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UNIVERSIDADE DE BRASLIA
INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
MARIANA LEME BELCHIOR
A NOVA INTERPRETAO PLATNICA: AS CONTRIBUIES DE
SCHLEIERMACHER ESCOLA DE TBINGEN-MILO
Braslia DF
2011
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2
MARIANA LEME BELCHIOR
A NOVA INTERPRETAO PLATNICA: AS CONTRIBUIES DE
SCHLEIERMACHER ESCOLA DE TBINGEN-MILO
Dissertao apresentada ao Programa de
Ps-Graduao em Filosofia do
Departamento de Filosofia do Instituto de
Cincias Humanas da Universidade de
Braslia, como requisito para obteno do
ttulo de Mestrado em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Gabriele Cornelli
Braslia DF
2011
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3
Belchior, Mariana L.
A nova interpretao platnica: as contribuies de Schleiermacher escola de
Tbingen-Milo/ Mariana Leme Belchior. 2011.
112 f.
Orientador: Prof. Dr. Gabriele Cornelli
Dissertao (Mestrado) Programa de Ps-Graduao em Filosofia do Departamento
de Filosofia. rea de Concentrao: filosofia Antiga. Instituto de Cincias Humanas da
Universidade de Braslia.
1. Histria da Filosofia Antiga; 2. Plato; 3. Hermenutica; 4. Escola de Tbingen-
Milo.
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MARIANA LEME BELCHIOR
A NOVA INTERPRETAO PLATNICA: AS CONTRIBUIES DE
SCHLEIERMACHER ESCOLA DE TBINGEN-MILO
Banca Examinadora
........................................................................................ Prof. Dr. Gabriele Cornelli (UnB)
........................................................................................ Prof. Dr. Dennys Garcia Xavier (UFU)
........................................................................................ Profa. Dra. Loraine Oliveira (UnB)
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Aos meus maiores incentivadores,
minha me e meu amor.
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AGRADECIMENTOS
Ao meu estimado orientador Prof. Dr. Gabriele Cornelli, pela dedicao, pacincia e
orientao constante destes (quase) onze anos de amizade.
compreenso, o companheirismo e a ternura diria de meu grande amor, Richard.
As mulheres de minha vida, minha me e irms (Fernanda e Clara), que sempre me
deram todo o amor e apoio necessrio para a vida.
Ao grande amigo Jonatas Rafael, pela dedicao, apoio e amizade nesta etapa final.
As queridas amigas Talita Flor e Ana Beth, pelas indicaes precisas sobre forma e
contedo e, especialmente, pela amizade verdadeira.
Ao atencioso Gerson Bra por me apresentar as leituras de Schleiermacher.
Ao grupo Archai, pelas oportunidades acadmicas e pessoais.
Aos professores Maurizio Migliori, que gentilmente me enviou muitos textos sobre a
pesquisa, e Dennys Xavier, pelas conversas informais e indicaes precisas.
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Lembro que Bernard Shaw disse que Plato foi o
dramaturgo que inventou Scrates [...]
Mas podemos dizer que Plato tinha saudades de
Scrates, Depois da morte de Scrates ele ter dito a si
mesmo: Ora, o que Scrates diria sobre essa minha
dvida especfica?. E ento, a fim de ouvir mais uma
vez a voz do mestre a quem amava, escreveu os
dilogos. Em alguns desses dilogos, Scrates
representa a verdade. Em outros, Plato dramatizou os
seus vrios humores. E alguns no chegam a concluso
alguma, porque Plato estava pensando medida que
escrevia; ele no sabia qual seria a ltima pgina
quando escreveu a primeira.
Jorge Luis Borges.
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RESUMO
A historiografia platnica, a partir dos anos 50, se concentrou numa questo de ampla
relevncia para a compreenso da filosofia de Plato, que diz respeito ao fato de que h certa
discrepncia entre a imagem que Plato oferece em sua filosofia nos dilogos e aquela que
seus discpulos nos transmitiram. Este problema historiogrfico j havia sido abordado por
Schleiermacher no sculo XIX ao elaborar uma teoria do dilogo como uma forma de
representao, que vincula a filosofia de Plato a uma comunicao direta e indireta, capaz de
influenciar diversos autores ao longo dos sculos XIX e XX. Este debate recebeu uma
instigante soluo pela assim chamada escola de Tbingen-Milo, representada por
comentadores como Gaiser, Krmer e Szlzk que indicam uma possvel soluo a esta
questo hermenutica. Recentemente esta proposta da escola de Tbingen-Milo foi
encabeada por Reale, que prope uma complexa teoria que tende a demonstrar que nas
doutrinas orais de Plato que se deve procurar uma filosofia mais original. Assim, a
dissertao buscar investigar a relao entre a hermenutica schleiermacheriana e a
compreenso histrica da figura de Plato, a partir da influncia do mtodo de Schleiermacher
ao novo paradigma hermenutico proposto pela Escola de Tbingen-Milo.
Palavras-chave: Histria da Filosofia Antiga; Plato; Hermenutica; Escola de Tbingen-
Milo.
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ABSTRACT
Dating from the 50s, platonic historiography has concentrated on a question of great relevance
for the comprehension of Platos philosophy, concerning the fact that there is a discrepency
between the image which Plato gives his philosophy in the dialogues and the one which his
disciples handed down to us. This historiographic problem has already been addressed by
Schleiermacher in the XIX century when he elaborated a theory of the dialogue as a form of
representation, which links Plato's philosophy to a direct and indirect communication, capable
of influencing several authores through the XIX and XX centuries. This debate had an
instigating solution by the so called school of Tbingen-Milan, represented by
commentators such as Gaiser, Krmer and Szlezk, who point to a possible solution to this
hermeneutic question. This proposal by the school of Tbingen-Milan has recently been
headed up by Reale, who proposes a complex theory, which intends to show that it is in
Platos spoken doctrines that a more original phylosophy should be sought out. Thus, the
dissertation will investigate the relation between the Schleiermacherian hermeneutics and the
historical comprehension of Plato, starting with the influence of Scheiermachers method to
the new hermeneutic paradigma proposed by the school of Tbingen-Milan.
Keywords: History of ancient philosophy; Plato; Hermeneutic; School of Tbingen-Milan.
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LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Trilogia dos dilogos de Plato 38
Quadro 2: Paradigma Tradicional x Paradigma Alternativo 58
Quadro 3: O escrito x A oralidade 88
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SUMRIO
INTRODUO
12
1. O PRINCPIO DA TRADIO HERMENUTICA
18
1.1. A contribuio de Schleiermacher: uma nova prtica hermenutica
21
1.1.1. Perspectiva histrica da origem da hermenutica
22
1.1.2. Schleiermacher e o mtodo hermenutico
23
1.2. Os dilogos platnicos: Schleiermacher e a Introduo aos dilogos de Plato
29
1.3. Uma nova interpretao platnica: as contribuies schleiermacherianas
40
2. OS PARADIGMAS HERMENTICOS E AS DOUTRINAS NO ESCRITAS
42
2.1. A Escola de Tbingen-Milo e os fundamentos do paradigma alternativo
47
2.1.1. A crtica ao paradigma schleiermacheriano
50
2.1.2. A tradio oral e os testemunhos
54
2.1.3. Os autotestemunhos de Plato e a autonomia dos dilogos 55
2.2. A oposio a Escola de Tbingen-Milo
61
2.2.1. A crtica a novo paradigma da Escola de Tbingen-Milo
63
2.2.2. Fedro e Carta VII: um problema interpretativo?
65
3. A ANLISE DOS DILOGOS: FEDRO E CARTA VII
68
3.1. A questo sobre oralidade e escrita nos dilogos 71
3.2. A comunicao no Fedro e na Carta VII
95
CONSIDERAES FINAIS
99
REFERNCIAS 104
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INTRODUO
Na Grcia antiga do sculo VIII a.C., possvel identificar o desenvolvimento e a
expanso gradual da palavra escrita em uma sociedade fundamentalmente oral.
Segundo Thomas (1992, pp.79-81), no se pode indicar qual foi o fator determinante
da admisso da escrita para os gregos, ou seja, se foi para uso comercial ou para escrever
poesias. O que se pode rastrear a maneira como este tipo de comunicao se dissemina
rapidamente nas comunidades gregas. A escrita grega seguramente no era esotrica, pois
devido ampliao de seu uso em inscries pblicas a grafitos, dedicatrias e cermicas,
pode-se concluir que no era de uso limitado dos escribas.1 Entretanto, no possvel
distinguir sobre o mpeto da escrita sem avaliar a essncia do no-escrito.
A relao entre oralidade e escrita, na Grcia antiga, se desenvolve de maneira
gradativa a partir das interaes com os fencios. Apesar de a introduo da escrita ser, de
fato, gradativa na Grcia, foi certamente fundamental para os primeiros pensadores helnicos,
entre eles, Plato.
Plato foi o primeiro filsofo a demonstrar uma produo escrita quantitavivamente
extensa, seja atravs de seus dilogos ou por meio de suas cartas. Enquanto que, dos pr-
socrticos, foram identificados apenas fragmentos, em Plato foi possvel determinar grande
parte de sua produo escrita, seja pelos prprios textos que temos, seja pelos relatos de
discpulos e comentadores antigos.2
A filosofia platnica sempre foi um dos poucos pontos de referncias fixados aos
demais intrpretes ou comentadores. A partir das ideias platnicas, se distribuem de forma
ordenada outros filsofos e outras escolas de pensamento como, por exemplo, o Liceu de
1 Em Atenas, foram encontrados pelo menos 154 grafitos com datas referentes apenas ao sculo VII (THOMAS
1992, p.81). A datao da obra refere-se primeira verso de publicao, mas utilizo nas citaes a traduo de
Raul Fiker, mantendo a paginao da edio de 2005. 2 Os escritos de Plato chegaram-nos integralmente. So trinta e cinco dilogos e doze cartas: Eutfron, Apologia
de Scrates, Crton, Fdon, Crtilo, Teeteto, Sofista, Poltico, Parmnides, Filebo, Banquete, Fedro, Alcebades
I, Alcebades II, Hiparco, Amantes, Teages, Crmides, Laqus, Lisis, Eutidemo, Protgoras, Grgias, Menon,
Hpias menor, Hpias maior, on, Menexeno, Clitofonte, Repblica, Timeu, Crtias, Minoxe, Leis, Epnomis e
Cartas (REALE 1975-1980, p.9). No falaremos do debate sobre a autoria de dilogos, como Leis, ou sobre a
autoria das cartas, exceto a discusso que cerca a Carta VII, um dos objetos necessrios a este texto. A datao
da obra refere-se primeira verso de publicao, mas utilizo nas citaes a traduo de Henrique C. De Lima
Vaz e Marcelo Perine, mantenho a paginao da traduo da edio revisada de 2007.
