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TEORIA ECONÔMICA SOB FORMALISMO CONTÁBIL: Proposta para um programa de pesquisas
Este artigo sustenta que a Contabilidade poderia, e deveria, dar sua contribuição ao
desenvolvimento de teorias econômicas contemporâneas. Atualmente, no mundo
acadêmico, existe uma demarcação entre essas disciplinas que é perniciosa,
conforme se argumentará adiante. É também desnecessária, pois no passado estas
disciplinas já estiveram mais próximas uma da outra. Assim, o propósito do presente
artigo é o de expressar esta idéia de forma clara e precisa, ou seja, que a
Contabilidade tem o potencial de fertilizar a teoria econômica.
O presente trabalho visa mais ao debate que à divulgação de resultados de pesquisa.
O espírito que permeia o artigo, de sua idéia, passando pela estrutura até a discussão
e conclusão é o espírito de discussão e de convite a que se permita novas perspectivas
e abordagens no âmbito da teoria contábil, sendo eventuais “resultados” de somenos
importância. Nesse sentido, é compatível com a proposta do 2º Encontro da Revista
de Contabilidade e Finanças (ERCF).
Como forma de ilustrar a idéia apresentada acima tome-se a declaração de
propósitos e escopo de uma das mais bem avaliadas revistas acadêmicas dedicadas à
teoria contábil, o Journal of Accounting and Economics (tradução livre):
O JAE encoraja a submissão de artigos que apliquem a teoria econômica para explicar
os fenômenos contábeis. (The Journal of Accounting and Economics encourages the application of
economic theory to the explanation of accounting phenomena.)1
Não haveria nada de excepcional nesta declaração se fosse possível encontrar alguma
revista acadêmica dedicada à teoria econômica que encorajasse a submissão de
artigos onde a teoria contábil fosse usada para explicar fenômenos econômicos. Não
há.2 O ponto é que existe uma assimetria pela qual os teóricos em contabilidade
aprendem e usam a teoria econômica, mas o inverso não é verdadeiro.
O artigo estrutura-se da seguinte forma: na segunda seção, recupera-se o contexto
histórico para argumentar porquê o economista teórico não recorre à teoria contábil.
De fato, é possível argumentar que nos dias que correm a grande maioria dos
economistas teóricos simplesmente desconhece a contabilidade. Na terceira seção,
discute-se porque essas duas disciplinas, contabilidade e economia, deveriam
marchar juntas. Na quarta seção, explica-se o que se entende, neste artigo, por teoria
contábil. A quinta seção é uma digressão ao tema central do artigo, porém útil como
ilustração que a tese que aqui se avança está assentada em considerações de ordem
formal. Segue-se a sexta e última seção contendo discussão e conclusão.
1 Extraído de http://www.elsevier.com/wps/find/journaldescription.cws_home/505556/description 2 Para uma lista das revistas acadêmicas mais importantes em economia verifique-se, por exemplo, http://www.socialcapitalgateway.org/eng-journalrankingseconomics.html
Seção Dois – Um pouco de história
A idéia desta seção é tomada de (Klamer & McCloskey 1992) (simplesmente, K&M), artigo publicado no The European Accounting Review, onde se lê (tradução livre):
Em função da importância da contabilidade para o trabalho deles, seria de se esperar
que os economistas tivessem um interesse pela contabilidade. Já tiveram, mas hoje
não o têm mais. (In view of its importance in their work the economists could be expected to have an
interest in accounting. Once they did. But now they don't.) (K&M, p.147)
Eles constroem seu argumento partindo do fato histórico que a contabilidade
antecede a economia. De fato, Lucca Pacioli escreveu seu livro inaugural em 1494
enquanto a disciplina econômica, como hoje é entendida, surgiu com os fisiocratas
franceses apenas no século XVIII.
Mas, o ponto desses autores é muito mais sutil (e sofisticado) do que se possa supor,
dada apenas essa antecedência histórica. Inicialmente, eles argumentam que os
economistas tiveram, desde sempre, grande desprezo pela contabilidade enquanto
disciplina acadêmica; consequentemente, não se dispuseram a aprender com os
contadores porque onde há desprezo, não há respeito. Em seguida, eles reconhecem
no discurso contábil a linguagem dos negócios, com a qual é possível entender e
racionalizar a realidade econômica. E, então concluem que quando o economista
observa a realidade de seu interesse (a realidade econômica), o que ele observa de
fato são fenômenos contábeis, ainda que não tenha consciência disto. E, é nessa
inconsciência que mora o problema.
É um ponto deveras sutil. A questão do desprezo dos economistas pela contabilidade
como disciplina acadêmica é considerada evidente e os autores se satisfazem com a
referência a único autor, Schumpeter (1954). A questão da contabilidade como
metáfora do capitalismo é um dos pontos originais em K&M, sendo abordada através
de uma leitura crítica do romance Robinson Crusoe, publicado em 1719. Por essa
leitura, Crusoe descobre o que significa ser economicamente racional ao se submeter
à lógica do procedimento contábil, de tal sorte que os autores concluem que o Homo
Economicus, criação conceitual do século XVIII, é obra antes dos romancistas e
poetas do que dos economistas e filósofos (como é comumente aceito). A questão da
imanência da contabilidade à realidade econômica é discutida através de um breve e
focado histórico do pensamento econômico. Apesar dos autores não usarem o termo,
eles de fato descrevem um programa de pesquisa tal que a investigação de conceitos
contábeis por parte dos economistas não só é possível, como é desejável. Esse
programa de pesquisa atinge seu ápice no década de 40, particularmente com o
economista John Hicks3, estabelecendo o precedente histórico pelo qual a
contabilidade pode, sim, contribuir para o desenvolvimento de teorias econômicas. A
partir dos anos 50 este programa de pesquisa é abandonado pelos economistas que
passam, então, a desconhecer o substrato contábil da realidade econômica.
3 Cf. seu livro The Social Framework: An Introduction to Economics (1942). Oxford: Clarendon Press
A causa desse abandono é o surgimento de um novo programa de pesquisa que,
ironicamente, começou com o próprio Hicks, mas que se impõe com Paul Samuelson
(ambos ganhadores do prêmio Nobel em economia). Ao ganhar corações e mentes,
Samuelson estabelece o paradigma predominante em teoria econômica (o
mainstream) durante a segunda metade do século XX e, no dizer dos autores,
silencia a metáfora contábil na mente dos economistas. Mas, esse silêncio é
problemático porque a realidade econômica é inescapavelmente contábil, conforme
termo usado pelos autores e justificado ao longo de uma seção inteira no artigo.
Prosseguindo, os autores observam à p.156 (tradução livre):
Abram uma revista acadêmica em economia posterior a 1955 ou em contabilidade
posterior a 1970 e vão encontrar modelos explicitamente matemáticos ... Tanto
melhor, dirão alguns, pois aumentam a gama de métodos destas disciplinas ... Mas,
com tais modelos que eventualmente podem ter ampliado o escopo das discussões,
veio junto também uma maior limitação filosófica de ciência. (Open an economics journal
after 1955, or an accounting journal after 1970, and you will find explicit mathematical modelling ... All to
the good, one might say, bringing a wider range of methods to these fields. ... But along with the modelling,
which might have broadened the discussion, has come a narrowing philosophy of science.)(K&M, p.156)
E, então, argumentam que o formalismo matemático que é utilizado para descrever a
realidade econômica, no âmbito do programa samuelsoniano, é incompatível com a
dinâmica contábil de tal sorte que isto limita a capacidade do economista de
apreender e compreender essa realidade, já que ela é inescapavelmente contábil. É
esta interpretação que embasa a tese, neste artigo, que a contabilidade tem potencial
para fertilizar a teoria econômica conquanto, naturalmente, os teóricos da
contabilidade se disponham a confrontar esta questão de formalismo matemático.
Como fecho desta seção, cabe ainda observar que a moderna epistemologia não
acredita ser necessária a idéia de progresso em ciência, ou seja, que as teorias que
vêm depois não são necessariamente melhores do que as vêm antes. A discussão, em
epistemologia, sobre a comensurabilidade de teorias científicas traduz esta questão4.
