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Tecendo as Memórias dos familiares de um Militante Comunista
Giselle dos Santos Siqueira1
I - Introdução
Getúlio D’Oliveira Cabral nasceu em 04 de abril de 1942, em Espera Feliz (MG).
Segundo seu irmão Vitor Hugo, seu nome foi uma homenagem que sua mãe Lindrosina
prestou ao presidente Getúlio Vargas.
Foi dirigente regional do PCB (Partido Comunista Brasileiro) e dirigente nacional do
PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário). Era chefe do Grupo de Fogo, na
Guanabara, também chamado de Esquadra Militar. Este foi o último grupo de guerrilha
urbana no Rio de Janeiro.
Getúlio foi morto sob tortura no dia 29 de dezembro de 1972, aos 30 anos, no
DOI/CODI-RJ (Departamento de Operações Internas – Centro de Operações de Defesa
Internas). Ele foi uma das vítimas do “massacre” que também vitimou Fernando Augusto da
Fonseca, José Silton Pinheiro e José Bartolomeu Rodrigues de Souza.
Este trabalho tem o objetivo de analisar principalmente as narrativas dos familiares de
Getúlio de Oliveira Cabral e descobrir através delas quais são as memórias que a família
guarda de Getúlio. Estas narrativas foram construídas a partir das entrevistas com os
familiares de Getúlio Cabral, através do trabalho com a História Oral. Além dessas
entrevistas, trabalho também com as narrativas do Ministério da Marinha e Aeronáutica, da
Anistia Internacional, do Jornal O Globo (fevereiro de 1972) e do escritor Fernando Soares no
seu artigo “La Insígnia”.
Vitor Hugo D’ Oliveira Cabral é o irmão mais velho de Getúlio. Tem setenta e um
anos, é solteiro e tem dois filhos. É dono de uma loja de fotografias em Copacabana.
Luis Carlos D’ Oliveira Cabral é o quarto filho no total de sete. Tem sessenta anos, é
casado e tem cinco filhos. Trabalha como fotógrafo.
Ernesto D’ Oliveira Cabral é o irmão caçula de Getúlio. Tem cinqüenta anos, é solteiro
e não tem filhos.
1 Graduada em História pela Fundação de Filosofia, Ciências e Letras – FEUDUC. Pós Graduada em História do
Rio de Janeiro pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Mestra no Programa de Pós Graduação em História
Política pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ.
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Adriano D’ Oliveira Cabral é o filho caçula de Getúlio. Tem quarenta e dois anos, é
casado e tem dois filhos. Trabalha com Segurança do Trabalho.
A primeira coisa que me perguntei foi porque os familiares de Getúlio me dariam uma
entrevista? Quais seriam seus objetivos?
Depois da realização das entrevistas, ficou clara pra mim essa resposta. A família tem
um trabalho de memória, uma preocupação constante que a memória de seu ente querido seja
preservada, cada um deles construiu uma memória sobre Getúlio. Assim a memória e o luto
foram elaborados tanto coletivamente (a família Cabral) quanto individualmente (Vitor,
Adriano, Luis e Ernesto).
A primeira entrevista foi realizada com Luis Carlos Cabral e teve como local a
Ocupação Getúlio Cabral (Parada Angélica – Duque de Caxias). Fiz a entrevista no quintal da
sua casa e começamos a conversar sobre tudo que dizia respeito a Getúlio. Luis foi muito
solícito e respondeu a todas as minhas perguntas. Ele foi o responsável em fazer a “ponte”
entre mim e os seus familiares. Marcamos uma segunda entrevista que se realizou na Sede
Administrativa do Museu Vivo do São Bento (São Bento – Duque de Caxias) estando
presentes nesse dia os quatro entrevistados. A entrevista foi maravilhosa, conversamos sobre
desde a infância dos entrevistados até como está a vida deles atualmente.
O trabalho será norteado por conceitos importantes como “Memória” trabalhado por
Michael Pollak, Jacques Le Goff e Paul Ricoeur, “Memória Dividida”, “Memória
Compartilhada” e “Ocultamento da Memória” de Alessandro Portelli e “Lugar de Memória”
de Pierre Nora, verificando em que medida esses conceitos se relacionam as narrativas
analisadas por mim nessa pesquisa.
