thomas s. kuhn e as ciências sociais
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As cincias sociais e a epistemologia das cincias naturais
de Thomas Kuhn: emprstimos e adaptaes
Vittorio Pastelli
1992
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PLANO:
0. Introduo
0.1. Antecedentes e impacto da obra de Thomas S. Kuhn
0.2. Kuhn e as cincias sociais
1. O modelo de desenvolvimento cientfico de Thomas S. Kuhn
1.1. Kuhn e o senso comum
1.2. O modelo
1.3. Explicitaes
2. O novo papel do cientista social
3. Kuhn aplicado pelos cientistas sociais
3.1. O porqu da aplicao
3.1.1. M avaliao de Popper
3.1.2. O "desejo de se mostrar cientfico"
3.2. O uso do vocabulrio de Kuhn nas cincias sociais
4. Concluso
5. Bibliografia
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We shall not cease from exploration And the end of all our exploring
Will be to arrive where we started And know the place for the first time.
T. S. Eliot "Little Gidding", 1942.
0. Introduo
0.1 Antecedentes e o impacto inicial da obra de Thomas S. Kuhn
Em 1962, aparece, na "Foundations of the Unity of Science", que servia de introduo
ao ambicioso projeto positivista da constituio de uma "Enciclopdia de Cincia Unificada",
um longo artigo intitulado "A Estrutura das Revolues Cientficas" (daqui para diante, ERC).
Seu autor um fsico que, progressivamente, passou da fsica para a histria da fsica, para a
filosofia da fsica e, desta, para a filosofia das cincias naturais.
O impacto do trabalho de Thomas S. Kuhn foi imediato. Os motivos disso so variados.
Em primeiro lugar, Kuhn cristaliza idias que ocupavam o espao da teoria do conhecimento e,
mais especificamente, da filosofia da cincia na dcada de 50. A reao ao positivismo lgico
aparecia como corolrio do segundo Wittgenstein. Grosso modo, a lio a tomar que uma
anlise proveitosa de qualquer atividade com pretenses ao conhecimento deveria basear-se no
estudo do como e menos no estudo do porqu. Noutras palavras, para melhor entender a
atividade que denominamos "cincia", mais valia entender sua prtica do que buscar uma
fugidia estrutura lgica subjacente a toda teoria que se intitulasse "cientfica", coisa que j
tinha, de maneira infrutfera, ocupado o trabalho de positivistas por mais de 30 anos.
Trabalhos como o de Michael Polanyi (Polanyi, 1958), ou mesmo de Ernest Gombrich
(Gombrich, 1956), sugeriam que a atividade cientfica (artstica para Gombrich, embora suas
consideraes no percam o valor quando se substitui "arte" por "cincia") baseava-se em uma
srie de "princpios" que jamais chegavam a ser enunciados durante o aprendizado do futuro
cientista. Gombrich comea seu "Art and Illusion", de 1956, perguntando: "afinal, o artista
pinta o que v ou v o que pinta?" Sua opo recai sobre a segunda alternativa. A atividade do
pintor baseia-se em pressupostos que ele mesmo jamais chega a expressar, que podem jamais
chegar a aflorar em sua conscincia durante o trabalho normal. Somente esforo adicional, e
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totalmente estranho a suas prticas profissionais, poderia chamar sua ateno para esses
princpios escondidos (mais adiante, veremos que essa intuio que liga arte e cincia ser
firmemente descartada por Kuhn, que afirmar _em artigo posterior ERC_ que "se a anlise
cuidadosa faz com que arte e cincia paream to implausivelmente prximas, isso deve ser
devido menos sua similaridade que a uma falha das ferramentas que usamos para escrutiniz-
las").
Falando especificamente de cincia natural, Polanyi expressa o mesmo tipo de intuio.
Para ele, toda atividade cientfica est impregnada do que chama "procedural knowledge", ou
conhecimento que se baseia na ao, em contraste com o conhecimento que se baseia em
princpios expressos durante a formao cientfica, o que denomina "declarative knowledge".
Esse "procedural knowledge", bem como as regras de representao pictrica discutidas
por Gombrich no so outra coisa que os jogos de linguagem de Wittgenstein. Tais jogos,
Wittgenstein afirma, no so, em sua maioria, ensinados explicitamente, "por ostenso". E'
dentro de uma dada "forma de vida" (a definio _necessariamente precria_ de "forma de
vida" encontra-se em Wittgenstein, 1953, 1-23) que tais jogos cobram seu sentido. So
exemplos de jogos de linguagem:
"(...) Dar ordens e obedec-las
Descrever a aparncia de um objeto, ou dar suas medidas
Construir um objeto a partir de uma descrio (um desenho)
Reportar um evento
Especular acerca de um evento
Formar e testar uma hiptese
Apresentar os resultados de um experimento em tabelas ou diagramas
Criar uma histria; e l-la
Cantar estribilhos
Propor enigmas
Fazer uma piada; cont-la
Resolver um problema em aritmtica prtica
Traduzir de uma linguagem para outra
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Perguntar, agradecer, maldizer, cumprimentar, orar." (Wittgenstein, 1953, 1-23)
Viver dentro de determinada comunidade significa, para Wittgenstein, jogar diferentes
jogos de linguagem, cuja escolha e adequao final dependero da situao em que um sujeito
se encontre. Dentro de uma forma de vida no cabe perguntar, portanto, qual o sentido exato de
determinado termo, mas sim qual seu papel _dentro dos jogos de linguagem relevantes para
aquela forma de vida_ como promotor de aes aceites por todos como corretas aps a
enunciao do termo em questo. Wittgenstein, assim, epitomiza a idia de que a compreenso
de uma dada atividade _atividade cientfica necessariamente includa (alguns dos exemplos do
que ele chama "jogos de linguagem" so tpicos da atividade cientfica, como "formar e testar
uma hiptese")_ deve ser procurada na descrio dos jogos relevantes, nas aes que tais jogos
propiciam e na construo de metforas que permitam entender melhor esses jogos.
"Nossos claros e simples jogos de linguagem no so estudos preparatrios para uma
futura regularizao da linguagem _como se fossem uma primeira aproximao, que ignorasse
frico e resistncia do ar. Os jogos de linguagem so construdos como objetos de comparao
que pretendem lanar luz sobre os fatos de nossa linguagem atravs no apenas de
similaridades, mas tambm de dissimilaridades." (Wittgenstein, 1953, 1-130, sublinhado nosso)
A construo de "objetos de comparao" deixa claro que, para Wittgenstein, a filosofia
no tem qualquer carter normativo (Richard Rorty prefere classificar esse trabalho da filosofia
como "teraputico"). Sua tarefa principal a de esclarecimento de um dado contexto, seja ele
cincia ou tica ou lingstica etc.
O mesmo vale para Kuhn, o que nem sempre fica claro para seus comentadores e
"usurios", que ou atacam seu normativismo (ausente) ou usam seu modelo normativamente,
seja dentro da metodologia da cincia (retomando justamente o procedimento neopositivista
que Kuhn quer superar), seja dentro da prpria atividade cientfica (e no outra coisa que se
faz quando se prope, por exemplo, que as cincias sociais deveriam cessar suas discusses
sobre fundamentos a fim de progredir, cf. Martins, 1972, para uma crtica desse uso do modelo
de Kuhn). Perder a perspectiva desses "objetos de comparao" o que tambm leva Barnes
(Barnes, 1982, p. 60) ao absurdo de afirmar que Kuhn "normativo e descritivo ao mesmo
tempo".
Ainda, o projeto de Wittgenstein, alm de retirar da filosofia qualquer carter normativo,
tambm sugere que tal atividade no tem carter sequer descritivo. A construo de objetos de
comparao deve _se se pretende que tais objetos esclaream algo sobre o mundo_ levar em
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conta o que o mundo , ou, pelo menos, o que se acha que ele seja. Mas nada pode garantir que
tais observaes sejam corretas (garanti-lo seria retroceder ao positivismo). Assim, os modelos
que os filsofos fazem de determinada atividade ajudam a esclarec-la, a diminuir nossa
ingenuidade com relao a ela, mas no podem pretender retrat-la fielmente e, muito menos,
justific-la. Nesse sentido, tem pouco cabimento usar o modelo de Kuhn como modelo para a
histria da cincia ou como modelo fundado ou baseado na prtica cientfica, embora muito da
assimilao de Kuhn em meios externos ao debate epistemolgico mais especializado se deva
exatamente a essa suposta base histrica do modelo proposto na ERC. Mas o ponto de difcil
assimilao, mesmo para pesquisadores diretamente ligados filosofia da cincia.
"A filosofia da cincia, tal como iniciada e desenvolvida neste sculo, principalmente
pelos empiristas, era em sua orientao puramente sistemtica. Maior ateno para a histria da
cincia e para os aspectos sociolgicos e psicolgicos de sua prtica deveriam ter, poder-se-ia
esperar, significado uma adio bem-vinda lgica da cincia." (Stegmller, 1977, p. 75)
Dar boas-vindas a Kuhn como fornecedor de um apoio sociolgico a uma pretensa
lgica da cincia justamente perder de vista a idia da "construo de objetos de comparao"
de Wittgenstein. No h como assimilar Kuhn a uma escola que fale em "lgica da cincia".
"Lgica" pressupe uma atemporalidade metodolgica sobre a qual Kuhn ctico (mais
adiante, deveremos definir mais claramente o relativismo e o ceticismo de Kuhn; por ora,
digamos apenas que ele seria um "relativista civilizado"). Alm disso, estudos sociolgicos no
precisam necessariamente apresentar qualquer relao com questes metodolgicas. O mais
ortodoxo positivista lgico concederia de sada que a cincia se d num mundo sujeito a
injunes locais que podem ser descritas pelo socilogo da cincia melhor do que por qualquer
outro profissional. A cinciacomo realmente se d no questo para o epistemlogo de
orientao positivista. E tambm no o para Kuhn, como esperamos demonstrar no correr
deste texto.
Retornando questo do contexto onde aparece a ERC, alm de Gombrich e Polanyi,
deve-se citar os trabalhos de N. R. Hanson. Seu "Patterns of Discovery", publicado em 1958,
antecipa muitas das idias que formariam uma base para Kuhn. Ainda assim, Kuhn mostrar,
especialmente no captulo 9 da ERC, que Hanson no conseguiu passar das consideraes de
carter psicolgico para um modelo coerente que reunisse, de um lado, gestalt individual e, de
outro, a orientao geral de uma comunidade de cientistas. Noutras palavras, o fato de que
observao sempre carregada de teoria j era bem aceito muito antes de Kuhn. O problema
como reunir isso com o fato, igualmente claro para qualquer pessoa que examine a atividade
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cientfica, de que, apesar dessa "theory-ladenness" da observao, os cientistas no so
inteiramente livres para interpretar os fatos. Consistente com seu projeto, Kuhn no pode
pretender fundar essa uniformidade da comunidade de cientistas em alguma razo atemporal ou
afirmar que tal uniformidade se deva existncia de regras subjacentes atividade cientfica.
