicas de discurso determinam ou facilitam processos de formação de representações sociais. (p. 30).

De acordo com Van Djik (1997), embora as ideologias sejam sociais e

políticas e estejam relacionadas com grupos e estruturas societais, elas possuem

também uma dimensão cognitiva. Em termos intuitivos, incorporam objetos mentais,

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tais como ideias, pensamentos, crenças, apreciações e valores (p.107). Desse modo,

investigaremos, através das narrativas e das mesclagens conceituais, a constituição

das relações de poder e a tentativa de repassar crenças, as quais o locutor deseja

que sejam fixadas, construindo assim a representação dos eventos e dos sujeitos

envolvidos. De acordo com Van Leeuwen (1997), fazemos uma representação da

prática social que serve para legitimar (ou não) valores. Essas representações são

controladas pelas crenças de determinados grupos que têm acesso ao discurso. E,

como coloca Van Dijk (1998) essas representações se processam no discurso e

através dele pelas ideologias.

Van Dijk (1993, apud PEDRO 1997) afirma que um dos objetivos da ACD é o

de analisar e revelar o papel do discurso na (re)produção da dominação. Essa

dominação é entendida como o exercício do poder social que resulta em

desigualdade social, onde está incluída, além de outras, a desigualdade política.

Especialmente, os analistas críticos do discurso querem saber quais as estruturas,

estratégias ou outras propriedades de texto, falado ou escrito, da interação verbal, ou

dos acontecimentos comunicativos em geral, que desempenham um papel nestes

modos de reprodução. (PEDRO, 1997, p.25)

Sabemos que a ACD e as teorias da linguística cognitiva possuem objetivos e

métodos diferenciados, no entanto acreditamos que há pontos nessas duas

abordagens que podem se complementar. Os conceitos de discurso, cognição e

cultura aparecem nas duas teorias, porém, enquanto a ACD toca no conceito de

cognição, mas não o aprofunda, as teorias cognitivas não direcionam sua

preocupação para a prática discursiva. Quanto ao termo cultura, observamos que é

uma preocupação das duas teorias. E para reforçar essa importância da cultura e do

sentido que o sujeito dá a sua experiência destacamos também os estudos da

psicologia narrativa.

Nessa relação entre os diferentes campos teóricos, procuramos relacionar

processos mentais a processos socioculturais de representação. As mesclagens

conceituais e as narrativas projetadas sendo processos cognitivos funcionam

discursivamente no processo de produção e interpretação discursiva. Portanto

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através do discurso temos acesso ao processamento cognitivo e num processo

inverso, o discurso só acontece através do processamento cognitivo. E, temos como

elemento de ligação entre esses diferentes conceitos, a linguagem, elemento básico

desde a cognição até as dimensões culturais.

3.3 Análise Crítica do Discurso - Procedimento de Análise dos Textos

Como observamos no decorrer deste trabalho, nossa preocupação não diz

respeito ao estudo da publicidade em si, mas procuramos, a partir de uma

concepção do processo cognitivo, compreender o papel da cultura nos processos

cognitivos de processamento do sentido. Para essa compreensão, tomamos algumas

peças publicitárias como objeto, com o objetivo de acompanhar o funcionamento das

pequenas narrativas, no sentido de Turner (1996). Neste trabalho, estamos cientes

das limitações acerca das conclusões obtidas, tendo em vista que se trata de um

estudo de caso, que funciona como uma análise de um micro universo representativo

de uma totalidade. Segundo Becker (1994, p.117),

o termo ‘estudo de caso’ vem de uma tradição de pesquisa médica e psicológica, onde se refere a uma análise detalhada em um caso individual que explica a dinâmica e a patologia de uma doença dada; o método supõe que se pode adquirir conhecimento do fenômeno adequadamente a partir da exploração intensa de um único caso. Adaptado da tradição médica, o estudo de caso tornou-se uma das principais modalidades de análise das Ciências Sociais.

Acreditamos, portanto, como postulado por Becker, acima, que as peças

publicitárias analisadas ajudam-nos a compreender um pouco mais acerca da

proposição teórica de Turner de que a mente humana opera com pequenas

narrativas para o processamento dos sentidos, mas também um pouco mais sobre o

papel da cultura na cognição. Desse modo, ao tratar de cinco peças publicitárias,

podemos compreender um pouco mais acerca da complexidade e da dinâmica do

processamento cognitivo, na medida em que, no nosso entendimento, os objetos

apresentados nos anúncios descrevem pequenas narrativas que possibilitam nossa

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cognição do texto. Entendemos ainda que a partir da análise desses textos podemos

estender as conclusões, generalizando-as, ressalvadas, evidentemente, as

particularidades de cada objeto e, por conseguinte, as especificidades de suas

narrativas.

Nessa linha de raciocínio, optamos por organizar o próximo capítulo com um

tratamento diferenciado a cada texto tomado para análise, pretendendo,

primeiramente não sermos repetitivos, pois, como observamos, o funcionamento das

pequenas narrativas não difere, a não ser na particularidade de cada objeto presente

no texto publicitário. Desse modo, se o primeiro anúncio apresentando toma como

objeto um liquidificador, compreende-se que sua narrativa decorre do funcionamento

ou do lugar que nossa mente atribui ao liquidificador, o que implica que o mesmo

ocorre com os demais objetos presentes nos outros anúncios examinados. No

tratamento do último anúncio, no entanto, faremos uma análise mais detalhada,

objetivando organizar nossa conclusão em conformidade com o objetivo proposto.

A análise desses anúncios, portanto, tem como objetivo compreender o

funcionamento do processamento cognitivo envolvido na compreensão dos textos,

tomando como foco a operacionalidade das narrativas e da integração conceitual

como mecanismos responsáveis pela organização do discurso e seu papel na

representação dos sujeitos e dos eventos sociais.

Para a análise dos textos publicitários, foram respeitadas duas das três

dimensões da ADTO – Análise do Discurso Textualmente Orientada definidas em

Fairclough (2001, p.101): mais especificamente, atentamos para a natureza textual e

social do discurso. Faz-se necessário, no entanto, observar, primeiro, que essas

duas dimensões não foram descritas de forma destacada, porque acreditamos que

essa tridimensionalidade presente nos textos e nos discursos, conforme proposto

pelo autor, pretende refletir a natureza desses objetos que são, textuais, pertencem a

uma ordem discursiva e, portanto, constituem-se a partir de uma determinada prática

discursiva e, por fim, são objetos empíricos situados no tempo e no espaço.

Segundo, nossa opção por não tratar da dimensão da prática discursiva, por mais

que possa parecer contraditório, implica em uma opção necessária para que se

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possa garantir coerência ao trabalho proposto. De acordo com o modo como

compreendermos a dimensão da prática discursiva, teríamos duas opções:

considerar, como o fazemos, que toda peça publicitária faz parte de uma

determinada prática discursiva e, por outro lado, dada a natureza de nosso trabalho,

não estamos discutindo essa prática discursiva, mas, como já observado,

examinando algumas peças para a compreensão do processamento cognitivo

envolvido na sua produção de sentido.

Em nossa abordagem, portanto, focamos intencionalmente a dimensão

textual, tendo em vista nossa preocupação central no presente trabalho de

compreender, a partir da materialidade do texto publicitário o seu funcionamento. Há

que ressaltar que nosso acesso à compreensão do processamento cognitivo só se

torna possível se consideramos aquilo que podemos perceber: a materialidade

textual e gráfica das peças publicitárias. É a partir da percepção visual, nesse caso

específico, que podemos pensar a possibilidade de compreender o modo como o

sentido é processado cognitivamente. A dimensão da prática discursiva implicaria, no

nosso entender, situar essas peças sob análise no âmbito da produção publicitária, o

que, se de um lado não é o objetivo inicialmente proposto; de outro lado, requereria

uma abordagem mais discursiva e, portanto, um novo trabalho cujo foco seria a

produção discursiva da publicidade, o que, reiteramos, foge aos nossos objetivos.

Por fim, a dimensão social, parece-nos relevante sua consideração, tendo em vista

que nos propomos atentar para o papel do social no processo cognitivo.

Num primeiro momento do trabalho, o que se refere à descrição, faremos uma

análise das mesclagens conceituais e das estórias projetadas, conforme nos

mostram Turner (1996) e Fauconnier e Turner (2003). Identificaremos as mesclagens

e projeções de estórias utilizadas na produção dos textos para que possamos

compreender o seu funcionamento no discurso e o modo como a reprodução de

determinados valores, ou de um determinado sistema de crença faz parte do

processo de produção do sentido que se institui nos textos sob análise. Nesse

sentido, pontos de vista particulares acerca dos objetos que constituíram os

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ativadores das pequenas histórias e das mesclagens conceituais assumem

importância para o processo de compreensão e interpretação dos textos publicitários.

