saÚvas avulsas iterações...head’s a waterfall. robert creeley, morning aos olhos do vermelho...
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SUMÁRIO
jeito de lugar
licor de pitanga 132059 15rua dos juízes 19duas variações sobre o tema da cidade ou corpo-capital 23galo-galileia 29odessa 31patmos 33truísmo em porto alegre, ou do amor 35composição 37dialética da ressaca 39 cemitério de morangos na tchecoslováquia 41
verticais para stramm
- 45- 46- 47 - 48- 49- 50- 51 - 52- 53
-
entropias de eixo e beira 55
a conversa impossível entre enheduanna & yves klein 67
posfácio 77
O autor agradeceao poeta Guilherme Gontijo Flores,
primeiro leitor deste trabalho,pelo diálogo crítico e produtivo.
Também quer expressar infinita gratidãoa Rafael Zacca e a Thiago Ponce de Moraes:
impressões certeirasde artistas tão maduros;
e a Sergio Maciel,pela gentileza do belo posfácio.
12
É dito: pelo chão você não pode ficarPorque lugar de cabeça é na cabeçaLugar de corpo é no corpoPelas paredes você também não podePelas camas também você não vai poder ficarPelo espaço vazio você também não vai poder ficarPorque lugar de cabeça é na cabeçaLugar de corpo é no corpo
Stela do Patrocínio
What I want is this poem to be small,a ghost town
on the larger map of wills.Then you can pencil me in as a hawk:
a travelling x-marks-the-spot.
Rita Dove
13
licor de pitanga
eu bem poderia pedir licença a ishmaelpara também iniciar esta narrativacom a revelação do meu nome de batismo.
uma abertura singela, mas elegante.
e íntima. e bíblica.
se o mundo inteiro nasceude um único verbo,por que uma estória sobre homens comunsnão brotaria da afável humildade
de um nome?
no entanto, os acontecimentosaqui expostos,contados por meio de frases aborrecidase de palavras inchadas devido ao calor escaldante
do rio de janeiro,
não se referem a mim, tampouco me sensibilizam.
em vista disso,e somente disso,permita-me, amor, o seguinte começo,tão prosaico quanto o cotidianoao sul da linha do equador:
14
no dia em que completou 83 anos de idade,gilberto freyre disse ao jornalista pernambucano geneton moraes netoque se considerava o maior gêniode sua geração. soava justo ao polímata comparar-sea aleijadinho e a heitor villa-lobosperante a corte das horas.
no rádio do carro, al green cantahow can you mend a broken heart,
a voz engasgada, grávida de pedras e de espinhos.
15
2059
The living and dead were thrown together, and the dead looked away first.
Stanley Elkin, The Living End
o suco das artérias nos colhe e reparte.
vida em família é mariposarecém-saída do casulo:duas asas estabanadas, inexperientes,que disputam cores bárbarasao vento, atropelandopedaços de orvalhona ânsia egoísta de aprender a voarpara não fenecer.
sinto a geometria assustada de um ventrematerializar-se
nos cabos da ponte sobre o estreito de golden gate, nas intenções angustiadas dos discípulos de jonestown, na brisa morna que inunda os roseirais do ceará & as ruelas de mariana & alguns pobres bairros fabris, com seus pobres telhados de amianto, bem como na penumbra das catacumbas que alicerçam paris,
o chão romantizado.
16
sentávamos, eu e o irmãoque me negaram,à beira da praia, fisgando algas & tatuíras,
enquanto, por cima de nossas fontanelasmal calcificadas,quebravam-se ondas,
locomotivas,
andaimes.
envolvia-nosuma peleja de arbitrariedades,espiral de fúria que segue latenteno cerne de todo lar,a corroer as estruturasem volta,incubadora dos dentes da mais terrívele caprichosadas madrugadas.
todas as vezes que sorvo
uma generosa dose de cachaça, ou uma xícara de café sério, coado à maneira dos antigos, ou mesmo um copo de leite de cabra, tirado da teta rósea e trepidante,
fecho os olhose estou no casarão de d. nelinha de souza cavalcanti,viúva e testamenteira de seu josé manoel de souza [cavalcanti,
17
respeitado fazendeiro de alagoas. por onde ia, a centenária arrastava,pendurados nos joelhos moles,baldes repletos
de coincidências ensaiadas.