Tentarei desenvolver no próximo item uma primeira análise das entrevistas concedidas
pelos familiares de Getúlio Cabral. Como as entrevistas são muito ricas e densas, estarei
focada em perceber quais são os diferentes sentidos atribuídos por eles ao seu relacionamento
com Getúlio.
II – Parte Teórica e Análise das Fontes
A História Oral para Portelli (PORTELLI, 1991: 45-58) é um espaço de diálogo entre
os homens. E foi essa sensação de conversa, bate papo que eu senti ao realizar as entrevistas,
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éramos pessoas que estavam juntas compartilhando idéias, sonhos, histórias e acima de tudo
memórias.
Devemos sempre lembrar que cada entrevista é única e diferente e sempre se aprende
com cada um dos nossos entrevistados, pois cada pessoa se destaca pela sua singularidade.
Como diz Portelli: “Para a história oral todos os indivíduos são excepcionais na medida em
que representam a encruzilhada de uma série de histórias potenciais.” (PORTELLI, 1997a:
57-60). Vitor, Luis, Adriano e Ernesto cada um deles são únicos, complexos e apaixonantes.
E em cada entrevista lidamos com as nossas interpretações e com as muitas interpretações dos
nossos entrevistados, que em muitos casos são completamente opostas. Nossas interpretações
diferem em muitos pontos das entrevistas, principalmente no ponto que se refere à imagem
que a família tem de Getúlio como um herói, e eu não o vejo como um herói e muito menos
como um bandido mais como alguém que lutou pela defesa de um ideal, de uma causa.
A história oral se trata de um “relacionamento, de um projeto compartilhado no qual
ambos, entrevistador e entrevistados, estão envolvidos juntos, mesmo que não
necessariamente em harmonia” (PORTELLI, 1991:54). O meu caso e o da família Cabral
configura-se numa relação de extrema harmonia, respeito, amizade, admiração, uma espécie
de “amor a primeira vista”.
Umas das principais características da História Oral são as múltiplas narrativas.
Trabalhando com as minhas entrevistas encontro várias narrativas diferentes: a dos quatros
familiares de Getúlio, do Jornal O Globo, do escritor Fernando, dos Ministérios da Marinha e
Aeronáutica, da Anistia Internacional, entre outras.
Cada um dos nossos entrevistados tem memórias únicas. Como Portelli diz:
“A centralidade do individual é aumentada pelo fato de que a história oral lida com
versões do passado, isto é, com a memória, a qual, embora seja de muitas formas
modelada por um ambiente social, não impede que rememorar continue a ser um
ato e uma arte profundamente pessoais. Pelo fato deste processo individual ocorrer
em um ambiente social dinâmico e fazer uso de instrumentos socialmente criados e
compartilhados, as memórias podem ser semelhantes, sobrepor-ser ou mesmo se
contradizer. Mas memórias são como impressões digitais e como as vozes não há
duas iguais”. (PORTELLI, 1997a: 57-60)
Meus entrevistados apesar de terem muitas semelhanças nas suas falas, conviverem
muitas vezes num mesmo ambiente, compartilharem acontecimentos possuem nas suas falas,
nas suas memórias peculiaridades únicas, singulares e distintas.
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Devemos nos ater á diferença entre o fato e a memória. Para constatar essa diferença
apresentarei um exemplo: temos como Fato o assassinato de Getúlio Cabral e como Memória
as lembranças, os sentimentos, a dor, a revolta que a família sentiu no dia que soube da morte.
Para Pollak, memória é uma operação coletiva dos fatos do passado que se quer
salvaguardar. Ela tem como funções essenciais: manter a coesão interna e defender os pontos
que um grupo tem em comum. (POLLAK, 1989: 3-15)
A constituição da memória é importante porque está atrelada à construção da
identidade. Como assinala Michael Pollak, a memória resiste à alteridade e à mudança e é
essencial na percepção de si e dos outros. (POLLAK, 1992: 200-212)
A família Getúlio Cabral através das suas memórias tem como objetivo guardar,
lembrar um passado que os mantém unidos e fortes. Eles construíram uma identidade para a
família: uma identidade acima de tudo de luta.
Jacques Le Goff é esclarecedor quando afirma que: “tornarem-se senhores da memória
e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos
que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da
história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva”. (LE
GOFF, 1990).
O processo de anistia no Brasil, não só poupou os vencedores da Ditadura de
Segurança Nacional como os recompensou. A institucionalização do silêncio oficial e a
supressão da memória coletiva foram fundamentais para desresponsabilizar os culpados e
impor a amnésia do silêncio final.
