os quilombos no brasil - questões conceituais e normativas
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Os quilombos no Brasil: questes conceituais e normativas
Os Quilombos no Brasil: Questes Conceituais e Normativas
Ilka Boaventura Leite
Professora do Departamento de Antropologia da UFSC e coordenadora
do NUER Resumo: Procura-se enfocar o quilombo como conceito
scio-antropolgico para discutir suas atuais implicaes tericas e
polticas, principalmente no que diz respeito ao quadro atual de
excluso social do Brasil. Busca-se igualmente estabelecer um
contraponto entre atuais impasses ao entendimento do artigo 68 da
Constituio Brasileira, que se refere s comunidades remanescentes de
quilombos, e o processo de regulamentao em curso - dificultado por
vrias artimanhas e estratgias - entre as quais se destaca a
folclorizao da cultura e identidade negras. O texto aponta para a
necessidade de novos referenciais que possam superar um certo
reducionismo terico no que concerne s implicaes antropolgicas dos
direitos especficos ou difusos das novas etnias, principalmente
diante de armadilhas tais como o turismo tnico.O quilombo constitui
questo relevante desde os primeiros focos de resistncia dos
africanos ao escravismo colonial, reaparece no Brasil/Repblica com
a Frente Negra Brasileira (1930/40) e retorna cena poltica no final
dos anos 70, durante a redemocratizao do pas. Trata-se, portanto,
de uma questo persistente, tendo na atualidade importante dimenso
na luta dos afrodescendentes.
Falar dos quilombos e dos quilombolas no cenrio poltico atual ,
portanto, falar de uma luta poltica e, consequentemente, uma
reflexo cientfica em processo de construo.
Embora parea pertinente igualar a questo das terras de quilombos s
terras indgenas, ambas so semelhantes apenas quanto aos desafios e
embates j visveis, no plano conceitual (quanto identificao do
fenmeno referido) e no plano normativo (quanto definio do sujeito
do direito, os critrios, etapas e competncias
jurdico-polticas).
No por acaso, h freqentemente, esta relao emblemtica entre as lutas
indgenas pela demarcao de terras e a dos afrodescendentes pela
titulao das reas que ocupam (Arruti, 1977), em alguns casos h mais
de um sculo.
O traado da fronteira tnico-cultural no interior do Brasil/Nao
esteve, portanto, sempre marcado pela preservao do territrio
invadido e ocupado no processo colonial e por inmeros conflitos de
terra que remontam aos dias atuais. Neste sentido possvel falar em
uma antropologia das sociedades indgenas que esteve durante todo o
ltimo sculo enfocando como tema de reflexo a autonomia cultural
destes povos e a sua luta pela demarcao das terras.
Nos ltimos vinte anos, os descendentes de africanos, chamados
negros, em todo o territrio nacional, organizados em Associaes
Quilombolas, reivindicam o direito permanncia e ao reconhecimento
legal de posse das terras ocupadas e cultivadas para moradia e
sustento, bem como o livre exerccio de suas prticas, crenas e
valores considerados em sua especificidade.
Quanto ao reconhecimento das terras indgenas, o Estado Brasileiro
tem procedido da seguinte forma: decretao de reas reservadas
(embora grande parte das solicitaes estejam ainda sem resposta),
legislao protetora e instituies e projetos assistencialistas
.
Em diversas situaes, ndios e negros, por vezes aliados, lutaram -
desde o incio da ocupao e explorao do continente - contra os vrios
procedimentos de expropriao de seus corpos, bens e direitos. Os
negros, diferentemente dos ndios - considerados como da terra-,
enfrentaram muitos questionamentos sobre a legitimidade de
apropriarem-se de um lugar, cujo espao pudesse ser organizado
conforme suas condies, valores e prticas culturais. A represso
policial aos terreiros de Candombl e aos bairros perifricos por
eles habitados, constituem exemplos recentemente discutidos pela
Histria e Sociologia Poltica A excluso se deu principalmente atravs
das prticas sociais que prefiguram o quadro de mobilidade do que
propriamente no imaginrio social da nao. Esta excluso est
evidenciada nos censos econmicos e nos mais recentes levantamentos
scio-econmicos realizados no pas. Em diferentes partes do Brasil,
sobretudo aps a Abolio (1888), os negros foram desqualificados e os
lugares em que habitam foram abandonados pelo poder pblico ou mesmo
questionados por outros grupos recm-chegados, com maior poder e
legitimidade junto ao Estado.
