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O CURRÍCULO DAS ESCOLAS ESTADUAIS DE EDUCAÇÃO
PROFISSIONAL (EEEPS) DO CEARÁ: CONCEPÇÕES E PRÁTICAS Maria José Camelo Maciel
Professora da Universidade de Fortaleza - UNIFOR
Doutora em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará
E-mail: mazzamaciel@hotmail.com
Resumo: Este artigo apresenta um estudo de caso realizado numa Escola Estadual de Educação
Profissional do Ceará (EEEP). Enfoca as concepções e princípios que orientam a política
educacional de integração do ensino médio com a educação profissional estabelecendo
uma comparação com aquelas que embasam a implementação dos currículos na EEEP, a
partir do que evidencia que a opção feita na implantação dos currículos dessa escola, não
favorece a integração pretendida e se apresenta contradita a noção de formação humana
integral. A Tecnologia Empresarial Sócio-Educacional – TESE, enquanto modelo de
gestão adotado nas EEEPs fora alçada a posição de principal diretriz orientadora da
proposta pedagógica. Por conseguinte, se por um lado, as premissas da TESE não tem
legitimidade para respaldar um projeto com elevada complexidade pedagógica como a
do ensino médio integrado, por outro lado, funciona como estratégia de conformação da
escola e de seu currículo a lógica utilitarista do mercado.
Palavras-chave: Currículo Integrado; Escola Estadual de Educação Profissional; TESE. 1. INTRODUÇÃO
O Programa Brasil Profissionalizado tem como meta a diversificação qualitativa
da oferta e dos resultados do ensino médio. Com ênfase na educação científica e
humanística, por meio da articulação entre formação geral e educação profissional, o
programa prevê o repasse de recursos do governo federal para que os estados invistam
em suas escolas técnicas, possibilitando a modernização e a expansão das redes públicas
de ensino médio integrado à educação profissional.
Em tese, trata-se de uma proposta de política educacional distinta para o ensino
médio, cuja ideia força encontra-se explícita no conjunto de documentos normativos para
esse tipo de oferta, o qual adota a concepção de formação humana integral numa
perspectiva em que a formação geral e a profissional são partes integrantes de um mesmo
processo que é contextualizado historicamente e eticamente comprometido com a
transformação social.
Considerando que a criação das Escolas Estaduais de Educação Profissional
(EEEPs) se situa no âmbito dessa política, as quais foram implantadas a partir de 2008
pelo Governo do Estado do Ceará numa opção que congrega a oferta do ensino médio
integrado a educação profissional em tempo integral, analisamos neste artigo o modo
como a concepção de ensino médio integrado se manifesta no interior dessas escolas.
Nos chama a atenção a ênfase que foi dada a gestão pela Secretaria da Educação
do Estado do Ceará na ocasião da implantação das EEEPs, quando a gestão assumiu a
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centralidade na proposta em detrimento dos aspectos filosóficos e pedagógicos inerentes
a concepção e a prática do currículo integrado.
O modelo de gestão denominado de Tecnologia Empresarial Sócio-Educacional –
TESE foi adotado a partir da parceria da Secretaria de Educação com o Instituto de Co-
responsabilidade pela Educação – ICE de Pernambuco, cujas premissas fundamentais são
o protagonismo juvenil, a formação continuada, a atitude empresarial, a co-
responsabilidade e a replicabilidadei. Trata-se, de acordo com Andrade, (2010, p.12) de
“uma proposta de gestão escolar fundamentada no modelo gerencial empresarial,
especificamente baseada na Tecnologia Empresarial Odebrecht (TEO)”.
Os fundamentos da TESE estão circunscritos na teoria das organizações, a qual
toma de empréstimo os princípios da Gerência da Qualidade Total (GQT) e das teorias
que lhe dão sustentação para formular seus princípios e premissas.
A TESE, portanto, não se deriva das teorias da educação, se apresentando, por
esse motivo, vazia de fundamentos para dar sustentação a um projeto educacional, mas,
contraditoriamente acabou sendo erigida a condição de referência basilar para a
organização das atividades curriculares, uma vez que seus princípios e concepções
passaram a compor o currículo como disciplinas.