De uma perspectiva da Análise Crítica do Discurso e, consequentemente, sob

uma concepção do discurso como prática social, esse sistema de crença que

organiza o modo de interpretar esses textos, também organiza o modo como os

indivíduos devem processar os discursos que eles recebem/percebem. Nessa

perspectiva, podemos retomar Van Dijk (1998) quando observa que as

representações possibilitam o controle das ações e dos comportamentos dos

sujeitos, na medida em que, sob esse sistema de crenças, os indivíduos percebem

os constituintes materiais de, por exemplo, uma peça publicitária, e é sob esse

sistema de crenças, portanto, que eles selecionam os elementos que vão assumir

importância no processo de integração social. Desse modo, ao descrever as

mesclagens conceituais e as narrativas, entendemos ser possível examinar o seu

funcionamento na produção e reprodução de crenças. Mas é importante reafirmar o

aspecto dialético dessa relação: por um lado, a determinação desses valores

possibilitará compreender o seu funcionamento no discurso e, por conseguinte, a

produção e reprodução da ideologia e das relações de poder que estão em jogo

nessas representações; por outro lado, é sob esses sistemas de valores que se

organizam o modo de percepção do mundo e, portanto, o processamento cognitivo

das mesclagens conceituais e, em consequência, das narrativas

Nessa compreensão, conseguimos pensar o foco nas duas categorias da

tridimensionalidade, proposta no quadro da Análise Crítica do Discurso: a dimensão

textual, na qual nos concentraremos no funcionamento das pequenas histórias,

narrativas que podem ser apreendidas pela percepção dos elementos que

constituem a peça publicitária; a dimensão social, cujo objetivo consiste em situar o

discurso como parte de um processo social e, logo, como uma prática social

determinada historicamente.

Na confluência dessas duas dimensões, esperamos responder a questão

fundamental desse trabalho: aquela que diz respeito às relações entre a experiência

humana, concebida como cultura, e o processamento cognitivo, responsáveis pelo

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processamento do sentido nos discursos analisados. Há que se reconhecer o caráter

social, histórico e cultural, portanto, contingente dos saberes que os indivíduos em

comunidade ativam para produzir sentido e, portanto, a natureza dinâmica dos

processos cognitivos. Por fim, gostaríamos de ressaltar que a ACD orienta o trabalho

que desenvolvemos, na medida em que presumimos o papel da cultura e da

ideologia no processamento cognitivo. Em The Literary Mind (1996), Turner não trata

dessa questão, mas compreende que o processo cognitivo requer o reconhecimento

de que a mente humana conta com pequenas estórias dos objetos percebidos para

que possa processar o sentido. A presunção de que cultura e ideologia influenciam

os processos cognitivos resultam da compreensão de que somos sujeitos histórico e

culturalmente situados. Embora não seja nosso objetivo descrever as etapas de uma

análise discursiva, como proposto, a ACD perpassa o trabalho e principalmente a

análise que desenvolvemos.

Nas seções seguintes, procuraremos localizar os textos publicitários como

objetos empíricos e culturais, resultantes da prática social e de práticas discursivas,

vinculadas a momentos históricos específicos.

3.4 Mídia, cultura e publicidade – uma visão panorâmica

Nosso objeto para esse estudo é produto de uma época em que muito se

discute a respeito do tema indústria cultural e da sua relação com conceitos como

globalização, cultura de massa e outros. Antes de tratar do termo cultura de massa é

importante discutir sobre o termo cultura e sua relação íntima com a questão da

identidade, conceito que Jean-Pierre Warnier (2003) prefere chamar de identificação,

pois para o autor

a cultura e a identificação têm um papel importante, ao propor repertórios de ação e de representação, prontos para serem usados, permitindo que os atores ajam segundo as normas do grupo (p.19).

Os indivíduos recebem várias influências culturais e estão a todo tempo

agregando ou recusando, ainda que inconscientemente, valores e crenças dentro de

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seus grupos. Essas influências vêm através de diversas fontes incluindo os produtos

que as indústrias, seja de bens de consumo, seja de produtos culturais, colocam

como essenciais para a vida do consumidor.

Warnier advoga que as trocas culturais sempre existiram, mas que as

revoluções industriais sucessivas dotaram os países chamados de ‘desenvolvidos’

de máquinas para fabricar produtos culturais e de meios de difusão de grande

potência (ibid, p. 26). A consequência desse fenômeno, segundo Warnier, é que

esses países, que detêm maior controle da indústria cultural, repassam ao mundo

todos os elementos de sua ou de outras culturas.

Refletindo sobre a recepção dos consumidores dessa cultura de massa

poder-se-ia pensar que são consumidores passivos que aceitam toda forma de

cultura que lhes é apresentada. No entanto, John B. Thompson (1998) defende a

idéia de que o termo “massa” pode enganar, pois sugere que os destinatários dos

produtos da mídia se compõem de um vasto número de passivos e indiferenciados

indivíduos. Ao contrário, segundo Thompson,

devemos abandonar a idéia de que os destinatários dos produtos da mídia são espectadores passivos cujos sentidos foram permanentemente embotados pela contínua recepção de mensagens similares. Devemos também descartar a suposição de que a recepção em si mesma seja um processo sem problemas, acrítico, e que os produtos são absorvidos pelos indivíduos como uma esponja absorve água. (THOMPSON, 1998, p. 31)

Para ele, essa suposição não leva em conta as maneiras complexas de

recepção, interpretação e incorporação dos produtos da mídia pelos indivíduos.

Dessa forma podemos pensar que os indivíduos estão a todo tempo em um processo

de escolha de valores. Assim, ao aceitar produtos que são típicos de determinada

cultura, estamos fazendo uma escolha que poderia ser diferente. O quer que seja o

produto que consumimos, estamos também adquirindo valores agregados a esse

produto. Ao comprar um fast food, por exemplo, estamos adotando, em partes, um

estilo de vida seguido por determinadas culturas. Mas poderíamos optar por um outro

produto, nesse caso, por um alimento mais saudável tendo em vista que muitos

indivíduos preferem seguir um modelo oriental de alimentação, como mais alimentos

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frescos e chás. Portanto, ao optar por consumir um fast food, estamos agregando à

nossa cultura valores culturais de determinados grupos que não estão tão

preocupados com a questão da saúde, da alimentação. Ou mesmo que estão, sim,

preocupados, mas que consideram normais certos hábitos e que não estão

envolvidos por hábitos diferentes. Afinal, não podemos negar, obviamente, que os

produtos de diferentes culturas nem sempre estão acessíveis de forma igual aos

consumidores. Ainda que optemos por uma alimentação mais saudável, os meios de

comunicação insistem em encher nossos olhos com hambúrgueres, cookies, chips,

cup cakes e outros. Dessa forma é que pode se dar a manipulação. Isso acontece

porque um número pequeno de indústrias de mídia controlam o mercado, como

expõe Dênis de Moraes em O capital da mídia na lógica da globalização11,

considero alarmante o fato de convivermos com uma abundância de dados, sons e imagens que se originam, em grande parte, de fontes de enunciação e emissão controladas por um número mínimo de corporações - as mesmas que se movimentam livremente pela Terra, sem prestar contas a ninguém, exceto a seus acionistas. A industrialização dos bens simbólicos obedece, assim, às injunções mercadológicas e às conveniências políticas e econômicas dos titãs.

Esse fenômeno acontece, segundo Moraes, por falta do estabelecimento de políticas

públicas de comunicação, que regulem e fiscalizem as indústrias. Venício Lima

(2004) dá o nome de oligopolização para esse processo, que acontece por vários

fatores: a) o rádio e a televisão continuam regidos por um código do início da década

de 1960 e constituem um sistema organizado em torno de poucas redes sobre as

quais não existe nenhuma regulamentação legal; b) não há normas ou restrições

legais para a “afiliação” de emissoras de radiodifusão (p.96-97) Esses e outros

fatores contribuem para a concentração da propriedade das comunicações no Brasil.

Dessa concentração observa-se um fato que Lima, e também Ben Bagdikian (1993),

lembram ser comum no vocabulário do mundo corporativo: a ‘sinergia”. De acordo

com Bagdikian, a sinergia, na mídia de massa, descreve como um meio de

comunicação pode ser usado para promover a mesma idéia, produto, celebridade ou

11

Disponível em http://www.lainsignia.org/2001/diciembre/cul_056htm. Acesso em 13/08/2009.

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político em outro meio de comunicação, ambos pertencentes à mesma corporação

(ibid, p. 285). Como resultado da sinergia, segundo Bagdikian, temos uma série de

circuitos fechados, preconceituosos contra talentos e informações independentes.

Enrique Sánchez Ruiz (2000) também trata desse fenômeno. Para ele, a alta

concentração em poucas empresas da produção e circulação, junto com a

disparidade nos fluxos e intercâmbios internacionais de produtos cuturais, limitam a

diversidade e a pluralidade das manifestações culturais. E, retomando um ponto

discutido acima, Sánchez afirma que os bens e serviços da indústria cultural são,

além de mercadorias, propostas de definição sobre quem somos [...] (p. 26).

Levando em conta essa questão da representação discutida em Warnier e

em Sanchez podemos pensar que é preciso ter um olhar mais crítico em relação aos

conteúdos simbólicos dos produtos culturais tendo em vista a questão da sinergia e o

domínio mercadológico de um número muito pequeno de empresas. Isso não é

motivo para termos uma visão alarmante e dizer que todos os produtos da indústria

cultural são ruins, mas sim motivo para refletirmos sobre aquilo que não é mostrado,

procurarmos produtos diversos e, ainda, questionarmos a falta dos mesmos no

mercado. Se há um produto para ser consumido, parece evidente que tudo que se

diz sobre esse produto visa a convencer o possível consumidor.

Nessa perspectiva, Abellán (2004) estabelece algumas características do

discurso publicitário e uma delas é que a ação comunicativa é unilateral. Não há

interação entre o produtor do anúncio e o receptor, de forma que a única referência

que o produtor tem sobre a qualidade da sua comunicação é o resultado nas vendas.