Segundo Paul Ricoeur, a memória permanece, em última instância, a única guardiã de
algo que “efetivamente ocorreu no tempo”. Assegurando a continuidade temporal, a memória,
fragmentada e pluralizada, se aproxima da história pela sua “ambição de veracidade”.
(RICOEUR, 1996: 11).
As memórias são por naturezas diversas e fragmentadas, pois o entrevistado
dificilmente se recorda da história, do fato como um todo e devemos lembrar que não existe
somente uma memória “verdadeira”, todas são únicas e verídicas.
Portelli utilizou o conceito de “memória dividida” para falar das memórias de um
massacre ocorrido na cidade italiana de Civitella:
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Contini identifica, por um lado, uma memória “oficial”, que comemora o massacre
como um episódio da Resistência e compara as vítimas a mártires da liberdade; e,
por outro lado, uma memória criada e preservada pelos sobreviventes, viúvas e
filhos, focada quase que exclusivamente no seu luto, nas perdas pessoais e coletivas.
Essa memória não só nega qualquer ligação com a Resistência, como também culpa
seus membros de causarem, com um ataque irresponsável, a retaliação alemã.
(PORTELLI, 2006: 105)
O conceito de “memória dividida” pode ser utilizado para análise das narrativas dos
Ministérios da Marinha e Aeronáutica e da Anistia Internacional (quando se refere ao
assassinato de Getúlio), do Jornal O Globo e do escritor Fernando Soares (quanto ao
assassinato do marinheiro inglês David A. Cuthberg) e do Estado e da Mídia da época e dos
Grupos de Esquerda (como eram vistos esses militantes que fizeram a opção pela luta
armada).
A memória sobre a morte de Getúlio é dividida de um lado pelos Ministérios da
Marinha e Aeronáutica e por outro lado pelos familiares do mesmo, pela Anistia Internacional
e pelo Grupo Tortura Nunca Mais.
Os relatórios dos Ministérios da Marinha e da Aeronáutica dizem que "faleceu devido
a tiroteio com agentes de órgãos de segurança”. No Arquivo do DOPS/PE encontrou-se em
um prontuário de nº 19.407 a informação de que “foi morto na Guanabara, na Rua Grajaú, nº
321 em tiroteio com as Forças Armadas”.
Mas o relatório da Anistia Internacional diz que ele foi morto e colocado em um carro
incendiado sendo seu corpo parcialmente carbonizado, após ter sido torturado no DOI-
CODI/RJ, juntamente com José Silton Pinheiro, José Bartolomeu Rodrigues de Souza e
Fernando Augusto Valente da Fonseca.
Na publicação Direito à Verdade e à Memória... diz que: “Os quatro prisioneiros
foram levados a um lugar ermo, onde seus corpos foram crivados de balas para dar a
impressão de morte em tiroteio, sendo que tiveram seus corpos carbonizados.”
Quanto ao episódio da morte de Getúlio Cabral analisando os documentos do Instituto
Criminalístico Carlos Éboli acredito que a real causa da morte de Getúlio se deu por causa da
tortura a qual foi imposto pelos agentes do DOPS na sede do DOI-CODI/RJ (Departamento
de Operações Internas – Centro de Operações de Defesa Internas).
Outro caso de “memória dividida” é como os militantes que como Getúlio fizeram a
opção pela luta armada eram vistos. A memória oficial (O Estado, a Mídia e a sociedade da
época) os via como bandidos, terroristas e subversivos. Já os Grupos de Esquerda no caso
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específico de Getúlio, o PCBR, e seus familiares o viam como alguém que lutava pelos seus
ideais, pela ideologia que acreditava, por liberdade e pela volta da democracia. Analiso esses
militares que fizeram a opção pela luta armada não como as categorias recorrentes: heróis ou
bandidos e sim como pessoas que fizeram a opção a seu ver correta de lutar em nome de uma
causa.
Encontramos o conceito de “memória dividida” no episódio do assassinato do
marinheiro inglês David A. Cuthberg, no qual Getúlio Cabral foi acusado de participar. A
versão publicada pelo Jornal O Globo (fevereiro de 1972) sobre o assassinato:
“Tinha dezenove anos o marinheiro inglês David A Cuthberg que, na madrugada
de sábado, tomou um táxi com um companheiro para conhecer o Rio, nos
seusaspectos mais alegres. Ele aqui chegara com o amigo, a bordo da flotilha
que nos visita para comemorar os 150 anos de Independência do Brasil.