Nessa perspectiva, o presente artigo propõe-se a colocar em tela os conceitos e
premissas do ensino médio integrado e as práticas efetivadas, evidenciando que existem
discrepâncias que não nos permitem afirmar que as expectativas sociais expressas nos
documentos de referência para a implantação do currículo do ensino médio integrado a
educação profissional se apresentem atendidas nas práticas pedagógicas que se efetivam
nas EEEPs sob as premissas da TESE.
A análise se apoia no pressuposto que as concepções da TESE não dão conta da
especificidade do fenômeno educativo e acabam funcionando unicamente como
mecanismo de submissão da educação a lógica do mercado, cuja racionalidade é
incompatível com a noção de qualidade social da educação.
Utilizamos como metodologia a pesquisa documental e bibliográfica através de
fontes primárias (documentos e decretos que estabelecem a educação profissionalizante
integral da esfera estadual e federal) e fontes secundárias (através de publicações
científicas sobre o tema estudado). A pesquisa foi complementada por um estudo de caso
em uma das EEEPs, através da técnica de observação participante, com a realização de
observações e entrevistas, que objetivaram analisar a compreensão dos atores do processo
educativo sobre as concepções que orientam sua prática no âmbito do currículo integrado.
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2. AS CONCEPÇÕES QUE FUNDAMENTAM A POLITICA DE
INTEGRAÇÃO DO ENSINO MÉDIO A EDUCAÇÃO PROFISSIONAL
Se entendermos o currículo sob a perspectiva das teorias críticas, mormente as de
vertente neomarxista, iremos entendê-lo como um terreno em que se manifestam as lutas
em torno dos diferentes significados sobre o social e o político, se constituindo em
instrumento em que os diferentes grupos sociais expressam sua visão de mundo e
defendem os projetos educacionais requeridos pela dinâmica da sociedade em cada etapa
histórico ou os projetos necessários a transformação dessa sociedade. O currículo se
constitui, assim, num território no qual os diversos sujeitos disputam encaminhamentos
para efetivação dos projetos de educação que advogam e se efetiva mediante as escolhas
feitas sobre determinados projetos em detrimento de outros.
A distinção fundamental entre esses projetos se localiza acerca da questão das
concepções de homem, de educação e sociedade defendidas. São os diferentes enfoques
dados a essas concepções que direcionam o currículo a se efetivar, definindo o que deve
ser ensinado e como deve ser ensinado. A questão sobre “o que” ensinar conforme destaca
SILVA (2004, p. 14), associa-se outra questão: “o que eles ou elas devem ser”, ou melhor,
“em que eles ou elas se devem tornar” em função do currículo prescrito, implementado e
avaliado, o que remete para o tipo de ser humano ou de sociedade desejado, razão pela
qual se evidencia a estreita correlação entre o currículo, a ideologia e o poder.
A disputa que se trava na definição do tipo de homem e sociedade pretendidos não
se circunscreve simplesmente ao campo epistemológico de luta ou competição entre
concepções, mas está implicada ativamente na busca de hegemonia no campo social ou,
como se refere SILVA, no “campo epistemológico social”, motivo pelo qual se inscreve
no centro de um “território contestado” (2004, p. 15).
As concepções que se tem de currículo, portanto, se refletem na configuração das
práticas pedagógicas realizadas na escola, uma vez que são elas que informam a práxis
escolar através da construção de esquemas explicativos da realidade e atribuição de
sentido a ação que se efetiva no cotidiano escolar. As concepções ao serem incorporados
pelos atores pedagógicos ocupam o lugar de sentido dominante, se constituindo, pois,
como base, alicerce e fundamento para sustentação do projeto pedagógico.
As concepções que se tem do tipo de ser humano ou de sociedade desejado,
portanto, associam-se ao sentido de causa defendida no coletivo dos educadores, de
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princípio do qual partem e que também aciona os fundamentos que irão nortear a sua
práxis.