Outra característica dessa situação comunicativa é que os membros do

departamento de criação são profissionais, que não esperam uma resposta

linguística, a meta final de todo anúncio é provocar uma reação no receptor. Na

maioria das vezes essa reação resulta no Desejo que leva a uma Ação, uma

compra.12 (Abellán, p. 246) (grifos do autor). Ou seja, o próprio ato de comprar já é

12

No original: The final goal of all advertising is to provoke a reaction on the audience. In most cases this reaction results in the Desire that leads to an Action, a purchase.

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um narrativa bem conhecida por nós. O indivíduo parte de um estado a partir do qual,

motivado pelo desejo, chega a outro estado, a aquisição do produto.

Os slogans – frases curtas, fáceis de serem lembradas – realçam os

conceitos positivos do produto anunciado. Conforme afirma Abellán,

a mensagem deve ser lembrada maior tempo possível pelo grupo alvo para o anúncio ser efetivo. Para isso, a maioria das técnicas de publicidade contam com slogans eficazes, que, juntamente com uma logo que chama a atenção, garante que a mensagem, a ideia e a marca serão lembrados.

13

(Abellán p. 249)

De acordo com Pamela Odih (2007, p. 8), uma das primeiras tentativas de

formular um exame científico sistemático de publicidade foi feito pelo Professor

Walter Dill Scott em sua obra The Psychology of Advertising (1908). Scott tratou da

abordagem razão-porquê que permeou a prática publicitária no início do século XX.

A abordagem razão-porquê tentou motivar o comportamento do consumidor através

da construção de um argumento fundamentado para justificar a compra de uma

mercadoria14. O penetrante apelo da publicidade razão-porquê, foi em grande parte

uma consequência dos imperativos de anunciantes nacionais para gerar demandas

para uma matriz crescente de novas mercadorias (LEISS et al., 1990 apud ODITH,

2007). A maior quantidade e variedade de produtos resultaram na necessidade de os

fabricantes distinguirem seus produtos através da diferenciação da marca. Neste

modelo de comercialização, os fabricantes procuravam não só atrair os

consumidores, mas também comunicar a marca da empresa. Em resposta, os

anúncios assumiram um estilo persuasivo.

No início do século XX, portanto, taxas desenfreadas de produção tinham

acelerado a circulação de bens aos consumidores. O acesso a mercados de massa

foi um imperativo de publicidade e não havia espaço para diferenças complexas na

13

No original: The message must be remembered as long as possible by the target group for the advertisement to be effective. In order to do so, most advertising techniques rely on effective slogans, which together with an eye-catching logo guarantee that the message, the idea and the brand name will be remembered. 14

No original: The reason-why approach attempted to motivate consumer behaviour by constructing a reasoned argument to justify the purchase of a commodity.

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localização de indivíduos em tempo e espaço. Anunciantes tinham que atrair a

atenção dos consumidores, despertar o desejo e transformá-los em instâncias de

compra. Além disso, eles tiveram que executar essas tarefas de forma a apelar para

um mercado de massa de centenas de milhares (POPE, 1983 apud ODIH, 2007, p.

9). A fim de alcançar esta tarefa os anunciantes precisavam familiarizar-se com o

comportamento dos consumidores. Mesmo na privacidade do lar, os consumidores

tinham de ser concebidos como operando de acordo com determinados fatores

dentro de um fluxo previsível e calculável de tempo. A abordagem razão-porquê

forneceu um meio de mapear a subjetividade do consumidor de acordo com a

precisão do relógio da máquina produtiva. O imediatismo tomou conta das pessoas e

gerou novos padrões de consumo. Além disso os ciclos de vida dos produtos estão

cada vez mais curtos, e nós, por consequência, tornamo-nos vítimas da escassez do

tempo e do excesso de tecnologia.

Segundo Odih (ibid, p.10–11) as teorias de Sigmund Freud sobre o ego (a

base da consciência) e o ID (a base do subconsciente) enfatizam a importância de

motivações simbólicas e inconscientes para a formação da subjetividade. A psique

humana envolve uma luta constante para equilibrar o desejo de gratificação imediata

com a necessidade de apreender as convenções sociais e aderir à ordem normativa.

Este modelo freudiano foi desenvolvido por cientistas comportamentais, de modo a

formular as ligações entre a psique humana e o comportamento observado. O

comportamento humano foi visto como um resultado de esforços inconscientes de

controlar impulsos interiores e instintos motivados por emoções, desejo sexual e

ansiedade. A publicidade prontamente adotou esse desenvolvimento no discurso

psicodinâmico e aplicou no cerne do comportamento do consumidor. Nesse sentido

os indivíduos se diferenciariam um do outro na base da natureza inconsciente da

personalidade e motivação. Munidos com um conjunto de aparelhos psicodinâmicos,

profissionais de propaganda tentaram penetrar o mundo interior de fantasia e

processos dinâmicos do consumidor.

No entanto, como afirma Miller e Rose,

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ao invés de manipular os consumidores, como foi o medo de oficiais do governo, anunciantes "mobilizaram" consumidores para explorar as conexões entre os bens de consumo e a estruturação da experiência no tempo.

15 (1997, apud ODIH, 2007, p. 11)

Assim, os especialistas em publicidade estavam cientes das críticas contra a

lavagem cerebral, por isso pregaram que as escolhas do consumidor estavam

ditando a atividade econômica (POPE, 1983, apud ODIH, 2007, p. 11). Alegaram

persuadir ao invés de obrigar os consumidores e proclamaram ser esta a “alternativa

democrática para o autoritarismo" (ibid.). Os consumidores eram vistos como um

complexo conjunto de traços impulsivos e irracionais, menos inclinados a

manipulação do que à persuasão. O uso de sequências de sonhos e apelos à

desejos suprimidos ou reprimidos eram características indicativas da psicodinâmica

estética de publicidade. Nesta era de prática publicitária, o consumidor é seduzido

para se concentrar menos em informações racionais sobre o produto e mais nos

sentimentos evocados por suas memórias lembradas (BRAUN et al, 2002, apud

ODIH, 2007, p.11)16. Desse modo, memórias autobiográficas podem ser

espontaneamente ativadas dentro do contexto de uma mensagem publicitária. Isso

indica como as tecnologias de publicidade são produtivas de novos tipos de relações

que os seres humanos podem ter com eles e com os outros por meio de bens.

Conforme Odih (2007, p. 12-13), durante a década de 1960, a prática

publicitária expandiu-se rapidamente com as condições multimídias da cultura de

consumo. Os meios eletrônicos trouxeram novos recursos de persuasão muito

superiores às imagens estáticas do texto impresso. Som e movimento muito

acrescentaram aos aspectos de exibição de publicidade. Incentivados pelo

crescimento da cultura visual, os anunciantes introduziram diálogos em suas

campanhas. A televisão permite que a publicidade de produtos seja tecida em

vinhetas da vida cotidiana fornecendo uma maneira acessível de encenar a

15

No original: Rather than manipulating consumers, as was the fear of government officials, advertisers ‘mobilized’ consumers to explore connections between commodities and the structuring of experience in time. 16

No original: the consumer is enticed to focus less on rational product information and more on the

feelings evoked by their recollected memories.

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demonstração de produtos, bem como permitir aos anunciantes recorrer a uma vasta

gama de sistemas de referência cultural (LEISS et al., 1990 apud ODIH, 2007, p.13-

14).

Com o aumento da competição proveniente da globalização vê-se que, por

vezes, até mesmo a própria tradição é preservada com o intuito de ser

comercializada. O resultado disto tem sido a desreferencialização, o

desenvolvimento desigual no interior de uma economia globalizada, a fragmentação

e a insegurança, afinal o capitalismo global acentua o novo, o transitório, o fugaz. O

capitalismo assume uma preocupação maior com a produção de signos e imagens

do que com a produção da mercadoria em si. E a imagem tem o poder de transmitir

diversos conceitos e idéias como qualidade, credibilidade, confiança,

respeitabilidade, status, inovação e prestígio.

No próximo capítulo, faremos, enfim, a análise dos dados, tomando como

orientação as discussões apresentadas nesse capítulo, bem como nos capítulos

anteriores, objetivando observar o funcionamento do processamento cognitivo e

examinar a influência de alguns aspectos culturais e ideológicos na cognição dos

sentidos produzidos. Realçaremos, ainda, a importância da narrativa para a

organização dos objetos na percepção cognitiva e na produção do sentido.

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Capítulo IV

PEQUENAS NARRATIVAS: COGNIÇÃO E CULTURA

ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS – UM ESTUDO DE CASO

Antes de passar para análise, gostaríamos de fazer algumas considerações

acerca da discussão exposta nessa seção no que se refere à relação entre cultura e

identidade. Parece importante no quadro que estamos trabalhando compreender que

os repertórios de ações previstas, observados por Warnier (2003), fazem parte das

pequenas narrativas que se constroem ao colocarem as imagens de objetos em um

determinado texto publicitário. Diante da percepção desses objetos, os sujeitos

atuam conforme percebem o mundo que lhes é apresentado pelas imagens que

constituem a prática discursiva do texto publicitário.