Em particular, Lakatos é dos que acredita que programas de pesquisa “degenerados”
sempre podem ter um ressurgimento5. Ao se aceitar essa visão, abre-se a
possibilidade, pelo menos em teoria, para se reivindicar que o resgate do programa
contábil em economia pode ser benéfico e deva, portanto, ser perseguido.
Seção Três – A questão comum às disciplinas contábil e econômica
A reivindicação de que a contabilidade tem o potencial de fertilizar a teoria
econômica – essa é a idéia central neste artigo – impõe que se aponte o que ambas
possam ter em comum, já que as diferenças são por demais evidentes. Ao se dedicar
a esse exercício preliminar é curioso perceber quão elusiva, de fato, é essa questão.
4 Para referências, veja-se http://en.wikipedia.org/wiki/Commensurability_(philosophy_of_science) 5 (Mattessich 1995, p. 150) identifica esta possibilidade na visão epistemológica de Lakatos
Prosaicamente, pode-se notar que, na USP, contabilidade e economia pertencem à
mesma faculdade, mas também há de se notar que a interação entre os dois
departamentos, sob a estrita ótica da pesquisa, é virtualmente inexistente. Uma
leitura – mesmo superficial – dos livros básicos em contabilidade e em economia
revela que, no mínimo, existem idéias e conceitos comuns a ambas disciplinas. No
entanto, uma análise mais detalhada dos termos comuns revela também que o
sentido destas idéias e conceitos nunca é exatamente o mesmo conforme se passe de
uma disciplina a outra. Por exemplo, o primeiro6 teórico em contabilidade a se
interessar por esses assuntos interdisciplinares foi Canning. Ele identifica o lucro
como o mais simples e fundamental dos conceitos que tanto o contador como o
economista reconhecem como de interesse para suas respectivas investigações
(Canning 1929, p.8). Ocorre que as pesquisas havidas nos oitenta anos depois de
1929 não estabeleceram um consenso, nem entre contadores nem entre economistas,
quanto ao significado deste termo; que dirá, então, da possibilidade de convergência?
Portanto, para dar início a esta seção, é preciso escolher a característica teórica que
seja comum à contabilidade e à economia e a partir da qual se construirá o
argumento em favor da fertilização cruzada entre essas disciplinas. Para efeitos deste
artigo, esta característica teórica é o fato básico e fundamental que ambas abordam o
processo de decisão racional. A idéia desta seção é inspirada em dois livros: Cost and
Choice do economista laureado com o Nobel, James Buchanan (1969); e, The LSE
Essays on Cost [1937] (simplesmente, LSE), que Buchanan co-editou. Antes, porém,
de abordá-los, recorde-se a observação acima que Crusoe descobre o comportamento
economicamente racional ao se submeter à lógica do procedimento contábil. Alguns
trechos de K&M justificam esta observação (tradução livre):
Uma vez na ilha „Eu comecei a considerar seriamente minha condição ... e reportei o
estado dos meus negócios por escrito ... e anotei de maneira muito imparcial, à moda
de Haveres e Deveres, os confortos de que dispunha contra a misérias a que estava
submetido. (Once on the island 'I now began to consider seriously my Condition . . . and I drew up the
State of my Affairs in Writing. . . . I state it very impartially, like Debtor and Creditor, the Comforts I enjoy'd,
against the Miseries I suffer'd'.) (K&M, p.148)
Mas Crusoe pensa à frente em questões de pão e alimentos ... Ele antecipa sua velhice e
se programa para criar cabritos num sistema elaborado de pastagens que o sustente
quando estiver fraco demais para caçar: „pois eu considerei de início a forma como eu
me sustentaria na eventualidade de acidentes e no tempo por vir quando minha saúde
e força decaíssem‟. Crusoe calcula, mas frequentemente também erra o cálculo, como
quando construiu com esforço uma canoa tão pesada que não a pôde mover. Crusoe
descobre a racionalidade, dada por Deus, nas necessidades da escolha – enfases
acrescentadas. (But Crusoe thinks ahead on matters of bread and butter...He thinks out even to his old age,
scheming to raise goats in an elaborate system of pasturage to feed himself when too feeble to hunt: 'for I
consider'd from the beginning how I would provide for the Accidents that might happen, and for the time
that was to come ... even after my Health or Strength should decay'. Crusoe calculates, but also frequently
and disastrously miscalculates, as when he makes with much labour a dugout canoe heavier than he can
move. Crusoe discovers rational thought, put there by God, in the necessities of choice). (K&M, p.148)
6 Dentre os que são do conhecimento deste autor.
Muito interessante nessa fábula do homem solitário em sua ilha deserta é que
mesmo num mundo sem mercados, sem preços e sem dinheiro, é legítimo considerar
que a lógica do procedimento contábil (a essência contábil, conforme será discutido
na seção 4 a seguir) permite que Crusoe tenha um comportamento economicamente
racional. Os livros de introdução à economia, via de regra, introduzem os conceitos
básicos de análise econômica (por exemplo, a maximização da função utilidade) no
contexto dessa parábola do homem solitário, mas racional. No entanto, silenciam
sobre a estrutura da lógica contábil que orienta Crusoe em suas escolhas.
Mais interessante ainda é que mesmo no contexto dessa fábula, um dos conceitos
básicos, tanto da contabilidade como da economia, já encontra lugar: o conceito de
custo. Claro, trata-se de custo de oportunidade – o custo que surge a partir do
processo de decisão e escolha: o custo, para Crusoe, de passar um dia catando côco é
a quantidade de peixe que ele deixará de pescar nesse mesmo dia. Custo de
oportunidade é um dos mais básicos conceitos de análise econômica, sendo
apresentado em qualquer dos livros de introdução à economia. Ocorre, como discute
Buchanan, que tal conceito acaba sendo perdido quando os economistas passam a
estudar os mercados, isto é, economias monetárias onde os produtos são obtidos por
compra e venda, usando-se dinheiro para pagar seu preço.
De fato, para introduzir sua idéia, Buchanan começa seu livro com outra fábula de
um mundo não-monetário, sem mercados – desta vez extraída da obra clássica
(também século XVIII) A riqueza das nações, de Adam Smith (tradução livre):
Se, em dada nação de caçadores ... o custo que dá para se caçar um castor é
normalmente o dobro do que custa para se caçar um veado, então um castor vai ser
trocado, naturalmente, por dois veados e valerá dois veados. A teoria clássica de valor
está contida nessa frase. A relação de valor, natural ou normal, numa troca é dada
pelos custos relativos de produção. (If among a nation of hunters ... it usually costs twice the labour
to kill a beaver which it costs to kill a deer, one beaver should naturally exchange for or be worth two deer.
The classical theory of exchange value is summarized in this statement... Normal or natural value in
exchange is determined by the relative costs of production.) (Buchanan 1969, p.12)
Ocorre que quando se abandona esse modelo extremamente simplificado – insumo
único e homogeneo – os problemas começam e se multiplicam até que o conceito de
custo de oportunidade se perde por completo. De fato, para poder escolher entre
duas alternativas de ação é preciso primeiro comparar essas duas alternativas. Por
sua vez, uma comparação só é possível se for possível encontrar uma unidade de
medida comum às duas alternativas. Assim, todo o esforço teórico dos autores
clássicos em economia está centrado em encontrar essa unidade de medida comum.
As complexidades do raciocínio clássico estão centradas na busca por um
denominador comum que compare valores quando os insumos (bens negativos) são
heterogeneos. (The intricacies of classical reasoning are centered around the search for a comparable
common denominator of value when inputs (negative goods) are heterogeneous). (Buchanan 1969,
p.14)
Infelizmente, os economistas clássicos não deram conta deste desafio e se viram
obrigados a recorrer a um „atalho‟ que garantiu a relevância pragmática de sua teoria,
ao sacrifício, no entanto, da coerência conceitual: eles admitiram a existência do
dinheiro e asseveraram que o custo (de oportunidade) de um insumo é medido pelo
preço que ele tem no mercado onde é adquirido.