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Aristteles.3 As diferentes maneiras de como se relaciona a figura de Plato ao contexto
filosfico tm, muitas vezes, representado um importante instrumento avaliativo s
colocaes de um terico da filosofia.
Neste sentido, afirma Reale (1975-1980, pp. 9-10), a filosofia de Plato pode ser
considerada a mais estimulante e influente por mais de um milnio. Os ensinamentos
platnicos, sobre como interpretar a realidade atravs de seus mtodos inovadores, so
capazes de ensinar um novo olhar sobre a realidade.
No entanto, desde a antiguidade - e j com seus primeiros discpulos - a compreenso
da filosofia, do prprio Plato, uma atividade bastante complexa, tanto pelos contedos
filsoficos apresentados em seus dilogos, quanto pelas questes metodolgicas e
epistemolgicas que a obra do grande filsofo fazem emergir. Assim, ao longo dos sculos, a
filosofia de Plato foi reinterpretada sob as diferentes vertentes metodolgicas propostas por
seus intrpretes e comentadores e, como no poderia ser diferente, novas interpretaes da
filosofia e da fgura de Plato surgiram na histria da filosofia.
De acordo com Santos (2008, pp. 19-21), a problemtica que envolve a interpretao
do corpus platnico deve-se a uma ampla diversidade de fatores como o conhecimento da
literatura e da cultura grega e os fatores estilsticos e literrios de sua obra. A filosofia e a
obra de Plato sempre constituram realidades distintas, por dois motivos: primeiro porque
a leitura de seus dilogos s gradualmente pode proporcionar a compreenso da filosofia
platnica. Ou seja, possvel encontrar mitos, interldios, amalgados num todo impossvel
de sintetizar numa concepo unitria. E, consequentemente, encontramos o segundo
motivo: a viso unitria da filosofia platnica mais facilmente colhida a partir das obras de
seus comentadores e intrpretes atravs da doutrina ou pensamento platnico.
A tradio platnica pode ser, portanto, interpretada a partir de duas fontes: a tradio
direta, aquela apresentada em seus Dilogos, e a tradio indireta platnica, transmitida pelos
seus discpulos mais prximos, como Aristteles, Xencrates e Espusipo. O primeiro grande
comentador da filosofia de Plato foi seu ilustre discpulo Aristteles. Sua leitura de Plato,
no decorrer dos sculos, tem-se apresentado como um dos pontos de discordncia entre as
diferentes anlises interpretativas do pensamento platnico. Sabe-se que o estagirita, alm de
fazer vrias crticas ao seu mestre, teria compartilhado com os colegas de Academia e,
tambm, com seus discpulos, um conjunto de concepes, teorias e doutrinas que os
3 Para Reale (1975-1980, pp.8-9), o prprio Aristteles depende estruturalmente das ideias de Plato. Aps a
era helenstica e durante os prximos seis sculos, tudo que influenciou ou contribuiu de maneira significativa ao
estudo filosfico advm do pensamento de Plato, mesmo que de maneira indireta.
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dilogos no revelariam ou identificariam como sendo de Plato. J a questo estilstica e
literria est interligada linguagem e forma de escrita adotada por Plato: o dilogo. O
pensamento platnico deve ser interpretado com base nos seus dilogos e atravs de seus
intrpretes e comentadores. Contudo, para Santos (2008, p.21), aqui que identificamos um
dos problemas centrais que envolvem a interpretao do corpus platnico: o lugar da tradio
indireta no pensamento platnico.
De acordo com Trabattoni (1994, pp. 03-10), necessrio que sejam analisadas
cuidadosamente as vrias facetas interpretativas atribudas a Plato e sua escola.
certamente o caso da identificao de Plato enquanto pai da metafsica clssica e defensor
do dualismo ontolgico que foi reconhecido especialmente no mundo anglo-saxo, onde a
tradio v um trao comum que une Plato a Descartes, e, em seguida, um determinado
realismo epistemolgico que se tornou referncia na Inglaterra na virada do sculo XX. J nos
dois ltimos sculos, surgem outros modelos interpretativos de Plato: o proposto pela escola
Neo-kantiana de Marburg, o Plato Poltico do Novo Humanismo Alemo, a releitura de
Plato luz do existencialismo de Jaspers, a hermenutica moderna de Schleiermacher e, por
fim, a filosofia analtica contempornea.
No decorrer desta dissertao, portanto, buscaremos elementos metodolgicos que
apontem para uma anlise do pensamento platnico, em seus textos e interpretaes ao longo
da histria.
De maneira especial, a interpretao proposta pelo alemo Schleiermacher no sculo
XIX fundamenta-se em uma anlise metodolgica hermenutica que vincula a filosofia de
Plato a uma comunicao direta e indireta. O mtodo hermenutico schleiermacheriano foi
capaz de influenciar diversos autores ao longo dos sculos XIX e XX.
A partir desta imagem de Plato e das novas possibilidades interpretativas, vem tona
um velho problema historiogrfico j detectado por estudiosos como Robin (1908), Stenzel
(1924), Gomperz (1930) e Cherniss (1935). Assim, em um primeiro momento, o grande
impasse encontra-se na relao entre os dilogos de Plato e as doutrinas no escritas
apresentadas pelos seus primeiros discpulos, especialmente Aristteles. Segundo os
testemunhos destes, Plato teria apresentado uma srie de doutrinas matemticas e
ontolgicas. O problema que no parece haver vestgios delas nos dilogos. Assim, diante
dos relatos dos discpulos, surgiu uma polmica entre os vrios estudiosos sobre o tema com
relao ao valor a ser dado a estes testemunhos para a compreenso da filosofia de Plato.
Uma primeira tentativa de superar o impasse representada pela tese de Cherniss (1935) ao
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afirmar que a tradio indireta teria sido mal interpretada pelos antigos discpulos de Plato,
notadamente por Aristteles.
Surge, no final dos anos cinquenta, na Universidade de Tbingen, com Gaiser e
Krmer, a proposta de uma nova interpretao de Plato. Para eles, a tradio indireta deveria
ser considerada o vrtice da filosofia de Plato, enquanto os seus dilogos deveriam ser
considerados instrumentos preparatrios e introdutrios filosofia de Plato.
Na dcada de oitenta, Thomas Szlezk, que pode ser considerado o terceiro membro
da escola de Tbingen, acrescentou novos argumentos s crticas apresentadas por Gaiser e
Krmer. Em 1982, os tubingueses despertam a ateno de Giovanni Reale, que contribui de
maneira significativa a esta nova interpretao, ao ponto de a escola tornar-se conhecida como
Escola de Tbingen-Milo.4
A base da tese dos tubingueses fundamenta-se em trs paradigmas. O paradigma
originrio, nascido dentro da prpria Academia platnica, com seus discpulos e intrpretes
mais prximos, baseava-se na natureza teortica do conhecimento e priorizava as doutrinas
no escritas ou os ensinamentos orais de Plato.5 O segundo paradigma, o moderno, que
tambm foi denominado pela escola de Tbingen-Milo como romntico e apresentado por
Schleiermacher, prioriza os dilogos como fonte de referncia filosofia platnica.6 E, por
ltimo, o novo paradigma hermenutico proposto pelos tubingueses: para eles, o eixo de
sustentao da filosofia de Plato estaria nas doutrinas no escritas, e no em seus dilogos.
Estaria de fato contida no Fedro e na Carta VII7 uma dura crtica utilizao da escrita. A
crtica tomaria a forma de testemunhos do prprio Plato, por este motivo denominados de
autotestemunhos (REALE 1984, pp.26-51).
O objetivo dos tubingueses era invalidar a proposta hermenutica apresentada por
Schleiermacher, visando sua superao atravs da incorporao da nova proposta
hermenutica por eles apresentada.
Desde as primeiras publicaes da Escola de Tbingen-Milo dedicadas a este novo
paradigma hermenutico e proposta de uma nova interpretao de Plato, a maioria dos
4 Somente com a publicao de 1997 da traduo de Para uma nova interpretao de Plato, de Reale, que o
pblico brasileiro teve acesso mais diretamente a esta teoria e a um debate que envolve os maiores centros de
pesquisa platnicos europeus h, pelo menos, vinte anos. (PERINE 2009). 5Os principais representantes desta interpretao seriam Aristteles, Espeusipo e Xencrates. Entretanto, apesar
de priorizar os dilogos como base para o pensamento terico, tambm os neoplatnicos podem ser enquadrados
aqui pela proximidade histrica e conceitual. Entre eles pode-se citar Albino, Plotino, Proclo, Santo Agostinho e
at Ficino (REALE 1984, p.27; HSLE 2004, pp.39-55). 6 Schleiermacher (1804, pp. 41-46) defende a autarquia dos dilogos, deixando em segundo plano a tradio
indireta. 7 Mantenho nas notas de referncia o nome cannico de Phaedrus para a obra Fdro, bem como Epistola VII, e
sua abreviao Epist., para a Carta VII.
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comentadores no se posicionaram sobre tal iniciativa (TRABATTONI 1994, pp. 01-09).
Entretanto, hoje encontramos diversos opositores escola, como Isnardi Parente, Brisson,
Trabattoni, Gonzalez, entre outros.
De acordo com Trabattoni (1998, pp.25-27), a negao das doutrinas no escritas
apresenta-se dividida em trs sub-hipteses: a) a maioria dos testemunhos que fundamenta
a tradio indireta advm de Aristteles e seus discpulos mais prximos, como Teofrasto,
Aristxeno e, consequentemente, de seus comentadores, especialmente Alexandre de
Afrodisia e Simplcio. Aristteles, porm considerado por alguns comentadores como
fonte no confivel; b) a tradio indireta apresenta doutrinas elaboradas no interior do
"ambiente acadmico por meio da exposio de Plato e de outros pensadores como
Espusipo e Xencrates; c) as doutrinas apresentadas pela tradio indireta so de fato
platnicas, mas, se analisadas com cautela, demonstram ser apenas mera reelaborao das
doutrinas consignadas por Plato. Assim, para Trabattoni, fica evidente que as possveis
diferenas entre as doutrinas escritas e orais, transmitidas por Aristteles, devem ser
compreendidas como uma evoluo da anlise feita por Aristteles.