Nesse sentido, os produtos culturais que rodeiam os indivíduos partilham

essas pequenas estórias, uma vez que se constituem dos objetos que compõem a

sua percepção de mundo. Mas, como observa Turner, essa percepção ocorre na

medida em que a mente, por ser literária, (re)constitui uma estória que organiza e faz

sentido desses objetos para o sujeito que percebe. Para nós, a compreensão dos

objetos culturais se torna possível porque construímos as pequenas estórias que

fazem sentido dessas percepções, o que faz com que os valores agregados ao

consumir determinado produto e não outro resultam do modo como esses produtos

reproduzem ou contestam os valores que constituem os lugares de onde

construímos essas estórias.

4.1 As narrativas nos anúncios

O primeiro anúncio foi retirado da revista Veja, edição 2194, de 04 de

dezembro de 201017, cuja versão impressa é do dia 08/12. Neste anúncio,

percebemos a imagem de um conjunto de objetos dentro de um outro objeto maior.

17

Disponível em: http://www.veja.abril.com.br/acervodigital/

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Reconhecemos o liquidificador, como um container, e vários outros objetos dentro

desse espaço delimitado. A pequena estória que a mente constrói é aquela que

recupera a função do liquidificador, de acordo com a qual esse objeto tritura vários

outros, liquefaz, torna líquido os elementos que são colocados dentro dele.

Diante dessa pequena narrativa que faz com que o objeto que percebemos

faça sentido para nós podemos observar um liquidificador repleto de ipods, e o

enunciado: Agora o Sonora misturou tudo o que você sempre quis: muita música,

música grátis e música para ouvir onde quiser. Percebemos neste anúncio dois

espaços input. O primeiro é o espaço do funcionamento de um eletro portátil, o

liquidificador. No segundo temos o espaço da Internet, mais especificamente do

canal Sonora do site Terra. E, finalmente, temos um espaço de mescla que nos

possibilita a complexa interpretação do anúncio. No espaço de mescla nós temos

propriedades do espaço input 1 que, projetadas no espaço input 2, formam o espaço

de mescla. Se compreendemos o que é um liquidificador, o movimento que ele faz e

o resultado desse movimento, estamos cientes de uma pequena narrativa, a qual

Turner chama, como vimos anteriormente, de narrativa espacial. Assim, no anúncio,

somos levados a reconhecer o que somos capazes de fazer no site, misturando

diferentes sons em diferentes aparelhos, através de uma narrativa mais familiar.

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O espaço do liquidificador projeta para o espaço do website propriedades

como a de ter dentro vários ingredientes, fazer um movimento de mistura desses

ingredientes, o que pode (ou não) resultar em uma mistura que agrada mais. Uma

visita ao site comprova essas propriedades, pois vemos que o usuário pode

compartilhar músicas por e-mail e montar coleções de músicas favoritas. Além de

ouvir online, o usuário pode baixar todas as músicas que quiser para ouvir em um

aparelho portátil: ipods, ipads, celulares, etc. No plano sonora plus, o usuário tem

acesso ilimitado, vinte e quatro horas por dia. É possível também marcar as músicas

que ele não gosta, assim elas deixam de tocar. Isso nos lembra uma outra

propriedade do liquidificador: quando misturamos um ingrediente que não combina

com os outros, isto é, quando a mistura não fica saborosa, nós deixamos de colocá-

lo nas próximas vezes. Ou seja, a compreensão do que acontece com um

liquidificador é projetada no espaço virtual para que o usuário compreenda as

funções disponíveis no site.

É importante, no entanto, perceber que essa compreensão descrita

acima só se torna possível quando se considera as outras pequenas estórias que

envolvem os objetos dentro do liquidificador. É evidente que, se dentro do aparelho

estivessem frutas ou legumes, o resultado que teríamos seria outro, na medida em

que a narrativa que se constituiria estaria relacionada com esses objetos. Assim, a

estória do liquidificador complementa-se com as pequenas estórias dos outros

objetos eletrônicos que estão dentro do aparelho. A mente humana teve que

construir a estória da mistura para contar a estória da “sonora” e fazer sentido desse

novo objeto que está sendo apresentado pelo anúncio ao sujeito.

Na mesclagem, portanto, nós projetamos estrutura parcial das

narrativas de input e a compomos em uma narrativa mesclada. Somos guiados a

fazê-lo através de ligações correspondentes entre os espaços input. Por exemplo,

podemos dizer que nesta mesclagem os vários ingredientes no liquidificador são

correspondentes aos variados tipos de aparelhos para captar música que podem ser

encontradas no site que, por sua vez, correspondem aos ingredientes comumente

pertencentes à estória original do liquidificador. O domínio fonte, liquidificador, traz

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em seu bojo elementos que nesse domínio seriam alimentos a serem triturados e

liquefeitos, fazendo uma mistura que poderiam culminar em uma vitamina ou em

uma massa de bolo. Observem que aquilo que narramos acerca do domínio fonte é a

estória do liquidificador, bem como de seus ingredientes.

Esse domínio fonte, liquidificador com sua pequena estória, que faz recuperar

seus ingredientes, e o resultado dessa sua mistura, projeta um domínio alvo, um

outro liquidificador, com os ingredientes que pertencem a esse domínio alvo, os

aparelhos dentro do liquidificador. Esses pequenos aparelhos dentro do liquidificador

fazem sentido para nós, porque contam sua estória como aparelhos que nos

permitem ouvir música em qualquer lugar a qualquer hora. Dentro do liquidificador,

esses ingredientes, ao serem triturados, metaforicamente, transformam-se numa

mistura, resultado do processo de liquefação, no site “sonora”.

Apesar de parecer simples, a interpretação desses anúncios, portanto,

constitui uma operação complexa, porque somente entendemos o espaço mescla

pelo fato de que já existem gravados em nossa memória diferentes espaços mentais

que são ativados. Essa compreensão imediata e automática se torna possível,

porque somos capazes de construir as pequenas estórias dos objetos envolvidos no

texto publicitário. Ninguém olha essa imagem de um liquidificador cheio de aparelhos

e pensa, por exemplo, no resultado de uma vitamina ou de uma massa de bolo, mas

compreende o processo de mistura, compreende a mudança de estado de um objeto

em outro: as frutas, por exemplo, em vitamina, no caso da estória original; os

aparelhos, com sua estória de serem transmissores de música, em um site de

música. Essa mudança de estado caracteriza a narrativa. De fato, nesse anúncio,

vários espaços se conectam, não apenas dois espaços input. Várias pequenas

narrativas são ativadas no momento da compreensão, mas esse procedimento

cognitivo é automático.

Também podemos pensar, a partir dessa análise, que aspectos culturais são

privilegiados? Se pensarmos no papel dos elementos do anúncio: o liquificador, os

ipods, o site terra, basta considerar que somos indivíduos que vivem em uma

sociedade tecnológica. Conforme Odih (2007, p. 9-10), o surgimento de indústrias

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oligopolistas, produzindo bens diferenciados, aumentou a popularidade de um

modelo de publicidade baseada em identificar as características distintivas de um

produto e promover a sua superioridade: da mobilidade dos pequenos aparelhos

ipod, enquanto captadores e transmissores móveis de música, para a mobilidade da

internet.

A abordagem publicitária razão-porquê promoveu uma técnica operacional

para estimular o desejo pelo produto: assim, antes os avanços tecnológicos

permitiram a produção de equipamentos domésticos que economizavam o trabalho,

à medida que reduziam a quantidade de tempo necessário para completar uma

tarefa doméstica. Na contemporaneidade esses avanços tecnológicos rompem as

fronteiras domésticas, e ouvir músicas pelo rádio, foi trocado por ouvir o que quiser

quantas vezes quiser. Os toca-discos de vinil, os gravadores e suas fitas cassetes

deram lugar aos ipods, que possibilitam-nos ouvir músicas em qualquer lugar. A

internet aumentou essa mobilidade e novamente a narrativa se constitui em ouvir o

quiser, quando quiser, em qualquer lugar, sem o custo físico de carregar um

determinado objeto e com uma oferta ilimitável de produtos.

No início do século XX, o lar tornou-se um local privilegiado para o consumo

individual de bens produzidos em massa. Odith (2007) destaca que, para Andrejevic

(2003), cada família serviu como depósito para um conjunto particular de aparelhos

que deslocaram ou substituíram formas de consumo coletivo: o automóvel deslocou

o bonde, o rádio substituiu os concertos, o cinema foi substituído pela TV etc. A

demarcação física do espaço privado, promovido pela pequena unidade familiar,

possibilitou a tradução de produção em massa de aparelhos domésticos em

dispositivos que prometiam aumentar o uso do tempo de um indivíduo. É somente

nesse sentido que as correlações podem ser feitas entre economia de tempo e

comportamento do consumidor. No início do século XX, as campanhas publicitárias

se basearam fortemente nos temas de economia de trabalho de bens de consumo.

Esse modo particular de ser dos objetos-aparelhos domésticos, bem como seu

consumo privado, faz parte da pequena narrativa de cada objeto em particular que,

nós, enquanto sujeitos que percebem os objetos no mundo, devemos ser capazes de

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reconstruir para que esses objetos sejam organizados e façam sentido para nós.

Assim, a possibilidade de projeção ativada pela mesclagem conceitual só se torna

efetiva, porque somos capazes de recontar essas estórias e projetá-las em outras

estórias para constituir novas narrativas. Nesse sentido, a observação que temos

tomado como princípio organizador desse trabalho de que a mente é literária, de que

ela precisa da estórias, de contar estórias para fazer sentido dos objetos no mundo.