pretendia distribuí-lasequitativamenteentre seus dois filhos,
afrânio de souza cavalcanti & jorge luís de souza cavalcanti,
a título de legado.é tudo o que me restou, murmurava a velha senhora,
amiúde.
porém, acontecia que sua idade avançada,além de tê-la levado a dilapidaro patrimônio que o marido,em outra época,havia amealhado,
castelo rasgado,
sua idade avançada a fizera olvidarque afrânio, o primogênito,cedera à varíolaquando ainda era gurie que jorge luís abreviara a própria existênciaem virtude de uma desilusão amorosa.junto às caldeiras de uma usina de cana,na selva prateada,
18
o rapaz disparou um tiro cansado contra a têmpora esquerdae só.
iguanas de papel, elusivas feito um dia bom.
a força do silêncio,que engrossa o caldo dos anos,é-me irresistível.
19
rua dos juízes
[ quadra 12 ]
morre-se qual palavra falada,
crueza de sílaba na mesa do legista.
as taquigrafias espirituais do porto
de santos registram o diálogo
entre um imigrante italiano (x)
e um agente da inspeção sanitária (y).
x, em excerto traduzido: – o que te faz brasileiro?
y, extraoficialmente: – o baião & o não.
[ lote 5 ]
os pombos que sujamas calhasda hospedariado brás
20
renegamos pombos que sujama históriada piazza san marco,e vice-versa.e arrulhamos pombose fervemos espelhosde narciso,e vice-versa.
[ lote 6 ]
a roma negra
comeu o coliseu com dendê.
sob o lácio-lacerda,
caligem – cairu! –,
esse idioma fraturado
de um litoral
em fractais,
23
duas variações sobre o tema da cidade, ou corpo-capital
breve legenda:
i: vista da copa, zenital;ii: vista da raiz, rasante.
24
i: a origem do calcanhar de aquiles
a beleza do mito repousaem um complexode falsasinconsistências,
duvidosostriunfos
da ilusão,
que, apesar de calculadosmilímetro a milímetro,por vezes, mais parecemlapsos de um bardo
afoito,
como essas sandálias,
que pendemtão irresponsavelmentedos teus pés,
vaga criatura radioativa.
revolves, reviras
tuas articulações
25
para extrairda mandrágoraa ternura líquidaem uma revoada de cotovias.
lá embaixo,
encravados no sonodo deserto,
os órfãos do fogo infestam
o bulevar
e conduzemseus tristes passados
pela coleira,
ofertando-os à distânciaentre o teu cigarro &
o chão aceso.
passados errantes, cabeças errantes.
cabeças errantes, saúvas avulsas.
26
ii: máscara
Ano após ano,a máscara do macaco
revela o macaco.
Matsuo Bashô
é samba de dar em doidoquando marcho pela avenida
presidente vargas
em direção à candelária e fitoprocissões de pernasapoteóticas, confusas, espásticas,cobertas por vestidos que refletemprecipíciosno cetim-cor-de-nada;
e me assalta o toque de teus dedoscontra os ruídos-gosto-de-cravo,
ruídos meus,
mas, no fim das contas, no momentoem que a décima badalada me rompe,
a décima primeira me tragae a décima segunda me fertilizae a décima terceira me espalha,
27
tudo se funde em um retrato anônimode gabrielle d’estrées e da duquesa de villars,florestas nuas apenas da cintura para cima,
ou completamente nuas,alternativa que não podemosdescartar,
pois são curiosasas molduras:exibem um parágrafo, ocultam uma vírgula,janelas metade-metade sugestivas;
e são sempre novos dedos& novos ruídos em seios
luzidios,
como se a vontade da criançaadquirisse o formato de um sol carnívoro e assomasseno horizonte labiríntico e sarapintadode concretoda cidade onde vivopara acariciar o meu rosto,
metade nu, outra metade também.