[Eles] foram forçados a reabilitar a relevância pragmática da teoria ao custo da
elegância que esta tinha. Unidades de insumos heterogeneas são medidas em termos
monetários aos preços determinados nos mercados de insumos. ([They] were both forced to
rehabilitate the theory’s pragmatic relevance at the expense of its elegance. Heterogeneous units of input
were measured in the money prices established in factor markets.) (Buchanan 1969, p.14)
Se os custos são de $10, o produtor deve esperar um valor de pelo menos $10. O
postulado de que os agentes são racionais junto com a presunção de que um montante
positivo de numerário é desejado ainda implicam que o valor esperado pelo produtor
seja igual ou superior aos custos. Mas, agora a questão é saber o que determina os
custos? A teoria não é mais suficientemente simples para permitir que concentremos
nossa atenção em um único momento de decisão, um ato de escolha. Ao contrário,
precisamos agora considerar toda uma cadeia de decisões interligadas que cobre
diversas quantidades de produto final, distintos intervalos de tempo e vários agentes
que tomam suas decisões. (If costs are $10, the producer must expect a value of at least $10. The
postulate of rational behavior along with the presumption that the numeraire is positively desired still
implies that expected value be equal to or above costs. But what now determines costs? No longer is the
theory simple enough to concentrate our attention on one moment of decision, one act of choice. Instead of
this, we now must think of a chain of interlinked decisions over varying quantities of output, over separate
time periods, and over many decision-makers.) (Buchanan 1969, p.14)
Tendo identificado, claramente, o ponto a ser desenvolvido, o livro prossegue
discutindo o conceito de custo nas perspectivas das diferentes escolas de pensamento
econômico desde o período clássico até os dias de hoje (1969). Não cabe neste artigo
recuperar esta discussão. O leitor interessado é instado a ler este pequeno e elegante
livro.
O que precisa ficar claro, entretanto, é o seguinte: a idéia de que custo é um
obstáculo a ser superado no processo de decisão ficou irremediavelmente perdida a
partir do referido atalho que foi tomado pelos autores clássicos. Mais ainda, o esforço
empreendido pelos autores subsequentes para superar as deficiências da teoria
clássica deslocou o objeto empírico de investigação econômica do processo de
decisão para a descrição puramente idealizada do funcionamento do sistema
econômico. Referindo-se aos neoclássicos, escreve Buchanan (tradução livre):
Em sentido estrito, a teoria deles [neoclássicos] é uma construção lógica; não é uma
teoria científica que possa ser refutada. (In the strict sense, theirs is a logical theory, not a
scientific hypothesis capable of refutation.) (Buchanan 1969, p.17)
De fato, na introdução ao outro livro que inspira esta seção, The LSE Essays on Cost,
Buchanan é claro ao apontar para essa questão crucial:
Os economistas clássicos nos ofereceram uma teoria positiva-preditiva sobre preços
relativos; essa teoria foi falseada. Mas o modelo neoclássico não contém nenhuma
hipótese preditiva que seja comparável; não havia nenhum padrão que pudesse ser
externamente medido que autorizasse o cientista a fazer predições a partir dos dados
observados. Essa teoria pós-clássica descrevia um processo de interações e permitia a
identificação de certas propriedades na posição de equilíbrio. Mas, não havia nada
sobre o qual o economista pudesse assentar objetivamente suas predições a respeito
da formação dos preços relativos. (The classical economists offered us a positive-predictive theory
of relative prices; this theory was falsified. But the neo-classical model contained no comparable predictive
hypotheses; there was no externally measurable standard which allowed the scientist to make predictions
from observable data. This post-classical theory described an interaction process and allowed the
identification of certain properties of equilibrium positions. But there was nothing upon which the economist
could have based objective predictions about relative-price formation.) (LSE, p.10)
Assim, esta coletânea de ensaios escritos na década de 30, por economistas ligados à
London School of Economics, busca apresentar uma teoria do processo de decisão no
âmbito da qual a idéia de custo é a do custo de oportunidade.
Como exemplo, o artigo de von Hayek, Economics & Knowledge (Economia e
Conhecimento), é um clássico dos clássicos desta época que ainda merece ser lido.
Em seu parágrafo de abertura, von Hayek explica que seu propósito é questionar até
que ponto a análise econômica formal transmite algum conhecimento sobre o que
acontece no mundo real (... the question to what extent formal economic analysis conveys any
knowledge about what happens in the real world – LSE p.28), traduzindo o enfoque
epistemológico de sua abordagem.
Ocorre que este programa de pesquisa teórica, focada no processo de decisão e no
custo de oportunidade, simplesmente não vingou. Conforme já comentado, o
programa de Samuelson é aquele que se impôs, pelo menos pelos sessenta anos
seguintes. Mas, é importante recuperar esta tradição e o contexto histórico da
prevalência samuelsoniana para ter um entendimento claro da proposta que aqui se
avança pela qual a contabilidade tem como fertilizar a moderna teoria econômica.
Primeiro, há de se reconhecer que o programa de Samuelson, ainda que prevalente,
nunca foi unanimidade. Particularmente, nos últimos quinze anos vem sofrendo
críticas crescentes e há entre muitos economistas a sensação de que se trata de um
programa “degenerado”, epistemologicamente falando – veja-se a respeito os
trabalhos de Steve Keen7 em geral ou o artigo (muito técnico) A most peculiar failure
(Varoufakis & Arnsperger 2009).
Segundo, ainda que não tenha vingado, esse programa de pesquisa em questão
contém, reconhecidamente, a intuição correta sobre fenômeno atinente à teoria
econômica; de mais a mais, é fácil de entender e de aceitar. Assim, é de se lamentar
que este programa não tenha logrado uma aceitação mais ampla na comunidade dos
economistas teóricos. E, consequentemente, é legítimo buscar entender o seu
fracasso e procurar resgatar seu conteúdo.
7 Steve Keen mantém o site www.debunkingeconomics.com
Terceiro, o problema com este programa é sua falta de formalismo matemático. É
nesse ponto que Samuelson leva uma vantagem indiscutível. Existe a percepção
(razoável a princípio) de que quanto mais matematizada e matematizável for uma
teoria mais científica ela será. No caso da economia, Samuelson logrou formular, em
seu livro Foundations of Economic Analysis (Samuelson 1949), dois princípios
básicos com os quais pode justificar o uso comum de um mesmo ferramental
matemático básico e muito bem conhecido, o cálculo de otimização com restrições,
na análise das múltiplas áreas de pesquisa econômica: o primeiro princípio assevera
que o comportamento dos agentes econômicos sempre maximiza a utilidade; e, o
segundo é o princípio da correspondência que assevera que as condições de
estabilidade dinâmica autorizam o uso da estática comparativa. Com esses
princípios, o programa samuelsoniano fica tão bem amarrado que sufoca qualquer
outro programa rival. Para se ter uma idéia, veja-se o que diz Buchanan ao comentar
o fracasso do programa de pesquisa voltado ao custo de oportunidade:
Uma razão, talvez, encontra-se no fato que a crítica à ortodoxia é por demais
fundamental; aceitar plenamente as implicações da teoria do custo de oportunidade
que está implícita nestes ensaios requer que o moderno economista jogue fora demais
do capital intelectual que ele acumulou. Como escreveríamos os textos elementares e
como ensinaríamos os cursos elementares se nós não pudéssemos desenhar as curvas
padrão de custo? Como procederíamos com nossas análises de custo-benefício e com
nossa pretensão de contribuir ao processo de decisão do bem social? (One reason perhaps
lies in the fact that the critique of orthodoxy is too fundamental; to accept fully the implications of the
theory of opportunity cost that is implicit in these essays requires the modern economist to throw overboard
too much of his invested intellectual capital. How can we write the elementary textbooks and teach the
elementary course if we cannot draw the standard cost curves? How can we carry out benefit-cost analysis
and pretend that we are assisting in social decision-making?) (LSE, p.13)
Quarto, este programa está inserido na lógica do processo contábil sem que, no
entanto, jamais sejam discutidas, explicitamente, as características dessa lógica
contábil. Em consequência, o locus conceitual deste programa no concerto das
disciplinas acadêmicas fica mal definido sendo difícil, senão impossível, avançar com
o programa. De fato, para que um programa qualquer prospere é necessário que se
possa conectar seus elementos com aquilo que já se conhece em contabilidade e
economia, de tal sorte que se tenha o sentido da contribuição do programa para essas
disciplinas. Em outras palavras, para ser explícito quanto ao significado deste quarto
ponto, o que se quer dizer é o seguinte:
Por um lado, entende-se que custo de oportunidade não é o mesmo que custo
histórico mas, é este último que sustenta a prática contábil convencional. Metade dos
ensaios em The LSE Essays of Cost, particularmente aqueles escritos por Thirlby, é
voltada à discussão desta distinção. Em primeira aproximação, portanto, este
programa parece contradizer a teoria contábil, não sendo surpresa que não tenha
logrado influenciar a pesquisa teórica em contabilidade8.