Devemos entender, baseados nesses pressupostos que a opção feita pela Secretaria
da Educação do Ceará (SEDUC) na definição do currículo das EEEPs não é neutra por
se encontrar inscrita no território de disputa de sentidos e significados para o referido
currículo em que, de um lado, há a concepção de currículo integrado, de matriz
epistemológica eminentemente crítica, e de outro, há o currículo implementado, de
orientação claramente mercadológica.
A análise da concepção de currículo integrado nos permite observar que entre os
contornos que são idealizados ao currículo pretendido nos documentos de orientação para
implantação da política de integração curricular do MEC e os contornos do currículo
prescrito para as EEEPs há uma clara oposição de concepções, o que confirma, na prática,
a disputa de hegemonia entre dois projetos distintos com diferentes pretensões sobre o
tipo de ser humano a ser formado.
A concepção de formação humana integral, explícita no documento base
construído pelo MEC para nortear as propostas pedagógicas do ensino médio integrado a
educação profissional, se funda na relação trabalho e educação e tem como pano de fundo,
os princípios da escola unitária que pretendia ser omnilateral no sentido de formar o ser
humano na sua integralidade física, mental, cultural, política, científico-tecnológica.
(Brasil, 2007)
A ideia de currículo integrado, coerente com essa concepção, se gesta no bojo da
teoria crítica de currículo, o qual preconiza como finalidade da escola, oferecer uma
educação que contemple todas as formas de conhecimento produzidas pela atividade
humana. Trata-se de uma visão crítico-dialética de educação à medida que não separa o
conhecimento acumulado pela humanidade na forma de conhecimento científico daquele
adquirido pelos educandos no cotidiano das suas relações culturais e materiais. Por essa
razão, possibilita uma abordagem da realidade como totalidade, permitindo um cenário
favorável a que todos possam ampliar a sua leitura sobre o mundo e refletir sobre ele para
transformá-lo.
Os estudos que analisam os processos pedagógicos implicados no trabalho com o
currículo integrado como os realizados por FRIGOTTO, CIAVATTA, RAMOS (2005),
KUENZER (1989), SAVIANI (1989; 2003; 2007), entre outros, apontam que esta
perspectiva implica em desenvolver um percurso educativo em que estejam presentes e
articuladas em todos os momentos da formação duas dimensões, a teórica e a prática,
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contemplando ao mesmo tempo uma sólida formação científica e a formação tecnológica
de ponta, ambas sustentadas em um consistente domínio das linguagens e dos
conhecimentos sócio históricos. Isto significa afirmar que a proposta político-pedagógica
que se advoga terá como finalidade o domínio intelectual da tecnologia a partir da cultura.
Equivale dizer: contemplará, no currículo, de forma teórico-prática, os fundamentos, os
princípios científicos e as linguagens das diferentes tecnologias que caracterizam o
processo de trabalho contemporâneo, tomados em sua historicidade.
Sinteticamente, é esse o embasamento que dá sustentação teórica às propostas
brasileiras de currículo integrado, gerando, assim, um significado social distinto às
práticas de formação no ensino médio que, em última instância, tem a emancipação e a
humanização como horizontes.
Contraditoriamente, a análise do modelo de currículo prescrito pela SEDUC para
as EEEPs tanto revela seu distanciamento dessa perspectiva como evidencia a sua
aproximação de uma lógica mercadológica e utilitarista, que pela sua racionalidade,
representa uma contraposição a práticas pedagógicas que visem à educação humana
integral, conforme passamos a analisar a seguir.
3. OS CAMINHOS TRILHADOS NA ORGANIZAÇÃO CURRICULAR DAS
EEEPS
O currículo das EEEPs foi definido pela SEDUC por ocasião da implantação das
referidas escolas. Esse currículo que deve ser comum a todas as escolas estaduais de
educação profissional do Ceará, estabelece a rotina dos estudantes de ensino médio
incluindo aulas das 7h às 17h.
A matriz curricular, com previsão de 5.400 horas de atividades a serem
desenvolvidas em três anos, é composta por todas as disciplinas da base nacional comum
do Ensino Médio, complementada pelas disciplinas profissionalizantes da habilitação a
qual o curso se vincula. Além disso, há uma parte diversificada composta por atividades
pedagógicas com abordagens, tais como: Projeto de Vida, Formação para Cidadania,
Mundo do Trabalho, Empreendedorismo, Tese e Aprendizagem Cooperativa.