29
galo, galileia
quando enxergoo galono alto do campanárioaltoda igreja
a devorar o ventoonivoramente
expioos teus errose os de mais ninguém.
sabes disso.
sabes ainda que os guardocomo quem preenchee repreencheas dezenas traídasde uma cartela de víspora.
não foi preciso negar-me três vezesconsecutivasnão foi precisodominar os cacoetesda rede de pescanão foi preciso
o amanhecer
30
para que tu calasses as minhas quase certezas
ao repente encantadodo arrastão.
toda imoralidadeé um ato estético.
as tuas cinzastambém o são.
31
odessa
imagens em tom de sépiaou em preto e branco
são metáforas prontas.
quer estáticas, quer em movimento,
imagens em tom de sépiaou em preto e branco
constituem símbolos instantâneos.
no potemkin de eisenstein,
por exemplo,
a sequência da escadariacomo testemunha impassível de um massacre brutal
não representa uma escadaria
como testemunha impassível de um massacre brutal.
no potemkin de eisenstein,quadro a quadro,
a sequência da escadaria
como testemunha impassível de um massacre brutal
é vício, memória & água.
33
patmos
durante a temporada de chuvas,tua fíbula carreia o arado de luamansa contra a pele do começo.
os ouriços descem a serra,enterram-se os crisântemos.
acompanhas a colheitaesquecido dentro de um poçoque rosna.em barbacena, até mesmo o céubusca ter o perdão das nuvens.
quem sois vós,ó senhora dos animais?
eu sou o lugarde todos os horrores,eu sou a mãede todas as vinganças,
o sangue de januárioquando não se liquefaz,
a ampola das febresderradeiras,
a peste.
35
truísmo em porto alegre, ou do amor
era mateus ou marcos ou lucas ou joão.
trazia na algibeira um carvão em brasa& uma carta de alma mahler a walter gropius,datada de 18 de maio de 1911.
nenhum veneno lhe era muito.para ele, ao contrário, o exagero estavaem optar pela realidade tola,morfina do abstêmio.
tão logo se punha a beberdo evangelho segundo lupicínio rodriguesou das vespas no alçapão do grande teatro,tão logo as lentes de seus óculos se tornavamembaçadas.
é culpa das glândulas lacrimais, disseram os médicos,e da insondável substânciaque elas produzem quando a taxa de álcoolem sua corrente sanguínea ultrapassa0,05 miligrama por litro de ar exalado,
vapor de um relâmpago comovido debaixo do hábito de teresa de ávila.
não o vejo já faz tempo.à ocasião de nosso último encontro,contei a ele sobre ti
36
e sobre tuas idas despretensiosas à missae sobre tua coleção de livros de horas,e de mim escapou (tímido mercúrio)
acho que vou me casar com essa mulher.
ante o espaço atrapalhadodos coágulosem minha fala,ele laçou a própria frustraçãopara, em seguida, soltá-la,um mosquete,um escorpião:
os inocentes não se casam. assim como
1 + 1 = 2
os inocentes jamais haverão de se casar.
o lago guaíba dorme,haikai do jacuí.
no pátio,em meio aos ramos de oliveira,sibilam aminoácidos,e nossa cama – minha e tua e dele –transbordaa cada sopro
sem nó.
37
composição
Que já vem, que já vem, que já vem, que já vem, que já vem...
Chico Buarque, Pedro pedreiro
essa gente sem rostoessa esperao compasso fermentadodessas pausas
tudo na paisagem escurada estação
te faz lembraro quintal da casaque não mais recebe visitas.
tudo –
nesse ringue suspensoentre berlim& a antuérpia –
te faz lembraro avessodaquele quintal,
naquela casaque não mais recebe visitas.
(tu és mórula:
38
demorasumo de amora & ditamicroscópica
a um mesmo tempo.)o trem
dança devagarsobre o limbo em gretas de uma costela-de-adão
os frutos
de polpa amarela –que medram nos trilhos –te emporcalham
por inteiro:
das unhasde eva
aos lábiosde bicho.
39
dialética da ressaca
Dam’s broke,head’s a
waterfall.
Robert Creeley, Morning
aos olhos do vermelho
mais elétrico, o mangue incendeia.
verto minha cabeça sobre a alfombra
de hibiscos aflitos que estendemos
entre os mirantes do fetiche
e da contrição. teus pés invernais
cavam a terra,
(l)imitam a sombra da caneta
de um santo irlandês.