8 No melhor conhecimento deste autor.
Por outro lado, a lógica do processo de decisão descrita nesses ensaios é contábil.
Este fato está subjacente ao termo “plano de ação” que aparece em vários dos
ensaios, mas está claro e explícito nesta frase de Hicks9:
Eu, de fato, testemunhei decisões de negócios serem tomadas na base do efeito
projetado nos balanços. Me parece a maneira racional de se tomar uma decisão.
Muitos desses modelos matemáticos por aí, incluindo alguns dos meus próprios, estão
terrivelmente soltos no ar: perderam a conexão com o chão. (I have actually seen business
decisions being made on the basis of projected balance sheets. I think that is the rational way to make a
business decision. A lot of these mathematical models, including some of my own, are really terribly much in
the air. They lost their feet off the ground.) (K&M, p. 152)
É a referência ao efeito projetado no balanço que revela a existência de uma lógica
contábil subjacente ao processo de decisão racional. Em termos epistemológicos, esta
frase de Hicks requer, para fazer sentido, a visão de que a realidade econômica pode
ser expressa na linguagem contábil, conforme discutido na seção 2 e em K&M:
[Podemos] reconhecer como as grandezas econômicas são codeterminadas num
sistema de contas contábeis. [Podemos] aprender a pensar sobre os eventos
econômicos como alterando, em primeira instância, as contas contábeis. ([we can]
recognize how economic magnitudes are codetermined in a system of accounts. [we can] learn to think
about economic events in the first instance as altering the accounts.) (K&M, p.151)
Considerando-se esses pontos, a tese do presente artigo passa a ter sentido claro e
preciso: i) existe um fenômeno empírico da realidade econômica por ser estudado, o
processo de decisão racional; ii) este fenômeno é pertinente tanto às disciplinas
contábil como econômica; iii) em geral, essas duas disciplinas diferem em seus
princípios, métodos e escopo, mas houve um programa de pesquisa que extraiu
idéias de ambas na tentativa de elaborar uma investigação consistente desse
fenômeno; iv) tal programa, conquanto tenha atraído o interesse e esforço de mentes
brilhantes, não prosperou por conta de suas deficiências formais; v) em parte, essas
deficiências refletem a falha deste programa em identificar e expressar a essência da
lógica contábil sobre a qual o processo de decisão toma forma; vi) assim, portanto,
caso seja possível superar essas falhas (identificar e expressar a lógica contábil) é de
se supor que este programa possa ser resgatado e, com uma formulação moderna,
venha a contribuir para o desenvolvimento da teoria econômica contemporânea.
O que permite supor que isso é possível são certos desenvolvimentos havidos
recentemente que permitiram isolar e descrever, formalmente, a lógica contábil. Com
isso, tornou-se possível analisar o processo de decisão sob uma perspectiva
puramente contábil, particularmente quando a decisão depende de expectativas
futuras. De fato, o custo de oportunidade requer que se olhe à frente, no tempo, e não
para trás, conforme é mister na contabilidade convencional. A seção seguinte trata
desses desenvolvimentos.
9 Hicks não contribuiu para The LSE Essays on Cost; ao contrário, está mais associado com o programa samuelsoniano. No entanto, conforme discutido na seção 2, ele entendia a lógica contábil.
Seção Quatro – A lógica contábil e sua representação algébrica
As referências para esta seção são o livro, recentemente publicado, Algebraic Models
for Accounting Systems (Cruz Rambaud et. al. 2010) e o artigo An Axiomatic Basis
of Accounting: A Structuralist Reconstruction (Balzer & Mattessich 1991). A idéia é
argumentar que existe na disciplina contábil um núcleo lógico, puramente analítico
(portanto, sem conteúdo empírico); que este núcleo admite uma representação
algébrica; e que a aplicação deste núcleo, na sua representação algébrica, à análise do
processo de decisão é que tem o potencial de contribuir para o desenvolvimento de
teorias econômicas.
Preliminarmente, é preciso resgatar a afirmação da seção anterior de que o programa
voltado ao custo de oportunidade tinha uma deficiência formal, e esclarecer o que se
entende por formalismo no contexto do presente artigo. A premissa é que a realidade
somente pode ser apreendida, analisada e interpretada no âmbito de uma linguagem.
Linguagens podem ser naturais (português, inglês, etc...) ou formais (lógica,
matemática). Uma linguagem formal, ou formalismo, é um sistema de símbolos que
são manipulados em sequências denominadas frases ou fórmulas e que se estrutura
em dois níveis: o sintático e o semântico.
O nível sintático é voltado à ordem dos símbolos, às regras de manipulação e ao
processo de dedução, as combinações válidas de frases ou fórmulas com as quais se
obtém novas frases ou fórmulas que também sejam válidas. É importante observar
que não há conteúdo empírico no nível sintático.Já o nível semântico é voltado ao
sentido dos símbolos, ao que eles representam e ao que eles comunicam.
Assim, quando se analisa e se interpreta a realidade no âmbito das linguagens
formais (i.e. interpretação lógica) o que se faz é conectar esses dois níveis, o sintático
com o semântico, de tal sorte que os atributos dos objetos da realidade estejam
associados aos atributos dos símbolos que os representam. Um problema que pode
ocorrer (e que ocorre no programa samuelsoniano) é quando a realidade é mais
ampla do que é possível enquadrar no nível sintático. Um exemplo tosco, mas
simples, deste tipo de problema ocorre com povos primitivos cuja língua, de tão
básica, não admite números maiores que dois: exitem um, dois e muitos. Nesse tipo
de língua é impossível expressar (e, portanto, reconhecer) um simples fenômeno
como o de alguém sair a caçar com dez flechas, lançar quatro e voltar com seis.
Outro ponto preliminar importante é observar que a discussão no artigo (Balzer &
Mattessich 1991) está inserida num contexto epistemológico específico, a Teoria
Estruturalista da Ciência. Trata-se de uma metateoria na medida em que seu objetivo
é o de “reconstruir”, segundo regras e procedimentos bem definidos, teorias
específicas de áreas distintas do conhecimento como física, sociologia ou
contabilidade. Nesse contexto estruturalista estão bem definidos os conceitos de
núcleo e de especialização, de tal sorte que a teoria que está sendo reconstruída possa
ser caracterizada como uma “rede-teoria” consistindo de núcleo ao qual se agrega
suas especializações. O caso da contabilidade há de tornar tais conceitos mais claros.
O propósito declarado de (Balzer & Mattessich 1991) é reconstruir a contabilidade,
conforme os ditames da Teoria Estruturalista da Ciência (tradução livre):
Esperamos que essa reconstrução proporcione uma forma viável de se capturar a
essência e estrutura básicas da contabilidade tão rigorosamente quanto possível;
mais ainda, esperamos que ela se apresente como uma „aplicação bem sucedida‟ da
metateoria estruturalista, onde se coloca ênfase especial nas relações semânticas que
conectam os dados empíricos com sua representação conceitual - ênfases no original. (We
hope the reconstruction to yield a viable way of catching the essence and basic structure of accounting as
rigorously as possible; furthermore, it offers a ‘successful application’ of structuralist metatheory, putting
special emphasis on the semantic relationship between empirical data and conceptual representation.)