O usufruto, a posse e a propriedade dos recursos naturais
tornaram-se, ao longo do processo de formao social brasileira, cada
vez mais, moeda de troca, configurando um sistema disfaradamente
hierarquizado pela cor da pele e onde a cor passou a instruir nveis
de acesso (principalmente escola e compreenso do valor da terra),
passou mesmo a ser valor embutido no negcio. Processos de
expropriao reforaram a desigualdade destes negcios, de modo a ser
possvel hoje identificar nitidamente quem foram os ganhadores e
perdedores e quem, ao longo deste processo, exerceu e controlou as
regras que definem quem tem o direito de se apropriar.
J a primeira Lei de Terras, escrita e lavrada no Brasil, datada de
1850, exclui os africanos e seus descendentes da categoria de
brasileiros, situando-os numa outra categoria separada, denominada
"libertos". Desde ento, atingidos por todos os tipos de racismos,
arbitrariedades e violncia que a cor da pele anuncia - e denuncia
-, os negros foram sistematicamente expulsos ou removidos dos
lugares que escolheram para viver, mesmo quando a terra chegou a
ser comprada ou foi herdada de antigos senhores atravs de
testamento lavrado em cartrio. Decorre da que, para eles, o simples
ato de apropriao do espao para viver passou a significar um ato de
luta, de guerra.
Tudo isto se esclarece quando entra em cena a noo de quilombo como
forma de organizao, de luta, de espao conquistado e mantido atravs
de geraes. O quilombo, ento, na atualidade, significa para esta
parcela da sociedade brasileira sobretudo, um direito a ser
reconhecido e no propriamente e apenas um passado a ser rememorado.
Inaugura uma espcie de demanda, ou nova pauta na poltica nacional:
afrodescendentes, partidos polticos, cientistas e militantes so
chamados a definir o que vem a ser o quilombo e quem so os
quilombolas.
A partir da Constituio Federal promulgada em 1988, cujo Artigo 68
das Disposies Transitrias prev o reconhecimento da propriedade das
terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos, o debate
ganha o cenrio poltico nacional. Por trs de algumas evidncias,
pistas e provas: surgem novos sujeitos, territrios, aes e polticas
de reconhecimento. Delineiam-se desde ento novas questes de
identidade que perpassam as lutas por cidadania e sua verso, trgica
e festiva, a folclorizao.
O texto que se segue procura situar o assunto e demonstrar sua
importncia na formao sociocultural brasileira e na atualidade no
que se refere diversidade cultural e cidadania, levando-se em
conta, inclusive, a participao e algumas das principais contribuies
da Antropologia Brasileira no debate em curso.
Quilombo: questes conceituais
A expresso quilombo vem sendo sistematicamente usada desde o perodo
colonial. Ney Lopes afirma que quilombo um conceito prprio dos
africanos bantos que vem sendo modificado atravs dos sculos" (...)
Quer dizer acampamento guerreiro na floresta, sendo entendido ainda
em Angola como diviso administrativa. (...)".
O Conselho Ultramarino Portugus de 1740 definiu quilombo como toda
habitao de negros fugidos que passem de cinco, em parte desprovida,
ainda que no tenham ranchos levantados nem se achem piles neles.
Indica, tambm, uma reao guerreira a uma situao opressiva.
David Birmigham (1974) sugere que o quilombo se origina na tradio
Mbunda, atravs de organizaes clnicas, e que suas linhagens chegam
at o Brasil atravs dos portugueses.