Assim, constatar essa uniformidade e, ao mesmo tempo, negar a possibilidade de
fundamentao racional para ela deve lev-lo a novas concepes de o que se deva entender
pelo termo "razo".
***
Pode-se tambm considerar Kuhn a contrapartida epistemolgica de trabalhos
historicamente orientados como os de Alexandre Koyr. Esse autor russo radicado na Frana,
ao estudar a obra de Galileu (cf. especialmente Koyr, 1939), j antecipava muitos insights de
Kuhn, especialmente no que diz respeito ao papel da retrica na aceitao de uma teoria
cientfica, na dificuldade de dilogo racional entre partidrios de teorias rivais e sobre as
alteraes (no-aditivas) de significado para um mesmo termo quando usado no contexto de
teorias diferentes. Por exemplo, "Terra" quer dizer coisas diferentes para Galileu e para
Aristteles, mas o fato de galileanos e aristotlicos usarem o mesmo termo com significados
diferentes tem duas conseqncias paradoxais: confundir ou mesmo impossibilitar uma
confrontao e, por outro lado, dar uma impresso de continuidade entre teorias sucessivas j
que a utilizao de termos iguais parece sugerir progresso atravs de acrscimos pontuais, o que
Koyr cuida de mostrar que, absolutamente, nunca o caso.
"O que os fundadores da cincia moderna, entre eles Galileu, tinham de fazer no era
criticar e combater certas teorias erradas para corrigi-las ou substitu-las por outras melhores.
Tinham de fazer algo inteiramente diverso. Tinham de destruir um mundo e substitu-lo por
outro. Tinham de reformar a estrutura de nossa prpria inteligncia, reformular novamente e
rever seus conceitos, encarar o Ser de uma nova maneira, elaborar um novo conceito do
conhecimento, um novo conceito da cincia, e at substituir um ponto de vista bastante natural
_o do senso comum_ por um outro que, absolutamente, no o ". (Koyr, 1943)
Essa mudana de teoria cientfica como mudana mais ampla de viso de mundo
aparecer como tema central na ERC. Nesse sentido, pode-se dizer que a ERC um livro sobre
essas transies e sobre como dar conta delas mantendo, ao mesmo tempo, a noo de
progresso cientfico. Este ponto absolutamente central. No h como negar que a cincia
progrida. Uma teoria da cincia que no levasse esse fato em conta ou que o colocasse em
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segundo plano no poderia servir como objeto de comparao til para se entender a atividade
cientfica.
***
Existe tambm um componente retrico ao qual se deve dar ateno quando se pretende
entender a disseminao da ERC. Menos preocupado com a lgica do discurso cientfico ou
com a procura exaustiva de fundamentos racionais para a atividade cientfica, Kuhn deixa de
lado o vocabulrio altamente tcnico e o estilo mais formal que domina os textos especializados
em filosofia da cincia. Esse fator, to somente ligado retrica, teve importncia capital na
disseminao da obra de Kuhn entre no-especialistas. Como nota Hollinger (Hollinger, 1973),
a ERC foi, sua poca, o livro de filosofia mais lido por historiadores:
"Desde a publicao de 'A Idia de Histria' de Collingwood, nenhum outro trabalho de
'teoria' ganhou da parte de historiadores o interesse recentemente devotado ERC de Thomas S.
Kuhn." (Hollinger, p. 195)
Alm da linguagem menos formal, deve-se tambm levar em conta que a ERC se
apresenta como um livro "confessional" (para usar um termo reiteradas vezes empregado por
Jonathan Re em seu "Philosophical Tales", sobre a funo da retrica em filosofia,
especialmente a respeito dos elementos autobiogrficos que aparecem nas obras filosficas de
Descartes e Hegel). Dados autobiogrficos e compartilhamento de experincias que tanto Kuhn
quanto seus potenciais leitores enfrentaram durante a educao cientfica bsica so habilmente
usados no sentido de aproximar autor e leitor e de fazer com que as idias expostas no texto
paream "bvias" em vista dessa _suposta_ experincia comum.
Kuhn usa extratos da histria da cincia, comenta prticas quotidianas de qualquer
cientista, fala sobre a educao cientfica _um estgio pelo qual todos seus leitores passaram_ e
usa o poder persuasivo da autobiografia. Esse componente autobiogrfico est presente no
prefcio da ERC, como estava tambm no prefcio da "Revoluo Copernicana".
Posteriormente, no artigo "What Are Scientific Revolutions?", de 1982, dados autobiogrficos
viriam a ocupar uma posio ainda mais destacada como veculo de suas idias. Enfim, a ERC
aparece como um osis de acessibilidade quando comparada, por exemplo, "Lgica da
Descoberta Cientfica", traduzida para o ingls em 1959 e considerada poca o livro mais
importante sobre filosofia da cincia.
0.2. Kuhn e as cincias sociais
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Kuhn tem formao bsica em fsica e, ainda que no explicitamente, no pretendeu dar
em seu livro mais que um modelo geral de desenvolvimento das cincias naturais, tomadas _de
novo no explicitamente_ como modelo mais acabado da racionalidade humana. Seus exemplos
restringem-se quase inteiramente qumica e fsica. Poucas vezes fala em biologia e evita as
cincias sociais e as humanidades. Quando fala, usa o termo "paradigma" em seu sentido
coloquial, o que, naturalmente, confunde seus leitores (um exemplo desse uso acontece quando
Kuhn fala em "paradigma filosfico iniciado por Descartes", Kuhn, 1970, p. 121). Mesmo
dentro do panorama das cincias naturais, o modelo de Kuhn encontra dificuldades quando
empregado fora do domnio da fsica e da qumica. Sua aplicao histria da biologia _em
especial aceitao da teoria darwinista da evoluo das espcies_ apresenta muitas
dificuldades (Greene, 1971). Entretanto, como discutiremos mais adiante, o fato de o modelo de
Kuhn no se aplicar a exemplos histricos fora dos escolhidos no corpo da ERC no invalida a
crtica que Kuhn faz ao positivismo, como pretendem alguns de seus crticos (cf. Shapere, 1964
e 1971).
O motivo para essa ttica de Kuhn, evitando as cincias sociais e as humanidades,
deriva do propsito da obra e da estrutura que ela prope para o desenvolvimento cientfico: s
passa a haver acordo e, conseqentemente, progresso em determinado campo de pesquisa
quando seus componentes atingem o que Kuhn denomina fase paradigmtica. Antes disso, as
discusses giram sempre em torno de princpios e nunca se avana para um estgio de pesquisa
mais esotrica, isto , de pesquisa mais especializada. Somente quando os princpios de uma
disciplina esto assentados pode ela progredir, no sentido de articular-se e de resolver um
conjunto predeterminado de problemas. Claramente, as cincias sociais no apresentam grau de
acordo comparvel com o que tm, por exemplo, os qumicos (e, talvez, isso nem sequer seja
interessante). Assim, Kuhn no se enderea aos cientistas sociais. Ele teme ser interpretado
como o fornecedor de uma frmula de "paradigmatizao" para atividades ainda no-
paradigmticas. A ERC pretende ser, bem no esprito de Wittgenstein, um livro que extrai
lies da histria da cincia para melhor entender como funciona a prpria cincia. Nada mais.
Dentro da linha de "ao no lugar de estrutura lgica", Kuhn centra seus esforos para
compreender a cincia no na anlise da possvel estrutura lgica de teorias ou disciplinas
cientficas, mas no modo como ocorrem transies de estrutura no decorrer da histria de uma
dada disciplina arrolada entre as cincias naturais. So nesses momentos que muda a forma dos
cientistas verem o mundo, que o que constitua, antes, evidncia, passa a ser artefato, que as
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regularidades passam a ser apenas coincidncias (por exemplo, dentro da fsica de vrtices de
Descartes havia uma explicao para a regularidade observada de que todos os planetas ento
conhecidos pertencentes ao Sistema Solar giravam no mesmo sentido; dentro da fsica
newtoniana, tal regularidade apenas casual. Laudan, 1990, pp.15-16, discute esta questo _em
que fica patente que no apenas existe descontinuidade, mas tambm perda de poder explicativo
entre teorias sucessivas_ e tenta encontrar uma alternativa pragmtica para que este exemplo
histrico no sirva de pretexto para se falar em no-cumulatividade da cincia). Se existem,
portanto, pontos em que a atividade dos cientistas pode ser melhor compreendida, eles ocorrem
nas transies entre teorias, entre crenas, entre o que Kuhn tentar definir como paradigmas.
Nessas ocasies que os cientistas _o grupo reconhecidamente mais "racional" dentro da
cultura ocidental_ devero exercitar sua racionalidade. Se pretendemos compreender a
racionalidade humana, devemos observar o que acontece no momento em que deve haver
escolha entre teorias rivais dentro das cincias naturais. Essas observaes ajudaro na
construo de um modelo (de um objeto de comparao) mais esclarecedor. Todavia, nunca tais
observaes podero pretender mais que fornecer alguns elementos constitutivos desse modelo.
No h como pretender _sem que se recaia ou numa espcie de positivismo ou nalguma verso
do "programa forte"_ que a observao histrica funde o mudelo.
***
Mas a escassez de referncias s cincias sociais e s humanidades no impediu que
cientistas sociais entrassem na discusso levantada pela ERC.
Em primeiro lugar, Kuhn afirma que o mtodo cientfico reflete muito da estrutura
social da cincia. Por exemplo, autoridade, senioridade, nmero de "convertidos", pesam mais
na escolha entre alternativas rivais que sua confrontaco simultnea via uma linguagem neutra
(confrontao que, de resto, Kuhn julga ser impossvel). Isso redefine o papel do socilogo da
cincia. Ele no mais estudaria apenas as regras em que se baseia a sociedade dos cientistas,
com o fim de explorar como funciona uma sociedade que, em seu trabalho, usa determinado
mtodo _o mtodo cientfico. Seu trabalho deveria, a partir de agora, passar a ter reflexos
diretos sobre os estudos acerca do mtodo cientfico.
Note-se que "redefinir o papel" nada tem a ver com a prtica de pesquisa do socilogo.
Ele continua a usar seus prprios mtodos e teorias (um ponto que Kuhn j ressaltava na
"Revoluo Copernicana") para ajudar a filosofia a formar "objetos de comparao" cada vez
mais esclarecedores.