Uma rajada de metralhadora tirou-lhe a vida, no táxi que se encontrava. Não teve
tempo para perceber o que ocorria e se, percebesse, com certeza não poderia
compreender. Um terrorista, de dentro de outro carro, apontara friamente a
metralhadora antes de desenhar nas suas costas o fatal risco de balas, para, logo
em seguida, completar a infâmia, despejando sobre o corpo, ainda palpitante,
panfletos em que se mencionava a palavra liberdade.
Com esse crime repulsivo, o terror quis apenas alcançar repercussão fora de
nossas fronteiras para suas atividades, procurando dar-lhe significação de atentado
político contra jovem inocente, em troca da publicação da notícia num jornal inglês.
O terrorismo cumpre, no Brasil, com crimes como esse, o destino inevitável dos
movimentos a que faltam motivação real e consentimento de qualquer parcela da
opinião pública: o de não ultrapassar os limites do simples banditismo, com que se
exprime o alto grau de degeneração dessas reduzidas maltas de assassinos
gratuitos.
Liberado da faina do navio H.M.S.Triumph, o marinheiro inglês David A.
Cuthberg, de 19 anos, acompanhado de seu colega Paul Stoud, tomou, na Praça
Mauá, o táxi dirigido por Antonio Melo, que os levaria para conhecer a
mundialmente famosa praia de Copacabana. Eles não sabiam que, desde a chegada
na praça, estavam sendo observados por oito terroristas, dissimulados dentro de
dois carros.
Na esquina da Avenida Rio Branco com Visconde de Inhaúma, à porta do Hotel
São Francisco, um dos veículos emparelhou com o táxi e David foi atingido por
uma rajada de metralhadora, disparada por Flávio Augusto Neves Leão de Salles
(ALN, “Rogério” ou “Bilico”). Imediatamente, Lígia Maria Salgado da Nóbrega
jogou para dentro do táxi panfletos que falavam em vingança contra os ingleses por
terem massacrado os irlandeses do norte. O “Comando da Frente” acabou com o
sonho de David em conhecer Copacabana, “justificando plenamente” seu ato pela
solidariedade à luta do IRA contra os ingleses.” (O Globo, fevereiro de 1972)
Já para o escritor Fernando Soares no seu artigo “La Insígnia” (dezembro de 2005)
afirma que não acredita na versão oficial dada ao assassinato do marinheiro inglês. Para ele
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seria impossível que oito “subversivos” procurados pela repressão fizessem plantão em plena
Praça Mauá “dissimulados dentro de dois carros” e ainda realizassem um ato terrorista a mais
ou menos cem quilômetros dali. Já que nesta área funcionava a mais temida delegacia de
polícia do Rio de Janeiro e instalações da Marinha de Guerra.
O escritor conclui então que não teria porque esses “terroristas” se exporem num lugar
desses, quando se quisessem poderiam ter achado os militares ingleses em lugares muito mais
fáceis, como, por exemplo, a Zona Sul.
Analisando o ano de 1972, um dos períodos mais duros da Ditadura Militar; no qual o
país e a imprensa estão censurados pelo AI-5. Assim, o Jornal O Globo ao informar a notícia
sobre o assassinato do marinheiro inglês é completamente favorável a versão dos fatos
contada pelos militares. Gostaria de esclarecer alguns pontos que a meu ver na reportagem
estão obscuros: o jornal trata “essas pessoas” como terroristas, não explicando que elas estão
lutando pela liberdade; que se vivia num país sem democracia. Nomeando-os com o título de
assassinos gratuitos, quando os mesmos matam pela defesa do ideal de seu partido; valendo-
se de uma máxima mais que verdadeira “em tempos de guerra quando não se mata, morre.”
A invasão da casa de Getúlio Cabral é uma “memória compartilhada” (PORTELLI,
2003) pelos seus familiares. Entre 1969 e 1970 a casa de Getúlio Cabral em Parada Angélica
(Terceiro Distrito de Duque de Caxias) foi invadida por agentes do DOPS.