Kabengele Munanga (1994), ao recuperar a relao do quilombo com a
frica, afirma que o quilombo brasileiro , sem dvida, uma cpia do
quilombo africano reconstitudo pelos escravizados para se opor a
uma estrutura escravocrata, pela implantao de uma outra estrutura
poltica na qual se encontravam todos os oprimidos. Para este autor,
a matriz de inspirao adveio de um longo processo de amadurecimento
ocorrido na rea cultural bantu nos sculos XVI e XVII, de instituies
polticas e militares transtnicas, centralizadas, formadas por
homens guerreiros cujos rituais iniciticos tinham a funo de
unificar diferentes linhagens.
Na tradio popular no Brasil h muitas variaes no significado da
palavra quilombo, ora associado a um lugar: - quilombo era um
estabelecimento singular-, ora a um povo que vive neste lugar;- as
vrias etnias que o compe-, ou a manifestaes populares, -festas de
rua-, ou ao local de uma prtica condenada pela sociedade; -lugar
pblico onde se instala uma casa de prostitutas-, ou a um conflito:
uma -grande confuso-, ou a uma relao social: -uma unio-; ou ainda a
um sistema econmico: - localizao fronteiria, com relevo e condies
climticas comuns na maioria dos casos- (Lopes, 1987:15). A vastido
de significados, como concluem vrios estudiosos da questo, favorece
o seu uso para expressar uma grande quantidade de experincias, um
verdadeiro aparato simblico a representar tudo o que diz respeito
histria das Amricas. A conquista da Amrica no produziu, conforme
Guillermo Giucci (1992), uma nica histria produziu, sim, rvores de
histrias. Os negros estavam inseridos no movimento colonial de
descobrir, resgatar, povoar e governar - s que como povos
dominados.
Fazendo um levantamento das abordagens feitas pela historiografia
brasileira, Ney Lopes chama a ateno para os dois extremos em que o
quilombo enfocado: a partir do iderio liberal, proveniente dos
princpios de igualdade e liberdade da Revoluo Francesa, em que
romanticamente idealizado; ou, sob o vis marxista-leninista, no
qual associado luta armada, como embries revolucionrios em busca de
uma mudana social . A prpria generalizao do termo, teria sido um
produto da dificuldade dos historiadores em ver o fenmeno enquanto
dimenso poltica de uma formao social diversa. O termo ir persistir
principalmente para indicar as variadas manifestaes de
resistncia.
Dcio Freitas considerando as condies da poca e a prpria tradio
agrcola dos africanos, faz uma tipologia dos quilombos a partir de
sua base de sustentao econmica, indicando sete tipos principais: os
agrcolas, os extrativistas, os mercantis, os mineradores, os
pastoris, os de servios, os predatrios (que viviam de saques). A
agricultura no est totalmente ausente dos demais mas no
propriamente o que viabiliza e define cada um deles.
As abordagens scio-antropolgicas a partir da dcada de 70 procuram
enfatizar os aspectos organizativos e polticos dos quilombos. O
quilombo como uma forma de organizao, tal como enfocado por Clvis
Moura (1981) ir acontecer em todos os lugares onde ocorreu a
escravido. Este autor utiliza o conceito de resistncia,
enfatizando-o como uma forma de organizao poltica:
Essas comunidades de ex-escravos organizavam-se de diversas formas
e tinham propores e durao muito diferentes. Havia pequenos
quilombos, compostos de oito homens ou pouco mais; eram
praticamente grupos armados. No recesso das matas, fugindo do
cativeiro, muitas vezes eram recapturados pelos profissionais de
caa aos fugitivos. Criou-se para isso uma profisso especfica. em
Cuba chamavam-se rancheadores; capites do mato no Brasil;
coromangee ranger, nas Guianas, todos usando tticas mais desumanas
de captura e represso. Em Cuba, por exemplo, os rancheadores tinham
costume o uso de ces amestrados na caa aos escravos negros fugidos.