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Kuhn utiliza constantemente uma linguagem extrada da psicologia da gestalt. Fala em
"viso particular de mundo", em "converso a uma nova viso" etc. Para escapar da acusao
feita por Lakatos, por exemplo, de ele que reduziria o mtodo cientfico psicologia de massas,
apela para a educao e para outros vnculos sociais ligados ao aprendizado como foras
capazes de moldar a psicologia do grosso da comunidade de cientistas.
Assim, ao escapar do discurso psicolgico, Kuhn abre a porta para que os socilogos
estudem o comrcio entre os valores que norteiam a convivncia e a formao dos cientistas e
aqueles que determinam como deve ser exercido o mtodo cientfico.
Mas no foi esse o nico caminho aberto pela ERC para que historiadores e socilogos
ganhassem destaque na elucidao da atividade cientfica. Afinal, onde buscar evidncia de que
uma cincia j atingiu sua maturidade paradigmtica? No mais na estrutura da disciplina.
Afinal, a estrutura sempre ser lgica, partindo de princpios tomados como primitivos e
evoluindo para a explicao de problemas (e isso vale mesmo nas disciplinas no-
paradigmticas, como, por exemplo, a antropologia ou a sociologia). Mesmo que essa estrutura
lgica jamais seja explicitada (nem no caso da matemtica ela o , cf. Davis e Hersh, 1980, p.
388-90), os cientistas tendem a dizer que essa lacuna se deve a questes de ordem prtica e no
terica. No que uma cincia no tenha estrutura lgica: ela a tem, dir a maior parte dos
componentes da comundade cientfica, s que no vale o trabalho explicit-la.
A fase de transio maturidade deve ser procurada nos manuais de ensino. Em algum
ponto do desenvolvimento de uma cincia, os manuais deixam de se reportar aos princpios de
uma disciplina. Comeam a medias res e do os princpios como assentados noutro lugar.
Levantar quando acontece isso (o que no precisa, nem pode, acontecer pontualmente na
histria) trabalho para historiadores profissionais e, mais amplamente, de cientistas sociais.
No fim de contas, a teoria de Kuhn exige essa interveno dos historiadores e dos
socilogos. Tome-se como exemplo a prpria definio que Kuhn fornece de comunidade de
cientistas. Ao longo da ERC, ele a define como aquela que trabalha em torno de um paradigma
e, paradigma, como aquilo que articulado por uma comunidade de cientistas (desenvolvida).
A menos que exista uma maneira independente de definir paradigma e comunidade de
praticantes de uma determinada disciplina cientfica, no h como escapar do problema da
circularidade. Sob esse aspecto, portanto, a interveno do cientista social no trabalho do
epistemlogo absolutamente essencial.
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Um trabalho sociolgico cuja finalidade foi a de resolver essa "circularidade" , por
exemplo, o de Diana Crane (Crane, 1969) que procurou delimitar comunidades de praticantes
de uma determinada disciplina no a partir do contedo dos papers publicados _o que seria o
mesmo que reuni-los pelo "paradigma" usado pelos pesquisadores_ mas a partir das redes de
citaes bibliogrficas. Embora sujeito a crticas (afinal, nem sempre so as citaes
reconhecimentos puramente cientficos, podendo dever-se ascendncia de determinado
cientista ou grupo de pesquisa, a trocas de favores dentro de um grupo de pesquisa _pois
quantidade de citaes constitui parmetro de avaliao de impacto de um trabalho cientfico,
especialmente nos ltimos 30 anos, e pode determinar se o grupo que o publicou continuar ou
no a receber verbas para pesquisa), o trabalho de Crane mostra exemplarmente que os
socilogos tm um papel importante a desempenhar dentro da filosofia das cincias naturais.
Esse tipo de trabalho sancionado por Kuhn (Kuhn, 1970, p.178) no tocante cincia recente.
Para perodos mais distantes, outras tticas tm de ser divisadas.
***
O exposto acima sintetiza o que nos parece ser a relao correta entre Kuhn e as cincias
sociais, relao que desenvolveremos melhor no captulo 2 deste trabalho. No entanto, o grosso
da aceitao de Kuhn se deu noutro sentido. No na relao "cincia social Kuhn", mas na
relao "Kuhn cincia social". E' nesse sentido que o modelo de Kuhn aparece "aplicado" s
cincias sociais e s humanidades. E' nesse sentido que aparece o Kuhn normativo, relativista
(no-civilizado, que negaria qualquer base razovel para a cincia) etc.
Os cuidados de Kuhn no sentido de descaracterizar sua obra como uma "cartilha" para
as atividades que pretendem chegar ao grau de avano da fsica no impediram que o livro fosse
utilizado dessa forma. Isso pode ser, em parte, devido a um despreparo geral por parte de no-
especialistas em epistemologia para tratar com assuntos epistemolgicos. Mas, pelo menos em
parte, isso deriva da linguagem pouco formal que o prprio Kuhn imprime a seu texto e que
responsvel por muito de sua aceitao. A acessibilidade da ERC paga o preo de ser o texto
passvel de infinitas ms interpretaes. M. Masterman (Masterman, 1970) encontrou, no
decurso da ERC, pelo menos 21 diferentes noes definidas pelo termo "paradigma". E, embora
Kuhn marque sua acepo preferida (de paradigma entendido como exemplar), o uso reiterado
do termo em situaes distintas gera confuso.
Alm disso, no parece a princpio ficar claro qual o papel dos exemplos histricos na
ERC. Embora o autor os utilize, o fato que o ponto principal de Kuhn a crtica idia
positivista de que a atividade cientfica pode ser justificada racionalmente para alm de
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qualquer dvida e independentemente das convices que a comunidade de cientistas mantm
acerca dos componentes do mundo numa dada poca. Assim, embora alguns exemplos
histricos o apoiem, Kuhn no pretende sacar deles o apoio definitivo para sua teoria. Nem isso
seria admissvel. Se, para a posio de Kuhn, a prpria experincia est em dvida, que dir a
histria? Essa dificuldade pode levar a uma leitura "naturalizada" do autor, isto , a uma leitura
em que os exemplos histricos assumiriam papel central na "prova" do ponto de Kuhn. Laudan
(Laudan, 1990), por exemplo, incorre nesse erro quando ridiculariza a posio de Kuhn ao
apresent-lo, num dilogo fictcio, como o autor de "Ceticismo Acerca de Tudo, Menos das
Cincias Sociais, Um Guia Ps-Moderno".
Uma preocupao mais ampla move Kuhn: se seu ponto estiver correto, ou se abandona
a crena em que a atividade cientfica racional _o que Kuhn jamais fez_ ou se abandona o
modelo de racionalidade no qual razo seja algo assentado em regras formulveis
independentemente de contexto.
Os eventuais desvios cometidos durante o texto da ERC recebem explicitao maior no
"Posfcio", publicado sete anos depois. O "Posfcio", publicado na segunda edio, de 1970,
reforma muito do discurso que poderia dar margem a uma leitura mais "revolucionria" da
ERC, embora no o reforme no sentido de desmenti-lo, mas de explicit-lo. Kuhn no
abandona, no "Posfcio", nenhuma das teses centrais expostas na ERC. Ainda assim, a primeira
formulao da ERC podia facilmente dar apoio ao mais violento relativismo, quando parecia
no admitir a existncia de qualquer foro imparcial onde duas teorias rivais pudessem medir-se
(os positivistas identificariam esse foro com uma possvel linguagem experimental _ou de
observao_ isenta de teoria). No entanto, e como Kuhn explicar em parte no "Posfcio" e
tambm em artigo posterior, "incomensurabilidade" entre termos de duas teorias no deve ser
entendida como "incomunicabilidade" entre cientistas partidrios dessas mesmas teorias. Ou
seja, duas escolas, partidrias de paradigmas incomensurveis, comunicam-se e debatem (e
debatem proveitosamente) baseando-se nos pontos que permaneceram fixos na transio entre
os dois paradigmas (Kuhn, 1982, 1983). A inexistncia de tal foro tambm no deve levar
concluso de que no existam razes para escolha entre teorias rivais. Como dissemos antes,
seria absurdo advogar a posio de que no existiriam critrios de escolha. Deve-se revisar, isto
sim, o que deva ser entendido por "razo".
Assim, existe um s modelo, mas vrios graus de explicitao deste. Muitos dos
cientistas sociais articuladores ou simplesmente usurios dos conceitos emprestados de Kuhn
limitaram-se a trabalhar com a primeira edio da ERC ou com a edio seguida do "Posfcio".
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A esse respeito, um levantamento de citaes de Kuhn nos ltimos 10 anos no "Social Sciences
Citation Index" mostra que 60% das citaes referem-se ERC (no foi possvel analisar
perodos anteriores devido a mudanas nos critrios adotados pelo ISI; os dados no so
comparveis com os da ltima dcada). Desta forma, ao fazermos adiante uma espcie de
"sociologia da leitura de Kuhn por cientistas sociais", estaremos autorizados a nos concentrar
nas teses tal como so expostas na ERC. Algumas distines importantes dentro do modelo
seriam explicitadas pelo autor em artigos cuja circulao ficou mais restrita, atingindo
preferencialmente o pblico profissional em epistemologia. Em termos de assimilao pela
classe mais ampla dos cientistas sociais e dos historiadores (e isso o que entendemos por
"sociologia da leitura"), a ERC que domina a cena. Referncias a tais artigos mais
especializados de Kuhn, bem como sua "Revoluo Copernicana", aparecero neste trabalho,
especialmente no captulo 1, quando dermos um quadro geral do modelo. Porm, em termos
dessa sociologia da leitura, tais artigos so praticamente irrelevantes.
Mesmo levando em conta somente as indicaes presentes na ERC, possvel distinguir
o que Kuhn quer dizer com "paradigma". Ainda assim, os socilogos que aplicaram Kuhn s
suas respectivas disciplinas fizeram-no custa de adaptaes grosseiras do termo. Usando uma
acepo relativamente vaga de "paradigma", no difcil dar a praticamente qualquer atividade
humana o status de "cincia". Por exemplo, se "paradigma" significar apenas "uma srie de
compromissos acerca de mtodos, objetos de estudo e avaliao de resultados sobre os quais
est de acordo parcela razovel da comunidade de praticantes", ento, claramente, as cincias
sociais possuiro diversos paradigmas. Logo, abrigaro uma srie de subdisciplinas, cada uma
rigorosamente cientfica (dentro de uma acepo que supostamente faz justia a Kuhn).
Nesse sentido, epistemlogos das cincias sociais procuraram encontrar na histria, na
sociologia, na poltica ou na antropologia, sinais que indicassem a presena de paradigmas
(para um levantamento extenso da presena desses paradigmas, cf. Eckberg & Hill, 1979, pp.