Luis Cabral contou-me sobre o episódio:
“Os agentes do DOPS invadiram a casa do meu irmão à noite e fizeram como
reféns a minha cunhada Maria de Lourdes e os meus sobrinhos Adriano e
Alexandre. Os agentes torturaram Odete (cunhada do meu irmão), irmã mais nova
da Maria de Lourdes para saber o paradeiro do mesmo. Ao amanhecer Maria de
Lourdes apareceu na nossa casa, ela estava bem não tinha sido torturada, veio
contar para a família, para a minha mãe o que tinha acontecido e pedir para o
Humberto, meu irmão aquele que eu te falei que morreu no ano passado para
acompanhá-la a uma entrevista na sede do DOPS”. (CABRAL, 2012)
Adriano na data da invasão da casa tinha nove meses. Ele contou-me:
“Meu irmão Alexandre antes de viajar para Espanha (seis anos atrás) conversou
comigo sobre o que aconteceu na nossa casa naquele dia. Alexandre me contou que
perguntava sobre o nosso pai para os agentes, e os mesmos responderam para ele
calar a boca e parar de chorar, porque já tinham matado nosso pai. Meu irmão tem
quase certeza que nossa mãe foi torturada nesse dia.” (CABRAL, 2012)
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Depois de escutar o desabafo do irmão, Adriano começou a perguntar para os
familiares de sua mãe sobre o que eles sabiam sobre o dia da invasão. “Ele descobriu nessas
conversas, que além da sua tia Odete, um outro tio seu foi torturado pelos agentes do DOPS”.
A invasão da casa de Getúlio é um episódio marcante, difícil, importante até hoje nas
memórias e lembranças dos seus familiares. Esse episódio deixou marcas profundas na
família. Ernesto toda vez que se toca nesse assunto começa a chorar copiosamente e
Alexandre que infelizmente eu não tive o prazer de conhecer e entrevistar foi tão impactado
por esse acontecimento que não fala sobre o ocorrido, só visitou a Ocupação uma única vez,
quer distância da política e quase não mantém contato com os seus parentes por parte de pai.
Eu trabalho com o conceito “Ocultamento da Memória” na perspectiva de Portelli
(PORTELLI, 2003), que é ocultar o que aconteceu antes do fato e depois do fato. No caso
específico de Getúlio o ocultamento se deu ao encobrirem a sua morte que aconteceu no dia
vinte e nove de dezembro de 1972 e só a divulgarem na mídia no dia dezessete de janeiro de
1973, ao enterrarem seu corpo como indigente apesar de estar com o nome completo e
podendo ser identificado pela arcada dentária, sendo as ossadas transferidas para um Ossário
Geral (1978) e depois jogadas em uma vala clandestina (1980/1981) no cemitério Ricardo de
Albuquerque (RJ).
O conceito “Lugar de Memória” é trabalhado por mim na ótica de Nora. Eles
“expressam o anseio de retorno a ritos que definem os grupos, a vontade de busca do grupo
que se auto-reconhece e se auto-diferencia. É a história que ainda possui restos de memória”.
(NORA, 1993). E como lugares de memória elejo na minha pesquisa: a Ocupação Getúlio
Cabral, uma Rua em Paciência (RJ) que foi inaugurada em 1981 e tem como nome Getúlio
D’Oliveira Cabral e o ônibus “Ocupação Getúlio Cabral’’ da Viação Transporte Machado.
O início da Ocupação Getúlio Cabral aconteceu no final da década de 1980 e ela foi
organizada pela Associação de Moradores Local (Luis Carlos Cabral era o presidente da
Associação). Essas terras foram ocupadas por cerca de duas mil pessoas. A Ocupação hoje
conta com aproximadamente dez mil pessoas, cento e trinta e sete ruas, destacando a Rua Che
Guevara e Carlos Mariguella.
Na realização das entrevistas percebi que cada um dos meus entrevistados tem uma
imagem, uma visão e uma memória diferente de Getúlio.
Para Vitor Hugo, Getúlio era um cara brincalhão, comunicativo e acima de tudo
idealista. Vitor era assim como Getúlio filiado ao PCBR, mas não fez a opção pela luta
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armada como o irmão. Na entrevista contou-me que: “era o filho mais velho, e que alguém
tinha que botar comida em casa”. Essa sua fala está impregnada de uma crítica a atitude que o
irmão tomou na época, deixando cair à responsabilidade toda sobre as suas costas com a
família.