Como podemos ver, a marronagem nos outros pases ou a quilombagem no
Brasil eram frutos das contradies estruturais dos sistema
escravista e refletiam, na sua dinmica, em nvel de conflito social,
a negao desse sistema por parte dos oprimidos.
A caracterstica que torna singular o quilombo do perodo colonial e
o atual para este autor, decorre do fato de que todas as
experincias j conhecidas revelam uma certa capacidade organizativa
dos grupos. Destrudo dezenas de vezes, reaparecem em novos lugares,
como verdadeiros focos de defesa contra um inimigo sempre ao lado.
Ter uma base econmica que permitia a sobrevivncia de um grande
grupo significou, desde o seu incio, uma organizao scio-poltica com
posies e estrutura de poder bem definida, at porque o inimigo
externo, caracterizado pelas invases freqentes, vem impondo, ao
longo da histria, a necessidade de uma defesa competente da rea
ocupada. Este carter defensivo comea a mudar, em parte, com a
Abolio, quando mudam-se os nomes e as tticas de expropriao, e a
partir de ento a situao dos grupos corresponde a outra dinmica, a
da territorializao tnica como modelo de convivncia com os outros
grupos na sociedade nacional.Mas por outro lado, inicia-se, a longa
etapa de construo da identidade destes grupos, seja pela formalizao
da diferenciao tnico-cultural no mbito local, regional e nacional,
e na consolidao de um tipo especfico de segregao social e
residencial dos negros, chegando at os dias atuais. Por isto mesmo,
Clvis Moura chega concluso de que o quilombo vira fato normal na
sociedade escravista e desta at os dias atuais. Esse fato normal
levantado por Moura elucidativo da operacionalidade do termo para
descrever o fenmeno na atualidade, j que h evidncias de que um
processo de segregao residencial dos grupos de fato ocorreu, bem
como o deslocamento, o realocamento, a expulso e a reocupao do
espao.
Isto vm reafirmar que, mais do que uma exclusiva dependncia da
terra, o quilombo, neste sentido, faz da terra a metfora para
pensar o grupo e no o contrrio. Discutiremos este aspecto na
segunda parte deste artigo.
Recentemente, o antroplogo Alfredo W. B. de Almeida (1998) chama a
ateno para a importncia de um aspecto a ser enfatizado em sua
gnese: "o da unidade familiar que suporta um certo processo
produtivo singular, que vai conduzir ao acamponesamento com o
processo de desagregao das fazendas de algodo e cana de acar e com
a diminuio do poder de coero dos grandes proprietrios
territoriais.
Todo o esforo de Almeida conduz demonstrao de que a questo das
chamadas terras de quilombos deve ser remetida formalizao jurdica
das terras de uso comum, ou seja, domnios doados, entregues ou
adquiridos, concesses feitas pelo Estado, reas de apossamento ou
doadas em retribuio aos servios prestados. As chamadas terras de
preto compreendem, portanto, as diversas situaes decorrentes da
reorganizao da economia brasileira no perodo ps-escravista, onde,
inclusive, no apenas os afrodescendentes esto envolvidos.
A expresso remanescente das comunidades de quilombos que emerge na
Assemblia Constituinte de 1988 tributria no somente dos pleitos por
ttulos fundirios, mas de uma discusso mais ampla travada nos
movimentos negros e entre parlamentares envolvidos com a luta
anti-racista. O quilombo trazido novamente ao debate para fazer
frente a um tipo de reivindicao que, poca, alude a uma dvida que a
nao brasileira teria para com os afro-brasileiros em conseqncia da
escravido, no exclusivamente para falar em propriedade
fundiria.