Assim oferecer um produto como se ele fosse o responsável por transformar a

vida do consumidor é contar essa narrativa dos objetos no mundo em que devem ser

percebidos. Isso tornou-se comum na era da indústria cultural, expressão utilizada

pela primeira vez em 1947, por Theodor W. Adorno e Max Horkheimer. A indústria

cultural cria os bens e, concomitantemente, cria nos indivíduos a necessidade

desses bens, de forma que esse produto seja oferecido como o único capaz de

trazer para o consumidor a felicidade plena. Essas crenças, que são consumidas

juntamente com os produtos, são também narrativas partilhadas na nossa sociedade.

São estórias que vamos construindo e adaptando a cada época. László confirma a

importância dessas narrativas ao citar Schank e Abelson:

Schank e Abelson não só afirmam que ‘nós e nossa audiência partilhamos nossas memórias pelas estórias que contamos’, mas também se apressam em acrescentar que as estórias interpretam o mundo, e nós podemos ver o mundo apenas como é permitido por nossas estórias.

18 (LÁSZLÓ, 2008, p.

8).

E ainda complementam que nossas estórias não são meramente nossas

próprias estórias mentais ou verbais. A experiência comum em uma cultura toma sua

forma em estórias partilhadas ou estruturas narrativas. Toda sociedade tem suas

próprias “estórias historicamente cristalizadas” e embora os indivíduos as vejam de

diferentes formas e criem diferentes estórias a partir das mesmas experiências, a

cultura informa a todos os membros quais são as estruturas narrativas possíveis

(LÁSZLÓ, 2008, p. 8).

18

No original: Schank and Abelson do not simply state that ‘we and our audience shape our memories by the stories we tell’, but they hasten to add that stories interpret the world, and we can see the world only as is allowed by our stories.

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Podemos observar, ainda, o enunciado na parte superior esquerda do

anúncio: A pirataria ganhou um concorrente de peso. Esse enunciado intriga porque

a ideia de concorrência parece igualar os concorrentes. Aqueles que concorrem a

alguma coisa estão, a princípio, igualmente aptos a realizarem uma mesma tarefa.

Essa parece ter sido a intencionalidade do enunciado: mostrar que o usuário teria

acesso a tantas músicas quanto se fosse pirateá-las. No entanto, a escolha desse

enunciado traz a palavra “pirataria” que, devido à pequena estória vinculada a essa

atividade, ativa personagens e ações e produz um sentido negativo; por outro lado,

devido a nossa experiência de mundo, sabemos que essa estória de piratas é

projetada sobre pessoas e ações que se tornaram possíveis com o acontecimento da

internet. Dessa forma, se a estória original acionava indivíduos fora da lei que

roubavam as cargas de navios em tempos remotos, hoje, há indivíduos cujas ações

se identificam com aquelas, na medida em que essas pessoas se apropriam de

cargas que pertencem a outros, a partir das tecnologias de reprodução, bem como

devido a mobilidades dos dados facilitados pela internet. As pequenas estórias

envolvendo a pirataria falam de: pessoas, cargas e transmissores de cargas, os

navios. Estes componentes são projetados para pessoas, cargas, que seriam os

dados, e transmissores, que são a internet e os aparelhos capazes de capturar esses

dados e gravá-los. Nesse sentido, se a pirataria como ação possibilitava a posse e a

armazenagem de dados sem o pagamento pelo devido serviço, por isso, o nome

pirataria, por retomar a estória que contamos acima O site “sonora” permite essa

mesma gratuidade dos dados, como também a mobilidade dos aparelhos usados

para a reprodução e armazenagem dos dados, para que se possa acessá-los no

lugar e momento que se quiser.

Extraído da edição 2195, de 15 de dezembro de 2010, o segundo anúncio

apresenta-nos três objetos: uma imagem que se assemelha a uma tira branca de

sandália, uma tesoura de costura e um pé de sandália havaiana, preto, na qual se lê

a marca da sandália.

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Cada um desses objetos nos conta uma estória. A tira sem marca, branca,

conta a estória de um objeto sem cor e, ao mesmo tempo, sem uma identidade. Não

sabemos pela imagem dessa tira qual o seu funcionamento, ou como ela deve ser

organizada para fazer sentido para o indivíduo que a percebe. Nesse sentido, o

objeto branco que se assemelha a uma tira de sandália conta uma estória de um

objeto sem valor, que o sujeito que percebe tem dificuldade de identificar. Sua forma

é o que nos conta a estória de que esse objeto se assemelha a uma tira de sandália.

A tesoura, por sua vez, possui uma estória conhecida, feita para cortar e, por a

percebermos como uma “tesoura de costura” atribuímos-lhe uma estória vinculada à

moda, à possibilidade de criação de um objeto de uso. Por fim, a sandália preta, com

tiras pretas, uma cor definida, uma forma definida, narra a estória de um objeto

completo e pronto para o uso. A sequência com que esses objetos aparecem

também pode nos parecer importante para uma possibilidade de construção de uma

estória necessária para a compreensão do texto publicitário sob análise.

Aliado a esses objetos, colocados em uma dada sentença, temos um

elemento verbal que chama a atenção nesse anúncio, mais especificamente, o

enunciado O peito do pé do Pedro é fashion. A ordem e o ritmo desse enunciado

provoca no observador desse texto a lembrança de um outro enunciado, uma

intertextualidade, portanto, com um texto bem conhecido na nossa cultura: O peito do

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pé do Pedro é preto. Esse enunciado conta-nos a estória de um trava-línguas, um

tipo de texto muito usado como brincadeira e até mesmo nos processos de

alfabetização de crianças. Muitas pessoas, portanto, brincam com esse tipo de texto

– os trava-línguas – desde muito cedo. Ao percebermos essas estórias dos

elementos que formam o texto publicitário que analisamos, podemos compreender a

estratégica que o enunciador utiliza para a construção de seu texto.

Isso só se torna possível sob uma compreensão de que a mente humana é

literária, no sentido de que ela constrói pequenas narrativas dos objetos do mundo

organizando-os para que façam sentido, mas também devido ao fato de que, como

observa Oatley (1992 apud LÁSZLÓ, p. 9) ao falar da literatura, quando lemos uma

estória, não só podemos compreender o tempo e lugar de ações, mas também

podemos imaginar a cena e o protagonista. Essa reconstrução do sentido, da estória

que os objetos contam parece ser aquilo que faz com que Turner assegure o caráter

literário da mente humana, sua capacidade de preencher lacunas, para fazer surgir

uma estória que assegure o sentido daquilo que percebemos no mundo.

Disso segue que, quando lemos que a esposa de um personagem morreu,

somos capazes de associar a esse fato descrito um estado de tristeza e um

comportamento específico que nos permite compreender que ele está de luto por ela,

como também somos apanhados pelo sentimento de luto. Segundo Lásló, Jerome

Bruner (1986) associa esse envolvimento do leitor com a capacidade de estabelecer

elos entre os estados mentais das personagens em evento narrado por meio de um

procedimento que ele chama de perspectivização (perspectivization). Para Vygotsky

(1971), segundo Lásló, essa habilidade de envolver o leitor é utilizado de forma mais

eficaz na literatura, pois a literatura captura emoções inconscientes, flutuantes e

indefinidas nas relações sociais e, portanto, pode ser considerada como a “técnica

social de lidar com as emoções ". Os autores, no entanto, observam que essa

capacidade da narrativa não se limita às narrativas literárias, ela é igualmente válida

para a vida real dos grupos sociais quando realizam atividades conjuntas e veem

suas próprias ações como experiência.

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Podemos dizer, portanto, que essa capacidade de envolver o destinatário se

aplica aos textos publicitários e, mais ainda, aplicam-se também às pequenas

estórias acerca dos objetos do mundo que se apresentam à nossa percepção.

Assim, o enunciado, que chamamos de uma pequena narrativa, prende-nos a

atenção e pode até despertar emoções para algum interlocutor, dependendo da

experiência vivenciada enquanto sujeito histórico. Sob essa perspectiva, podemos

considerar que várias pequenas estórias, além da estória desse enunciado, podem

ser contadas, como vimos, pelos objetos presentes no texto publicitário que estamos

considerando. Ao olhar para a imagem, reparamos em um tecido preto que foi

recortado para a confecção da tira (correia) da sandália. Esse processamento de

sentido só se torna possível, como vimos, devido à sequência com que os objetos

aparecem na imagem o que nos permite processar esse anúncio por retomar o

espaço mental da fabricação do chinelo.

Percebemos uma transposição que pode nos dizer alguma coisa a respeito

do contexto cultural. É como se tivéssemos dois momentos: o antes e o depois da

marca Havaianas. E podemos subentender que antes do corte o peito do pé do

Pedro era preto, conforme a estória do trava-línguas nos conta, mas depois do corte

e da confecção, com a adição da marca Havaianas, o peito do pé do Pedro ficou

fashion. Desse modo, a peça publicitária institui uma nova estória, de acordo com a

qual se percebe a transposição de uma avaliação positiva para a marca, havaianas,

para um procedimento de fabricação que conta a estória da transformação do peito

do pé do Pedro era preto para peito do pé de Pedro ficou fashion. A palavra “fashion”

precedida do verbo “ficar” no passado, manifestando uma ação concluída, afirma a

transformação promovida e a nova narrativa instituída.