(Balzer & Mattessich 1991, p.213)
Após algumas considerações iniciais e referências à literatura axiomática em
contabilidade, os autores passam a descrever o núcleo analítico da contabilidade
através de seis proposições.
A primeira delas reconhece que existem atores no mundo real que detêm a
propriedade sobre objetos (tangíveis ou intangíveis). O conjunto dos atores é
denotado por H e o conjunto dos objetos por O de tal sorte que a primeira proposição
simplesmente define o espaço contábil como o produto cartesiano HxO.
A segunda reconhece que o tempo flui; e, que à medida que o tempo passa ocorrem
eventos e transações. Assim, a segunda proposição insere no espaço contábil o fluxo
temporal de tal sorte que desta combinação resulte um sistema de dados contábeis.
A terceira reconhece que existem pontos no fluxo temporal em que ocorrem
avaliações de resultados, tipicamente através de medições e manipulações de dados.
A terceira proposição, portanto, introduz o período contábil, ampliando assim o
escopo do sistema de dados contábeis.
A quarta reconhece que os dados contábeis estão sujeitos a uma estrutura específica
com a qual é possível determinar certas relações quantitativas. Assim, a quarta
proposição organiza e estrutura os dados contábeis para definir a conta contábil.
A quinta e sexta explicitam a regra da partida dobrada de tal sorte que essas seis
proposições, tomadas em conjunto, caracterizam o núcleo analítico da contabilidade.
O que é importante reiterar é que esta caracterização do núcleo contábil é vazia de
conteúdo empírico; diz respeito, apenas, ao nível sintático da linguagem contábil.
Esse núcleo refere-se aos símbolos e às regras de manipulação que têm que ser dados
previamente ao processo de representação da realidade, isto é, ao processo que
conecta os níveis semântico e sintático. Assim, em particular, a problemática da
valoração dos objetos (custo histórico vs. fair value, por exemplo) há de ser tratada
fora do núcleo, atinente que é ao nível semântico. E, adicionalmente, fica clara a
interpretação avançada na seção 2, pela qual Crusoe faz uso da lógica contábil no seu
processo de decisão. De fato, por essa interpretação, entende-se que Crusoe dispõe
de uma linguagem que compreende o núcleo contábil descrito acima e faz uso dela
para capturar e analisar a realidade econômica em sua ilha deserta.
Consequentemente, a tese neste artigo que a contabilidade pode fertilizar a teoria
econômica, agora há de ficar clara: o núcleo contábil, de natureza sintática, deve ser
usado para representar a realidade econômica antes que se introduza, na análise, os
conceitos complexos de valor e preço, de tal sorte que estes conceitos de valor e preço
possam ser construídos, dedutivamente, a partir dos conceitos mais fundamentais
definidos neste núcleo.
Para o contador, o preço dos objetos é um dado empírico da realidade econômica;
consequentemente, não pertence ao núcleo. Por isso, não é cabível, no escopo estrito
da contabilidade convencional, a tese deste artigo, uma vez que a forma como a
teoria contábil está estruturada e vem sendo aplicada é perfeitamente aceitável.
Para o economista, no entanto, preço não é um dado puramente empírico: algo que
pelo fato de existir, simplesmente é e não admite questionamento. Ao contrário, um
dos objetivos do economista quando analisa o processo de formação de preços é
justamente evitar que os preços sejam o que de fato são (como quando há inflação).
Assim, no núcleo da teoria econômica, deveriam existir elementos sintáticos com os
quais o economista definiria o conceito de preço. Na visão do autor deste artigo, não
existem tais elementos na teoria neoclássica. Não cabe aqui a discussão deste ponto,
mas na última seção discute-se pelo menos um elemento que está no núcleo contábil
e que não está no núcleo neoclássico, a saber, que o tempo flui.
Retomando (Balzer & Mattessich 1991), observe-se que tendo os autores apresentado
o núcleo analítico da contabilidade, eles então prosseguem com a discussão do
processo de captura e representação da realidade econômica a partir dos elementos
do referido núcleo. Em particular, sua análise desse processo indica, claramente,
porque as diversas abordagens existentes para a valorização dos objetos10 são todas
legitimamente contábeis. Adicionalmente, essas distintas abordagens são exemplos
de possíveis especializações da teoria contábil. De fato, os autores asseveram que a
contabilidade é uma disciplina teleológica (isto é, que tem propósito) de tal sorte que
a depender dos objetivos de quem usa o núcleo, a contabilidade se especializa numa
ou noutra direção. Por fim, concluem à pagina 236 (tradução livre):
[...] modelo de núcleo „trivial‟ [sem conteúdo empírico] em oposição a aplicações
especiais „interessantes‟ é típico, em geral, das teorias maduras e bem desenvolvidas.
O objetivo deste artigo foi o de revelar os detalhes e a estrutura deste modelo de
núcleo, já que é tal núcleo que garante a unidade da rede de especializações e,
portanto, constitui o pré-requisito para que se possa proceder com novos
desenvolvimentos. (...‘trivial’ core model versus ‘interesting’ special applications is typical of mature
and developed theories in general. And the aim of this paper was to bring out the details and the structure
of the core model; for it is the core model that provides the unity for the net of specializations, and thus
constitutes the prerequisite for any further work.) (Balzer & Mattessich 1991, p.236)
10 Custo histórico e corrente (entrada ou saída); valores ajustados à inflação, valor presente, fair value.
A linguagem (metalinguagem) com a qual esses autores descrevem o núcleo contábil
está assentada nos símbolos e nas regras associados com a Teoria dos Conjuntos.
Trata-se de uma linguagem puramente lógica, portanto, precisa que é muito flexível e
que tem amplo alcance de tal sorte que é usada com frequência para a axiomatização
de teorias em distintas áreas do conhecimento. No entanto, a linguagem da Teoria
dos Conjuntos carece de estrutura relacional. Para superar tal limitação, uma
alternativa é a linguagem algébrica que é própria à análise de estruturas relacionais.
É a alternativa tomada no livro, recentemente publicado, Algebraic Models for
Accounting Systems, onde a descrição do núcleo, sintetizada acima, é traduzida em
terminologia algébrica e expandida graças aos recursos que a linguagem algébrica
oferece, propiciando, em consequência, uma interpretação muito mais ampla e
precisa das características do núcleo contábil.
A idéia de que a contabilidade tem propriedades algébricas é muito antiga. Ainda que
se argumente que Pacioli, quem primeiro codificou o procedimento contábil, não
fosse propriamente um algebrista, os autores do livro referem-se a De Morgan em
1846 e, principalmente a Cayley em 1894, como tentativas antigas de se aplicar a
álgebra abstrata no escopo da teoria contábil. No Brasil, a tese de doutoramento do
Prof. Florentino data de 1956 e estava voltada justamente à descrição do núcleo em
linguagem algébrica11. Apesar das referências a De Morgan e Cayley, os autores
admitem que um programa de pesquisa consistentemente voltado à aplicação da
álgebra abstrata em contabilidade é algo recente. Ainda que seja famosa a tentativa
de axiomatização, em linguagem algébrica, proposta por Mattessich em 1957, o fato é
que ele não deu continuidade a essa linha de pesquisa, tendo se convertido à
linguagem da Teoria dos Conjuntos. Isso porque, conforme explicam os autores do
livro, sua axiomatização algébrica é falha e não logrou os objetivos pretendidos.