Uma primeira questo que se impe diz respeito poltica de ao
afirmativa e como ela vem sendo feita (ou no) no Brasil. Desde os
anos 30, algumas vozes militantes: defendem fortemente a idia de
reparao, da abolio como um processo inacabado e da dvida, em dois
planos: a herdada dos antigos senhores e a marca que ficou em forma
de estigma, seus efeitos simblicos, geradores de novas situaes de
excluso A excluso como fato e como smbolo. Os militantes procuram
ver o conceito de quilombo como um elemento aglutinador, capaz de
expressar, de nortear aquelas pautas consideradas cruciais mudana,
de dar sustentao afirmao da identidade negra ainda fragmentada pelo
modelo de desenvolvimento do Brasil aps a Abolio da
Escravatura.
J nos estudos de comunidade que se fizeram presentes na dcada de
30/40 nas Cincias Sociais no Brasil aparecem as primeiras evidncias
sobre a existncia de bairros negros situados nas reas urbanas e
perifricas, por onde surgem as escolas de samba, terreiros de
candombl e tambm um campesinato negro, identificado como
comunidades negras rurais. Estes estudos introduziram tambm as
primeiras formulaes que iro fundamentar a viso de grupo como
unidade fechada em si mesma, coesa, como uma cultura isolada,
contribuindo assim para uma viso idealizada da vida coletiva destas
populaes, consideradas no mais primitivas, mas tradicionais.
Congeladas tambm numa viso esttica de tradio e da histria, eram
definidas principalmente por uma suposta harmonia, coeso e ausncia
de conflito Somente na dcada de 80, com a virada terica dos estudos
sobre etnicidade, inaugurada com a crtica feita por Fredrik Barth
(1969) ao conceito esttico de cultura que alguns modelos tericos at
ento utilizados foram considerados ultrapassados, requerendo-se dos
antroplogos um novo reposicionamento frente a eles. Novos
questionamentos feitos a estas pesquisas j realizadas iro resgatar
alguns elementos empricos que possibilitaro, por outro lado, que se
perceba a territorializao tnica, ainda pouco problematizada no
mbito dos vrios aspectos da formao social brasileira e do imaginrio
sobre a nao.
O texto final do Artigo 68 da Constituio Federal, ao falar em
remanescentes das comunidades dos quilombos, ir, inicialmente,
dificulta a compreenso do processo e criar vrios impasses
conceituais. Aquilo que advinha como demanda social, com o
principal intuito de descrever um processo de cidadania incompleto
e portanto, abranger uma grande diversidade de situaes envolvendo
os afrodescendentes, tornou-se restritivo, por remeter idia de
cultura como algo fixo, a algo cristalizado, fossilizado, e em fase
de desaparecimento. Este foi o texto aprovado pela
Constituinte:
Artigo 68:
Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam
ocupando suas terras reconhecida a propriedade definitiva, devendo
o Estado emitir-lhes os ttulos.
A noo de remanescente, como algo que j no existe ou em processo de
desaparecimento, e tambm a de quilombo, como unidade fechada,
igualitria e coesa, tornou-se extremamente polmica. Mas foi
principalmente porque a expresso no correspondia auto-denominao
destes mesmos grupos, e por trata-se de uma identidade ainda a ser
politicamente construda, que suscitou tantos questionamentos. De
sada, exigiu-se nada mais do que um esforo interpretativo do
processo como um todo por parte dos intelectuais e militantes, bem
como das prprias comunidades envolventes, e sem o qual seria
impossvel a aplicabilidade jurdica do artigo . O impasse estava
formado, sobretudo porque o significado de quilombo que predominou
foi a verso do Quilombo de Palmares como unidade guerreira
construdo a partir de um suposto isolamento e auto-suficincia.
Parecia difcil compreender uma demanda por regularizao fundiria a
partir de tal conceito. Foi necessrio relativizar a prpria noo de
quilombo para depois resgat-lo em seu papel modelar, como inspirao
poltica para os movimentos sociais contemporneos.
Neste sentido, a Associao Brasileira de Antropologia (ABA) foi
convocada pelo Ministrio Pblico para dar o seu parecer em relao s
situaes j conhecidas e enfocadas nas pesquisas . Em outubro de
1994, reuniu-se o Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais
para elaborar um conceito de remanescente de quilombo. O documento
procurou desfazer os equvocos referentes suposta condio
remanescente, ao afirmar que contemporaneamente, portanto, o termo
no se referia a resduos arqueolgicos de ocupao temporal ou de
comprovao biolgica. Tratava-se de desfazer a idia de isolamento e
de populao homognea ou como decorrente de processos insurrecionais.