Nesse trava-língua que se transforma nessa nova narrativa, há a estória do

preconceito caracterizada por uma desqualificação da cor preta, quando vinculada ao

pé de Pedro, mas ao mesmo tempo a valorização da cor quando vinculada à tira e à

sandália havaianas. Essas duas estórias que se constroem podem nos remeter a

fatores socioculturais, na medida em que o mundo da moda valoriza a cor preta.

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Desse modo, pode-se dizer que a cor preta do peito do pé de Pedro ficou fashion

com a adição da marca, do nome, com a definição de uma identidade.

Conforme defende Odih (2007, p.183), nota-se que os anunciantes chegam à

vida cultural do consumidor pela expropriação dos significados simbólicos dos

eventos e reformando esses significados culturais associando-os aos produtos.

Como vimos, essa expropriação opera a partir das pequenas narrativas que são

apreendidas pelo sujeito quando observa os objetos percebidos no mundo, no caso

das práticas discursivas que estamos analisando, quando os sujeitos observam as

imagens que representam os objetos do mundo, bem como o modo como essas

imagens/objetos estão organizadas no texto que está sob leitura.

O anúncio, a seguir, faz parte da edição 2196, de 22 de dezembro de 2010.

Esse anúncio apresenta duas imagens que representam objetos no mundo do

observador: um cartão de crédito e um desenho de um avião tripulado por um

indivíduo. Há ainda a presença da logo do companhia GOL e do programa Smiles,

bem como de textos e gráficos.

Podemos observar, pela imagem, a mesclagem de dois espaços input: de

um lado, um espaço, o domínio fonte, que se refere ao cartão de crédito, cuja

pequena narrativa refere-se ao espaço das compras e do consumo: usamos o cartão

de crédito para comprar e consumir produtos. A imagem invertida do cartão de

crédito apresenta-nos a projeção de duas estórias que se cruzam: a tarja preta é

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pista que autoriza a compra e o consumo, quando passamos o cartão na máquina.

Tracejada com pontos em branco, essa imagem representa um novo objeto e

constrói uma nova estória, a pista de partida, de onde sai um avião pilotado. A

imagem do cartão de crédito, portanto, dessa perspectiva, com a tarja magnética

tracejada conta uma outra estória como pista de pouso e decolagem, narrando a

estória das viagens, o que institui um novo espaço de input, aquele das viagens

aéreas. Essa estória narrada a partir da tarja tracejada institui os personagens que

fazem parte da narrativa: o avião e o piloto. Nesse espaço de mescla, gerado a partir

das estórias contadas, os objetos se juntam e se organizam para gerar o sentido

desejado. Essa mesclagem é tão “poderosa” que, dependendo do contexto cultural

em que vive o leitor/interlocutor, são desnecessários os enunciados que

acompanham as imagens para a compreensão do sentido, da estória que se conta.

Como nos lembra Turner (2008, p. 16-18), podemos mesclar passado,

presente e futuro na nossa mente. A mesclagem do presente com o futuro também

pode ser usada para controlar o “eu”, suas ações, suas estórias no presente a partir

do momento em que se mescla a cognição no presente com um “eu” projetado em

um certo momento desejado no futuro. Isso pode ativar sentimentos que gostaríamos

de ter na situação presente, mas que são difíceis de serem alcançados quando

estamos imersos no presente. Se, dessa forma, podemos sonhar com o futuro e,

consequentemente, sentirmo-nos diferentes no presente, ao processarmos os

anúncios, nossa mente se encarrega do trabalho de fazer com que nos imaginemos

em uma realidade futura na qual já tenhamos adquirido aquele determinado produto.

O que nos parece interessante considerar aqui é que estamos falando de estórias

narradas a partir do momento em que o anúncio interpela os indivíduos e os colocam

representados na imagem que narram a estória da viagem. No anúncio acima,

fazemos instantaneamente essa mesclagem ao olharmos para a imagem, pois

podemos imaginar a nós mesmos dentro de um avião e fazendo uma viagem dos

sonhos a partir das estórias que os objetos presentes no anúncio acionam.

Esse anúncio interpela todos os interlocutores a partir da estória do cartão de

crédito, enquanto objeto de destaque, ao narrar a estória de consumo dos indivíduos

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por meio do enunciado em destaque “Fez compras de fim de ano?”. Uma outra

narrativa que podemos perceber nesse anúncio, e que interpela o interlocutor, está

relacionada com a narrativa sobre a infância, pois observamos que a aeronave em

questão é, na verdade, um brinquedo, não é uma foto de aeronave verdadeira. Isso

parece remeter ao contexto da brincadeira, da diversão, e da alegria. Estas,

geralmente mais presentes na infância, são trazidas para o contexto da publicidade

para reforçar o que o consumidor/sujeito é capaz de ter ao ser persuadido pelo

anúncio. Esse poder de persuasão, no entanto, só é eficaz sob a organização e a

produção de sentidos gerados a partir das pequenas narrativas dos objetos do

mundo, representados na peça publicitária.

O quarto anúncio, mostrado a seguir, publicado na edição 2197, de 29 de

dezembro de 2010 apresenta vários objetos, mas coloca em destaque uma mulher

sob um temporal carregando uma sacola plástica e o enunciado em caixa alta “THE

END”. Há ainda imagens de um lampião, de fitas de vídeo e enunciados que estão

direcionando a leitura do texto publicitário. Cada um desses objetos e seu modo de

organização permite-nos construir mentalmente suas estórias. O lampião, por

exemplo, narra a estória de que a mulher se encontra na rua, a posição do corpo da

personagem narra sua caminhada e a sacola em suas mãos indica que ela leva

algum objeto. A expressão em inglês “the end”, em caixa alta, traz em nossa

memória os finais de filmes americanos, e as fitas de vídeo nos fazem lembrar a

tarefa de devolver os filmes alugados, uma tarefa tornada mais difícil pela presença

da escuridão, que remete para a noite, e do temporal, narrado pelos pontos em

branco caindo em diagonal. A expressão “the end” narra o fim dessa estória que se

conta a partir da apresentação dos diversos objetos percebidos no texto em exame.

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Coerente com o que Turner (1996) diz sobre a presença constante das

estórias na nossa vida, MacIntyre (1981 apud LÁSZLÓ, 2008) advoga que, para

identificar e compreender com sucesso o que alguém está fazendo, nós sempre

situamos um episódio específico no contexto de um conjunto de narrativas:

narrativas que falam tanto dos indivíduos, quanto do ambiente no qual eles agem.

Isso deixa claro que as ações dos outros são inteligíveis porque a ação em si tem um

caráter fundamentalmente histórico. É porque todos nós vivemos de narrativas, e

porque entendemos nossas próprias vidas em termos dessas estórias, que essa

forma de organizar o mundo dos objetos e torná-los sensíveis é apropriada para a

compreensão das ações dos outros. As estórias são vividas antes de serem

contadas – exceto no caso da ficção19 (ibid, p. 37). A partir dessas ideias podemos

compreender o modo como o locutor procurou atingir seu objetivo, usando uma

narrativa bem conhecida por muitos: aquela que conta a estória de um indivíduo que

precisa sair de casa por algum motivo debaixo de um temporal. No caso da

publicidade que estamos analisando, a mulher sai para devolver os filmes alugados.

E o locutor usa nessa situação uma mescla com o espaço que nos remete mais uma

vez aos filmes, o enunciado The end. Comum nos finais de filme esse enunciado,

mesclado com a situação mostrada pela imagem, produz o sentido que o locutor

19

No original: Stories are lived before they are told – except in the case of fiction.

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deseja: o fim da dificuldade em sair de casa, enfrentar mau tempo (e, muitas vezes,

outros problemas) para entregar os filmes. A imagem nos mostra a estória de uma

mulher angustiada, esse estado de espírito é narrado por sua expressão facial, que

caminha para entregar os objetos que estão dentro da sacola. Nosso conhecimento

cultural reconhece esse objeto em suas mãos: a sacola com que se conduzia os

filmes alugados, aliados com a sombra das fitas dentro da sacola. Além disso, como

já observamos, um ambiente escuro contribui para o cenário de dificuldade e

angústia.

Como afirmamos anteriormente, de acordo com Turner (2008), através da

nossa cognição narrativa, a capacidade da nossa mente de mesclar passado,

presente e futuro em um só “eu”, nós podemos imaginar um “eu” futuro, hipotético, e

projetar para ele nosso aparelho mental presente. Imaginamos esse futuro, mas

ativando nossa emoção do aqui e agora. Desse modo, enquanto sujeito que observa

esse anúncio, nós fazemos essas mesclagens e, ao interpretar esse anúncio, nós

nos projetamos para um futuro supostamente melhor, no qual não precisaremos sair

do conforto de casa, sob um temporal, à noite, para entregar um filme.

Mas valores culturais, representados nas estórias narradas pelos objetos,

muitas vezes passam despercebidos. Onde, quando e por quem foi definido que sair

de casa é ruim? Ou que andar debaixo de chuva, no escuro, para entregar um filme

é desagradável? Essas crenças foram-nos transferidas culturalmente a partir das

experiências de nosso corpo sob essas condições. Assim, o desconforto e a

sensação desagradável de sair de casa sob chuva constitui-se como um conceito

produzido a partir da experiência que sentimos ao ter o corpo e as roupas molhadas,

o frio e a dificuldade de andar, e os pés molhados. Além disso, o caminhar a noite

deriva desse mesmo desconforto diante da dificuldade de enxergar os obstáculos e

diante do medo de não se ver onde se pisa, nem onde se anda. Elas parecem ativar

na nossa mente uma metáfora, segundo a teoria de Lakoff e Johnson (2002), comum

no nosso meio cultural: ESCURO É RUIM. São essas experiências corpóreas que

produzem esse desconforto e constroem esse conceito de que é ruim sair de casa à

noite e sob chuva. Pode-se considerar, além disso, o sentido de segurança ausente

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quando se caminha sem enxergar e quando se está em um lugar aberto. A

experiência de um corpo que está sujeito ao tempo e aos perigos define o conceito

de que ficar em casa é seguro e ficar em segurança é bom, pois nosso corpo não

corre risco de sofrer danos: o instinto de proteção dos corpos constrói essa narrativa

da segurança.