40
ouço tua pele inaugurando
e destruindo templos no lodo,
baba primordial que encharca
nossos nervos de caranguejo.
41
cemitério de morangos na tchecoslováquia
mesmo contra a sua vontade,resolvi enfim arrancaro velho prego de trás da porta –
aquele de que você, inexplicavelmente,tanto gostava.
agora me ponhoa descamar pesadelos& supernovas.
ainda que vivam para sempreo pó dos nossos beijos
& esse príncipe roxono brejo das suas pupilas,
a mim resta apenasespatifar o pássaro de vidropara o qual convergemos meus acontecimentos
mais desesperados.
É tempo – tempo – tempo De devolver a Deus a entrada!
estou certo de que você denunciaráa todos o meu suposto egoísmona primeira oportunidade,
mas eis que, antes de me despedir,finco o prego enferrujado de voltano mesmo lugar.
46
cor as
rompem-se cla as ves
cra es
velhas ca
do meu moteadas
cor no
po cur
ca so
briolam cur
os vo
có das minhas
digos cos
& turas
47
far fi fó
fa guei ssil
lha ra para nos
a in en
fê tei si
nix ra nar
nas no o e
fres fi clesi
tas da to astes
fo de um
lhagem fru
ful to
gor que já
de foi
48
o clau que
bron del pai
ze na você xão
bar diz per
ba que di
de meus da
ro de é
din dos pe
nas na tricor
co dam
xas a es
de mo
ca você
mille diz
49
a la lidamente
ca de ex
tar sou pos
se ti ta
es ne num
car não a
la a çou
te pe gue
que ça em
cin pou a
ti ca aço
la o res
na ca
te po
50
ta tu sa tra
te rados tur dução
ar pelo no
a tra ta
tar to tu
de no ado nas
in tur tu
tu no as cos
mesci das tas
da tra que o
a ças tem
ti e gri po
lhos ta e não
tor sse tem
51
a Humberto Mauro (1897-1983)
a go tem cho
sa sar -se eira
la có ci
i fa ran
mer go da
sa um arreme de
i sso ci
men em garras
sa fei cla
nos xe ras
sa sú o
is do bi ci
so to nema
sse e a ca
52
como da riosa
num de va
ál é le a
bum fi a
de lha ten
fo da má ção dos
to fi teus
gra cção lei
fi e to
as nenhuma res
to vi
da da
fe vi
lici to
56
A. A violent order is disorder; and B. A great disorder is an order. These Two things are one. (Pages of illustrations.) Wallace Stevens
I make up the rules of a game and I play it. If I seem to be losing, I change the rules. Michael Snow
57
Deita nomes sobre o mar!Ouve a voz da musa bravaAos teus poros se aninhar.Sê bem mais que lira cava
Entre ratos, várzea e lume,Alaga os quartos de hotel,
E seca da faca o gume.Do alfabeto de Babel
E do cavalo de Nietzsche,Também Deus mantém Sua leira.
Cabe a ti – e a ti somente –Coar as leis na capoeira.
Os teus olhos à deriva:Não há foco; há fome, há tudo.
Mares, poros, lira cava,Aridez de leite mudo,
58
Todos anjos que vigiamAs manhãs e os sons da lauda, Todos monstros que bugiam
Quando houver quem os aplauda.
São estes versos sem eira –Um cavalo, uma Babel –Entropias de eixo e beira,
Pois que, a partir do escarcéu,
Chispam as vinhas da ordem,Da ordem mais verdadeira,
E das leis que, sim, dependemDe entropias de eixo e beira.
No coração do anarquista, Jaz correção de neurônio,
Bem como, dentro do artista,Dão-se paz e pandemônio.
59
Se firmares o teu doloSobre a lauda fugidia,
Sentirás, de um lado, Apolo,Do outro, Baco – mesmo dia.
E em meio aos lírios da lei,Tormentos do itabirano,
Crescem rosas para um rei,Mais feroz do que sereno.
Tal o viço do brocardo:Não existe sinfonia
Sem um quinhão moderadoDe total desarmonia.
Se firmares a tua penaSobre a lauda fugidia,
Terás, no âmago da forma,Eixo e beira de entropia.