O documento posicionava-se criticamente em relao uma viso esttica
do quilombo, evidenciando seu aspecto contemporneo, organizacional,
relacional e dinmico, bem como a variabilidade das experincias
capazes de serem amplamente abarcadas pela ressemantizao do
quilombo na atualidade. Ou seja, mais do que uma realidade
inequvoca, o quilombo deveria ser pensado como um conceito que
abarca uma experincia historicamente situada na formao social
brasileira.
A conceituao de quilombo do documento da ABA ampliou a viso do
fenmeno referido e conferiu-lhe uma maior dinamicidade. .Faltava
identificar o sujeito do direito, os critrios normativos para a
regulamentao da lei e sua aplicabilidade, ou seja, os procedimentos
e etapas a serem cumpridas para a titulao das terras, as
responsabilidades e competncias dos atores sociais envolvidos. Ao
contrrio do que se supunha, a questo, a partir da, revelou-se de
grande complexidade, pois tratava-se de considerar no apenas os
aspectos referentes identidade dos negros no Brasil, mas os vrios
atores envolvidos e os inmeros interesses conflitantes sobre o
patrimnio material e cultural brasileiro, ou seja, questes de fundo
envolvendo identidade cultural e poltica das minorias de poder no
Brasil.
O Quilombo: questes normativas
Iniciarei esta parte discutindo cada um dos aspectos que permeiam o
processo de regulamentao do Artigo 68. O primeiro diz respeito
definio do sujeito do direito.
No quadro das classificaes sociais, a categoria negro no Brasil da
transio do sculo XIX para o XX, assim como a expresso "quilombola",
preto ou afro-brasileiro, neste incio de XXI, indica, , que um
recorte de grupo vem se mantendo e persistindo em um longo perodo.
Mesmo antes, quando o modo de produo colonial sustentado pela
mo-de-obra escrava j esboava o seu completo esgotamento, chegando
logo depois a um ponto de verdadeira saturao, o que era
identificado como sendo "negro" referia-se - mais do que isto,
englobava - a experincia histrica dos africanos e seus
descendentes, tratados nos sculos anteriores como sujeitos
a-histricos, negados em sua condio de humanidade. Enquanto uma
expresso da identidade grupal, o significante negro vai somando em
seu percurso tudo aquilo que advm de tal experincia, ou seja,
elementos de incluso, que mantm o grupo unido em estratgias de
solidariedade e reciprocidade, e tambm de excluso, ou seja: a
desqualificao, a depreciao e a estereotipia. Os sentidos do termo e
as experincias nele circunscritas revelam sua ambigidade: por um
lado, a marginalizao; por outro, a fora simblica demonstrada no seu
persistente poder aglutinador, vindo a configurar ou expressar uma
identidade social, e a nortear inclusive, polticas de grupos.
Por outro lado, num pas cuja principal estratgia de
embranquecimento e ascenso social foi a miscigenao, ser negro,
reconhecer-se como tal, depende, portanto, de um amplo entendimento
desta identidade social, pautada quase sempre pela ambigidade e
cuja construo esteve em permanente mudana e reelaborao. Renato
Ortiz, ao analisar a ideologia nacional brasileira, conclui que a
definio de uma identidade nacional mestia surtiu um efeito
homogeneizador, dificultando o discernimento entre as fronteiras e
os efeitos da cor, a organizao poltica dos de cor, chamados negros,
tendo como principal conseqncia a permanncia destes nos ndices de
marginalidade social (Ortiz 1988:36-44). De fato, a teoria da
mestiagem movimentou-se em vrias direes: invisibilizando o grupo
social advindo da vertente africana, para esculpir um pas
embranquecido pela violncia simblica, criando vrios subgrupos
hierrquicos segundo as gradaes da "cor", embaralhando alguns
critrios de diferenciao social, permitindo a mobilidade de apenas
alguns.