Luis Carlos vê Getúlio como alguém que lutava por melhores condições de vida para
todos, como um exemplo de luta. Ele se espelha no irmão para realizar o trabalho como
presidente da Associação de Moradores da Ocupação, numa área de extrema pobreza
dominada pelo tráfico e pelas milícias.
Ernesto por ser o filho mais novo teve pouco contato com Getúlio. Era muito ligado a
sua madrinha Maria de Lourdes (esposa de Getúlio). Ele vê o irmão como um exemplo de
vida, orgulha-se de pertencer à família Cabral.
Adriano vê o pai como um verdadeiro Pai-Herói, o tem como um ídolo. Ele tem muito
orgulho de ser filho de Getúlio Cabral. Um dos trechos mais emocionantes das entrevistas é
de Adriano: “Me chamo Adriano Resende Cabral e a Ditadura Brasileira não me deu o prazer
infelizmente de conhecer o meu pai”. Com essa frase Adriano deixa vir à tona toda a sua
tristeza, amargura, revolta, ódio pelo o que aconteceu com a sua família.
Ao transcrever as entrevistas e analisá-las fiz um primeiro perfil de cada um dos meus
entrevistados.
Vitor Hugo é uma pessoa muito culta, lúcida (apesar de tudo o que aconteceu),
solícita, que tem uma história de vida incrível, é um exemplo de superação, dedicação,
conscientização para todos nós. Ele foi preso duas vezes, uma delas no período da Ditadura
Militar (1961) e passou por inúmeras sessões de torturas físicas e psicológicas. É professor
aposentado do Colégio Pedro II, é classe média alta e hoje trabalha com o hobby da família
que é a fotografia. Reside atualmente em Copacabana. Uma frase muito marcante na sua
entrevista é: “Eu não me arrependo de nada que eu fiz, faria tudo de novo para que hoje nós
pudéssemos viver na democracia”. Essa frase traduz bem a personalidade de Vitor, uma
pessoa que se orgulha do seu passado e que tem consciência que o seu presente e o seu futuro
dependeram das suas escolhas que foram feitas anos atrás.
Luis Carlos antes de tudo é um líder nato, ”engajado”, coordena a Ocupação Getúlio
Cabral com muito amor e dedicação lidando com a extrema pobreza e violência da região. É
filiado ao PDT e também tem como hobby a fotografia. Vive numa situação de pobreza,
morando numa casa muito pequena e humilde anexa a Associação de Moradores. Nessa casa
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moram no total quinze pessoas. É um dos principais responsáveis em manter “acesa” a
história de Getúlio e da família Cabral como um todo.
Ernesto é uma pessoa muito simples, humilde, encantadora e tímida. Muito apegado a
família. É de uma sensibilidade extrema, de fala mansa, quase não falou muito na entrevista.
Mas quando falou me proporcionou histórias incríveis. Foi o meu entrevistado que mais se
emocionou, vindo a chorar por diversas vezes na entrevista. Seu depoimento foi um dos
momentos mais tocantes, pois tive muita vontade de chorar junto com ele. Reside atualmente
em São Gonçalo, pertencendo hoje o que chamamos de classe média.
Adriano é uma pessoa muito simpática, falante e “engajada”. Ele é muito ligado a
família, um pai de família dedicado, possui uma personalidade muito forte e é decidido. Muito
preocupado em preservar a memória do pai, tendo em casa vários documentos que falam
sobre o mesmo. É filiado ao PDT. Reside atualmente em Piabetá (bairro próximo a Ocupação
Getúlio Cabral), sendo enquadrado na classe média. Sem falar no fato de que Adriano parece
muito fisicamente com Getúlio, a primeira vez que o vi pessoalmente fiquei impressionada
com tamanha semelhança, uma cópia quase perfeita do pai.
No decorrer da pesquisa trabalhando com Arquivos da Polícia Política encontrados no
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro que se referem a Getúlio me deparei com
documentos que citavam Ranúsia Alves de Oliveira como esposa de Getúlio. No primeiro
momento pensei que Maria de Lourdes e Ranúsia seria a mesma pessoa.
Na entrevista realizada com Luis Carlos Cabral (vinte e seis de agosto de 2012)
perguntei para o mesmo como foi a vida de Maria de Lourdes após a morte de Getúlio. Ele me
disse que: “Maria de Lourdes era uma dona de casa exemplar, uma pessoa muito tímida, que
viveu para cuidar da casa e dos filhos”. Com as suas respostas, constatei que era impossível
Maria de Lourdes ser Ranúsia.