Emergem dessa organização curricular questões de diversas ordens a serem
enfrentadas. Todavia, nessa análise nos deteremos nos aspectos relativos a integração
curricular, a forma como os sujeitos da prática pedagógica enxergam a proposta e as
concepções que subjazem às práticas implementadas.
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No que tange a construção curricular, a opção se deu pela justaposição de
disciplinas de formação geral e formação profissional, complementada por um conjunto
de disciplinas e abordagens coerentes com as premissas do modelo de gestão – TESE.
Essa proposição não favorece a integração curricular, pois conforme lecionam
FRIGOTTO, CIAVATTA e RAMOS, a sobreposição de disciplinas consideradas de
formação geral e de formação específica ao longo de um curso não é o mesmo que
integração, (...). A integração exige que a relação entre conhecimentos gerais e específicos
seja construída continuamente ao longo da formação, sob os eixos do trabalho, da ciência
e da cultura. (2005, p.1093/94)
A ideia de eixos integradores que também é reforçada no documento base do MEC
para a política de ensino médio integrado a educação profissional, o qual sugere os temas
trabalho, ciência, cultura e tecnologia como estratégia da integração curricular não foi
considerada na proposta. Ao contrário, observamos através de nossa imersão nas práticas
pedagógicas dessas escolas que fatores de diversas ordens inviabilizam a integração
curricular.
O currículo, os conteúdos, seu ordenamento e sequenciação, suas hierarquias e
cargas horárias, conforme ARROYO (2007 p. 18) “são o núcleo fundante e estruturante
do cotidiano das escolas, dos tempos e espaços, das relações entre educadores e
educandos, da diversificação que se estabelece entre os professores”.
Reconhecendo que as lógicas sobre as quais se estruturam as atividades e as
disciplinas nos currículos determinam as formas de trabalho na escola, a autonomia ou a
sua falta, percebemos que o controle exercido pela SEDUC sobre as escolas para cumprir
as “grades curriculares” estabelecidas, acompanhado da prescrição sobre como se devem
organizar os tempos e espaços escolares engessa os sujeitos escolares, tirando sua
autonomia até mesmo para criar no espaço escolar momentos de reuniões e planejamento
coletivos, até porque os planejamentos são feitos por área, em momentos previamente
estabelecidos pela SEDUC.
Ora, um currículo integrado requer autoria dos professores, participação dos
sujeitos envolvidos na aprendizagem, para desvelar suas relações e suas especificidades.
Para isso, mais do que práticas de cooperação entre as disciplinas, é necessário a
integração entre os educadores, o compartilhamento de propósitos educacionais comuns,
o planejamento coletivo, de modo a propiciar a inter-relação entre as abordagens. As
disciplinas devem ser colocadas numa perspectiva relacional, na qual as fronteiras se
tornam pouco nítidas, promovendo maior autonomia de professores e alunos, mais
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integração dos saberes escolares com os saberes científicos e os saberes cotidianos
(BERNSTEIN, 1996), numa abordagem inter e transdisciplinar (MORIN, 2002).
Na EEEP, além do controle da SEDUC sobre a escola, há também o modo de
contratação dos professores das disciplinas profissionalizantes que contribui para a
divisão do grupo de professores se constituindo em mais um entrave a integração
curricular. Esses professores são selecionados e terceirizados pelo instituto Centro de
Ensino Tecnológico - CENTEC, em sua grande maioria, sem licenciatura para a docência.
Isso contribui para se estabelecer na escola dois grupos distintos de professores: os
professores das disciplinas da base comum nacional e os professores da “área técnica”
(grifos nossos para destacar a expressão utilizada na escola para categorizar esses
professores). Inclusive, na escola pesquisada, devido a forma de organização dos tempos
pedagógicos e das aulas, não existe prática de planejamento envolvendo os dois grupos
de professores.