132-33). Ao encontr-los, garantiriam o status de cincia para cada uma dessas disciplinas que
coletivamente denominamos, de forma um pouco vaga, "cincias sociais".
Mas, para que a aplicao valha, as distores tm quase de beirar a contradio.
Herman (Herman, 1988), por exemplo, identifica seis paradigmas dominantes nas cincias
sociais. Um deles, a praxeologia, teria como caracterstica principal, segundo o autor, o fato de
ser um paradigma cuja atitude anti-monoparadigmtica (p. 126)!
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Para concluir tudo o exposto acima, o trabalho que se segue uma "sociologia da leitura
da ERC", leitura esta cujos resultados podem gerar duas correntes. De um lado, haver os
socilogos que, mantendo seus mtodos e a especificidade de suas disciplinas, passaro a
participar do esforo distintamente filosfico de entender a atividade cientfica, de construir
"objetos de comparao", no sentido wittgensteiniano.
De outro, e essa a direo na qual se desenvolve boa parte da literatura ligada ao tema,
estaro os socilogos cujo propsito o de aplicar o sistema de Kuhn atividade exercida pelos
cientistas sociais. Eventualmente, tais aplicaes podero mesmo ser muito frteis, no sentido
de relacionar fatos distantes, no sentido de produzir ferramentas para explorao e
sistematizao de vastas reas da sociologia. Nosso ponto ser apenas que, pelo menos nos
exemplos estudados, tais aplicaes se baseiam em uso pouco rigoroso do vocabulrio
emprestado da ERC.
PARTE 1. O Modelo de Desenvolvimento Cientfico de T. S. Kuhn
1.1 Kuhn e o senso comum
Kuhn divide o desenvolvimento cientfico de uma disciplina particular em dois grandes
componentes: cincia normal e revoluo cientfica. Durante os perodos de cincia normal,
podem valer as regras de explicao cientfica e de descarte de hipteses tal como descritas nos
manuais escritos por autores como os positivistas lgicos (que so as descries mais aceitas
pela comunidade de cientistas, ainda que a maior parte deseus membros nunca chegue a usar
regras inteiramente justificveis do ponto de vista lgico, para a aceitao ou rejeio de
hipteses). J nos perodos de revoluo cientfica, o debate entre alternativas rivais,
envolvendo fundamentos (que no estavam em jogo quando o debate se dava apenas no mbito
da cincia normal, presidida por um paradigma indisputado), para explicar um conjunto de
fenmenos, a norma.
No entanto, esse debate no racional, no sentido de que sempre esbarra em questes
que no podem ser resolvidas de comum acordo entre as partes, recorrendo ambas a um foro
neutro e reduzindo seus diferentes discursos a um discurso comum via mecanismos
inteiramente lgicos.
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Do ponto de vista epistemolgico, o modelo revolucionrio, j que tem como
conseqncia a necessidade de que se reaprecie toda a histria da cincia. Uma vez aceito o
modelo de Kuhn, no h lugar para se falar em desenvolvimento linear da cincia, nem em
desenvolvimento cumulativo do conhecimento norteado pela razo, que justamente a imagem
da histria da cincia que os cientistas cultivam e que est em todos os manuais que os nefitos
devem percorrer antes de poderem considerar-se formados. Se existe linearidade, esta
sustentada por mecanismos que pouco teriam a ver com regras racionais. Sua base deve se
apoiar num novo modelo de racionalidade.
Do ponto de vista da prtica cientfica, a alternativa oferecida por Kuhn parece fornecer
uma imagem bem pouco lisonjeira da atividade do cientista. Longe de trabalhar no sentido do
questionamento constante de suas premissas, no sentido de buscar a verdade mesmo a preo de
ser obrigado a abandonar suas teorias mais caras, o cientista aparece como herdeiro
(involuntrio) de uma tradio e tem como papel articul-la, isto , salv-la de ataques a todo
preo.
Convencer seu pblico (principalmente filsofos da cincia e cientistas naturais) da
plausibilidade do modelo proposto e de que ele seria o mais adequado para se entender a
atividade cientfica parece tarefa duplamente inglria. De um lado, o dos filsofos da cincia, o
modelo certamente derruba um dos mais slidos preceitos do positivismo (e, mesmo, do senso
comum) acerca da cincia: a crena de que o conhecimento cientfico se distancia de outras
formas de conhecimento humano pelo fato de se desenvolver cumulativamente, apoiado em
princpios universais de razo, que pairam acima de eventuais diferenas de enfoque.
"Nas sociedades estudadas pelos antropologos, o conhecimento quotidiano do mundo ou
tomado como garantido ou embasado num sistema fracamente articulado de lendas, mitos e
doutrinas religiosas. Na sociedade moderna, no entanto, a religio perdeu muito de sua
autoridade em relao ao conhecimento prtico e a eficcia da mgica posta em dvida. Nas
pequenas decises da vida, as pessoas esto sempre prontas para seguir o costume ou uma regra
simples conveniente mas, em questes realmente graves, elas sentem que precisam depositar
sua confiana na cincia." (Ziman, 1984, p. 186)
Abalar a confiana na superioridade da cincia sobre outras formas de conhecimento
(prtico) , assim, abalar o que h de mais slido e confivel para a sociedade contempornea
_no s leigos, mas tambm profissionais em reas nas cincias naturais ou nas humanidades.
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Noutras palavras, o modelo parece a princpio instaurar um certo caos na histria da
cincia. Afinal, se seu desenvolvimento no cumulativo, nem a escolha entre alternativas
rivais racionalmente justificvel (tomado o modelo clssico, que insiste numa racionalidade
apoiada em regras abstratas e atemporais _daqui para diante, ser sempre neste sentido que
tomaremos o termo "clssico" quando este se referir racionalidade), sinal de que a cincia
no pode oferecer uma argumentao inequvoca que a coloque acima de outras atividades
humanas (aparentemente _e s aparentemente, como veremos mais tarde_ incluindo, para
Feyerabend (Feyerabend, 1975), o vodusmo). Assim, deixaria, nesse novo modelo, de ser
"fato" que a cincia atual o melhor do esforo humano, como tambm ficaria enterrada
qualquer esperana de se encontrar um mtodo capaz de definir com segurana qual entre dois
enfoques rivais para explicar um conjunto de fenmenos o melhor. Essa foi a primeira reao
ao que est na ERC e , mesmo hoje, quase 30 anos depois de sua publicao, a reao de boa
parte de cientistas s idias de Kuhn. Mais frente, mostraremos que essa reao no tem
justificativa.
Por outro lado, o modelo de Kuhn choca o cientista praticante. Afinal, quais so as bases
sobre as quais est apoiada sua atividade? O cientista ensinado desde cedo que os modelos
que estuda e trata de aperfeioar agora no so fruto de escolhas fortuitas. Muitos homens j se
debruaram sobre os mesmos problemas e seus insucessos foram norteando o caminho para a
busca de solues cuja melhor expresso se encontra hoje. Assim, Aristteles j se interessava
pelos movimentos dos corpos celestes, mas partia da premissa errada de que a Terra ficava no
centro do universo e desconhecia o que fossem as estrelas e os planetas. Isso se devia ao pouco
instrumental disponvel poca, que no permitia medidas precisas e avaliaes rigorosas
quanto a posies relativas etc. Mas, com o advento desses instrumentos e com uma mecnica
mais requintada, o homem pde passar, progressivamente, ao modelo que colocava a Terra em
torno do Sol, ao modelo que afirmava serem as rbitas elipses e no crculos, a uma mecnica
que subsumisse essa astronomia a princpios mais gerais (com Isaac Newton), e assim por
diante. A imagem atual _de uma Terra perdida em um universo praticamente vazio, ligada a
uma pequena estrela que orbita na periferia de uma entre muitos milhes de galxias_
resultado de esforo cumulativo de homens que se debruaram sempre sobre o mesmo
problema: o de explicar quais os movimentos dos cus e como funciona toda a mquina
csmica.
Algum lembrar ao cientista de que houve dificuldades na aceitao de alguns
modelos, que Coprnico preferiu esperar at quase o momento de sua morte para no sofrer as
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conseqncias da divulgao de suas teorias. Historiadores podero lembrar ainda o destino de
Galileu, duas vezes processado e uma vez condenado por professar o heliocentrismo ou ainda
Descartes, que preferiu evitar problemas e escondeu "O Mundo" dos olhos de seus crticos mais
perigosos.
O cientista de hoje conhece esses fatos, mas argumentar que casos como o de
Coprnico, Galileu ou Descartes, mostram o quo difcil a trilha da cincia, o quanto esforo
foi necessrio para fazer com que a razo se impusesse. Os trs casos so exemplos da cincia
versus a Igreja, do novo e correto versus a tradio, que custa a ser desalojada. Podem mesmo
ser feitas analogias entre esses casos e exemplos familiares de teimosia conservadora frente ao
novo.
O que Kuhn tem a dizer contra toda essa carga recebida pelo cientista, contra toda essa
viso _de resto bem articulada_ da histria do desenvolvimento de sua prpria atividade?
Ele responder, simplesmente, que essa viso da histria foi inculcada em um longo
processo de aprendizado e que ela no pode se pretender mais fiel aos fatos do que o seu
modelo de desenvolvimento cientfico. Dir que o mximo que pode ser extrado da convico
do cientista praticante um entusiasmo para seguir pesquisando e uma crena em que se est
fazendo o melhor, mas que essa crena no pode ser fundamentada "racionalmente", ou seja,
que no existem princpios neutros sobre os quais pessoas racionais sejam obrigadas a aceitar
que a cincia a mais perfeita atividade com pretenses ao conhecimento (se essa aceitao
existe na prtica, sua fundamentao no deve ser procurada em princpios transcendentais).
Dir que os casos histricos no se resolveram pelo "novo e mais correto vencendo a tradio",
mas sim pelo novo vencendo o velho. Cada etapa do desenvolvimento da cincia envolve
recursos retrica e outros recursos que bem pouco se encaixam na viso que se tm de razo e
que a utilizao desses recursos, a longo prazo, o que forja o desenvolvimento cientfico.
Mesmo que se deixe a retrica e outros fatores "menos dignos" de lado, foroso notar
que palavras como "simplicidade", "acurcia", "harmonia", "testabilidade" ou "fertilidade" no
so passveis de regulamentao definitiva e, mesmo assim, comparecem constantemente nos
julgamentos cientficos acerca de que alternativa escolher em situao de crise. Laudan
(Laudan, 1990) chama esses termos, simplesmente, de "slogans" (p. 98). Mas que cientista
admitiria que sua atividade se baseia na aplicao mais ou menos subjetiva de "slogans"?