Desse modo, não ter que sair à noite, sob chuva, submetendo o corpo aos

perigos, às dificuldades, conta a estória do conforto de ficar em casa e, com o

acesso à internet, poder contar com os serviços online, como os filmes, músicas e

outros. O anúncio reforça, pois, esse estilo de vida moderno. Observemos que a

narrativa que se conta desse serviço online, enquanto objeto da contemporaneidade,

situa os corpos em uma dada situação em que os corpos se sentem inseguros e

estão sujeitos aos perigos, seja do frio que a chuva impõe aos corpos vestidos com

roupas molhadas e as dificuldades de andar com a roupa grudada no corpo, seja o

perigo diante da impossibilidade de enxergar o caminho que percorre. Portanto, uma

pequena narrativa de grande importância é aquela contada pelo evento “noite de

chuva”, esse evento e sua narrativa fazem o sentido do texto publicitário que

estamos considerando. Outros objetos e eventos teriam de ser organizados e outras

estórias deveriam ser contadas caso o evento organizador da narrativa fosse a ida a

uma locadora para entregar as fitas de vídeo por uma pessoa em um dia de sol. Há

ainda que se considerar o lugar da personagem, como uma figura feminina e não

masculina, há nessa narrativa de gênero um outro dizer ideológico cultural do modo

de organização dos objetos nesse texto.

Por fim, gostaríamos de atentar para um último anúncio, abaixo, publicado na

edição 2193 do dia primeiro de dezembro de 2010, que apresenta a imagem de uma

mulher segurando um celular. Podemos atentar, nesse anúncio, para o foco dado

aos objetos a serem percebidos: uma mulher, um aparelho de celular segurado entre

dois dedos, uma lágrima que escorre dos olhos.

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Se fatiarmos a imagem, podemos observar a primeira estória que se narra

entre a mulher, seus olhos e a lágrima que escorre. Nesse caso, conta-se a estória

de uma emoção/comoção, percebida de imediato pelo processo cognitivo que

associa os três objetos percebidos: o rosto da mulher, os olhos e a lágrima. Ao

relacionar os olhos e a lágrima com o rosto de uma mulher, essa pequena estória

narrada por esses objetos institue-se a partir de um determinado universo cultural, de

acordo com o qual a emoção/comoção está vinculada à mulher e não ao homem.

Essa lágrima que corre narra o choro, um comportamento culturalmente vedado aos

homens.

No objeto segurado entre dedos, reconhecemos um celular, dado nosso

conhecimento de mundo, e a pequena estória desses objetos: a lágrima, os olhos, a

mulher que olha um celular e chora. Apreendemos então uma outra estória: aquela

de que o motivo da lágrima vem daquilo que o celular, que a mulher atentamente

olha, transmite. Para chegar a essa conclusão, é preciso computar a pequena estória

de que os celulares são objetos que transmitem algo, que esse algo que eles

transmitem são informações a que denominamos mensagens. Sem essa pequena

estória, o texto que consideramos não produziria esse sentido para nós.

Observemos, por exemplo, que não imaginamos que a mulher chore pelo objeto que

segura, tendo em vista que seus olhos narram uma estória diferente, na medida em

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que atentamente olha para o objeto, e porque as estórias que o objeto celular contam

não são de choro, mas de mensagens que eles transmitem.

Colocadas no espaço do texto publicitário, compreendemos que esse objeto

“texto publicitário” também narra uma estória que permite aos sujeitos fazerem

sentido situando dois indivíduos em interação: o enunciador e o enunciatário do texto

publicitário. Desse modo, o enunciador procura orientar o sentido da estória

percebida, projetando duas pequenas narrativas possíveis: ambas vinculadas a um

domínio cultural e ideológico, reproduzindo e ao mesmo tempo contestando o lugar

da mulher na sociedade contemporânea. A primeira narrativa projetada resulta da

pequena estória contada pelo celular que observa entre os dedos: o celular transmite

uma mensagem que leva a mulher a chorar, uma mensagem de “fim de namoro?”. A

marca da interrogação narra a estória da dúvida daquela que observa e imagina os

motivos que leva a mulher a se emocionar e chorar, mas também essa marca

interrogativa no enunciado verbal confirma a possibilidade da estória que se conta a

partir da compreensão dos objetos do mundo presentes nesse texto, quais sejam, a

mulher, os olhos e a lágrima, e a mensagem do celular. Noutros termos, não faria

sentido a interrogação “Fim de namoro?” se essa pequena narrativa não fosse

possível diante da nossa percepção desses objetos colocados em jogo. Contudo,

essa narrativa só se torna possível, no nosso entendimento, porque a estória narrada

a partir dos objetos considerados – olhos, lágrimas, mulher, celular que transmite –

só se constitui para fazer sentido a partir de uma determinada organização cultural e

ideológica de acordo com a qual esses objetos contam a estória de um sofrimento de

amor, de fim de um relacionamento amoroso. Ou seja, essa narrativa só é possível

como uma hipótese percebida cultural e ideologicamente a partir do lugar que se

atribui à mulher, a estória que se constitui na sua relação com a emoção, uma

pequena narrativa que conta a estória entre a mulher e o sentimento.

A segunda hipótese surge a partir da projeção de uma nova estória dos

mesmos objetos expressa pelo enunciado exclamativo indireto “Nada, final de novela

mesmo.”. Se, de um lado, essa narrativa contesta a estória ideológica cultural do

universo feminino, a partir desse enunciado, de outro, reproduz esse valor cultural

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narrado pela pequena estória dos objetos “mulher”, “emoção”, “choro/lágrima”, mas

acrescenta algo no nível da contemporaneidade dos novos objetos que se pretende

vender com a publicidade: a mobilidade de se assistir a novela de qualquer lugar.

Essa segunda estória, confirmada pela voz do enunciador/narrador, cumpre a função

de localizar a mulher no mundo moderno, mas também apresenta um novo objeto: o

celular com televisão digital. Esse novo objeto conta uma nova estória, resultado do

momento histórico em que se vive: o celular não envia mais apenas mensagens, mas

também possibilita assistir à televisão digital e, como sinal dos novos tempos, acena

com a mobilidade. Essa nova estória narra o objeto celular na modernidade

tecnológica. Os olhos, que veem uma mulher que segura um celular não ao lado da

orelha, captam a pequena e nova estória de que os celulares não são só para ouvir,

não é mais apenas um telefone, mas também é um objeto que permite assistir à

novela, cumprindo a função de uma televisão móvel e digital.

Desse modo, os enunciados em destaque Final do namoro? Nada, final da

novela mesmo contam a estória desse novo objeto, um celular com uma nova

função, com uma nova estória para narrar. Embora esse celular tenha várias

funções, como podemos ler na parte inferior do anúncio, aquela que é realçada é a

função Acesso grátis à TV digital, já que o enunciado nos informa que a mulher está

assistindo ao final de uma novela. Percebem-se dois espaços input: no primeiro

espaço mental, como comentamos, retomamos uma narrativa sobre o que é o final

de um namoro; no segundo, temos o espaço da narrativa sobre o que é um final de

novela, e, finalmente, temos um espaço de mescla que contribui para a interpretação

do anúncio. No espaço de mescla, nós temos propriedades do espaço input 1 e do

espaço input 2, que formam o espaço de mescla. Os elementos dos dois espaços

input, trazidos para a mescla, são a emoção e o choro, geralmente presentes em

situações de fim de namoro e de fim de novela.

Turner (1996, p. 61) fala sobre uma das vantagens cognitivas do espaço

mescla, que é sua liberdade de negociar os detalhes dos dois espaços input. O

espaço mescla obedece a sua própria lógica, ele é livre de diversas limitações que

acontecem nos espaços input, pois não são todas as propriedades dos inputs que

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devem ser levadas para a mescla. Assim, na narrativa sobre o final do namoro, há

outros aspectos que não entraram na mescla, já que a emoção do fim do namoro

nem sempre é de tristeza. Pode ser que os envolvidos terminem o namoro com uma

sensação de alívio, ou que apenas um deles esteja sofrendo. Há também aspectos

do final da novela que não foram levados em conta. Então, nossa mente é capaz de

processar quais propriedades devem ser levadas para esse espaço de mescla, tanto

aquelas do final da novela, como aquelas que contornam o final do namoro e

provocam sofrimento e choro.

Processamos os anúncios aparentemente sem nenhum esforço.