60
Forma: ajuste de sistemas,Dor, enfim, classificada,
Zona de guerra em diagramas,Compostura tumultuada.
Traz a forma o teu remédio,Traz a forma o teu calvário –
A rima dilui o tédioNo sangue de um operário.
Cai a vida, surge o duroEspinhaço de lajedos.
A metrópole é só muro Para reprimir os medos.
Cai a fala, surge o claustroDa tua estrofe maquinada: Escansão, arranjo e lastro
Para rio de enxurrada,
61
Aqueronte que deságuaEm crina de torvelinho,
Correnteza que, ambígua,Cerca e mata homem sozinho.
Apesar da sua fachadaDe tão grave disciplina,
Leva a forma na lombada Uma formidável sina:
Represa das emoçõesE de todos os discursos,
Penetra-lhe as fundações,Abrindo nelas percursos,
O mistério que integraA essência dos afetos,
Saber carente de regra Em anômicos dialetos.
62
É o difícil paradoxoDas estruturas perfeitas:
Conter, no seio ortodoxo,O desalinho dos poetas,
Ser lucidez dos teoremasE elogio à insanidade,Par de sólidas algemas
Que concedem liberdade.
Isso explica a intrepidezE o arranque apaixonado
Nas trovas de don HernándezOu de um Camões inspirado.
E ainda pregoa o fogo,Resumindo em tabuleiro:
Forma é, além de tudo, jogoNo qual ganha o trapaceiro,
63
Jogo que se finge hostilA qualquer refutação,
Mas que vislumbra no ardilUm semelhante, um irmão.
Pesa o dado adulteradoContra a pauta de instruções,E as faces de um Jano errado
Divisam as conclusões:
Sinédoque de rochedo,Pasticho de mandamento,
Toda forma, tarde ou cedo,Vira caos em movimento.
Eixo e beira de entropia,Recato de furacão,
Toda forma é sincroniaSem eixo, beira ou mourão.
64
Nas páginas que sonhaste,Sob as trevas dos engenhos,
Uma bússola sem norte,Entregue a ventos ferrenhos,
Pulsa, palpita, emparelhaA pavana provençal,
Propensão de uma centelha,Ímpeto do teu sarçal,
Esse adorno incandescenteAtrás da encosta do Horebe,
Essa bússola sem norte,Que te morde, que te bebe,
Que dissolve a tua medulaEm visgo cáustico e ativo,Arde porquanto acumulaAs urgências sem motivo.
65
E o que outrora não passavaDe uma lauda fugidia
Cujo branco reclamavaO teu corpo, a tua utopia,
Aquilo que, pouco a pouco,Transformou-se em jogo e forma,
Nitidez de um canto rouco,Transgressão prescrita em norma,
Agora ocupa um lugarÀ mesa da tua famíliaE não hesita em ralhar
Sempre que a janta vem fria,
Agora veste as tuas roupasE desmerece o teu filho,
Gasta os centavos que poupasCom pinga, rapé e espartilho.
66
Carne estéril de cilício,Tu amargas esse intruso
Que censura o teu silêncio,Que te presume obtuso.
Em horas desesperadas,Tu cogitas vindimá-lo,
Mas do plano te descuidasQuando, no fio de um estalo,
Percebes que, ao teu redor,Do cachorro à cristaleira,Tudo reflete o esplendor
De entropias de eixo e beira.
E, assim, refeito, consomes,Com a gana de um bom corcel,
O mar onusto de nomesQue parteja a tua Babel.
69
ainda assim,
o mostrador,que nada sabe,
faz as devidas inscriçõesa repiques de sangue digital
zerozero2pontoszerooito zerozero2pontoszerooito zerozero2pontoszerooito zerozero2pontoszeronove
e um propósito –
desses bem frouxos –
resolve abandonaro bolso de tua camisa.
a casa do único botão,soterrada após os tremores.
teddy berrigan sugereao pé do próprio ouvido
o nome de uma cidade.
é mais fácil começarpor uma cidade,
ele diz.eu desobedeço.