O ponto central de toda essa argumentao a demonstrao de que escolas, em
diferentes pocas, no estudavam os mesmos problemas nem se valiam dos mesmos mtodos
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de aferio de adequao natureza. A unidade metodolgica da cincia uma quimera
inventada h tempo pela filosofia e articulada ao mximo de sofisticao pelos neopositivistas.
Aristteles se interessava pelo movimento dos corpos celestes em relao Terra, mas
isso no pode ser equacionado com o temrio que interessava a, digamos, Kepler. Pois, apesar
de ambos parecerem discutir mais ou menos a mesma coisa, o fato que "Terra", para
Aristteles, no era simplesmente mais um corpo celeste, onde, por acaso, nos encontramos.
"Terra" tinha tambm o significado de "posio", de lugar privilegiado no universo. Dizer que a
Terra estava em repouso no era apenas fazer uma assero sobre o estado da Terra mas, antes,
sobre sua essncia. Equivalia, praticamente, a afirmar uma tautologia. O movimento no era
relativo como diria Galileu, algo dependente do estado de movimento do referencial onde est o
observador em relao ao objeto observado. Os corpos que no se moviam, segundo a fsica
aristotlica, diferiam essencialmente dos corpos em movimento. Dessa forma, embora
aparentemente Aristteles e Kepler parecessem estar estudando o mesmo conjunto de questes,
o fato que estudavam temas bem diferentes. Nesse caso em particular, o uso da mesma
palavra (Terra) em dois sentidos completamente distintos, que leva os cientistas a pensar em
continuidade na tradio de resoluo de um conjunto de problemas.
Para o cientista sem inclinaes filosficas, isso pode parecer um jogo de palavras.
Alm do mais, o cientista poder sempre argumentar que, a exceo desses casos exemplares,
onde at pode ter havido algo semelhante, no se pode aplicar a mesma linha de argumentao
para toda a historia da cincia.
Em resumo, para ter aceitao entre os epistemlogos profissionais, Kuhn teria de
mostrar argumentos que destrussem os principais dogmas do positivismo sem cair nas garras
do relativismo, posio que seria impossvel de defender. Pois, mesmo no caso de ter bons
argumentos quanto inadequao dos dogmas do positivismo, restaria sempre aos positivistas o
argumento de que a alternativa dada por Kuhn levaria a um "laissez faire" em cincia
incompatvel com a realidade que se observa e, mesmo, com qualquer conceito plausvel de
razo. O que responder pergunta: o que impediu os cientistas do passado de, em situao de
crise, frente a vrias alternativas rivais, escolhrerem alternativas diferentes das registradas pela
histria? E' preciso que se postule uma certa estabilidade de vises de mundo, um certo acordo
ontolgico que fornea um foro para escolha entre teorias. Para responder satisfatoriamente a
essas crticas, Kuhn deveria ser capaz de elaborar um modelo onde se articulassem elementos
derivados de uma complexa trama entre retrica, mtodo cientfico, sociologia da comunidade
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de praticantes de uma disciplina reconhecida na prtica como cientfica, e os meios que se usam
para educar o futuro cientista.
Para ter aceitao entre os cientistas, Kuhn teria de provar que a atividade cientfica,
embora fosse menos aventureira que no quadro pintado pelo positivismo, ainda assim mantinha
um lugar garantido para a criatividade individual e deixava o cientista com alguma esperana de
entender melhor a natureza, isto , evitando o relativismo.
Pode parecer paradoxal que um livro que, primeira vista, subtrai da atividade cientfica
uma de suas caractersticas mais fascinantes _a criatividade do cientista no momento de propor
hipteses_ possa ter tido tanta penetrao nos meios cientficos profissionais. Um fator, sem
dvida, o carter aparentemente acessvel do texto da ERC. Outro fator, mais sutil, que
Kuhn se vale da prpria retrica do cientista ao expor casos histricos que corroboram seu
modelo e ao expor contra-exemplos viso positivista do processo de desenvolvimento
cientfico. O quanto esses casos histricos foram bem escolhidos e o quanto so representativos
da cincia em geral, foi assunto muito debatido nas ltimas duas dcadas (cf. Shapere, 1964).
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Para concluir, deve-se lembrar dos mritos da perspectiva positivista, cumulativa, do
desenvolvimento cientfico. A seu favor conta, em primeiro lugar, a autoridade de um sistema
estabelecido h dcadas por epistemlogos, com os quais a maioria dos cientistas est de
acordo. O modelo tem o mrito de instalar em um s quadro o carter revolucionrio da
atividade cientfica, sua busca apaixonada da verdade, em que, a cada momento, todo o edifcio
do conhecimento est por um fio, com um mtodo que, na ltima hora, sempre garante a
estabilidade do empreendimento e faz com que o edifcio fique, a um momento, maior, mais
epaoso, mais completo e mais harmonioso.
O modelo ainda guarda com o senso comum o sentimento de que a experincia _ou
uma linguagem neutra baseada na observao isenta de teoria_ sempre decide qual a melhor
alternativa, e que as crises sempre podem ser superadas pela razo, desde que se seja sempre,
em qualquer caso, fiel ao mesmo mtodo. E' o preceito de no se mudar as regras durante o
jogo. A cincia o produto mais acabado do conhecimento humano porque tem se mantido fiel
a um mtodo de argumentao, de um lado, e a uma misso de sempre confrontar suas
conjecturas com a experincia, por outro.
Em lugar desse modelo firmemente ancorado tanto na tradio filosfica como na
tradio cientfica quanto no senso comum, aparece um modelo que pretende, em ltima
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anlise, dizer que o desenvolvimento cientfico no se apia no que comumente se chama razo,
que os cientistas constantemente forjam novas regras para teste e eventual validao de suas
atividades, que a razo cede lugar ao que, no limite, pode ser entendido como trapaa (a
expresso de Feyerabend) e que, uma vez ganha uma disputa e instaurada uma nova teoria, o
cientista luta para mant-la a salvo do ataque por novidades. Sua criatividade est voltada para a
conservao do velho e conhecido e no no sentido de explicar o novo e trilhar o inexplorado, o
que s feito em ltimo caso. Enfim, o modelo de Kuhn parece apresentar a cincia como uma
atividade orientada para o conservadorismo e afastada da razo, colocando-a ao lado de
atividades humanas, em princpio, bem menos nobres.
A tarefa de Kuhn , ento, dupla. Primeiro, fornecer argumentos para provar que seu
modelo historicamente adequado, no sentido de que entram em sua confeco todos os
elementos da racionalidade cientfica tal como se manifesta. Segundo, mostrar que esse modelo
no leva ao relativismo e ao tudo vale de Feyerabend (que, como veremos adiante, renegar a
autoria desse "slogan").
No corpo principal da ERC est a defesa da tese de que a cincia, em perodos de
transio, lana mo de pseudo-argumentaes que no tm como ser reduzidas a um discurso
racional de regras que possa ser aceito por partidrios de ontologias ou de tradies de
avaliao diferentes. Junto a essa argumentao de princpio, Kuhn mostrar que sua teoria gera
um modelo que adequado para a compreenso de algumas transies histricas. O modelo no
pretende explicar tais transies, uma vez que explicar significa recorrer a algum estrato mais
fundamental e bem justificado de asseres e a partir dele provar via mecanismos
exclusivamente lgicos o ponto em questo. Kuhn descarta a existncia de tal estrato
privilegiado.
Os ltimos traos de uma possivel trilha para o relativismo sero apagados no
"Posfcio". Muito do trabalho posterior de Kuhn ser no sentido desfazer malentendidos
gerados por questes levantadas na ERC, como, por exemplo, a questo da
incomensurabilidade entre teorias. Nesse caso, ele tratar de mostrar que no pelo motivo de
duas teorias serem incomensurveis que seus defensores estaro impedidos de confront-las.
Outro ponto de atrito o da escolha entre teorias: Kuhn argumentar no sentido de que os
cientistas sempre fazem escolhas (o que parece bvio, dada a histria da cincia), mesmo na
ausncia de regras para eleio de teorias. Noutras palavras, regras _ou razo apoiada em
regras_ no so essenciais para que se faa escolhas entre teorias rivais.
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Passamos agora apresentao dos principais pontos de argumentao sobre os quais
Kuhn fundamenta seu modelo.
1.2 O Modelo
Kuhn, no decorrer da ERC, s estudar a transio entre paradigmas. As consideraes
do autor sobre essa transio valem, com pequenas modificaes, para a transio entre as fases
pr-paradigmtica e paradigmtica de uma disciplina dentre as que costumamos chamar
"cincias naturais".
Uma determinada atividade com pretenses ao conhecimento, dita cientfica, atingiu a
fase paradigmtica quando pra de haver debate em torno de princpios. As diversas escolas que
estudam determinado conjunto de fenmenos concordam com que a viso de uma delas a
melhor. A partir da, o paradigma da escola vencedora ganha aceitao geral e passa a ser base
de toda a tradio de estudo naquele campo. Pode haver especializao nas diferentes escolas,
isto , cada grupo de cientistas pode se dedicar a determinado conjunto de fenmenos, com
diferentes grupos podendo estudar diferentes fenmenos. O que importa que todos os grupos
admitam uma ontologia comum e, mesmo estudando fenmenos diferentes, concordem com
que estes sejam manifestaes das entidades catalogadas naquela ontologia aceita por todos.
Esse acordo que se segue transio de paradigmas no se d de maneira explcita.
Existe debate entre as escolas, mas esse debate no visa exatamente a descobrir,
desapaixonadamente, qual o "melhor" paradigma. As escolas lutam para fazer valer seu ponto
de vista, em detrimento dos demais. A vitria de uma delas se baseia em fatores diversos como
o peso (autoridade) dos defensores de cada escola ou a "demonstrao" pblica de que uma
delas (a que defendemos, claro) verdadeiramente representa a continuidade da tradio.
Feyerabend sublinha que este ltimo exatamente esse o caso de Galileu. Ao apelar
para o fato de que muito de suas teorias j estava contido no platonismo, Galileu valia-se do
recurso retrico que visa a abrandar o choque do novo, vestindo-o de uma roupagem que o
aproxima da tradio conhecida. Contam tambm fatores econmicos, sociais, polticos,
religiosos etc. A anlise "objetiva" dos fatos para se tentar decidir racionalmente sobre que
teoria melhor os explica tentada tambm. Mas cada escola fala sua prpria lngua e essa
discusso acaba sendo infrutfera do ponto de vista puramente lgico, forando a entrada em
cena de outros mecanismos, para que haja escolha entre teorias.