Mediante a verificao historiogrfica de dados tericos sobre a tradio platnica e a
comparao dos primeiros testemunhos platnicos com relao escrita apresentada nos
dilogos, e s diferentes interpretaes e posies dos estudiosos ao longo dos anos sobre a
questo da oralidade no pensamento platnico, a presente dissertao procurar traar novas
possibilidades de articulao das linhas fundamentais do pensamento de Plato, a partir da
anlise da discusso contempornea sobre a oralidade e a escrita na obra de Plato. Dada a
importncia da filosofia de Plato para a compreenso no somente da filosofia antiga, e sim
do prprio desenvolvimento do pensamento ocidental como tal, uma abordagem cautelosa e
crtica teoria das doutrinas no escritas de Plato se faz necessria. De problema
estritamente historiogrfico, de fato, a questo da relao entre escrita e oralidade em Plato
assume os contornos de um problema fundamental para a compreenso do prprio fazer-se
da filosofia como tal, em busca de definies descontnuas e frgeis de seus mbitos e de sua
metodologia, entre dilogo aberto e tese definida.
Neste sentido, a pesquisa se dividir em trs captulos. No primeiro captulo,
retomaremos os fundamentos tericos e filosficos do estudo hermenutico apresentado por
Schleiermacher, tanto como instrumento metodolgico de interpretao atravs da
emancipao do estudo hermenutico como de uma disciplina independente das outras, alm
de sua contribuio para a interpretao da filosofia de Plato.
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J no segundo captulo, abordaremos a influncia do mtodo de Schleiermacher sobre
os comentadores dos sculos XIX, XX e XXI. A proposta hermenutica apresentada por
Schleiermacher ser considerada como um importante ponto de partida para as novas
interpretaes do pensamento platnico, uma vez que os estudiosos da escola de Tbingen-
Milo utilizam-se de seus fundamentos tericos para a criao de um novo paradigma
hermenutico, ainda que se oponham ao paradigma schleiermacheriano. Da mesma forma, os
que criticam a Escola e seu paradigma, de vrias maneiras, fazem referncia s indicaes
metodolgicas apresentadas pelo mesmo Schleiermacher.
Por fim, no terceiro captulo, com base na proposta apresentada pela Escola de
Tbingen-Milo, em como reinterpretar o pensamento platnico sob este novo paradigma
hermenutico, analisaremos passagens centrais da obra de Plato, notadamente da Carta VII e
Fedro, a fim de ilustrar em que medida, ainda hoje, as premissas metodolgicas utilizadas por
Schleiermacher encontram-se presentes no debate contemporneo sobre estes textos e a obra
platnica mais em geral.
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CAPTULO I O PRINCPIO DA TRADIO HERMENUTICA
As inquietaes de Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher, sobre a importncia de se
pensar a relao entre o autor e o leitor na obra de Plato, associavam-se diretamente falta
de uma metodologia especfica que interpretasse os ensinamentos platnicos, fossem eles
orais ou escritos, e no mais atravs da utilizao da comunicao oral e escrita como
instrumentos de representao das alegorias e mitos na Grcia antiga.8
O homem grego pensava e escrevia tendo como base o dilogo, o que permitia
diversas formas de interpretao de um mesmo texto,9 mesmo com a ampla utilizao dos
textos escritos, da qual temos como exemplo o relato de Digenes Larcio sobre Filolau, onde
se diz que Plato mandou comprar livros deste (Filolau).10
Esse fato mostra uma ampla
propagao da escrita ao menos no interior da Academia Platnica e entre outras escolas de
8 Na Grcia antiga do sculo VIII a.C., pode-se observar o desenvolvimento gradual da palavra escrita numa
sociedade muito mais oral. A escrita alfabtica chega ao mundo grego na primeira metade do sculo VIII a.C..
De acordo com Thomas (1992, pp. 73-80), a escrita e o alfabeto foram adotados dos fencios da costa do
Levante com quem os gregos mantinham contato. A regio de Creta, Chipre, Al Mina, na Sria, e outras, nas
quais os eubeus comercializavam, so regies onde possvel comprovar uma escrita mais antiga e prxima s
formas da escrita fencia. O mercador grego, j familiarizado com a escrita fencia, incorpora o sistema bsico a
fim de tornar a escrita fencia mais adaptvel. Segundo Thomas, estudiosos do Oriente Mdio tendem a
recuar a data para o incio do sculo IX ou X a. C. atravs da anlise das formas das letras, contudo, as
descobertas recentes sobre os materias dos escritos so arqueologicamente datados para o sculo VII a. C. A
utilizao do alfabeto pelos gregos no transformou suas vidas. Em algumas reas, sua utilizao foi para
propsitos bem limitados e, em outras, demoraram dcadas para sua incorporao. A datao da obra refere-
se primeira verso de publicao, mas utilizo nas citaes a traduo de Raul Fiker, mantendo a paginao da
edio da traduo de 2005. 9 Para Reale (2009, pp. 211-213), entre o sculo V e a metade do sculo IV a. C, ocorre na Grcia uma das
maiores revolues culturais com o nascimento da civilizao da escrita e com a consequente superao da
cultura da oralidade potico-mimtica. A vitria da escrita sobre a oralidade corresponde ao perodo de vida
de Plato. Neste sentido, a questo que envolve o problema da oralidade e escrita nos textos platnicos se torna
ainda mais delicada. Afinal, para que se possa realizar uma anlise criteriosa sobre os aspectos filosficos de sua
obra, deve-se tambm considerar os fatores histricos como agentes determinantes da sua postura de filsofo-
escritor. De fato, afirma Trabattoni (1998, pp. 103-104), as obras de Plato no possuem as caractersticas de
tratados cientficos, pois no se trata de um texto impessoal. Ao contrrio, o intrprete se depara com
momentos de um discurso que podem ser esclarecidos unicamente luz do conjunto de ideias, aluses e
alegorias que foram apresentadas em seus dilogos, uma vez que, diferentemente dos grandes pensadores de sua
poca, Plato optou por utilizar as diferentes formas de comunicao, tanto oral quanto escrita, como
instrumentos de mediao e insero ao estudo filosfico, dentro ou fora da Academia. Ou seja, o mtodo
filosfico proposto nos dilogos platnicos deve ser descritos como um organismo argumentativo escrito em
vista de um certo objetivo.As datas das obras citadas referem-se data da primeira verso de publicao, mas
utilizo nas citaes a traduo de Fernando E. de Barros Rey Puente e Roberto Bolzani Filho, mantendo a
paginao da edio da traduo de 2003, para a obra de F. Trabattoni; e a traduo de Rossano Pecoraro de
2009 para o texto de G. Reale. 10 Nas notas de referncia, abreviaremos Digenes Larcio por D.L., e sua obra, Vidas e doutrinas de filsofos
ilustres, por Vidas. Assim, a referncia do trecho D.L., Vidas, VIII, 84. A traduo das citaes de Vidas de
Mrio da Gama Kury, Editora UnB, 2008.
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pensadores ao longo da Grcia. Em muitos aspectos, a Grcia antiga pode ser considerada
uma sociedade oral, deixando a palavra escrita em segundo plano, pois o que deveria vir em
primeiro lugar, tanto na Academia quanto nas gorai, era o discurso falado, ou seja, o
proferimento de ensinamentos orais transmitidos por mestres e sbios. As comunicaes orais
e escritas so elaboradas de formas distintas, talvez complementares, se pensadas como
prticas discursivas, todavia ambas so expresses dos pensamentos interiores do indivduo.11
Este captulo tem por finalidade observar em que medida a discusso sobre o conceito
de hermenutica, presente na anlise de Schleiermacher, pode permitir a delimitao de dois
universos distintos, da exegese e da anlise filosfica, atravs de uma metodologia sistemtica
proposta pelo estudo hermenutico dos Dilogos de Plato.12
O estudo hermenutico proposto por Schleiermacher no s assinalou uma diferena
de valores entre os gregos e os pensadores modernos, como tambm ilustrou em que medida
era possvel estabelecer uma constncia relativa aos elementos que integravam a conceituao
do termo ao longo deste processo.13
Diante da necessidade de fundamentao de alguns
princpios tericos e prticos, a reflexo hermenutica de Schleiermacher acabou tornando-se
elemento indispensvel no cenrio filosfico, pois evidenciou a importncia de se considerar
determinadas situaes e elementos - tericos ou prticos - que permeiam o processo
interpretativo e alteram o sentido de algumas reflexes filosficas. O autor contribui assim
11 Encontramos tal idia em GRONDIN (1991, pp.52-53). A datao da obra refere-se primeira verso de
publicao, mas utilizo nas citaes a traduo de Benno Dischinger, mantendo a paginao da edio da
traduo de 1999. 12 Os manuscritos medievais que apresentam os dilogos platnicos incluem 24 dilogos e, ainda, 13 cartas que
foram atribudas autoria de Plato. O corpus platnico totaliza 37 ou mesmo 38 ttulos, sendo 24 consideradas
obras autnticas e 13 duvidosas. Haveria ainda mais 6 ou 7 seguramente apcrifas, elevando-se o nmero total a
44 ttulos. 13 Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher, telogo, fillogo e filsofo alemo, nasceu em Breslau em 12 de
novembro de 1768. A primeira publicao sobre Plato data de 1801, sendo uma resenha annima que criticava
um livro de F. Ast sobre o Fedro. Temos ainda as seguintes obras: Grundlinien einer Kritik des bisherigen
Sittenlehre (1803); discursos Sobre a religio (1806; 1821; 1831); Monlogos (1822; 1829); Die
Weihnachtsfeier (1806); Der christliche Glaube nach den Grundstzen der evangelischen Kirche (1822; 1831);
Introduo aos dilogos de Plato (1804); as monografias: Herclito, o obscuro de fesos (1808); Digenes de
Apolnia (1814); Sobre Anaximandro (1815); Sobre as obras ticas de Aristteles (1817); Sobre os comentrios
gregos tica a Nicmaco e Sobre o valor de Scrates (1819). Contudo, os textos sobre filosofia e
hermenutica permaneceram no publicados at que amigos e admiradores, aps sua morte em 12 de fevereiro
de 1834, encarregam-se de editar seus manuscritos sobre o tema: A. Schweizer, Entwurf einer System der
Sittenlehre (1835); F. Lcke, Hermeneutik und Kritik (1838); L. Jonas, Dialektik (1839), H. Ritter, Geschichte
der Philosophie (1839); A. Testen, Grundriss der philosophischen Ethik (1841) ; C. Lommatzsch, sthetik
(1842); C. A. Brandis, Die Lehre vom Staat (1845); C. Platz, Erziehungslehre (1849); L. George, Psychologie
(1864). E no ano de 1864 a publicao das Obras completas (Smtliche Werke) com 33 volumes organizados
em: I Zur Theologie, vol 1-13; II Predigten, vol. 14-23 e III Zur Philosophie und vermischte Schriften, vol.
24-33.