Esses exemplos históricos, e o desinteresse geral da comunidade contábil por
métodos algébricos, torna legítimo que se desconfie que a aplicação da álgebra
abstrata à contabilidade seja do terreno do preciosismo formal com pouco a oferecer
em contribuição, seja prática ou teórica. No entanto, a opinião do autor deste artigo é
justamente a contrária: o núcleo sintático da linguagem contábil é tão sofisticado que
demanda ferramentas analíticas muito poderosas para ser revelado. Por ter essa
visão, o autor gostaria de ecoar, no âmbito da contabilidade, as palavras de von
Hayek, em relação à economia (tradução livre):
Minha crítica à recente tendência de se tornar a teoria econômica mais e mais formal
não é que se tenha ido longe demais, mas que não se foi ainda longe o bastante para
que se logre o isolamento da linguagem lógica e com isto se restaure, ao seu lugar de
direito, a investigação dos processos causais, que então usariam a teoria econômica
formal apenas como uma ferramenta, a mesmo título que se usa a matemática. (My
criticism of the recent tendencies to make economic theory more and more formal is not that they have gone
too far, but that they have not yet been carried far enough to complete the isolation of this branch of logic
and to restore to its rightful place the investigation of causal processes, using formal economic theory as a
tool in the same way as mathematics.) (LSE, p. 29)
11 Cf. referência em (Florentino [1971], apêndice 1º)
De qualquer maneira, é sob essa perspectiva que os autores direcionam seu livro à
descrição do núcleo contábil em linguagem algébrica. É um livro por demasiado
técnico para ser aqui resumido. Cabe, no entanto, que se discuta dois pontos.
O primeiro relaciona-se ao fato que o dado empírico básico, tanto da contabilidade
como da economia, é o evento contábil; por exemplo, quando algo é comprado ou
vendido, um contrato é firmado ou um bem é produzido. Portanto, qualquer
linguagem formal, apropriada à descrição desta realidade empírica, deveria conter,
entre seus elementos sintáticos, a passagem do tempo, ou seja, o fato que o tempo
flui e assim ser capaz de representar a realidade empírica dos eventos contábeis. É
disto que trata a proposição 2 em (Balzer & Mattessich 1991). É disto que trata o Prof.
Florentino em sua tese e que o distingue dos autores que o precederam12:
“[Os mais antigos] desenvolveram apenas a demonstração da igualdade contábil
expressa no Balanço. Situaram-se, portanto, em um esquema estático e não
desenvolveram o raciocínio para aplicação da mecânica (dinâmica) contábil, que é
exatamente a parte que versa sobre a sistemática dos lançamentos (registros)
contábeis.” (Florentino [1971], p. 261).
É disto que trata o capítulo 3 do livro, denominado Transações, onde mostram existir
um isomorfismo entre os espaços vetoriais dos balanços e das transações. Em termos
leigos, esse resultado permite que se compare dois balanços, separados por um
intervalo de tempo qualquer, para se inferir a natureza das transações ocorridas no
intervalo. Ou seja, justifica-se a maneira usual dos contadores para avaliar as
transações ocorridas num intervalo de tempo e caracteriza-se uma análise dinâmica,
em contabilidade, conforme almejava o Prof. Florentino.
Para efeitos da tese no presente artigo, o desenvolvimento formal da dinâmica
contábil é da maior importância. De fato, apenas com ele é possível confrontar o
programa samuelsoniano sob a perspectiva em que este último é superior aos seus
rivais, qual seja, a perspectiva do rigor formal. Esta questão será retomada adiante,
na última seção. Por ora, conclua-se aqui a discussão do primeiro ponto.
O segundo ponto sobre o livro relaciona-se às suas limitações, tema a que os autores
referem como localização de sua pesquisa (tradução livre):
[...] esta descrição está restrita à firma isolada, [...] o sistema contábil da firma pode
ser interpretado como um filtro que captura certos dados do ambiente, dados esses
que serão processados e apresentados aos tomadores de decisão. É esse filtro, com
suas especificações quanto aos dados a serem capturados, quanto a forma como esses
dados deverão ser processados e a forma geral na qual eles deverão ser apresentados
que localiza o presente livro no âmbito do processo contábil. (...this description is reduced to
an individual firm, ...the accounting system of the firm can be seen as a filter which captures certain data
from the environment, to be processed and presented to decision makers. It is this filter, the specification of
which data are captured, how they are processed and in what general form they are presented, which locate
this book within the accounting process.) (Cruz Rambaud et. al. 2010, p.17)
12 O Prof. Florentino faz referências explícitas a Emanuele Pisani, Fabio Besta e J. Dumarchey.
Considerando-se o universo da disciplina contábil, trata-se de uma localização
deveras restrita. No entanto, é preciso estar clara a idéia central desta seção pela qual
a contabilidade tem um núcleo sintático com o qual é possível modelar o processo de
decisão. E, é esse processo de decisão, com sua manifestação empírica nos eventos
contábeis, que se busca modelar e que, caso venha a ser modelada, há de caracterizar
uma área interdisciplinar entre a contabilidade e a economia.
Para concluir, observe-se que com seu foco na firma isolada, os desenvolvimentos
apresentados no livro permitem que se apliquem seus resultados à modelagem do
Robinson Crusoe na sua ilha deserta. Mas, muito trabalho ainda há que ser feito para
que esta linguagem algébrica formal possa ser aplicada à análise das interações entre
distintos agentes econômicos de forma que se logre retirar Crusoe da sua ilha deserta
e levá-lo de volta a sociedade dos homens.
Seção Cinco – Uma digressão
Esta quinta seção é uma digressão, e como tal, pode ser saltada sem prejuízo ao
argumento que aqui se desenvolve. No entanto, no espírito de convite à discussão e a
novas perspectivas de análise, conforme apresentado na introdução, acredita-se que
esta seção há de enriquecer o debate e facilitar o entendimento da tese deste artigo.
A idéia, nesta seção, é que qualquer formalismo degenera: com o tempo ele passa a
limitar o entendimento da realidade que ele, originalmente, se propunha a explicar.
O autor teve contato com essa idéia há muitos anos atrás, durante aula sobre a
história do pensamento em física, mas sabe que Lakatos tratou desta questão.
Antes de explicar a idéia propriamente dita é preciso apresentar uma questão
preliminar, qual seja: não é possível abordar-se um problema científico sem que se
disponha, previamente, de um conjunto de a prioris. É comum usar o termo teoria
para indicar esse conjunto de a prioris. Eles são necessários como orientação sobre o
que é relevante ser investigado. A discussão a seguir ajuda a entender esta questão
através de um exemplo (tradução livre):
Seria possível tomar uma bola de cobre padrão e deixá-la cair de determinada altura
sobre corpos distintos para então medir, em cada caso, a frequência de som emitida
no impacto. O resultado deste procedimento seria chamado de „sonoridade‟ do corpo;
e, este seria uma legítimo processo de mensuração ... Não enxergo nenhuma razão
fundamental pelo qual não deveria ser feito. Parece, prima facie, tão empiricamente
válido quanto imergir um tubo de mercúrio num líquido após o outro e anotar a
marca onde o mercúrio se equilibra. No entanto, não medimos „sonoridade‟, mas
medimos temperaturas. Por quê? (It would be possible to keep a standard copper ball, to let it fall
from a given height on to various bodies, and to measure in each case the frequency of the note emitted on
impact. This could be called, say, 'the sonority' of the body, and it would be a true measurement ... And I see
no fundamental reason why it should not be made. It seems prima facie as sensible as plunging a tube of
mercury into one liquid after another and noting where the mercury comes to rest. Yet we do not measure
sonorities and we do measure temperatures. Why?) (Dingle 1950, p. 11).
Ora, porque sabe-se que temperatura é uma propriedade dos corpos enquanto
sonoridade não é. O que é sabido, os a prioris, é que orientam a investigação numa
direção e não na outra. Os a prioris são uma necessidade lógica prévia a qualquer
investigação científica. E, sua origem é a experiência. Mas, para ser preciso, há de se
tomar cuidado para explicitar, claramente, o que significa experiência.
A experiência básica é aquela, obviamente, associada com os sentidos; porque se
sente frio ou calor é que se investiga temperatura. Mas, existe outro tipo de
experiência que não está associada aos sentidos: é aquela que se adquire pela leitura
de livros e pelo aprendizado. Este segundo tipo de experiência, mesmo que abstrata e
não sensorial, é tão boa quanto a primeira para orientar uma investigação científica.