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A certa altura desse debate, uma das escolas comea a ganhar adeptos, o que sufoca as
tradies rivais. A contrapartida sociolgica desse fenmeno o que Robert Merton (Merton,
1968) chama "efeito Mateus". Quanto mais se desenvolve uma escola, quanto mais adeptos
ganha, maior seu potencial para desenvolver-se ainda mais atravs de um sistema de citaes e
premiaes mtuas. Esse efeito acaba por reforar a escolha feita. Os projetos de pesquisa
ligados ao paradigma vencedor sero os que atrairo as melhores inteligncias, os que recebero
maiores verbas para pesquisa, os que tero maior apoio das universidades etc. Os paradigmas
rivais, sem esses estmulos, tendero a desaparecer. Assim, a primeira escolha refora o
paradigma vencedor atravs de uma srie de mecanismos que pouco teriam a ver com sucesso
do ponto de vista estritamente cientfico. Isto se "estritamente cientfico" for entendido em
termos positivistas, como sinnimo de fidelidade a um mtodo lgico, atemporal, imutvel.
Esse momento de transio pode ser determinado, a posteriori, pelo exame dos manuais
com os quais so iniciados os cientistas jovens. Todos mencionam os mesmos princpios
bsicos, com matizes apenas de carter didtico. Comeam a aparecer livros mais adiantados,
visando a um pblico j inteirado dos princpios da teoria. Os artigos de pesquisa publicados
em revistas tendem a se tornar mais especializados e, no dizer de Kuhn, "esotricos". Uma vez
que o trabalho inicial de convencimento est feito, o cientista j no se preocupa em ser
acessvel para um pblico maior que o estritamente ligado sua rea de interesse.
Vale lembrar que nenhuma teoria nova est de acordo com todos os fatos j conhecidos
do campo que pretende explicar. Essa caracterstica das teorias cientficas reconhecida seja
por um positivista lgico ortodoxo seja por um filo-anarquista em epistemologia. Assim,
quando a comunidade aceita um paradigma, o que ela est aceitando , na verdade, uma
promessa de resoluo de problemas futuros, promessa que se impe sobre as outras com base
no sucesso obtido na resoluo dos problemas j atacados. Nesse sentido, pode-se tambm dizer
que a aceitao de determinado paradigma um fenmeno irracional: ele aceito menos pelo
que fez no passado e mais pelo que se sente ele poder fazer no futuro. Uma vez que no existe
como avaliar o rendimento de determinada teoria no futuro, a escolha de uma entre diversas
alternativas deve se basear em um "pressentimento de que as coisas podero dar certo". As
teorias perdedoras no conseguiriam despertar o mesmo sentimento na comunidade. Tal
"pressentimento", desnecessrio lembrar, no pode se encaixar no quadro da racionalidade
cientfica desenhado pelo neopositivismo.
Dada a diversidade de fatores que levam escolha de determinado paradigma para
orientar a pesquisa em uma cincia natural, Kuhn no se arrisca a tentar definir qual a via para
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que uma disciplina se torne paradigmtica. Seu livro, de resto, no tem pretenses preceptivas.
Pretende apenas negar a tese positivista da possibilidade de escolha puramente lgica ou
racional entre teorias rivais. Os casos apresentados mostram instncias histricas em que
melhor pode ser vista a falncia da tese positivista.
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Uma vez que todos os participantes de uma tradio de pesquisa aceitam um paradigma
que os oriente, comea a fase chamada por Kuhn de "cincia normal". Nesse ponto, a analogia
que melhor caracteriza a atividade dos cientistas a da resoluo de quebra-cabeas.
Nessa altura a tarefa dos cientistas melhorar os padres de medida j conhecidos,
aprimorar o clculo das constantes da teoria, tentar ampliar o campo de aplicao da teoria etc.
Aqui, "teoria" e "paradigma" esto sendo usadas indiferentemente. Grosso modo, o paradigma
contm o que a epistemologia clssica chama teoria, mais seus prprios mtodos de validao
(sejam os mtodos de validao que poderamos chamar propriamente cientficos _margens de
erro admissveis, preferncia por certos tipos de instrumentos de medida etc._ sejam os valores
mais abstratos que o cientista usa para avaliar hipteses, como simplicidade, harmonia etc.).
Classicamente, tais mtodos deveriam ficar de fora das modas cientficas, deveriam ser o foro
neutro para debate entre teorias rivais. Mas isso no acontece no modelo de Kuhn. Cada
paradigma carrega consigo seus prprios mtodos de validao e isso o que torna impossvel a
deciso racional entre paradigmas rivais. No h razo externa, neutra, atemporal e comum a
teorias rivais. Retomando um termo de Laudan, citado mais acima, diferentes paradigmas
colocam diferentes pesos sobre os mesmos "slogans". A permanncia dos slogans cria a
sensao de continuidade (que todo cientista natural estar pronto a admitir). A diferena de
peso que cada escola atribui aos slogans a raiz da descontinuidade _em termos racionais_
entre dois paradigmas (o que j no parecer to familiar para os cientistas).
Esse trabalho eminentemente conservador do cientista leva ao que Kuhn denomina
anomalias, fenmenos que "se recusam" a entrar na cama de Procusto traada pelo paradigma
(en passant, Kuhn usa a analogia da cama de Procusto com relao viso positivista da
cincia. Kuhn, 1970, p. 108). Em um primeiro momento, o cientista deixa essas anomalias de
lado, para estudo posterior. Ele confia em seu paradigma e acredita em que a anomalia fruto
de pesquisa precipitada, que queimou etapas. Comea ento a atacar partes do problema que
levou anomalia com a finalidade de, ao longo do tempo, resolv-la.
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Essas anomalias _que, na verdade, esto presentes desde que a teoria proposta_ podem
no se resolver com essa pesquisa mais aprofundada. As conseqncias que essa permanncia
pode ter para uma teoria estabelecida dependero, novamente, de fatores pouco ligados ao
debate racional.
Dentro do quadro clssico, a presena da anomalia deveria despertar a idia de substituir
os princpios da tradio de pesquisa por outros mais adequados ao campo de fenmenos, ou
seja, dever-se-ia substituir o paradigma por outro competidor em melhores condies de
resolver a anomalia. Mas isso s feito em ltimo caso. Antes, muito tem de ser avaliado.
Por exemplo, conta muito a autoridade do cientista que enfrenta a anomalia. Se for um
cientista relativamente desconhecido dentro da comunidade, a resistncia da anomalia a
tentativas de explicao poder ser atribuda incompetncia do cientista que a estuda. Se esse
cientista afirmar que vale a pena alterar os princpios do paradigma, cai sobre ele a reprovao
expressa no dito de que mau ferreiro aquele que se lamenta de suas ferramentas. Outros
fatores que pesam nessa deciso so o prestgio do laboratrio que estuda o problema, o grau de
desenvolvimento do pas em que o problema est sendo estudado (pois isso d uma medida
indireta da maturidade das instituies de pesquisa ali instaladas) etc.
No caso de um cientista de prestgio, em instituio de prestgio, estar estudando o
problema h muito tempo (esse "muito" tambm decidido em bases bem pouco racionais),
ento passa a ser possvel pensar que o paradigma j exauriu suas possibilidades e que hora de
procurar por uma nova alternativa.
Pesa tambm nessa deciso o fato de os envolvidos nas tentativas de resolver o
problema conseguirem convencer seus pares da "centralidade" da questo. Se a questo
considerada perifrica, sua soluo sempre poder esperar. Por outro lado, se a anomalia estiver
na encruzilhada dos caminhos de resoluo de diversos problemas dentro da atividade norteada
pelo paradigma, ento hora de se pensar ou em concentrar esforos de toda a comunidade na
direo de resolver esse problema especfico ou, ento, em substituir o paradigma vigente.
Como se pode ver, todos esses fatores no so exatamente racionais. Os ligados a
prestgio dispensam comentrio. Mas tambm no possvel decidir quanto "muito tempo"
para que um problema resista a soluo, ou o quanto um problema central dentro de uma
teoria. Do ponto exclusivamente lgico, no h como definir univocamente essas questes.
O fato de esses fatores serem pouco afeitos ao debate racional no quer dizer que a
transio de um paradigma a outro, ou a determinao do momento em que se deve comear a
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procurar por alternativas ao paradigma vigente sejam questes decididas de forma inteiramente
irracional. De alguma forma pouco determinada explicitamente, os lderes da comunidade
"sabem" quando o momento de considerar seriamente outras alternativas que estejam
disponveis. Resgatar essa sabedoria a tarefa de uma teoria mais esclarecedora da
racionalidade. E' a tarefa de Kuhn.
O cientista preparado para a cincia normal, para a articulao do paradigma em face
de problemas mais ou menos previstos. A anomalia, por definio, algo alheio ao quotidiano
do cientista (salvo as anomalias "clssicas", as que esperam resoluo desde a poca em que o
paradigma foi instaurado). Mas, mesmo essas, no so do trato direto do cientista. Aparecem
como problemas cuja soluo de longo prazo, que ilustram a atividade da prpria disciplina,
isto , uma determinada disciplina cientfica pode ser definida como aquela que "tenta resolver
os problemas x, y, z etc". O trato do cientista com anomalias deve se basear em princpios
pouco familiares a sua atividade quotidiana.
Kuhn traz, como ilustrao para esse ponto, que nas fases de crise que os cientistas
mais procuram o apoio da filosofia. Nessas pocas de crise, o cientista comea a duvidar no
apenas das teorias que articula, mas mesmo da teoria do conhecimento que est por trs delas.
Em um ltimo esforo para salvar o paradigma vigente, o cientista tentar uma manobra
metodolgica via filosofia. Se tiver sucesso, muda as regras de avaliao do jogo sem mudar
seus princpios ontolgicos. O debate, nos primrdios da mecnica quntica, sobre se o acaso
deveria ser considerado parte da natureza ou medida da ignorncia do cientista, um exemplo
de debate puramente filosfico cujo objetivo esclarecer uma questo nascida no mbito da
cincia natural.
Essa maneira de tratar as anomalias, assim como de tratar de quaisquer outros
problemas dentro da cincia normal, so aprendidos pelo cientista novato em contato com seus
mestres. O que pode ser obtido de manuais leva o iniciante apenas borda da verdadeira
atividade cientfica. O ingresso nessa atividade depende de contato direto. E por qu? Porque os
padres que regem a comunidade e o fazer cientficos no podem ser inteiramente codificados
em palavras. Muito conhecimento tcito (para usar um termo de Polanyi), conhecimento do
como se faz e menos do por que se faz de determinada forma. Ou seja, conhecimento do qual
se participa, mais que conhecimento do qual se d ou se pede justificao.