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para estabelecer uma nova teorizao de ideias e conceitos platnicos, como sugerem suas
leituras dos dilogos de Plato conforme veremos a seguir.14
Para o alcance desse objetivo, recorreremos a trs passos ao longo deste primeiro
captulo. O primeiro passo consistir em discutir como, medida que nos aproximamos da
ideia de civilizao e identidade apresentada na cultura do sculo XX, nos distanciamos ainda
mais desta universalizao interpretativa que designa toda a cultura do mundo antigo.
Conforme afirma Hsle (2004, pp.43-46), de fato, o filsofo antigo no busca apenas
explicaes, mas sim a compreenso do todo.15
Buscaremos neste primeiro momento uma
lente hermenutica capaz de permitir que enxerguemos o mundo antigo, compreendendo as
alteraes que fazemos nele por sermos indivduos em tempos e espaos distintos.
No segundo passo, examinaremos a postura filosfica moderna, na qual pode se
constatar que a filosofia busca novas formas de aprimoramento e o estudo hermenutico deixa
de ser uma atividade auxiliar ao estudo filosfico. A partir dessa nova postura da filosofia,
busca-se recuperar a hermenutica, assumindo-se que no pode ser considerada apenas como
um conceito normativo que se caracteriza como um lugar vazio a ser preenchido pela
compreenso.
Por fim, ser abordada a relao do paradigma hermenutico proposto por
Schleiermacher e as interpretaes que dele derivamou seja, de que maneira Schleiermacher
se utiliza do estudo hermenutico como instrumento interpretativo para a anlise dos dilogos
platnicos.
1.1 A contribuio de Schleiermacher: uma nova prtica hermenutica
O perodo de transio entre os sculos XVIII e XIX foi marcado por mudanas
radicais, tanto no campo sociopoltico quanto no cultural por toda a Europa, e em especial na
Alemanha.
14 De acordo com Szlezk (1985, p.338), a teoria de Schleiermacher ficou conhecida como a teoria moderna do
dilogo platnico, pois suas ideias tiveram destaques nos sculos XIX e XX. A datao da obra refere-se
primeira verso de publicao, mas utilizo nas citaes a traduo de Milton Camargo, mantendo a paginao da
edio da traduo de 2009. 15 A datao da obra refere-se primeira verso de publicao, mas utilizo nas citaes a traduo de Antonio
Celiomar Pinto de Lima, mantendo a paginao da edio da traduo de 2004.
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21
A Alemanha j demonstrava suas primeiras alteraes e novidades nos mbitos
cultural e literrio, desde a superao do Iluminismo, notadamente atravs do movimento
esttico literrio conhecido como Strm und Drang.16
Tal movimento romntico recebeu
influncia de grandes poetas, intelectuais e importantes pensadores como Macpherson,
Shakespeare, Rousseau, Lessing, Klopstock, Winckelmann, Goethe, Schiller, Jacobi, Herder,
Hrderlin, Schleiermacher, Novalis, entre outros (MOURA 2009, pp.166-168).17
1.1.1 Perspectiva histrica da origem da hermenutica
O termo romantismo passa a indicar o renascimento da emoo que o racionalismo
predominante do sculo XVIII no conseguiu extinguir.18
Assim, at o final do sculo, a
definio tradicional que constitua o termo clssico estava sendo desafiada pelos
romnticos, que dissolveram a categorizao convencional de formas literrias e recorreram
ao estabelecimento de um novo conjunto de regras que pudessem ser determinadas no pela
poca ou gnero, mas pela prpria poesia. Segundo Reale (1986, p. 16):
16 Segundo Reale (1986, pp.20-26), esta denominao advm de um drama escrito por Fred. M Klinger e pode
significar Tempestade e Assalto ou Tempestade e mpeto. A expresso foi utilizada por Schlegel como
smbolo deste movimento no incio do sculo XIX. O movimento Strm und Drang foi considerado por alguns
estudiosos da poca uma revoluo verbal em terras alems, que posteriormente viria a fundamentar a Revoluo
Francesa no campo poltico, conforme demonstra SAFRANSKI (2010). Em contrapartida, outros pensadores
consideravam este movimento uma reao antecipada prpria Revoluo Francesa e ao Iluminismo. A datao
da obra refere-se primeira verso de publicao, mas utilizo nas citaes a traduo para o portugus de
Marcelo Perine, mantendo a paginao da edio da traduo de 2005. 17 A figura de Winckelmann foi determinante para a nova postura de se pensar os gregos, adotada pelos
modernos. Suas ideias foram marcantes, tanto por sua concepo da arte grega clssica quanto pelo modo como
influenciou a nova posio adotada pelos artistas alemes em relao ao seu posicionamento sobre a arte grega,
pois distingue o imitar do copiar. Para Machado (2006, pp. 09-22), esse projeto de criao de um teatro
nacional representa o desenvolvimento de uma poltica nacionalista cultural inaugurado por Winckelmann no
sculo XVII. Segundo ele (Machado ou Winckelmann), esta poltica cultural buscava uma nova forma de se
pensar e compreender os gregos e sua proposta de ideal esttico baseado no conceito clssico de beleza. Neste
sentido, Winckelmann pode ser considerado um dos fundadores da teoria moderna sobre a histria da arte por ter
iniciado uma nova atitude em relao histria da arte. Goethe, por sua vez, foi profundamente influenciado
pelo projeto de Winckelmann. Contudo, somente aps sua viagem pela Itlia, entre os anos de 1786 e 1788,
comea a valorizar a noo de bela forma. E Schiller encontra na pea de Goethe a serenidade e a grandeza da
arte antiga. Schlegel, em virtude de conflitos com Schiller, se muda para Berlim em 1797, onde faz contato com
Schleiermacher, e passa a publicar a revista Athernaeum, smbolo do movimento. J Novalis morreu jovem, mas
foi considerado por muitos a voz potica do romantismo. Schleiermacher, por sua vez, alm de colaborar com a
revista de Schlegel entre os anos de 1804 e 1828, traduz os dilogos platnicos inserindo introdues e notas
comentadas sobre cada obra (GRONDIN 1991, pp.117-123). 18 Reale (1986, pp.07-25) apresenta uma srie de solues para a escolha deste termo, dentre as quais destaca as
formas historiogrfica (e geogrfica) como fatores determinantes, j que o romantismo designa o movimento
espiritual que envolveu no somente a poesia e a filosofia, mas tambm as artes figurativas e a msica, que se
desenvolveu na Europa entre os fins do sculo XVIII e a primeira metade do sculo XIX.
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22
Com efeito, o classicismo tem grande importncia na formao do esprito da
poca [...], e pouco a pouco, se impe no apenas como antecedente, mas at como
componente do prprio romantismo ou at como um de seus plos dialticos.
Nessa fase de transio, a utilizao do classicismo se tornou elemento indispensvel
ao romantismo, pois agiu como corretivo do caos e da descompostura ocasionada pela
revoluo verbal provocada pelos Strmer. Ao mesmo tempo em que esta nova fase alem
colocava o culto ao clssico tradicional iluminista em xeque, os pensadores desta poca
tambm criticavam o clssico repetitivo que advinha do modismo grego. De certa forma, o
classicismo desejava levar a srio as origens gregas da arte e do pensamento alemo. Desta
forma, a Alemanha do sculo XVIII assistiu um renascimento dos estudos clssicos, em que
os gregos foram traduzidos e recuperados em sua originalidade. Neste sentido, o
desenvolvimento da lngua alem era em si alimentado pelo novo historicismo.19
Aps a Reforma, a Alemanha destacou-se por seu mtodo inovador de interpretao.20
Deste modo, a redescoberta do esprito alemo na busca por novos paradigmas interpretativos
resultou no neoclassicismo romntico.21
Segundo Reale (1986, p.23), podemos destacar dois
pontos fundamentais para tal transformao: primeiro, os pensadores como Herder, Schiller e
Goethe que foram fundamentais para este processo de reorganizao, j que a
tempestuosidade e impetuosidade de Strm e o limite (marca do clssico) deram origem ao
momento romntico. E, como segundo ponto, para alm do campo das artes, o renascimento
19 Segundo Machado (2006, pp.23-49), no foi por acaso que, a partir deste movimento cultural existente na
Alemanha desde o sculo XVIII, a poca moderna trouxe tona o interesse em se pensar filosoficamente o
trgico e a tragdia. Pois, na sequncia desse movimento atravs da valorizao do ideal grego de beleza e por
meio da necessidade de sua retomada pela arte alem, iniciado por Winckelmann e tendo Goethe como seu
principal expoente, surge no cenrio filosfico alemo, principalmente com Schelling, Hslderlin e Hegel, uma
reflexo sobre a essncia do trgico de modo totalmente autnoma em relao tragdia. 20
No cnone romntico, estavam Plato, o antigo filsofo, que tinha atacado os poetas e podia ser considerado um poeta romntico'' e um artista, Shakespeare, considerado um poeta moderno, e Espinosa, um filsofo racionalista moderno. Esta reclassificao romntica foi profundamente comprometida com a nova crtica alem. Tudo isso apresentou fortes implicaes para os estudos de Plato, pois houve um crescente consenso de que o mtodo histrico-crtico tinha de ser aplicado obra de Plato, enquanto o mesmo havia sido largamente negligenciado na Alemanha, especialmente em comparao com Inglaterra e Frana. Consequentemente, houve uma mudana fundamental nas diretrizes sobre a filosofia de Plato, uma mudana que espelha o trabalho realizado na interpretao do Novo Testamento. Isso significava, em primeiro lugar, que as alegaes sobre a filosofia de Plato tinham de ser fundamentadas nos prprios escritos sem influncias dogmticas, teolgicas ou relacionadas a outros sistemas filosficos. Em segundo lugar, os escritos tinham de ser fixados no contexto histrico. Para que isso fosse concretizado, foi necessrio, em terceiro lugar, que a sequncia cronolgica e as datas dos dilogos fossem determinadas. Este recm-indicado ideal ainda no havia sido alcanado em 1800, quando entrou em cena Schleiermacher com seus estudos sobre Plato (LAMM 2005, pp.92-93). 21 O neoclassicismo romntico pode ser considerado uma sntese do culto ao clssico imposto pelo perodo
iluminista, mas sem o modismo repetitivo dos clssicos gregos, conhecido como classicismo Winckelmann
(REALE 1986, p.26).
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dos ideais gregos receberam uma importante contribuio de Schleiermacher, que traduziu os
dilogos platnicos e os reintroduziu na cultura alem sob uma nova tica. Ou seja, sem os
componentes desta reapropriao do perodo clssico no se poderia explicar a poesia e a
filosofia desta poca.