De fato, a quase totalidade das teses de doutoramento, em ciências sociais, está hoje
voltada a tratar de questões que surgem a partir do que existe na literatura.
O grande problema com este segundo tipo de experiência, baseado em leituras e
aprendizado, é que ela só se materializa no âmbito de um formalismo dado.
Afirmou-se na seção anterior que formalismo é linguagem, com níveis sintático e
semântico. O nível sintático impõe regras que limitam o tipo de informação
admissível no âmbito do formalismo. Por exemplo, a astrologia não cabe no âmbito
do formalismo da física moderna. Isso é resultado, precisamente, do maior rigor
científico (maior formalismo) com que se passou a abordar os fenômenos físicos. De
fato, no passado os grandes físicos eram também astrólogos de pleno direito.
Assim, é preciso reconhecer que a experiência que orienta a investigação científica
em determinada disciplina está limitada pelo formalismo que expressa a referida
disciplina, de tal sorte que são suas regras que definem o que é lícito investigar e a
forma lícita de fazê-lo. Em si, essas limitações não são problema; elas impõem o rigor
científico necessário. O problema é quando a realidade não cabe mais dentro delas.
Esse é o tema principal nesta seção que se discute através de um exemplo histórico.
Da experiência sensorial sabe-se que o sol gira em torno da terra todos os dias; e
assim também fazem os planetas e as estrelas. Visando explicar esse fato empírico,
Aristóteles desenvolveu uma cosmologia que tinha como um de seus pontos centrais
a idéia que os corpos celestes necessariamente moviam-se em círculos.
Os gregos inventaram a geometria, de tal sorte que ao longo dos séculos a cosmologia
de Aristóteles foi formaliza em linguagem geométrica. O auge desta formalização
deu-se com o livro do matemático Ptolomeu, conhecido como Almagesto.
Coerentemente (tradução livre):
A hipótese fundamental no Almagesto é que os movimentos aparentemente
irregulares dos corpos celestes são, na realidade, combinações regulares e uniformes
de movimentos circulares. (The fundamental assumption of the Almagest is that the apparently
irregular movements of the heavenly bodies are in reality combinations of regular, uniform, circular
motions.) ( http://en.wikipedia.org/wiki/Deferent_and_epicycle )
Através de uma construção realmente sofisticada – obra de um gênio – logrou-se um
modelo perfeito. De fato, tomado em seus próprios méritos, o modelo ptolomaico é
perfeito porque simultaneamente validava as hipóteses sobre as quais estava
assentado (isto é, demonstrava que os dados empíricos eram compatíveis com o
movimento circular) como também permitia previsões de fenômenos futuros, como
eclipses, que de fato se materializavam. Por conta disto, prevaleceu por mais de mil
anos! Até mesmo Copérnico, um dos que contribuíram para seu fim, calculava e
raciocinava em termos desse modelo. Hoje, no entanto, sabe-se que este modelo tem
um ponto fraco: existe outro modelo melhor! Um dia Newton imaginou algo
diferente e o resto é história.
Através deste exemplo histórico é possível tornar clara a idéia desta seção. Uma vez
imerso num formalismo dado, a percepção da realidade é limitada pelas regras
imposta por referido formalismo; no exemplo, as regras ptolomaicas admitiam, tão
somente, o movimento circular. A possibilidade de outro tipo de movimento, como o
elíptico, está vetada pela estrutura da linguagem (tal como aquela língua primitiva
sem numerais impede a captura de fenômenos numéricos). Não há caminho que
comece dentro desta linguagem e que possa conduzir para fora da linguagem. Em
particular, neste exemplo, quando algumas discrepâncias entre a realidade empírica
e aquilo previsto pela teoria foram encontradas, bastou alguns ajustes na combinação
dos movimentos circulares para dar conta da questão (fato conhecido em história da
ciência como o “epiciclo do epiciclo”).
A única saída é pela incorporação de experiências adicionais que estejam fora do
escopo do formalismo dado. Pode ocorrer uma reinterpretação da experiência
sensorial, como aconteceu com Newton na origem da física moderna; nesse caso,
surge um novo formalismo que toma o lugar daquele que havia antes. Pode ocorrer
uma fertilização cruzada, quando se aplica o formalismo de uma disciplina em outra.
Para que este segundo caso ocorra, no entanto, a disciplina a ser fertilizada tem que
ter regras formais suficientemente flexíveis para admitir a fertilização. É isso o que
não vem ocorrendo na economia, onde a prevalência da teoria neoclássica restringe,
através de seu formalismo, a possibilidade de novas perspectivas.
E, é aqui que a contabilidade pode ter algo a contribuir para economia. A
contabilidade é disciplina pragmática e está muito mais próxima da realidade
econômica objetiva do que a teoria neoclássica. Portanto, ela tem o potencial de
agregar as tais referidas experiências adicionais que indicariam uma saída para fora
do formalismo neoclássico, que reconhece-se hoje, tem problemas sérios13.
É claro, não será um caminho fácil ou curto, a começar que é preciso superar a
inapetência dos contadores por usar linguagens formais. Mas, isso tem solução. O
que não tem solução é açambarcar a realidade a partir de um formalismo por
demasiado limitado.
13 Uma visão crítica, por exemplo, vem do movimento Post-Autistic Economics: cf. www.paecon.net
Seção Seis – Discussão e Conclusão
Nesta seção estrutura-se as discussões havidas ao longo do artigo num argumento
concatenado e linear. Acredita-se que este procedimento há de colocar as idéias aqui
discutidas numa perspectiva que sustente as recomendações e a conclusão indicadas
adiante.
O primeiro ponto a se recuperar é que o foco, neste 2º ERCF, está voltado ao debate
acadêmico. Nesse sentido, este artigo posiciona-se assumidamente fora dos cânones
da pesquisa convencional em contabilidade dado que este evento se propõe a
oferecer ambiente propício ao debate teórico com fins puramente especulativos.
Conquanto pouco usual, especular é uma das atividades acadêmicas importantes
como ilustra, por exemplo, o artigo recentemente publicado na Accounting Horizon,
denominado Economic “Reality” and the Myth of the Bottom Line (Moore, 2009).
Convenientemente classificado como comentário, o paper discute a questão de
mensuração contábil a partir de uma perspectiva que mistura filosofia budista e física
quântica! O espírito que anima o presente artigo vai na mesma linha, com um
escopo, espera-se, bem mais pedestre.
O segundo ponto é que a discussão teórica, de cunho filosófico, é necessária em
contabilidade. (Demski, 2007) introduz uma boa discussão a este respeito. Seu ponto
de vista é controverso, mas revela uma opinião importante dado sua posição no
establishment acadêmico americano: simplesmente, na opinião dele, a situação
acadêmica (scholarship) da contabilidade, hoje em dia, é lastimável. E, claramente,
uma das coisas que fazem falta é ter-se mais pesquisa fundamental, de cunho
filosófico.
O terceiro ponto diz respeito a um aspecto particular relacionado à pesquisa
fundamental: a questão de formalismo. É importante entender que formalismo é
linguagem. Como tal, é uma ferramenta necessária para que se logre análisar,
interpretar e comunicar, de forma estruturada (i.e.: inteligível), os fatos da realidade
que se investiga. Mas, todo formalismo tem limitações. E, essas limitações são um
problema sério quando, por conta de alguma deficiência sintática, impedem que se
apreenda a existência de certos fatos empíricos.
Os pontos seguintes foram desenvolvidos em maior e menor grau no texto do artigo.
Mesmo quando um formalismo tenha sido desenvolvido especificamente para certos
aspectos da realidade, e tenha se provado proveitoso, com o tempo há uma tendência
a que se degenere, epistemologicamente falando. A única forma de se dar conta dessa
degenerescência é por comparação com algum outro formalismo alternativo.