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Vale aqui um parntese acerca da possibilidade de codificar em regras a atividade
cientfica. Nenhum positivista lgico defender que possvel substituir, na formao do jovem
cientista, o aprendizado direto, em contato com o pesquisador mais experiente. Nem nenhum
positivista defender as vantagens de se tentar codificar todas as regras que regem a atividade
quotidiana do cientista. O ponto apenas que os positivistas acreditam em que o impedimento
para a explicitao dessas regras , apenas, de carter prtico. Em teoria, nada h que impea
essa codificao. Ela, simplesmente, "no valeria o trabalho" (o mesmo valeria, para os
formalistas do incio do sculo 20, com relao matemtica: a matemtica pode ser reduzida
lgica, mas o trabalho necessrio para isso extrairia energia preciosa da pesquisa matemtica
para ser canalizada numa vertente cujo resultado conhecido de antemo). O que Kuhn defende
a impossibilidade de se isolar tais regras. A nica alternativa seria defini-las uma a uma.
Kuhn afirma que no seriam possveis esquemas (como existem esquemas de axiomas em
lgica) para essas regras. A descrio caso a caso seria inevitvel. Outro ponto se tais regras
seriam exclusivamente "cientficas". Kuhn duvida que existam regras de natureza
essencialmente cientfica, isto , regras as quais bastaria aderir ou usar para ser definido como
cientista.
Essa questo do aprendizado um ponto em que Kuhn atrai irresistivelmente o leitor
que cientista praticante. Ele sabe que sua atividade jamais poderia ser aprendida atravs
apenas de manuais. Mais que isso, ele tambm sabe que muitos de seus procedimentos de
laboratrio jamais chegam a ser explicitados entre seus colegas e que alguns, quando o tentam,
no conseguem encontrar base "cientfica" para muitos entre eles. Alm disso, todo cientista
experimental sabe o quanto difcil repetir experimentos, isso quando ele realmente tenta
repeti-los (sobre o quanto , na verdade, incomum a repetio de experimentos, cf. Broad &
Wade, 1982, cap. 4).
Uma vez resolvido o aprendizado bsico, o futuro cientista passa a receber formao
individualizada dentro de um laboratrio. Sua linha de pesquisa, para ser desenvolvida,
necessita tanto de habilidade terica _para formulao de hipteses dignas de teste, por
exemplo_ como prtica. Os aparelhos que manuseia tm seus fundamentos assentados em
outras disciplinas cientficas, das quais ele tem pouca notcia (um citologista usa com
desenvoltura um microscpio eletrnico mesmo sem entender nada dos fundamentos do
funcionamento desse aparelho). Assim, durante uma pesquisa, o cientista ser, s vezes,
cientista e, s vezes, apenas tcnico. Esse trabalho laboratorial mostra ao estudante o que deve
ser testado e o que, em cada momento, deve ser deixado entre parnteses, o que deve ser
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deixado inquestionado. Mais, para o desenvolvimento da pesquisa, o cientista deve se basear
nos trabalhos de outros, usar protocolos de experimentao desenvolvidos por outros cientistas.
Esses protocolos raramente so aplicveis in toto. Reagentes podem diferir em qualidade de um
pas para outro, podem diferir em termos de impurezas, a calibrao dos aparelhos pode variar
muito, um aparelho construdo em um pas de clima frio pode necessitar de ajustes para ser
usado em clima tropical, ajustes esses nem sempre inteiramente calibrveis e assim por diante.
Enfim, o cientista acredita em que usa um mesmo protocolo de experimentao, embora no
possa justificar inteiramente essa crena. No laboratrio, portanto, esto em jogo vrias
atividades diferentes:
1. o cientista deve fazer hipteses sobre sua rea especfica;
2. deve deixar de lado certas incertezas e "fazer de conta" que elas so estveis e que
no prejudicam sua atividade;
3. deve fazer ajustes em procedimentos inventados por outros;
4. deve dividir tarefas para si mesmo e para seus assistentes e achar meios de garantir
que tais tarefas obedeam aos mesmos padres de qualidade.
Essas so apenas algumas das atividades desenvolvidas num laboratrio. Conforme a
formao do cientista se completa, outras questes, como por exemplo a manuteno do
funcionamento geral do laboratrio, entram na agenda do pesquisador.
Chega ento a hora da publicao do paper. A, problemas comezinhos de laboratrio
no tm lugar. Desaparecem o acaso, os ajustes injustificveis em poucas palavras e mesmo os
resultados que prejudiquem a hiptese a ser defendida e provada. O cientista no subtrai dados
ruins, na maioria das vezes, com o fim de enganar seus colegas. A inteno exatamente a
oposta: os dados ruins so, ele acredita, fruto de defeitos experimentais impossveis de
localizar. Deixar esses defeitos constar das tabelas e entrar nas anlises estatsticas serviria
apenas para mascarar resultados bons. Assim, tais dados so eliminados em prol da boa cincia
e da clareza de exposio. Quanto aos ajustes, o cientista pressupe que seus colegas enfrentam
os mesmos problemas e, dado o pouco espao que as revistas reservam aos pesquisadores, no
vale a pena perder pginas com isso. Alm disso, ele no acredita em que qualquer exposio
em palavras resolva inteiramente o problema. Esse paper pretende no apenas expor o que
ocorreu no laboratrio, mas tambm deve servir para convencer agncias de financiamento de
pesquisa. Dessa forma, a retrica fundamental para o sucesso do trabalho. Ele no apenas
deve expor resultados bons, mas prometer resultados ainda melhores.
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Assim, ao falar em quo central o aprendizado direto de uma especialidade, o quo
pouco pode ser aprendido em livros e, por conseguinte, o quo pouco pode ser codificado em
palavras, Kuhn reflete aquilo em que os cientistas acreditam e, mais, observam em seu dia-a-
dia.
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At a, a mecnica do desenvolvimento da cincia proposta por Kuhn na ERC parece
perfeitamente plausvel do ponto de vista histrico. O cientista adquire conhecimento de livros
e, mais, do aprendizado direto no laboratrio com os mestres. Sua confiana nas opinies de
quem tem mais prestgio dentro da comunidade total. Sua tendncia ao analisar os insucessos
de outros passa primeiro pelo pensamento de que o cientista analisado no soube usar bem as
ferramentas da teoria para s muito depois chegar a duvidar da teoria na qual acredita. Mesmo a
conversa acerca de alternativas diferentes do paradigma vigente vista apenas como
estimulante intelectual no trabalho de articulao do prprio paradigma.
O problemas para quem seguiu Kuhn at esse ponto comeam quando se quer definir o
que seja mudana de paradigma. A questo que se coloca : qual o grau em que se pode
"articular" uma teoria cientfica e, ainda assim, dizer que se est em um mesmo paradigma? A
partir de que ponto se deve falar que um paradigma foi abandonado em prol de outro?
Respostas a essas questes exigem um exame mais rigoroso de o que seja para Kuhn um
paradigma e do que ele entende por incomensurabilidade entre teorias, um conceito que tem
papel central no tpico da escolha entre teorias rivais.
1.3 Explicitaes
Kuhn, em textos parte da ERC e do "Posfcio", reforma suas teses ou as explicita? A
resposta questo importante pois, dependendo dela, o trabalho de examinar as aplicaes
que se faz do modelo de Kuhn nas cincias sociais muda inteiramente de carter.
Crticos de Kuhn diro que o autor se "retratou" no "Posfcio" e em outros textos (ver,
especialmente, Shapere, 1971 e Musgrave, 1971). No entanto, nenhuma das teses que aparecem
na ERC posteriormente refutada por seu autor. Kuhn deixa claro que, embora use o termo
"paradigma" em diferentes acepes, d preferncia clara a somente uma delas (discutiremos
isso a seguir). Se a acepo preferida a de "exemplar" (um conjunto problema-soluo que
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serve de modelo fornecedor de analogias para uma comunidade de praticantes de determinada
disciplina), ento um paradigma algo cuja definio bastante objetiva. Dessa maneira,
"compartilhar um paradigma" torna-se uma expresso que deve ser restrita a casos bastante
particulares, localizados. Como lembra Martins (Martins, 1972, p. 19), "no existem, nem
podem existir, paradigmas da fsica ou da qumica". Assim, nada impede que, por exemplo, a
fsica se ancore em valores mais duradouros e, mesmo assim, haja mudanas de paradigma na
fsica. Kuhn deixa isso claro j em 1966, no artigo "Comentrio sobre as Relaes entre Cincia
e Arte", editado posteriormente como parte de "A Tenso Essencial":
"Nunca pretendi limitar as noes de paradigma e revoluo s 'teorias principais'. Pelo
contrrio, acho especialmente importante que esses conceitos sejam tais que permitam um
entendimento mais completo do carter estranhamente no-cumulativo de eventos como a
descoberta do oxignio, dos raios-X ou do planeta Urano." (Kuhn, 1977, p. 350)
Logo, quando Kuhn escreve, no "Posfcio", que a cincia est ancorada em "paramount
values" que subsistem s mudanas de paradigma, isso em nada afeta seu modelo central. No
est reconhecendo ipso facto que no existam paradigmas ou rupturas, mas apenas que existem
pontos que permanecem mais ou menos constantes numa transio entre paradigmas
sucessivos.
Ainda mais, uma vez que Kuhn reconhece que sempre existe debate entre escolas rivais
e que esse debate termina pela vitria de uma das escolas e s uma delas,
"incomensurabilidade", para ele, jamais significou incomunicabilidade ou relativismo radical.
"A despeito daqueles que afirmam que todas as vezes que Kuhn pretendeu esclarecer
seu sentido original ele, na verdade, reescreveu sua prpria histria ou mudou de idia, uma
leitura simpatizante da ERC mostra que Kuhn sempre pretendeu distinguir as formas de
persuaso e de argumentao racional que acontecem nas comunidades cientficas daquelas
formas irracionais de persuaso que ele acusado de endossar." (Bernstein, 1983, p. 53)
Essas observaes _que sero melhor desenvolvidas adiante_ so importantes aqui para
assinalar claramente uma atitude: Kuhn no muda seu modelo. Tudo o que relevante no
modelo de Kuhn j est na ERC. Textos posteriores ou contemporneos ERC ou ao
"Posfcio" apenas explicitam o modelo. Logo, m leitura de Kuhn problema de quem l e no
de quem escreve. Nossa exposio cobre o modelo de Kuhn e desvios de leitura desse modelo
consumados por tericos vindos de outras reas (ou mesmo da filosofia, como acontece como
Shapere _interpretar Kuhn erradamente no atributo exclusivo de cientistas sociais,
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felizmente). O fato de determinado autor no ter lido mais que a ERC no desculpa, dessa
forma, sua leitura, pelo menos no que tange s questes de irracionalismo e ataque cincia
tradicional normalmente imputados a Kuhn.