Seria então Ranúsia, a nova esposa de Getúlio na clandestinidade? Queria muito saber
essa resposta e assim me lembrei de Daniel James, estudioso da classe operária argentina com
a sua fixação de perguntar fatos e datas para Dona Maria, uma sindicalista peronista. Ele
desejava “obter alguns dados empíricos que faltavam para reconstruir a campanha de
sindicalização dentro dos frigoríficos da cidade de Berisso” (JAMES, 2004:125). E eu no
começo da pesquisa pensava exatamente como James, que iria fazer as entrevistas porque
através delas iria descobrir as lacunas que as outras fontes não tinham respondido. Mais assim
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como ele se redescobriu com Dona Maria eu me reventei ao aprender com cada um dos meus
entrevistados.
Ao elaborar o roteiro para a segunda entrevista (nove de setembro de 2012) me
perguntei se deveria colocar essa pergunta, pois é um tema difícil, uma questão complicada
que envolve sentimentos de muitas pessoas.
Lembrei-me de Portelli quando o mesmo fala sobre a ética do pesquisador. “A ética
deriva de um compromisso pessoal e político. O compromisso que ele tem consigo mesmo
diante dos seus entrevistados”. (PORTELLI, 1997a: 55-56). E antes de tudo, de qualquer
objetivo vem pra mim o respeito pelo outro, pelos seus sentimentos. Seria justo por causa de
uma resposta correr o risco de magoar pessoas? Terminei meu roteiro decidindo que se
fizesse essa pergunta ela seria a última e teria um enorme cuidado ao fazê-la.
Chegou o grande dia e a entrevista transcorreu maravilhosamente bem. No finalzinho
fiz a “bendita” pergunta e para a minha surpresa Adriano foi muito receptivo á mesma. Ele
respondeu que:
“Já ouvi falar sim em Ranúsia. Ela teve uma filha que se chama Vanúsia e há
boatos de que essa Vanúsia possa ser minha irmã. Eu pesquisei na internet e vi que
a Ranúsia era de Pernambuco e aí eu conversando com a minha esposa pensei que
ela e meu pai podem ter se conhecido lá, já que meu pai teve uma passagem por
Pernambuco”. (CABRAL, 2012)
Adriano confirmou a minha suspeita de que Ranúsia e Getúlio tenham tido um
relacionamento durante o período de clandestinidade do mesmo e que há a possibilidade
talvez desse relacionamento ter nascido uma filha, Vanúsia.
III- Considerações Finais
Uma das principais finalidades dessa pesquisa é exercer o meu papel de cidadã e
historiadora dando a devida importância a uma história que estava silenciada, desconhecida a
muitos; fazendo com que ela ganhe “status” e seja ainda estudada por muitos outros
pesquisadores. E para que as pessoas não se esqueçam nunca dos crimes cometidos pelos
militares e lutem sempre pela manutenção da Democracia.
As entrevistas me revelaram muito mais do que simplesmente fatos e acontecimentos.
Elas me possibilitaram ter acesso as impressões e sentimentos de cada um dos meus
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entrevistados. Logo, para além dos fatos, pude ter acesso á subjetividade dos meus
entrevistados, que com certeza foi o mais importante e significativo para mim. Como diz
Portelli, as “fontes orais nos dizem não apenas o que as pessoas fizeram, mas o que queriam
fazer, o que acreditavam estar fazendo e o que hoje acham que fizeram”. (PORTELLI, 1991b:
50)
Ao fazer a opção de trabalhar com História Oral não pretendo negar a importância das
outras fontes, mas sim perceber a riqueza encontrada nessas narrativas e poder assim
compreender quais são as relações entre passado, presente e futuro. Para Portelli, “a história
oral é basicamente o processo de criar relações: entre narradores e aqueles para quem se narra,
entre eventos no passado e narrativas dialógicas no presente”. (PORTELLI, 2003: 15). Logo,
o pesquisador que trabalha com essa metodologia deve trabalhar em conjunto com os dados
factuais e com as narrativas.
Então devemos nos lembrar sempre que as fontes dos historiadores orais são pessoas e
não documentos, por isso devemos ter tato, sensibilidade, ética acima de tudo; pois lidamos
com sentimentos, emoções, lembranças, memórias, enfim com VIDAS.
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