1.1.2 Schleiermacher e o mtodo hermenutico
De acordo com Grondin (1991, p.119), o incio do sculo XIX representa um dos
recortes histrico-filosficos mais marcantes deste perodo, pois se encontrava separado por
um abismo, estando, de um lado, o racionalismo de dcadas anteriores e, do outro,
Schleiermacher e sua definio da hermenutica como arte da compreenso. A tarefa da
hermenutica anterior a Schleiermacher era a de apreender a verdade atravs da interpretao
textual, como pode ser destacada na posio adotada por Spinoza em seu Tractatus
theologico-politicus.22
Segundo Perine (2007, p.20), era comum na antiguidade a interpretao de um
filsofo antigo com base na tradio indireta. No sculo XIX, Schleiermacher teria inovado
seus mtodos com a sua traduo alem da obra platnica.23
O estudo de Schleiermacher
sobre Plato foi determinante para os estudos filosficos, pois, com seu paradigma
hermenutico ele, pela primeira vez, se props a transcender os limites bblicos da disciplina
hermenutica.24
Para Jaeger (1888-1961, p.583).25
, Schleiermacher foi certamente um pensador
audacioso. Antes dele, a filosofia platnica havia sido sintetizada em um simples sistema de
busca por referncias sobre metafsica e tica
22 O primeiro registro histrico da palavra hermenutica com esta inteno de natureza normativa - no sentido
conceitual da palavra como conhecemos - foi aplicado somente no sculo XVII na poca moderna (GRONDIN
1991, pp.47-89). De acordo com Machado (2006, p.07), podemos caracterizar o perodo iniciado em meados de
XVII, com a filosofia de Descartes, como modernidade. 23 As pesquisas atuais realizadas por historiadores comprovaram que a obra de Schleiermacher no foi a primeira
a desenvolver um estudo hermenutico, contudo, seu estudo e sua obra, ainda hoje, so considerados os mais
influentes. O estudo de Schleiermacher sobre Plato influenciou sua prpria filosofia (HSLE 2004, pp.56-64). 24 De acordo com Hsle (2004, pp.57-58), Schleiermacher rompe radicalmente com a doutrina do qudruplo
sentido da Escritura: h apenas uma forma de interpretao, a histrica, que vincula um autor com a linguagem e
as ideias de seu prprio tempo. 25 A datao da obra refere-se primeira verso de publicao, mas utilizo nas citaes a traduo de Artur M.
Parreira, mantendo a paginao da edio de traduo de 2001.
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24
Anteriormente s inquietaes de Schleiermacher, prevalecia uma ideia generalizada
de que a exegese deveria reproduzir apenas uma apreciao de textos antigos e clssicos.26
Pode-se dizer que este mesmo perodo representa a passagem de um estudo pr-filosfico para
a consolidao do estudo filosfico, enquanto exerccio interpretativo e reflexivo de carter
epistemolgico e filolgico sobre determinadas reas do saber.
Para Dilthey, a hermenutica schleiermacheriana pode ser relacionada ao fundamento
geral das cincias humanas (ou do esprito) em oposio s cincias naturais e experimentais
(BRADA 2006, pp. 07-09).27
De acordo com Xavier (2005, pp.25-26), todas as diretrizes metodolgicas utilizadas
por Schleiermacher advinham de um momento de transio da cultura alem que no
poderiam ser ignoradas ou deixar de ser mencionadas, pois as influncias e as expectativas
deste perodo foram fundamentais para Schleiermacher e sua concepo da figura de Plato.28
Neste sentido, em meados do sculo XIX, o cenrio filosfico passa a ter uma nova
viso sobre questes interpretativas relacionadas ao campo da hermenutica, como aquelas de
Schleiermacher, Ast e Wolf.
Como comum entre os comentadores da obra platnica, a investigao de
Schleiermacher tem como motivao inicial a impresso de que Plato teria sido previamente
mal entendido. No incio de seu texto sobre hermenutica, Schleiermacher (1829, pp.27-33),
apresenta os motivos que o conduziram ao campo investigativo hermenutico e cita as obras
de Wolf e Ast como o que foi editado de mais importante nesse domnio. Aps uma breve
apresentao das obras, ele se volta contra a ideia, difundida nos escritos de Wolf e Ast, de
que a hermenutica, em conjunto com a crtica e a gramtica, constituiria um estudo
preparatrio, um conhecimento complementar ou apenas um apndice filologia e teologia
crist. Para ele, a restrio ao mtodo hermenutico como instrumento interpretativo
destinado somente s obras da antiguidade clssica e aos textos das Sagradas Escrituras foi
seu objeto de contraposio a Ast e Wolf. Segundo Schleiermacher, a obra de Wolf representa
26 O modelo exegese foi trado por suas prprias regras e pela falta de metodologia para sustentao de uma
anlise mais rigorosa (XAVIER 2005, p.147). Entretanto, afirma Hsle (2004, pp.44-45), este paradigma foi
fundamental para a transformao da filologia clssica em cincia objetivante do mundo antigo e, por outro
lado, para a emancipao desta nova disciplina. 27 Segundo Brada (2006, pp.07-09), a partir desta oposio apresentada por Dilthey, ficou evidente que as
cincias naturais podiam ser compreendidas como cincia explicativa, quantitativa e indutiva, que buscava
determinar as condies das causas atravs da quantificao. As cincias humanas, ao contrrio, podiam ser
consideradas compreensivas, pois visavam apreenso dos significados atravs das intenes e atividades
histricas e concretas do homem, ou seja, estabelece a apreenso do sentido. 28 Schleiermacher, atravs de seu mtodo, procura conceder um status mais racional filologia, visando
deduo a priori das categorias fundamentais deste mbito, parecido com o idealismo alemo (HSLE 2004,
p.57).
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25
o esprito mais sutil da filologia e, por evitar a forma sistemtica em seu ensaio, acaba
tratando a hermenutica como estudo preparatrio para outras disciplinas. J Ast tenta
proceder como um fillogo que opera as combinaes filosoficamente e, apesar de
considerar fundamental a filosofia para a explicao cientfica, trata a hermenutica como
apndice de filologia. Assim, a partir desta anlise, Schleiermacher contrape as ideias dos
autores como distantes e, ao mesmo tempo, complementares para uma nova proposta
hermenutica.29
Segundo Hsle (2004, p.57):
Schleiermacher tem por objetivo conceder um status mais racional
filologia, na qual ele v apenas um agregado de observaes, e se esfora por
realizar uma deduo mais ou menos a priori das categorias fundamentais deste
mbito (em um modo que manifestamente semelhante ao procedimento do
prprio idealismo alemo). Enquanto articulao lingustica do pensamento
interior, uma exteriorizao pode ser interpretada tanto de modo gramatical como
psicolgico.
possvel notar que Schleiermacher prope a concesso da filologia ao romper
radicalmente com a ideia da interpretao da escritura. Para ele, possvel reconhecer que um
autor pode ser original e desenvolver novos conceitos.30
A leitura de Schleiermacher utilizada como instrumento de incurso interpretativa
sobre a histria da hermenutica, indicando uma nova dimenso filosfica proposta por este
grande pensador. O mtodo apresentado por Schleiermacher tinha como objetivo fornecer
instrumentos viveis a todo o tipo de texto.
Muitas, talvez a maioria, das atividades que compem vida humana
suportam uma gradao trplice em relao maneira como elas so executadas:
uma, o de modo inteiramente mecnico e sem esprito; outra se apoia em uma
riqueza de experincias e observaes e, finalmente, outra que, no sentido literal da
palavra, o segundo as regras das disciplinas. Entre estas me parece incluir-se
tambm a interpretao (SCHLEIERMACHER 1829, p.25).
29 A datao da obra refere-se data da primeira verso do autor no incio de seu captulo Discursos Acadmicos
de 1829, mas utilizo nas citaes a traduo de Celso Reni Brada, mantendo a paginao da edio da traduo
de 2006. 30 Schleiermacher, afirma Hsle (2004, p.58), reconhece que um autor pode ter ideias originais e possa vir a
desenvolver um novo conceito. Contudo, existem limites e, por isso, Schleiermacher rejeita a ideia de uma
interpretao alegrica da Bblia, pois admite que certas alegorias devem ser interpretadas como tais, mas no
deixa de distinguir rigorosamente interpretao da alegoria de interpretao alegrica.
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26
A relao destes trs elementos foi decisiva para que Schleiermacher sentisse a
necessidade de desenvolver um novo processo de interpretao e compreenso, visto que a
compreenso indispensvel para a reconstruo e reinterpretao do pensamento antigo,
pois imprescindvel que se pondere sobre quais teriam sido os elementos determinantes de
tal processo mental.
Para Schleiermacher (1829, pp.25-64), a base desta reconstruo se desenvolve atravs
do crculo hermenutico.31
Deve-se buscar no universal a singularidade como ponto de partida
deste processo, pois a compreenso um processo circular que define o sentido, ou seja, um
determinado conceito deve ser analisado em relao aos elementos que determinam seu
contexto.
Assim, Schleiermacher cria um novo modelo de racionalizao. Mediante
interpretao de textos, ele determina a apreenso do sentido como essncia do mtodo.32
Aponta ento no panorama filosfico uma hermenutica fundamentada em questes
relacionadas s tcnicas utilizadas como instrumento de resoluo de problemas
interpretativos e que, de alguma maneira, se contrape s ideias anteriores de uma
hermenutica exclusivamente tcnica.
A proposta de Schleiermacher fundamenta-se em uma nova operao hermenutica
baseada em experimentos e observaes sobre a pluralidade existente nas diferentes maneiras
de se conceber a compreenso a partir da relao leitor/autor. Para ele, um dos fatores
decisivos que devem constituir uma anlise hermenutica no se resume simples
interpretao textual, mas sim metodologia que leva compreenso do texto analisado.
De acordo com Puente (2002, pp.14-15), este processo pode ser considerado como a
fundamentao do mtodo hermenutico, pois a reconstruo da experincia mental do
autor do texto em estudo. Logo, essencial precaver-se contra possveis mal-entendidos,
que podem estar associados a fatores qualitativos ou quantitativos. O primeiro est associado
aos possveis equvocos em relao ao contedo de uma obra, enquanto o segundo estaria
vinculado a uma falsa compreenso. Segundo ele, o mtodo schleiermacheriano baseia-se em
dois aspectos importantes: a obra literria e a linguagem. O estilo utilizado no uso da
linguagem, para Schleiermacher, apresenta-se entrelaado com a prpria obra, isto , as
31 O processo de entendimento pode ser compreendido como o responsvel por fornecer o sentido geral s partes individuais, ou, o contrrio, s partes que constituem o sentido geral. Ou seja, s se consegue compreender o
sentido de determinada palavra na medida em que esta palavra encontra-se includa no restante da frase e vice-
versa. 32 Para Brada (2006, pp.07-08), esta apreenso do sentido coloca em questionamento o conceito de
objetividade cientfica da poca, pois se insere tal metodologia nas cincias naturais.