O trabalho que a escola autonomamente poderia realizar para propiciar a
integração curricular mediante o desenvolvimento de projetos, temas geradores, eixos
integradores, entre outras possibilidades, fica comprometido devido aos aspectos aqui
analisados se mantendo a linearidade e o isolamento das disciplinas.
Além disso, a concepção de currículo integrado não está devidamente disseminada
entre os educadores da EEEP, não há o compartilhamento de conceitos e princípios
pedagógicos coerentes com a referida concepção. Há professores que partindo do
entendimento que deveria haver uma unidade entre as abordagens do currículo,
reconhecem que a perspectiva da integração curricular não está posta para seu trabalho,
enquanto há outros professores que não souberam precisar o que é um currículo integrado,
se reportando a TESE como o elemento integrador das ações, uma vez que seria a filosofia
de convergência dos propósitos do projeto. Na visão daqueles professores que defendem
uma unidade nas abordagens curriculares, o currículo da sua escola não está devidamente
integrado e a forma como o currículo dos cursos está organizado dificulta essa integração,
pois se tratam de dois cursos distintos ocorrendo simultaneamente, um de ensino médio
e outro profissionalizante.
Indagados sobre como acontece a definição do programa curricular das diferentes
disciplinas da base comum, os professores reconhecem que há a reprodução de um
currículo do ensino médio regular que é multiplicado para todos os cursos, inclusive com
a mesma carga horária, variando apenas a parte profissionalizante, o que revela
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nitidamente a ausência da preocupação de integrar os conhecimentos gerais e específicos
de cada habilitação profissional na arquitetura do currículo.
Sobre a possibilidade de trabalhar estratégias pedagógicas de integração
curricular, os professores reconhecem que como as disciplinas e suas cargas horárias já
estão prescritas e em cima dessa prescrição é feito o controle acadêmico, fica meio difícil
propor algo diferente do que já se encontra definido. Mas acreditam que seria possível
trabalhar os projetos interdisciplinares para criar um mínimo de convergência entre as
diversas abordagens. Todavia, para tanto defendem uma maior aproximação dos
professores da “área técnica” com os das disciplinas do ensino médio e momentos para
apropriação teórica das concepções que embasam essa prática pedagógica.
Cabe frisar, portanto, que a integração curricular, ideia força da política de ensino
médio integrado não se encontra organicamente articulada na proposta. A introdução de
diversos temas compatíveis com as premissas da TESE na parte complementar, ao
contrário do que pensam alguns, não é capaz de promover essa integração, se mantendo,
portanto, a organização disciplinar, linear e estanque.
Quanto às concepções mais disseminadas no cotidiano escolar, identificamos nas
nossas observações que são aquelas que fundamentam as disciplinas da parte
complementar do currículo. Talvez até porque elas sejam trabalhadas de forma
metodológica mais dinâmica, se tornando mais agradáveis ao aluno que assiste a nove
aulas por dia, em sua grande maioria baseadas na tendência tradicional, com metodologia
invariavelmente expositiva, numa sala em que os alunos se sentam em fileiras, cujos
lugares são previamente demarcados conforme método do Projeto Diretor de Turma,
denominado “mapeamento de sala de aula”.
Essas disciplinas, descritas sinteticamente, apresentam as seguintes
características: A disciplina TESE é modelada de acordo com a TEO (Tecnologia
Empresarial Odebrecht), e toma como parâmetro seus princípios, conceitos e critérios.
Com base nesses princípios, diversas temáticas são desenvolvidas sob a forma de
atividades como oficinas, seminários, projetos e outros, visando atingir os objetivos
contidos nos pilares do conhecimento no Relatório de Jacques Delors, quais sejam:
Aprender a conhecer, Aprender a fazer, Aprender a viver juntos (conviver) e Aprender a
ser. A disciplina Formação para a cidadania que se dá através do Projeto Professor Diretor
de Turmaii visa a educação emocional e também toma por princípios básicos os quatro
pilares da educação de Jacques Delors.
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O componente curricular denominado Horário de Estudo é desenvolvido através
da metodologia da Aprendizagem Cooperativaiii.