***
O termo paradigma, em sua acepo primeira (como assinalado no "Oxford English
Dictionary", primeira edio), quer dizer "exemplar".
"A pattern, exemplar, example. An example or pattern of the inflexion of a noun, verb
or other inflected part of speech." (volume 7, p. 449)
Embora seja essa a noo adotada por Kuhn, ele mesmo no foi muito fiel a ela no
decorrer da ERC.
O primeiro trabalho importante a separar em grupos as diferentes acepes em que
Kuhn usa a palavra "paradigma" foi feito por Margaret Masterman (Masterman, 1970). Depois
de levantar 21 usos diferentes do termo dentro da ERC, Masterman dividiu esses usos em trs
categorias:
1. Metaparadigmas ou paradigmas metafsicos. Uma passagem tpica em que Kuhn
utiliza a noo nesse sentido seria:
"Direi desde logo que essa concepo muito corrente de o que ocorre quando os
cientistas mudam sua maneira de pensar a respeito de assuntos fundamentais no pode ser
totalmente errnea, nem ser um simples engano. antes uma parte essencial de um paradigma
filosfico iniciado por Descartes e desenvolvido na mesma poca da dinmica newtoniana."
(Kuhn, 1970, p. 121)
Nesta citao, Kuhn se refere ao costume de se separar observao de interpretao. O
paradigma filosfico iniciado por Descartes seria a concepo de que, quando mudam teorias,
muda a interpretao dos mesmos fatos. Nesse sentido, "paradigma" assume as propores de
teoria que orienta todo o pensamento, independentemente da disciplina cientfica que esteja em
voga numa poca em particular.
2. Paradigmas sociolgicos. Dizem respeito mais natureza da aceitao que s
caractersticas estruturais de um corpo de doutrina. Por exemplo:
"Tal como uma deciso judicial aceita no direito costumeiro, o paradigma um objeto a
ser melhor articulado e precisado em condies novas ou mais rigorosas." (Kuhn, 1970, p. 23)
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Kuhn ressalta que um paradigma deve ser algo aceito por toda uma comunidade. Sua
aceitao define (ainda que de uma forma circular que resta ser esclarecida) essa mesma
comunidade. O paralelismo com o direito ressalta ainda que o paradigma aceito como
solucionador de um problema inicial e, ao mesmo tempo, como padro para futuras solues. A
"deciso" inicial deve ser uma provedora de analogias para problemas futuros. Em seu "Second
Thoughts on Paradigms", de 1977, Kuhn mostra como no se pode trabalhar em cincia com
regras que substituam o pensamento analgico. A articulao do paradigma, sua aplicao a
casos semelhantes, a adaptao de fenmenos a um padro subsumvel ao paradigma, so
operaes que o cientista deve perfazer usando o que Wittgenstein chama "semelhanas de
famlia". Tal procedimento no redutvel a regras.
Em conexo com esse sentido de paradigma, vale lembrar que um dos fatores que pesam
na aceitao inicial de um paradigma a capacidade que ele parece apresentar como ferramenta
til para o futuro. Assim, mais uma vez, a definio exclui a possibilidade de se assimilar a
aceitao de um novo paradigma a uma reflexo puramente racional. Um componente
fortemente subjetivo (a crena na fertilidade do paradigma recm-aceito) parte essencial do
processo de escolha entre paradigmas rivais.
Essa maneira de definir a aceitao de um paradigma faz voltar ao mbito da cincia um
aspecto que parecia enterrado desde a revoluo cientfica dos sculos 16 e 17: a teleologia. Um
dos pontos fundamentais dessa revoluo (ver, especialmente, Burtt, 1932, pp. 89-95), foi
passar a admitir, como explicaes vlidas para fenmenos naturais, somente aquelas que
levassem em conta apenas causas e, jamais, fins (como era o caso na mecnica aristotlica). Se
a teleologia _isto , o apelo a eventos situados no futuro para se explicar fenmenos presentes_
devia ser banida das explicaes cientficas, parece natural supor que o mtodo cientfico no
devesse padecer de traos teleolgicos. E isso verdade. O mtodo cientfico, como codificado
por pensadores como Descartes ou Bacon, fundava-se numa razo dada (no passado) e na
experincia passada a apoiar conjecturas no presente. Tanto induo quanto a luz natural da
razo faziam apelo a caractersticas dadas para, com sua ajuda, descobrir fatos no futuro. A
idia de que um componente essencial aceitao de uma teoria deva ser uma referncia ao
futuro est em choque direto com tais cnones metodolgicos.
3. Artefato ou construto. Esse o termo preferido por Kuhn, e que ele chama de
"exemplar".
"Cincia normal (isto , cincia baseada num paradigma) significa a pesquisa
firmemente baseada em uma ou mais realizaes cientficas passadas (o que a prpria
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definio de paradigma). Essas realizaes so reconhecidas durante algum tempo por alguma
comunidade cientfica especfica como proporcionando o fundamento para sua prtica
posterior." (Kuhn, 1970, p. 10)
Em termos hierrquicos, podemos dizer que "metaparadigma" significa crena profunda,
por exemplo, de que toda hiptese deve se permitir julgar pela experincia ou de que
explicaes devem exibir estrutura lgica (ainda que no rigorosa e explicitada). a maneira
mais abrangente como se pode entender o termo.
No nvel seguinte, situa-se o paradigma sociolgico. So os fatores que mantm coesa
determinada comunidade de praticantes de uma disciplina. Esses fatores, Kuhn os chama
coletivamente de "matriz disciplinar" (embora no no corpo principal da ERC; "matriz
disciplinar" um termo usado pela primeira vez no "Posfcio" ERC), incluem generalizaes
simblicas, crenas e valores.
Mais na superfcie _e mais prximo da atividade quotidiana do cientista_, est o
"exemplar". So as realizaes cientficas concretas de uma comunidade. So essas realizaes
que serviro de modelo para que os praticantes tentem estender o paradigma a casos novos. O
exemplar um fornecedor de analogias. Esse o sentido pretendido realmente por Kuhn em
seus trabalhos.
Normalmente, leitores de Kuhn vindos de outras reas falham em ver esse sentido mais
estrito de paradigma. Pelos padres de Kuhn, dificilmente algum poder encontrar paradigmas
em sociologia ou em cincia poltica. Poder encontrar algo no nvel de metaparadigma, mas
no no nvel de exemplar. Para Kuhn, no existem mesmo paradigmas que abranjam reas
como a fsica ou a qumica. Paradigmas, por serem realizaes prticas que se tornam
modelares devem, obrigatoriamente, dizer respeito a subdisciplinas. Mas, examinadas as
subdisciplinas da sociologia, por exemplo, dificilmente se encontrar algo como pesquisa
continuada e sistemtica orientada por uma soluo de sucesso e que no faa apelo reiterado a
fundamentos, o que seria requisito bsico para se dizer que determinado campo regido por um
paradigma, respeitado estritamente o sentido que Kuhn d ao termo.
Outro ponto que Kuhn ir refinar em artigos posteriores diz respeito questo da
incomensurabilidade. Duas teorias T1 e T2 so ditas incomensurveis se no h foro comum
para que se decida em favor de T1 em detrimento de T2 ou vice-versa. `A primeira vista, a
questo parece trivial, dado o modelo de Kuhn. Se dois paradigmas diferentes representam no
apenas teorias diferentes, mas mtodos de experimentao diferentes, valoraes diferentes dos
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resultados, enfim, formas de vida diferentes, segue-se diretamente que dois paradigmas
determinam dois mundos diferentes. O mundo definido pelo paradigma P1 apresenta uma
ontologia O1, diferente da ontologia O2 determinada pelo paradigma P2.
De sada, no tem sentido medir graus de distanciamento entre P1 e P2 em termos de
suas respectivas ontologias. Dentro do modelo de Kuhn no mais sustentvel uma afirmao
como:
"As teorias de Kepler e Galileu foram unificadas e superadas pela teoria logicamente
mais forte e melhor testvel de Newton; da mesma forma, as teorias de Fresnel e de Faraday
pela de Maxwell. Por seu turno, as teorias de Newton e de Maxwell foram unificadas e
superadas pela de Einstein." (Popper,1974, p.220)
Um termo no "vale" apenas em si, mas na relao que tem com outros termos correntes
na teoria. Assim, no h como avaliar as "diferenas" entre duas ontologias. Elas podem diferir
_sintaticamente, grosso modo_ em termos apenas de um conceito. Mas a tese holista _que
Kuhn, com alguma reserva (cf. Kuhn, 1983) esposa_ afirma que os conceitos se interligam e a
presena de um novo conceito altera substancialmente _mas no totalmente, como veremos
mais frente_ uma teoria (ou um paradigma). Dessa forma, no h "superao" de Kepler por
Galileu. O que h so ontologias diferentes que podem ser comparadas grosseiramente e apenas
na prtica. Em suma, a opo por uma teoria se d apenas com base nessas apreciaes prticas.
No existe lugar para uma redutibilidade lgica rigorosa como a implicada pela afirmao de
Popper.
Dessa forma, a tese da incomensurabilidade de dois paradigmas afirma apenas que no
existe foro final para a deciso entre paradigmas diferentes. A observao no neutra, depende
da ontologia a que se esteja ligado e, assim, partidrios de dois paradigmas distintos travam um
"dilogo de surdos" (Kuhn, 1970, pp. 131-33, em conexo com o debate entre qumicos
partidrios da lei das propores fixas e seus adversrios, em fins do sculo 18).
Dessa afirmao, no se segue impossibilidade de comunicao. Se assim fosse, o
modelo de Kuhn seria trivialmente falso: cientistas pertencentes a escolas distintas realmente
debatem, discutem conceitos e mtodos e, normalmente, no chegam a acordo. Kuhn (Kuhn,
1982) define a questo:
"Aplicado ao vocabulrio conceitual que se desenvolve no interior e em torno de uma
teoria cientfica, o termo 'incomensurabilidade' funciona metaforicamente. A frase 'sem medida
comum' torna-se 'sem linguagem comum'. Afirmar que duas teorias so incomensurveis
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ento afirmar que no existe nenhuma linguagem, neutra ou de qualquer outro tipo, qual
ambas as teorias, concebidas como conjuntos de enunciados, possam se traduzir sem resto ou
perda." (p. 670, sublinhado nosso)
No existe uma terceira linguagem para a qual ambas as teorias possam ser traduzidas e
a pendncia entre elas comparada e resolvida. Mesmo que, supostamente, tal linguagem
existisse, a prtica impediria que se fizesse uma traduo. Antes que as escolas debatedoras
atingissem esse fugidio denominador comum, a questo j estaria resolvida por outros meios.
Esses outros meios incluem tanto
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