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27
condies e as alternativas viveis s possibilidades de mediao entre o autor e o leitor esto
integradas, sendo impossvel considerar apenas um dos aspectos no exerccio hermenutico.
Neste sentido, a inseparabilidade existente entre o sujeito e o objeto e a viso de
totalidade entre o texto e o contexto, que antecedem anlise hermenutica, so elementos
essenciais para uma pr-compreenso da leitura.33
Consequentemente, a partir desta teoria,
depreende-se que no possvel compreender um texto em sua ntegra, a no ser que se
compreenda de modo singular o significado das palavras e frases que foram apresentadas,
levando-se compreenso de que no seria possvel entender uma palavra ou frase a menos
que se considere o todo, como destaca Puente (2002, p.15):
O objetivo central da hermenutica para Schleiermacher reside, pois, na
compreenso do estilo de uma obra. Aqui preciso entender que, para ele, o estilo
no diz respeito apenas e to-somente ao uso da linguagem (Behandlung der
Sprache) [...] A fim de chegar a essa compreenso, Schleiermacher recomenda dois
mtodos diversos, mas indissociveis entre si, a saber, o mtodo divinatrio e o
comparativo.
O mtodo divinatrio apreende o individual imediatamente; em contrapartida, o
mtodo comparativo parte do genrico para o particular. Portanto, a hermenutica de
Schleiermacher empenha-se, precisamente, na tentativa de contornar os dilemas que
envolvem as questes estruturais de abordagem e interpretao. Para ele, a unio dos mtodos
um dos pressupostos fundamentais para a compreenso de qualquer texto que contemple um
discurso representativo entre o referencial proposto pelo autor e a linguagem utilizada.
Na viso de Schleiermacher (1829, pp. 41-42), a interpretao gramatical e a tcnica
so complementares, sendo impossvel separ-las. A relao entre a receptividade do sujeito e
os termos de linguagem aplicados pelo autor so denominados gramaticais. O vocabulrio,
sintaxe, gramtica, morfologia e fontica de uma linguagem so recebidos pelo sujeito do
objeto-mundo, e eles podem ser mecanizados.J o aspecto espontneo se refere tcnica
e psicologia, e est relacionado forma com a qual o sujeito emprega uma linguagem para
seus prprios fins individuais, uma vez que o discurso aplicado pelo autor pode servir como
fonte de interpretao, tendo em vista que somente atravs da apropriao da linguagem
33 Segundo Brada (2006, p.07), Schleiermacher inserido tanto na tradio exegtica da teologia protestante
como no renascimento dos estudos de filologia clssica, ou seja, um ideal exegtico de reconstruo do sentido
originrio do texto, ao contrrio da extrao kantiana de reinterpretao adotada no perodo iluminista. Para
Schleiermacher, era necessrio analisar as condies gerais em que a compreenso acontecia, de que maneira e
por quais razes resultava neste processo interpretativo.
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28
adotada pelo autor torna-se possvel estabelecer uma aproximao com aquilo que o autor
teve a inteno de comunicar.
Assim, afirma Puente (2002, p.10), a obra de Schleiermacher foi fundamental para o
cenrio contemporneo, j que, atravs do seu mtodo interpretativo, conseguiu estabelecer
uma relao entre hermenutica, filosofia, teologia e filologia.34
A filologia e a filosofia
passaram a ser vistas como elementos inseparveis da histria, e os estudiosos desta poca
passaram a desenvolver um novo mtodo histrico-crtico de anlise.35
1.2 Os dilogos platnicos: Schleiermacher e a Introduo aos dilogos de Plato
O grande renascimento dos escritos platnicos, afirma Reale (1986, p. 26), foi
promovido na Itlia, impulsionado pelo movimento espiritual do Humanismo e pelo
Renascimento. Foi justamente durante a era moderna que todos os dilogos de Plato foram
traduzidos em lngua latina ao longo do sculo XV. As primeiras edies dos dilogos de
Plato para o alemo foram traduzidas por Schleiermacher e Ast (SANTOS 2008, p.21).36
De acordo com Lamm (2005, p.94), Schleiermacher foi o responsvel por elevar o
estudo de Plato alm dos crticos modernos e romnticos, com a ajuda que recebeu dos
intrpretes mais importantes de sua poca: Immanuel Kant, Wilhelm Gottlieb Tennemann, e
Friedrich Schlegel, que foi seu amigo e colaborador no projeto de traduo das obras de
Plato.37
34 Schleiermacher inicia seus estudos filolgicos atravs da traduo da obra aristotlica tica a Nicmacos.
Contudo, a partir deste interesse em traduzir os clssicos gregos, se prope a utilizar mtodos sistemticos de
anlise, com base nas experincias teolgicas da exegese dos textos bblicos. Assim, ele consegue aproximar a
filologia, a teologia e a filosofia ao seu trabalho interpretativo dos dilogos platnicos atravs da aplicabilidade
prtica de seu mtodo interpretativo (Puente 2002, pp.07-26). 35 Antes de Schleiermacher, a autenticidade dos escritos se dava com base em dois critrios: a especificidade da
linguagem e a amplitude, segundo a extenso, do assunto. 36
Schleiermacher se dedicou a traduzir toda a obra de Plato entre 1804 e 1828. Mas, infelizmente, no conseguiu completar seu trabalho, pois ficaram faltando o Timeu e as Leis.
37 Obras de Plato (Platons Werke) surgiu em seis volumes, com os primeiros cincos aparecendo entre 1804 e
1809, uma realizao grandiosa do ponto de vista acadmico. Originalmente, o projeto de traduzir toda a obra de
Plato, em conjunto, com a escrita de um ''trabalho'' sobre Plato, tinha resultado de uma colaborao entre
Friedrich Schlegel e Schleiermacher, que haviam sido companheiros de casa por um tempo. Schlegel, um terico
de renome literrio e fillogo, pela primeira vez, mencionou o projeto de Schleiermacher em 1799, pouco depois
de Schleiermacher ter acabado de escrever seus discursos sobre a Religio (1806). No muito tempo depois de
terem comeado seu projeto colaborativo, Schlegel levantou a questo em uma carta a seu colaborador, na qual
dizia que para ele no seria possvel realizar tal atividade junto com seu colega Schleiermacher. Assim sendo, em
1803, a ideia original tornou-se um projeto solitrio de Schleiermacher. O primeiro volume foi bem aceito pelo
meio acadmico e chegou a ser considerado como uma obra de gnio (LAMM 2005, p.95).
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29
Para Szlezk (1993, pp.17-18), no por acaso que os dois assuntos, a hermenutica
filosfica e a hermenutica das obras de Plato, se encontram, pois um dos aspectos
importantes que fundamentaram este estudo foi exatamente a escolha de Plato pela utilizao
dos dilogos como forma de escrita.38
A forma dialgica que estrutura todos os escritos
platnicos pode ser compreendida como um instrumento que favorece o desenvolvimento da
reflexo entre a palavra escrita e a linguagem.39
Segundo Xavier (2005, p.147), este modelo apresentado por Schleiermacher,
denominado como critrio tradicional de interpretao das obras platnicas, foi considerado
revolucionrio em sua poca.40
A ideia de Schleiermacher no consistia em simplesmente
invalidar antigas interpretaes ou mesmo regras que direcionassem a tais compreenses, mas
sim em apresentar novas diretrizes que pudessem possibilitar novos entendimentos acerca das
prprias interpretaes que j haviam sido adotadas anteriormente.
As principais dificuldades hermenuticas encontradas por Schleiermacher no estudo
interpretativo de Plato, afirma Hsle (2004, pp.59-64), estariam relacionadas a trs teses
originais. A primeira refere-se forma de escrita escolhida por Plato, a forma dialgica.41
A
segunda tese seria recusar a crena de um esoterismo platnico.42
A terceira consiste na ordem
cronolgica dos dilogos: Schleiermacher teria refletido sobre o estilo, forma e contedo dos
dilogos para a proposta de uma nova ordenao deles.
Schleiermacher (1804, pp.27-45) inicialmente relaciona as fontes existentes sobre a
vida de Plato, examinando cuidadosamente quais notcias biogrficas apresentadas sobre o
pensador mereciam destaque, e concluiu que a melhor opo Digenes Larcio.43
Segundo
Schleiermacher, o objetivo do estudo hermenutico constitui-se a partir de uma leitura
38 A datao da obra refere-se primeira verso de publicao, mas utilizo nas citaes a traduo de Milton
Camargo, mantendo a paginao da edio de 2005. 39 Os dilogos platnicos, para Schleiermacher, estariam cheios de passagens em que pressentiramos que ele
estaria aludindo a algo sem que estivssemos em condio de descobrir o que realmente tem em mente (HSLE
2004, p.59). 40 Este tipo de interpretao hermenutica utilizado em vrias universidades, inclusive aqui no Brasil, como
ressalta Xavier (2005, p.147). 41 Para Schleiermacher, a forma do dilogo deve ser distinta ao sistema e a sua fragmentao. Pois, somente
atravs desta reflexo seria possvel se distanciar de dois possveis equvocos interpretativos: crer que Plato
no havia tido uma doutrina prpria ou aceitar a distino entre dimenso exotrica e dimenso esotrica
(HSLE 2004, p.61). 42 De acordo com Schleiermacher (1804, pp.42-47), difcil chegar a uma compreenso mais elaborada dos
dilogos, devido a sua complexibilidade. Assim, para que houvesse uma distino entre esotrico e exotrico,
caberia a Plato relacionar tal distino capacidade do leitor. Logo, os defensores das doutrinas no escritas
teriam imensa dificuldade para reconstruir de forma coerente com a escrita de Plato essa doutrina. E no
existem os documentos que comprovem essas doutrinas, nem mesmo de Aristteles. 43 Para Digenes Larcio, no possvel referir-se verdadeira natureza dos discursos platnicos, ou aos
dilogos e ao mtodo de raciocnio apresentado por Plato, de maneira elementar e sumria, uma vez que o
verdadeiro apreciador de Plato deve procurar com cautela as doutrinas deste filsofo e de todos os outros
pensadores (D.L., Vidas, III, 102).
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fundamentada em uma nova postura interpretativa, capaz de estabelecer uma linha conceitual
das principais caractersticas platnicas, uma vez que, ao seu entender, as vias tradicionais
de interpretao do pensamento de Plato pareciam equivocadas.