Aparentemente, porque, várias conexões são realizados para que possamos

compreendê-los, tendo em vista que as estórias narradas fazem grande parte desse

trabalho de processamento. László (2008) observa que, sob uma visão cognitivista,

Schank e Abelson (1995) afirmam que as estórias são partilhadas socialmente, mas

também se preocupam com o modo como as narrativas mudam em uma dada

sociedade ou cultura e qual é a relação que se estabelece entre narrativa e

realidade. Desse modo, podemos perceber que a mulher descrita na publicidade

parece enquadrar-se no perfil de mulher moderna, considerando o ambiente mais

formal em que aparece, a roupa mais social que veste e o rosto maquiado, como se

estivesse no trabalho: uma mulher atual, em consonância com seu tempo, que traz

em suas mãos um celular de alta tecnologia, com capacidade para dois chips, com

acesso à TV digital, entre outras propriedades. Toda essa descrição faz parte de

pequenas narrativas presentes na nossa cultura e constitui uma narrativa dominante

sobre o que é ser uma mulher atualizada, moderna, cujas estórias dos objetos

presentes e o seu modo de organização neste anúncio vem nos contar.

Essas narrativas, além disso, vem nos contar que ao comprar esse produto,

compramos também estilo de vida que eles narram. Muitas vezes, a forma de viver

vendida com os produtos não condiz com aquilo que desejamos para nossa vida ou

com aquilo que acreditamos ser correto ou ideal, no entanto essa forma de vida nos

é oferecida, talvez diversas vezes por diferentes anúncios, até que aquilo pareça a

única opção, a única verdade. Antes mesmo de nos dizer o que é ser uma mulher

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moderna, essa imagem nos mostra o que é ser mulher, pois percebemos nela a

retomada, como vimos, de uma outra narrativa: aquela da mulher como o ser frágil,

emotivo, que chora tanto com fim de namoro, quanto com o fim da novela. Como

vimos, o enunciado de maior destaque e a imagem nos remetem para essa narrativa

tradicional da mulher, o que implica reconhecer que, apesar de adequadamente

vestida e equipada como uma mulher “moderna”, temos o reforço de crenças

presentes nessa sociedade, a reprodução do estereótipo da mulher tradicional.

De acordo com a ACD, o conhecimento se faz e se transmite por meio das

práticas discursivas e sob uma concepção da linguagem como prática social. Desse

modo, podemos perceber a partir desse anúncio que as narrativas ativadas na mente

para nossa compreensão remetem para esse lugar marcado para a mulher nessa

sociedade. Nesse sentido, trata-se de observar que as estórias compõem-se de um

conjunto de crenças acerca dos objetos colocados em cena e que devem ser

construídas para que os indivíduos possam processar os sentidos que se produzem

como, por exemplo, esse que institui um determinado saber acerca da mulher. Como

László observa, os indivíduos dizem aquilo que os outros são capazes de entender,

aquilo que já faz parte do saber do outro, o que implica que há a possibilidade de

que, em algumas culturas, esse anúncio não produziria as narrativas presentes no

contexto cultural brasileiro, por exemplo. Em algumas culturas, distintas da situação

brasileira, o evento do final do namoro e, principalmente, a estória contada pelo

enunciado Nada, final da novela mesmo podem não fazer sentido, tendo em vista

que essa realidade do Brasil, um grande produtor de novelas, não é representativa

em muitos outros países.

Nesse sentido, a apreensão do real pela linguagem não pode desconsiderar

que o discurso, por sua vez, constrói esse real a ser apreendido: pode-se dizer,

desse modo, que o real que se busca construir nesse anúncio, institui uma mulher

que, narrada na pequena estória como frágil, emotiva, que cuida da aparência e que

usa a tecnologia para assistir às novelas, serve de modelo. A partir do foco no

produto que está sendo oferecido e nas representações presentes no texto

publicitário, vemos que todos esses objetos organizados juntos conceituam um

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modelo de mulher para o interlocutor, seu lugar de pertencimento social e,

consequentemente, seus modos de agir. Por outro lado, se apreendemos e

conceituamos o mundo através de nossas experiências, só podemos entender o que

é o “final de namoro” e o “final de novela” se passamos por essa experiência ou

tendo presenciado isso.

Nessa perspectiva, os conceitos descrevem o real, mas, por outro lado, como

proposto pela ACD, o real também é construído toda vez que nós o conceituamos.

Logo podemos dizer que essa realidade mostrada no anúncio é só uma das

realidades possíveis, uma construção conceitual dos fatos narrados a partir dos

objetos organizados no discurso publicitário. Há diferentes formas de “final de

namoro” que podem ser distintas daquela que foi narrada no texto analisado, como

também há mulheres distintas daquela narrada para a apreensão do sentido da

publicidade. O que não se pode perder de vista é o fato de que essas diferentes

formas são silenciadas diante das escolhas do enunciador que, ao selecionar os

objetos para contar suas pequenas narrativas no texto publicitário, construiu uma

realidade a ser percebida.

Esse anúncio interpela, principalmente, a mulher como consumidora. E essa

tendência cresceu com o tempo, visto que, conforme Odih (2007), com poucas

exceções, as práticas tradicionais de vendas foram profundamente enraizadas nas

percepções sobre o homem – chefe de família – como o seu mercado-alvo.

Consequentemente as mulheres foram negligenciadas como consumidoras diretas.

Contudo, aparentemente encorajadas pelo crescente reconhecimento de padrões da

atividade econômica feminina, a indústria, no início dos anos noventa, tornou-se

altamente sensível a esse mercado ‘inexplorado’ (grifo da autora). Assim, numerosas

empresas focaram atenção para o potencial do mercado especificamente para as

mulheres.

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5. Considerações finais

Ao analisarmos como se deu o processamento cognitivo nos anúncios, vimos

que os sentidos não são objetos mentais limitados a lugares conceituais, mas, ao

contrário, são complexas operações de projeção, mesclagem e integração entre

espaços. Cada produto conta sua estória e estórias culturais , estórias dos sujeitos.

Assim, eu organizo meu conhecimento do mundo através das narrativas. Brockmeier

e Harré (2003) observam que autores como Bakhtin, entre outros, já dizia que cada

palavra é polifônica, e seu significado é determinado por incontáveis contextos em

que foi previamente utilizada. Bakhtin chamou isso de princípio dialógico do discurso:

cada palavra, enunciado ou narrativa carrega consigo os traços de todos os sujeitos,

possíveis e reais, que já empregaram tal palavra, enunciado ou narrativa.

Ao analisarmos os anúncios pudemos perceber a escolha por algumas

estórias em detrimento de outras. Porque, conforme observamos, cada objeto e cada

evento pode envolver diferentes narrativas. Ao processarmos cognitivamente esses

anúncios estamos automaticamente processando e reconhecendo o tempo todo

essas estórias envolvidas. Mas, como vimos, não é porque processamos

automaticamente que esse processo seja simples, mas, ao contrário, é um

complexo trabalho que nossa mente exerce.

E ao compreendermos esses anúncios, com as estórias que eles contam,

escolhemos, ou não, determinados produtos. No entanto, quando somos vencidos

pelo apelo da campanha publicitária, e adquirimos um produto específico, não

estamos sempre em busca das características práticas do mesmo, daquilo que ele

fará para facilitar nossa vida. Muitas vezes estamos em busca do status que o

mesmo proporciona, dos valores a ele agregados, pois queremos também ser

reconhecidos como parte de uma determinada cultura, reconhecidos pelos membros

de determinado contexto cultural. Por isso aceitamos, entendemos e passamos a

difundir também determinadas narrativas que guiarão as ações de outros indivíduos.

Nesse contexto, muitas vezes confundimos o Ter com o Ser. Em um processo de

identificação, buscamos mostrar o que somos através do que possuímos, do que

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usamos, do que consumimos. Esse processo de identificação se dá porque conforme

Fonte e Manita (2003, apud FONTE, 2006) nossa ação não é vazia de significado,

logo, perante determinado acontecimento ou experiência pessoal e social, somos

levados a reinterpretar a realidade, na busca de uma compreensão subjetiva dessa

experiência, mas numa estreita ligação com os significados sociais e culturais

dominantes.

Pudemos notar, portanto, que as diferentes narrativas produzem sentidos que

vêm carregados de crenças correntes no contexto cultural e que colaboram para a

manutenção de determinados valores sociais. Ao interpelar o interlocutor, o locutor

espera deles a assimilação dessas crenças e uma atuação sob o efeito dessas

interpelações, nesse caso a compra do produto. E, ao comprá-lo, o consumidor

estará comprando também hábitos e comportamentos de determinada cultura, pois

cada produto tem uma estória, ou melhor, diversas estórias. Assim a forma como

enxergamos o mundo é influenciada pela forma como determinados grupos nos

motivam a enxergá-lo.

Como já nascemos em um mundo que está em movimento, diferentes

narrativas culturais vão compondo nossa própria narrativa. Diferentes

representações do mundo são mostradas para nós em determinados contextos, mas,

para isso, outras representações são deixadas de lado. Através do exame das

mesclagens conceituais que compõem as narrativas foi possível observar as

condições de produção dos discursos e o modo como as questões ideológicas estão

presentes na linguagem.

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Referências bibliográficas:

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Anexos

Primeiro anúncio: Revista Veja, edição 2194, de 04 de dezembro de 2010

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Segundo anúncio: Revista Veja, edição 2195, de 15 de dezembro de 2010

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Terceiro anúncio: Revista Veja, edição 2196, de 22 de dezembro de 2010.

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Quarto anúncio: Revista Veja, edição 2197, de 29 de dezembro de 2010

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Quinto anúncio: Revista Veja, edição 2193 do dia primeiro de dezembro de 2010.

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