Os componentes curriculares Projeto de Vida e Mundo do trabalho, são
trabalhados a partir de uma proposta metodológica desenvolvida no âmbito da parceria
Instituto Aliança/SEDUC, os quais tem como princípio básico o foco no jovem: “como
ator, co-autor, interlocutor e agente e estimula a descoberta e o desenvolvimento do seu
potencial do jovem.”(CEARÁ, 2010). Os dois componentes são trabalhados através de
dinâmicas e vivências que buscam desenvolver a autodeterminação dos jovens para
atingir metas e resultados.
As Temáticas, Práticas e Vivências (TPV) visam a integração da formação escolar
de nível médio com a formação em Empreendedorismo, desenvolvida através da parceria
SEDUC/SEBRAE.
Os conceitos de competências, autodeterminação, empreendedorismo, foco em
resultados, protagonismo, entre outros, são basilares nessas disciplinas. Não nos cabe aqui
analisar a carga ideológica impregnada nesses conceitos nem seus usos sociais, mas vale
ressaltar que sua função na abordagem curricular é o de conformar a proposta pedagógica
as premissas da TESE. Esse direcionamento introduz nas práticas curriculares diversas
concepções e orientações mercadológicas, que apesar de não integrar juntamente com as
demais abordagens curriculares um todo consistente e coerente, concorre como a parte
mais expressiva do currículo para a formação da identidade dos jovens.
As premissas da TESE, portanto, não deixam de cumprir o seu papel de
estabelecer uma vinculação mais estreita do currículo com os fins e valores do mercado
de trabalho, bem como, de conformar a própria forma de gerenciamento das EEEPs aos
moldes de uma empresa capitalista moderna e aos critérios de produtividade eficácia e
eficiência dos processos produtivos.
Mesmo que a gestão não seja o foco de discussão desse trabalho, destacamos que
as dimensões relacional, pedagógica e administrativa da escola se pautam por uma
racionalidade de gestão diferente daquela das organizações empresariais. Não reconhecer
isso significa desprezar a luta e os avanços na defesa que se consolida desde os anos de
1980 pela democratização e autonomia da escola pública. No bojo dessa mesma luta,
frisamos que a qualidade social defendida para a educação é diferente daquela referente
aos padrões de eficiência e competitividade empresarial.
Da submissão das instituições de educação a esses padrões decorrem várias
consequências como, por exemplo, novos conceitos vão sendo postos em prática para
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criar outras representações da realidade mais compatível com o que o mercado quer. Os
termos e conceitos da pedagogia vão sendo substituídos pelos termos e conceitos da
retórica pragmática do mercado, o que, por seu turno, vai também demandando uma nova
postura dos educadores, mais coerente com a filosofia do mercado.
Trata-se, de acordo com ARROYO, (2007, p. 24) de uma visão dos alunos “como
recursos humanos a serem carimbados para o mercado segmentado e seletivo.” Para o
autor, nessa perspectiva, nós educadores “perdemos a autoria, estreitamos o leque de auto-
escolhas, renunciamos à possibilidade de ter outro projeto de sociedade, de formação
humana, de educação”.
Mesmo que essas determinações no interior das EEEPs não ocorram de maneira
linear e que os sujeitos do ato educativo encontrem espaço para negá-las em suas práticas,
elas se apresentam como contraponto a adoção de conceitos e categorias como formação
humana integral, humanização, emancipação. É obvio também que elas têm
consequências nas culturas educacionais, como por exemplo, o enfraquecimento da
identidade pedagógica formativa e o fortalecimento de uma identidade empresarial
mercadológica que melhor se coaduna com a pedagogia pragmática de inspiração liberal
a qual preconiza a necessidade de formação de indivíduos cuja característica subjetiva
principal seja a aptidão para a competitividade do setor produtivo e a adequação
incontestável as novas demandas do mercado de trabalho capitalista.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pedagogia implantada nas Escolas Estaduais de Educação Profissional do Ceará
revela o modo como a educação atualmente tem sido condicionada, ou mesmo
determinada pelas forças econômicas globais num contexto em que o mercado é erigido
ao patamar de modelo ideal para orientar as ações nas instituições educacionais.