Segundo Lamm (2005, pp.94-99), no incio de sua introduo geral dos dilogos,
Schleiermacher identificou duas sentenas incorretas sobre a interpretao dos dilogos
platnicos, como se pode ler a seguir:
Os julgamentos duplamente errneos sobre Plato e seus escritos foram
emitidos quase desde sempre. Um, o que diz ser intil procurar em seus escritos
algo completo, ou at mesmo os traos fundamentais de um modo de pensar e de
uma doutrina que fossem idnticos [...] e, em muitos casos, uma coisa estaria em
contradio com a outra, porque Plato seria, na verdade, mais um dialtico audaz
do que um filsofo coerente. [...] Por isso, outros, em sua parte, com a mesma falta
de compreenso, [...] formaram a opinio de que a verdadeira sabedoria de Plato
no estaria contida de modo algum em seus escritos, ou ento estaria presente
apenas em aluses secretas, difceis de serem detectadas. Essa ideia, em si mesma
totalmente indefinida, configurou-se atravs das formas mais variadas e separou
ora mais, ora menos dos escritos de Plato o seu contedo, procurando sua
verdadeira sabedoria, em doutrinas secretas, as quais ele quase nunca integrou a
esses escritos (SCHLEIERMACHER 1804, pp.34-36).
A primeira sentena refere-se ao fracasso completo dos leitores em compreender a
viso de Plato como um pensador dialtico que preocupava-se mais em derrubar os
argumentos do que em construir sua prpria argumentao sobre um tema.44
A segunda
sentena diz respeito tradio esotrica, ou seja, o possvel mal-entendido em decorrncia da
suposta tradio platnica indireta.
Alm das dificuldades habituais que se tenha na compreenso profunda de
qualquer outro autor que no seja o nosso correligionrio, no caso de Plato haja
ainda, como motivo peculiar, seu total distanciamento das formas usuais da
comunicao filosfica. Pois existem principalmente duas formas nas quais se
move com o mximo de prazer maior parte daquilo que normalmente chamado de
filosofia. Primeiro, aquela que chamada de sistemtica, por dividir toda rea em
44 De acordo com Hsle (2004, p.40), isto tem a ver com a forma dialgica que Plato utilizava atravs da escrita
para comunicar suas idias, bem como a distino ligada a sua filosofia, entre as doutrinas exotricas e
esotricas. Estes dois aspectos contriburam para o mtodo hermenutico schleiermacheriano, pois do ponto de
vista da hermenutica moderna, esta distino se assemelha aos comentrios patrticos e medievais a Bblia
aparecem a exegetas bblicos modernos. Por outro lado, Plato no pode ser interpretado da mesma maneira
que Aristteles.
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vrios saberes especiais, dedicando a cada uma dessas partes definidas do todo sua
obra particular ou captulos [...] A segunda forma, no menos usada e no menos
preferida, a fragmentria, que apenas lida com anlises individuais e procura
tornar a filosofia compreensvel a partir de fragmentos soltos, dos quais
dificilmente pode-se ter certeza se so realmente membros ou apenas partes
separadas arbitrariamente e contra sua natureza (SCHLEIERMACHER 1804, pp.
32-33).
A partir deste equvoco interpretativo sobre a filosofia, o mtodo e a figura de Plato,
Schleiermacher procurou desenvolver sua prpria interpretao. A proposta hermenutica de
Schleiermacher considerou os dilogos platnicos como uma estrutura independente na
relao entre a forma e o contedo.45
O esquema metodolgico utilizado por ele reduziu os
componentes do texto, como alegoria, aforismos e analogias, a uma nica unidade estrutural
dentro do campo semntico que constituiu a compreenso literal do que estava escrito
(XAVIER 2005, pp.25-30).
Schleiermacher (1804, pp.27-46) iniciou o seu grande estudo sobre Plato se referindo
na primeira parte ao estudo biogrfico de Tennemann sobre A Vida de Plato. Tanto
Tennemann quanto Schlegel estavam comprometidos com a ideia de aproximar Plato atravs
do novo historicismo. Tennemann apresentava um carter mais histrico e filosfico e
Schlegel um sentido mais literrio e filolgico. As falhas de ambos demonstraram a
Schleiermacher a fraqueza de uma abordagem unilateral.46
De acordo com Lamm (2005, pp.94-95), Schleiermacher utiliza-se da fora e da
fraqueza do sistema de Tennemann a respeito da filosofia platnica, conforme o prprio
Tennemann apresenta em System der Philosophie platonischen em 1792, como base de
sustentao para o seu mtodo histrico, aquele que Schleiermacher se refere como um
mtodo externo. No entanto, Schlegel e Schleiermacher divergiram sobre o que envolveria
um suposto mtodo interno.47
45 Para Schleiermacher, a partir das leituras dos dilogos, era necessrio pensar o texto como um todo
indissocivel a forma e o contedo. Para compreender corretamente as concepes filosficas de Plato, no
bastava somente analisar sua linguagem, forma ou contedo,pois Plato, atravs do seu dilogo, pretendia
instigar e provocar as ideias em seus leitores (PUENTE 2002, p.19). 46 O que definiu a pesquisa de Tennemann como sendo verdadeiramente moderna que ele tinha vasculhado
todos os estudos anteriores e tinha resolvido o problema da conjectura histrica. Como resultado, foi capaz de
isolar determinadas datas e fatos sobre a vida e obras de Plato. 47 Para Schleiermacher, o mtodo interno era uma referncia ao estilo adotado pelo autor atravs da sua
escolha pelo mtodo literrio, como no caso de Plato ao utilizar a forma dilgica como instrumento da
comunicao escrita.
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Embora Schlegel tivesse iniciado o projeto de traduo de Plato comprometido com o
historicismo, Schleiermacher estava preocupado com as intenes de Schlegel que lhe
pareciam muito mais relacionadas s questes tericas. A apresentao de Tennemann no
conseguia preservar a unidade entre forma e contedo, consideradas por Schleiermacher a
assinatura de Plato.
Schleiermacher havia considerado tal viso to autoritria que no via necessidade de
revisit-la. Para ele, a grande fraqueza do mtodo externo de Tennemann consistia no no-
cumprimento de seus prprios objetivos, como a ordenao dos dilogos e a falta de
fundamentao substancial sobre a filosofia de Plato. No haviam indicadores externos
suficientes, o que criou um problema para Tennemann, que foi incapaz de resolver ou no
estava disposto a abandonar a noo de um sistema platnico. Logo, acabou traindo seus
prprios ideais metodolgicos, pois assegurou que Plato deveria ter tido uma filosofia
dupla: a externa, encontrada nos seus escritos, qual Schleiermacher se referia como
tradio exotrica, e uma outra secreta, chamada de tradio esotrica.
O sistema de anlise utilizado por Tennemann para os dilogos de Plato no era,
portanto, baseado exclusivamente na anlise dos textos, desviando assim da nova crtica.
Portanto, no abandonou as tendncias dogmticas e, apesar de suas intenes, no encontrou
nenhum sistema nos dilogos escritos. Schleiermacher props que, dada a escassez de
evidncia histrica, o mtodo externo deveria ser completado por um mtodo interno, que
ele denominava como mtodo literrio. Schlegel tambm estava convencido de que um
mtodo interno era necessrio, porm centrou-se mais na ironia socrtica como fator
determinante da autenticidade e da ordem dos dilogos. Schleiermacher, por sua vez, advertiu
que essa abordagem produziria apenas fragmentos e inconsistncias, e no um argumento em
si.
Tennemann extrapola os textos autnticos para uma no-escrita ou tradio esotrica, a
fim de encontrar o sistema platnico. Schlegel, embora tenha apresentado uma postura anti-
sistemtica, tambm partiria das crticas ao texto para seguir a sua teoria literria, uma teoria
que lhe rendeu concluses equivocadas quanto autenticidade de certos textos.
Apesar de Tennemann e Schlegel apresentarem dois dos fundamentos desta nova
abordagem moderna para o estudo de Plato, suas respectivas formas de unilateralidade
chegaram ao mesmo resultado problemtico: a imposio de suas prprias filosofias sobre
Plato (LAMM 2005, pp.94-95). Em resposta, Schleiermacher afirma para Tennemann que o
histrico deve ser balanceado pelo interno (ou literrio) e para Schlegel afirma que a literatura
deveria ser equilibrada por investigaes histricas e detalhes filolgicos. Em ambos os casos,
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Schleiermacher considerou que a nova crtica estava contida na filosofia idealista de seus
textos.
Ora, se Plato tivesse feito uma apresentao separada das respectivas
cincias filosficas, ento pressupor-se-ia que ele tambm tivesse desenvolvido
cada uma por si e em sequncia, e seria necessrio procurar duas sries diferentes
de dilogos, uma tica e uma fisca. Mas, uma vez que as apresenta como todo
interligado e uma vez que prprio dele pens-las sempre como essencialmente
ligadas e inseparveis, tambm os preparativos para elas so unidos com base na
considerao de suas razes e leis comuns, e por isso no h vrias sries de
dilogos que correm paralelamente, mas apenas uma nica que abrange tudo em si
(SCHLEIERMACHER 1804, p.46).
De acordo com Schleiermacher, a compreenso e a crtica aos dilogos platnicos
envolvem partes gramaticais e trabalho comparativo dentro do texto, no qual cada pea
trabalhada com preciso e rigor. Sendo assim, a interpretao correta da filosofia de Plato
depender da correta relao entre os dilogos. Portanto, ele se prope a orden-los
corretamente.
Entretanto, uma ordenao dos dilogos j havia sido apresentada por Digenes
Larcio, segundo o qual os dilogos platnicos poderiam ser distinguidos em dois tipos
principais de dilogos: o primeiro, responsvel pela apresentao da questo e o segundo,
pelo aspecto prtico. O primeiro tipo de dilogo estaria relacionado tica, apresentada nas
obras de Plato (Apologia, Criton, o Fdon, o Fedro e o Banquete), poltica (Repblica,
as Leis, Minos, Epnomis e o Crtias) e tambm ao terico, que estaria subdivido em dilogos
que tratavam dos aspectos fsicos (Timeu) e dos aspectos lgicos (Poltico, Crtilo,
Parmnides e o Sofista). O segundo tipo de dilogo, apontado por Digenes Larcio, diz
respeito ao mtodo maiutico e tentativo: a obstetrcia mental (Alcibades, o Teages, o
Lsis e o Laqus) e o mtodo tentativo (Eutfron, o Mnon, o on, o Carmides e o Teeteto).
E, por fim, o mtodo de objeo (Protgoras) e o mtodo refutativo (Eutdemos, o
Grgias e os dois Hpias).48
Para Lamm (2005, pp.104-105), a primeira tarefa crtica de Schleiermacher, em
relao ordem dos dilogos, foi conseguir identificar os dilogos da primeira fase, que so
aqueles que formam o corpo principal e , em seguida, identificar os dilogos da segunda
48 D. L., Vidas, III, 49-51.
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fase, que apresentam as maiores dificuldades em relao a sua datao, uma vez que a marca
registrada de Plato no estava to clara quanto na primeira fase de seus escritos.