*
70
datta, dayadhvam, damyata
porque o pássaro inveja a navalha./ porque o pássaro, pou-sado em cima do letreiro da padaria,/ inveja a navalha./ porque o pássaro inveja a navalha/ que o barbeiro utiliza para afeitar seus clientes./ porque o pássaro, pousado em cima do letreiro,/ no lado oposto da rua,/ inveja a navalha/ que o barbeiro utiliza para afeitar seus clientes.
datta, dayadhvam, damyata
a navalha, por sua vez, não inveja o pássaro./ a navalha não inveja o pássaro,/ porém inveja a mão da esposa do barbei-ro.// a navalha inveja a mão da esposa do barbeiro,/ que pode tocá-lo no rosto e onde mais tiver vontade,/ quando tiver vontade.// a navalha inveja a mulher/ cuja mão co-nhece o rosto & os restos do barbeiro,/ ao passo que a ela – a navalha – só é dado distinguir/ os dedos moucos que a retêm para o trabalho,/ durante o expediente veloz.// a navalha inveja a mulher/ cuja mão conhece a pele do rosto do barbeiro/ e lhe prova a textura.// durante o expedien-te,// a navalha inveja a mão da mulher/ que toca o rosto do barbeiro,/ provando a textura de suas vontades.// a navalha inveja a mão da esposa do barbeiro,/ cujo toque despedaça/ aquele corpo de dervixe atarracado.// a navalha inveja a esposa do barbeiro,/ cuja mão atarraca, com tamanha petu-lância,/ aquele corpo despedaçado,/ sem rua, sem letreiro, sem cliente.
datta, dayadhvam, damyata
*
71
vá lá: um celacanto pode até provocar maremoto.inclusive, a lista de prováveis ocorrências é razoavelmente extensa:
santorini, 1600 a.c. golfo de mália, 426 a.c. rodes, 226 a.c. cesareia marítima, 115 anatólia, 262 beirute, 551 ardabil, 893 chipre, 1222 canterbury, 1382 baía de ise, 1586 sicília, 1693 nankaido, 1707 lisboa, 1755 ishigaki & miyakojima, 1771 chile, 1868 messina, 1908 indonésia & arredores, 2004 ilhas salomão, 2013 nova zelândia, 2016 etc
um celacanto pode até provocar maremoto,vá lá.
mas não em meu coração. não em meu coração.
*
72
às três e meia da manhã,uma pedra se apaga.
não culpemo peso dos anosque nos separam
à medida de nossos passos.
culpema caudalaica do pavão,
zodíaco de ciclopes
a se equilibrar precariamente
(por sobre as dobras)
por sobre as doresde um outro jardim –
infalível,
como esta nova armadilhapara caçar vesúvios:
*
73
si.lên.cio s.m. 1 na mesma semana em que o pai desapareceu, minha mãe comprou um casal de víbo-ras de cativeiro e me propôs um desafio. 2 governo de caráter autoritário, que não respeita as liberdades individuais. 3 despotismo, tirania. 4 a cada ovo posto pela fêmea, mamãe contaria uma história, e a mim caberia adivinhar se os eventos narrados haviam acontecido de verdade, ou se ela os tinha inventado. 5 ruptura antidemocrática da ordem constitucional vigente. 6 a brincadeira deveria ser feita sempre de-pois do almoço, enquanto ambos aguardássemos a digestão.
*
74
de longe, o umbigo do barbeiroparece dar guarida ao ninho ideal.
as vontades não alçam voo;as navalhas tampouco.
porque as vontades não alçam voo.porque os pássaros não ecoam o rosto.
dentro da cabeçacarregando alaúdes dentro da cabeçadentro da cabeçacarregando a folia dos alaúdes dentro da cabeçadentro da cabeça
as vontades não ecoam o rosto;os pássaros tampouco.
porque as vontades não ecoam o rosto.porque as navalhas não alçam voo.
dentro da cabeçacarregando arabescos dentro da cabeçadentro da cabeçacarregando runas & arabescos dentro da cabeçadentro da cabeça
a caixa estúpida.
*
75
ceci est la couleur de mes rêves.
*
você estava certa:
não há bo diddleyque salve
um dia prestes a nascerjá tão vazio de significado;
81
projeto gráfico: revisão: na garupa:
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