No caso particular da economia, o formalismo prevalente é denominado neoclássico,
sendo entendido como parte do programa de pesquisas associado com Paul
Samuelson. O acúmulo de novos fatos empíricos e o desenvolvimento de novas linhas
de pesquisa conceitual e teórica, relacionadas à economia, vêm causando o
questionamento deste programa, principalmente nos últimos quinze anos.
A tese central do presente artigo é que um novo formalismo, inspirado na
contabilidade, tem o potencial de contribuir para que se supere algumas das
limitações fundamentais do formalismo neoclássico. Isso porque, argumenta-se, a
realidade econômica tem o mesmo substrato empírico da realidade contábil, qual
seja: o processo de decisão racional que se manifesta nas transações de compra e
venda, produção, empréstimos, etc... Esse (potencial) novo formalismo vem sendo
desenvolvido no âmbito de um programa de pesquisa teórica voltado à axiomatização
da contabilidade em linguagem algébrica.
A título de ilustração, apenas, considere-se o fato que de a realidade, contábil ou
econômica, se manifesta no tempo. O formalismo samuelsoniano, através de uma
racionalização engenhosa (e.g.: o princípio da correspondência14) subtrai de seu nível
sintático o fluxo temporal para restringir-se à análise estática comparativa. Num
mundo razoavelmente estável, esta metodologia se justifica e se sustenta. Mas, nosso
mundo está longe de ser estável nos dias que correm. Em contraste, a passagem do
tempo é inerente à contabilidade: o livro-diário nada mais é que uma coleção de
eventos que acontecem no tempo. A contabilidade trata de capturar tais eventos e de
estruturá-los segundo um certo procedimento com o qual espera-se inferir
conhecimento sobre a realidade econômica que subjaz a tais eventos. Na linguagem
desenvolvida em Algebraic Models for Accounting Systems, o diário tem uma
representação algébrica bem definida, sujeita a condições precisamente
especificadas. Assim, para concluir a tese deste artigo, sugere-se que com o recurso a
este formalismo algébrico, a contabilidade terá condições de confrontar o formalismo
samuelsoniano, superar suas limitações e permitir que a maneira contábil de
enxergar a realidade penetre na análise econômica.
Não será empreendimento fácil, nem rápido. De fato, um primeiro, e básico,
obstáculo a se superar é inapetência da comunidade contábil para essas discussões
de natureza formal.
Ocorre que não há solução, para a contabilidade enquanto disciplina acadêmica, fora
do maior rigor formal. Ainda que não se concorde com a visão extremamente
negativa expressa em (Demski, 1990), não se pode cair no autoengano de se imaginar
que tudo vai bem com a contabilidade acadêmica. Os problemas do mundo real, com
suas questões éticas e a insatisfação do público leigo com aquilo que a contabilidade
oferece, são problemas do mundo lá fora, mas que não estão desconectados das
questões mais profundas que precisam ser analisadas e desenvolvidas na academia.
Ocorre também que a construção do edifício científico é obra coletiva que se dá ao
longo do tempo. Não se pode esperar de um acadêmico em contabilidade, dado o
contexto que o formou, que ele se converta à lógica matemática e que se torne um
algebrista. Mas, é legítimo contar com ele para que apóie e estimule o
desenvolvimento de novos programas de pesquisas. Assim, seguem-se algumas
recomendações dirigidas ao departamento de contabilidade da USP, em particular.
14 Ver (Samuelson 1947, pp. 262-263 e p.350); uma boa introdução ao tema é (Villupilai 1973).
Recomenda-se que se busque atrair novos estudantes para o curso de pós-graduação
em contabilidade que tenham um perfil analítico. O enfoque atual estimula apenas
aqueles estudantes com histórico profissional e/ou com interesse de pesquisas
voltado às questões pragmáticas. É claro que o enfoque atual há de ser o prioritário.
Mas, o que se recomenda é apenas que haja espaço para gente com um perfil
diferente, mais matemático e filosófico.
Recomenda-se, consequentemente, que se abra uma nova linha de pesquisa voltada à
teoria contábil. Observa-se que o departamento oferece quatro linhas, nenhuma
delas voltada à teoria. Entretanto, no departamento de economia, há apenas duas
linhas, uma delas precisamente voltada às questões de pesquisa teórica.
Recomenda-se o incentivo a projetos de pesquisas interdisciplinares. O incentivo se
daria em duas frentes: com a alocação de recursos para tais projetos; e, com a revisão
dos critérios aplicáveis às teses e pesquisas tal que venham a facilitar que alunos de
outros departamentos tomem co-orientadores no departamento de contabilidade,
especialmente alunos da filosofia e da matemática.
Recomenda-se a manutenção e a ampliação de iniciativas como o ERCF. Elas ajudam
a criar um ambiente de boa vontade para aqueles que tem a paixão por explorar o
desconhecido e assumir, consequemente, os maiores riscos que tal paixão costuma
acarretar.
Finalmente, recomenda-se que aqueles que são editores e revisores nas revistas
acadêmicas se permitam correr riscos. A esse respeito, observe-se a estória verídica
reportada por Mattessich sobre a origem da revolução empiricista ocorrida em
contabilidade, ao final dos anos 60 (tradução livre):
A mais conhecida dentre essas publicações é o artigo por Ball e Brown (1968);
entretanto, quando foi submetido à apreciação da The Accounting Review, o artigo foi
rejeitado pelos revisores e pelo editor sob o argumento de que não se tratava de
contabilidade, mas de finanças. O editor do Journal of Accounting Research, por
outro lado, tomou uma posição diferente. Ele nos conta que: „Eu não mandei o
trabalho para ser revisto por ninguém do corpo editorial porque ninguém teria
entendido o artigo, tanto quanto eu próprio não o compreendi a princípio.‟ (Dopuch
1989, 45). Ele aceitou o artigo para publicação tão somente na base da confiança que
ele tinha quanto à motivação e ao talento de Ball e Brown, pessoas que ele conhecia do
tempo que estes haviam estado em Chigago. Assim veio a ser publicado o trabalho,
que vinte anos depois, mereceu o prêmio literário de maior prestígio oferecido pela
AAA, o Prêmio por Contribuição Seminal à Literatura Contábil. (The best-known among
these publications is that by Ball and Brown (1968); yet, when it was submitted to The Accounting Review,
the paper was rejected by reviewers and the editor with the argument that it did not deal with accounting
but finance. The editor of the Journal of Accounting Research, on the other hand, was of a different mind.
He tells us that “I did not have the paper reviewed by anyone on the editorial board since the members at
the time would not have understood the paper any more than I initially did” (Dopuch 1989, 45). He accepted
the paper merely on the trust he had in the motivation and talents of Ball and Brown whom he knew well
form the time they spent at Chigago. Thus came to be published the work which, twenty years later,
received the most prestigious of the literature prizes of the AAA, the Award for Seminal Contributions to
Accounting Literature.) (Mattessich 1995, p. 159)
E, assim, chegamos à conclusão. Existe uma janela de oportunidades com um novo
programa de pesquisas voltado ao uso do formalismo algébrico na teoria contábil.
Este programa deve ser estimulado porque, se bem sucedido, contribuirá para elevar
o status científico da contabilidade no meio acadêmico. No mínimo, caso não se
queira apoiá-lo, deve-se tolerá-lo porque é da natureza acadêmica aceitar e conviver
com idéias especulativas. Mas, este programa tem potencial para esclarecer
dificuldades e resolver pendengas antigas que existem no âmbito da teoria contábil.
Essas questões não foram objetos de discussão no presente artigo, mas podem ser
apresentadas em outro contexto, quando surgir a oportunidade. O foco, aqui, foi
argumentar que com este programa, a contabilidade pode contribuir para o
desenvolvimento de teorias econômicas contemporâneas. Não porque se queira ser
gentil com os economistas (que, provavelmente, serão refratários à idéia), mas
porque é necessário entender o mundo real. Vive-se, no momento, as consequências
perversas de crise financeira iniciada em 2008 e não é absurdo imaginar que estes
acontecimentos tenham ocorrido, em parte, por deficiências profundas quantos aos
fundamentos teóricos com os quais os economistas avaliam e analisam a realidade.
Referências
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