Ora, reconstruir essa sequncia natural , como cada um v, uma inteno
muito distante de todas as tentativas feitas at hoje para uma ordenao das obras
platnicas, tentativas estas que, em parte, acabaram em ocupaes fteis, em parte
resultaram em uma separao e composio sistemtica de acordo com as divises
convencionais da filosofia (SCHLEIERMACHER 1804, p.46).
A ordenao sequencial dos dilogos era o objetivo central da nova crtica proposta
por Schleiermacher, que estava comprometido com a restaurao da ordem original dos
dilogos. Todavia tinha suas dvidas quanto a originalidade de uma ordem estritamente
cronolgica, baseada em datas, dilema que acabou obrigando Schleiermacher a utilizar o
mtodo externo, isto , a considerar os indicadores externos para limitar e comparar as
descobertas segundo a aplicao do mtodo interno. Segundo ele, no havia evidncia
histrica suficiente ou um nmero significativo de dilogos ou datas que comprovassem a
organizao cronolgica. Assim, Schleiermacher busca outra forma de determinar a sequncia
original dos dilogos, uma sequncia no necessariamente fixada em datas.49
Os dilogos Fedro, Protgoras e Parmnides foram agrupados juntos, pois
representam a parte fundamental da obra platnica. Da mesma forma, a Repblica, Timeu e
Crtias permanecem no mesmo grupo devido a sua apresentao cientfica. Estes dois grupos
constituem os suportes de livros que formaram a ordem progressiva do corpo das obras de
Plato. Os dilogos de primeira classe seriam Fedro e Parmnides, pela progresso
atravs da utilizao do mtodo dialtico e da exposio. Na segunda parte, predomina a
explicao do saber e encontramos no pice o Teeteto, seguido pelo Sofista, Fdon e o
Filebo. Na terceira diviso, as Leis, pois, apesar do rico contedo filosfico, este escrito
pode ser considerado de segunda ordem. Em relao aos dilogos intermedirios, estes so
considerados transies entre os dilogos maiores, como o caso do Grgias, do Mnon e
do Eutidemo. O mesmo ocorre com os dilogos da segunda parte que, assim como o Teeteto,
so preldios ao Poltico (SCHLEIERMACHER 1804, pp.60-75).
49 Segundo Puente (2002, p.22), foi comprovada a inexatido de Schleiermacher em relao cronologia e
ordenao dos dilogos.
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Ao considerar estes trs grupos, Schleiermacher apresenta as obras de Plato juntas,
formando trilogias dos dilogos:50
Quadro 1: Trilogia dos dilogos de Plato
Primeira trilogia Segunda trilogia Terceira trilogia
(incompleta)
1. Fedro 1. Teeteto 1. A Repblica
2. Protgoras 2. Sub trilogia do Sofista,
Poltico, e Banquete
(Dilogos da segunda
classificao)
2. (Timeu)
3. Parmnides 3. Fdon 3 Filebo (Critias)
No quadro acima, nota-se que os dilogos de primeira ordem so determinados
segundo trs caractersticas presentes ao longo do texto de Plato: a linguagem, o contedo e
a forma. Nesta fase de interpretao, o critrio da forma presente nos dilogos tornou-se a
referncia central para tal anlise, mesmo que de modo secundrio, o que sugere que Plato
deveria ter sempre utilizado este tipo de arte em suas lies da Academia, fossem elas
escritas por ele ou um estudo realizado por ordem de algum.
Os dilogos anteriores seriam aqueles que despertavam e estimulavam atravs do uso
do mito e, especialmente, da utilizao da forma de dilogo, enquanto os posteriores seriam os
que apresentavam os mesmos temas de forma sistemtica, cientfica, conectando-os em duas
categorias principais: tica e cincia. Entretanto, afirma Lamm (2005, pp.105-106), existe um
grupo de dilogos que poderia fazer parte do grupo do meio, mas este agrupamento no
apresenta um desenvolvimento metodolgico em relao evoluo de ideias filosficas de
maneira to concisa quanto os outros dois grupos.
Pode-se dizer que Schleiermacher prope a trilogia da trilogia, uma vez que a
discusso proposta por Schleiermacher, no sentido de reinterpretar os dilogos de Plato, nos
remete a uma discusso ainda mais complexa, pois cria novas alternativas metodolgicas a
respeito de como o leitor deve se posicionar perante o texto, ou seja, quais seriam as outras
formas de se aventurar nesta leitura (LAMM 2005, pp.106-107).
Deste modo, Plato pode ser considerado um dos maiores filsofos devido
pluralidade de significados e eficcia alegrica que apresentou em seus dilogos.51
Assim,
50 Quadro apresentado por Lamm (2005, p.106).
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tanto a filosofia de Plato como seus dilogos podem ser considerados uma forma de arte,
como sinaliza Digenes Larcio.52
Esta viso da figura de Plato como um artista considerada romntica por alguns
autores.53
Entretanto, afirma Lamm (2005, pp. 97-98), o problema de se denominar a
interpretao schleiermacheriana como uma interpretao romntica se deve ao fato de que
o termo romntico carrega diferentes significados e, muitas vezes, estes significados so
utilizados para aferi-lo a um mtodo divinatrio de interpretao que poderia impor um tipo
ideal, independentemente das evidncias histricas.
Neste sentido, tanto para Digenes Larcio quanto para Schleiermacher, a arte de
compreender Plato comea, em particular, com um estudo filolgico, mesmo que estas
pesquisas necessitem de um pouco de arte, seguido de uma anlise criteriosa dos dilogos
atravs do mtodo hermenutico apresentados por Schleiermacher, pois somente com a
reconstruo dos fatores tcnicos e psicolgicos possvel compreender a filosofia platnica
contida em seus textos. No que diz respeito aos dilogos platnicos, isso significa que o
intrprete deve ser capaz de interagir com o autor atravs de seu texto.
J no ensino real, porm mais ainda na sua imitao escrita, quando se
considera que Plato tambm queira conduzir o leitor ignorante ao saber ou que, em
relao a este, pelo menos tinha que se prevenir para que no causasse uma fantasia
vazia do saber [...] o principal para ele deve ter sido conduzir cada estudo desde o
incio e calcul-lo de maneira que o leitor fosse obrigado gerao interior prpria
do pensamento intencionado (SCHLEIERMACHER 1804, p.44).
Assim, o dilogo pode ser reinterpretado a cada nova leitura, revelando novas etapas e
diferentes sentidos e, a partir deste processo interpretativo, a forma dilogica seria capaz de
proporcionar ao seu leitor as respostas necessrias, desde que este leitor seja apropriado para
tal leitura. Para Schleiermacher, os dilogos deveriam ser compreendidos como instrumentos
utilizados por Plato para favorecer, atravs da analogia dos temas especficos, o
desenvolvimento das doutrinas e das ideias apresentadas em seus dilogos.
51 Essa imediatez, essa multiplicidade e essa fora simblica dos dilogos, j visveis nas primeiras aluses,
fizeram de Plato o autor que, a despeito das diferenas das culturas nacionais, considerado hoje em toda parte
o mais eficaz instigador do interesse filosfico (SZLEZK 1993, p.15). 52 D. L., Vidas, III, 46. 53 Conferir Szlezk (1985).
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Vejamos alguns exemplos: a necessidade de contextualizar as concepes de
Plato no interior de sua obra como um todo e de relacion-la a outras ideias
presentes em contemporneos de Plato; a importncia do conhecimento das
particularidades lingsticas do grego do sculo V a. C. e mais especificamente dos
limites expressivos desse idioma com o qual Plato teve de lutar; o cuidado em no
produzir um mal-entendimento sobre a filosofia de Plato ao discorrer, previamente
leitura dos dilogos, sobre as concepes filosficas de Plato; a necessidade de
pensar como um todo indissocivel a forma (no caso o dilogo) e o contedo
presentes em Plato; a importncia de compreender plenamente o carter dialgico
do texto de Plato, ou seja, de compreender que nele Plato no pretendia apenas
apresentar aos outros as suas ideias de modo vivo, mas principalmente, instigar e
provocar ideias em seus leitores por meio de um dilogo vivo com os mesmos
(PUENTE 2002, p.19).
De acordo com Puente (2002, p. 19), o estudo interpretativo dos dilogos de Plato,
proposto por Schleiermacher, considera a forma dialgica um instrumento capaz de induzir o
leitor a formular suas prprias ideias, partindo das referncias indiretas ao longo do texto e
induzindo-o as suas prprias concluses ou possveis equvocos interpretativos. Segundo
Lamm (2005, p. 104), para Schleiermacher, Plato era um artista cujo objetivo deveria ser
considerado de cunho pedaggico, pois seus dilogos no eram, apenas, para explicar seu
pensamento aos outros de uma forma animada, mas justamente o contrrio, por isso ele
buscava animar e elevar, a partir deles, uma forma viva. De acordo com Schleiermacher
(1804, p. 45),
Plato consegue, com a quase totalidade dos seus leitores, alcanar aquilo que
deseja, ou pelo menos evitar o que teme. De modo que esse seria o nico sentido no
qual se poderia falar aqui do esotrico e do exotrico, isto , no sentido que estes
apenas apontam para uma qualidade do leitor, dependendo do fato deste elevar-se
ou no condio de um verdadeiro ouvinte do interior; ou ento, caso se deva
relacion-lo com o prprio Plato, poder-se-ia dizer apenas que o ensino imediato
teria sido seu agir esotrico; a escrita, contudo, o exotrico.
A diferena entre o esotrico e exotrico estaria relacionada s qualidades do
leitor em sua anlise textual, uma vez que a incompreenso dos dilogos pode ser relacionada
a duas possveis vias de interpretao da relao autor/leitor: na primeira, o leitor no
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compreenderia a obra de Plato, tendo uma apreenso superficial do texto, o que para
Schleiermacher seria a via exotrica, enquanto que na segunda, a esotrica, o fator que
determinaria a capacidade do leitor em compreender as aluses feitas por Plato em seus
dilogos estaria relacionada ao prprio saber deste.
Neste sentido, a ordem cronolgica dos dilogos teria como objetivo publicar os
dilogos de maneira didtica, ou seja, os dilogos posteriores poderiam ser melhores
compreendidos aps a leitura dos primeiros. Para Schleiermacher, os Dilogos so autnomos
e auto-suficientes e no necessitam de finalizao por parte de Plato para que as ideias
apresentadas ao longo de sua obra sejam compreendidas pelo seu leitor, pois o dilogo
con
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