Nesta perspectiva, o currículo das EEEPs vem tentando conformar os sujeitos da
ação educativa – docentes e alunos a uma concepção pragmatista, utilitarista, cientificista
e positivista de educação, cuja referência principal é o modelo de gerenciamento
empresarial expresso em mecanismos como a TESE.
A análise da proposta das EEEPs evidencia que uma pedagogia prescritiva que
tem o mercado como referência além de ser vazia de fundamentos para os fazeres
pedagógicos também é contrária a propostas educativas comprometidas com a verdadeira
formação humana.
Havemos de reconhecer que o currículo integrado conforme preconizado nas
abordagens críticas pressupõe, antes de tudo, um conjunto de compromissos político-
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ideológicos que norteiam a defesa da sua realização. Pressupõe também que a
organização dos componentes curriculares e das práticas pedagógicas, vise corresponder,
nas escolhas, nas relações e nas realizações, ao pressuposto da totalidade do real como
síntese de múltiplas determinações. O diálogo, a problematização da realidade, a
pesquisa, ganham destaque como metodologia na qual a autoria dos educandos e
educadores no processo de ensinar e aprender é fundamental.
Se reconhecermos a implicação mútua existente entre educandos e currículo
somos obrigados a reconhecer a necessidade de repensar o currículo das EEEPs e a
respectiva lógica em que estão estruturados. Esta lógica tem um peso muito mais
significativo na conformação das identidades dos alunos do que as lições que nós
educadores transmitimos.
A política de ensino médio integrado inaugura uma nova realidade educativa no
contexto educacional da escola pública do Ceará, a qual se reveste de sentido especial em
termos de possibilidade de oportunizar uma formação de qualidade social para a nossa
juventude. Por se tratar de uma política muito recente, ainda são poucos os trabalhos que
se dedicam a sua análise, portanto, esperamos que a reflexão aqui brevemente traçada se
constitua em provocação para que os educadores e pesquisadores do campo da educação
acrescentem outras reflexões que contribuam na construção de outras práticas
pedagógicas nas EEEPs.
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i Cf. Documento Referenciais Para a oferta do Ensino Médio Integrado à Educação Profissional da Rede Estadual de Ensino do Ceará, o conceito de protagonismo compreende a participação ativa e construtiva
do jovem na vida da escola. Portanto, o jovem como partícipe em todas as ações da escola e construtor do seu projeto de vida. A formação continuada se inscreve no âmbito da dinâmica atual do mundo do trabalho
que coloca o conhecimento como questão central, tornando a formação continuada como uma das principais exigências. A atitude empresarial diz respeito ao compromisso de manter o foco no alcance dos objetivos e resultados pactuados. A corresponsabilidade significa responsabilidade compartilhada.
Educadores, pais, alunos, SEDUC e outros parceiros comprometidos com a qualidade do ensino e da aprendizagem, garantindo a eficiência nos processos e a eficácia nos resultados e a replicabilidade diz
respeito à aplicação da Tecnologia Empresarial Sócio-Educacional – TESE em outras escolas, assim como práticas pedagógicas consolidadas inerentes a educação profissional.
ii Cf. Documento Referenciais Para a oferta do Ensino Médio Integrado à Educação Profissional da Rede Estadual de Ensino do Ceará, é um projeto de execução simples, em que um professor que ministre qualquer disciplina, assume o compromisso de responsabilizar-se pelos alunos de uma única turma. A exigência imprescindível é que tenha perfil adequado para assumir a função. Dentre outras qualidades, precisa ser: bom líder, incentivador, ativo, responsável, sensível, prudente e apaixonado pela educação. Esses professores são denominados Diretores de Turma.
iii Cf. Documento Referenciais Para a oferta do Ensino Médio Integrado à Educação Profissional da Rede
Estadual de Ensino do Ceará, os grupos de estudo pensados a partir da aprendizagem cooperativa baseiam-se numa interdependência positiva entre os membros do grupo, onde as metas são estruturadas, visando a necessidade de todos trabalharem pelo rendimento de todos os membros do grupo, ao mesmo tempo em que trabalha pelo seu próprio rendimento.
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