Uma questo importante que tem sido colocada se o quilombo expressa
a dimenso poltica da identidade negra no Brasil ou ele uma nova
reduo brutal da alteridade dos diferentes grupos que sob este
prisma teriam que se adequar a um conceito genrico para novos
propsitos de interveno e controle social (Arruti 1997:12). Esta
questo passou a ser amplamente debatida, a comear dos prprios
negros que tm sido freqentemente chamados para explicar por que
insistem em manter diferenas que a prpria gentica trata agora de
desfazer.
O processo em curso de definio do sujeito do direito produz um
certo deslocamento dos velhos estigmas, ao desencadear uma reviso
dos critrios de classificao dos grupos, principalmente quando estes
so considerados como sendo etnicamente homogneos. A questo s vai
adiante quando desloca-se para o processo no qual emerge o prprio
grupo, tratando-se, portanto, de priorizar as alianas de diferentes
tipos e tambm relaes de consanginidade, em que participam indivduos
de outros grupos tnicos, mas inseridos e identificados com as lutas
dos afro-descendentes. Desenvolve-se, neste caso, tanto dentro como
fora do grupo, estratgias e negociaes, que visam a resoluo dos
conflitos e a manuteno dos vnculos de solidariedade e valores
compartilhados (ou no necessariamente) entre vrias geraes. Isto
significa tambm repensar o prprio grupo e a sua dinmica - as lutas
internas, seus conflitos - como uma parte viva e pulsante da
experincia de ser e estar no mundo
No texto constitucional a comunidade o sujeito da orao pois dela
derivam os remanescentes, denominados posteriormente quilombolas. O
artigo constitucional instrui, mesmo que indiretamente, a forma
como a questo deve ser tratada no campo jurdico. Abdias do
Nascimento, um dos militantes pioneiros tambm procura aperfeioar as
suas teses do quilombismo, chamando a ateno para a necessidade de
medidas efetivas para a regulamentao do artigo 68 e enfatizando o
aspecto coletivo do processo. Ou seja, a leitura que faz do artigo
no deixa dvida quanto ao fato de que o grupo, e no o indivduo, que
norteia a identificao destes sujeitos do referido direito. O que
viria ser contemplado nas aes, seria ento o modo de vida coletivo,
a participao de cada um no dia-a-dia da vida em comunidade. No a
terra , portanto, o elemento exclusivo que identificaria os
sujeitos do direito, mas sim sua condio de membro do grupo.
A terra, evidentemente, crucial para a continuidade do grupo, do
destino dado ao modo coletivo de vida destas populaes, mas no o
elemento que exclusivamente o define . importante no confundir o
pleito por titulao das terras que vem ocupando ou que perderam em
condies arbitrrias e violentas com os critrios de constituio e
formao histrica dos grupos. Neste caso, de todos os significados do
quilombo, o mais recorrente o que remete idia de nucleamento, de
associao solidria em relao uma experincia intra e intergrupos. A
idia de territorialidade funda-se imposta por uma fronteira
construda a partir de um modelo especfico de segregao, mas sugere a
predominncia de uma dimenso relacional, mais do que um tipo de
atividade produtiva ou vincularo exclusiva com a atividade agrcola,
at porque, mesmo quando ela existe ela aparece combinada a outras
fontes de sobrevivncia. Quer dizer: a terra, base geogrfica, est
posta como condio de fixao, mas no como condio exclusiva para a
existncia do grupo. A terra o que propicia condies de permanncia,
de continuidade das referncias simblicas importantes consolidao do
imaginrio coletivo, e os grupos chegam por vezes a projetar nela
sua existncia, mas, inclusive no tem com ela uma dependncia
exclusiva. Tanto assim que temos hoje inmeros exemplos de grupos
que perderam a terra e insistem em manter-se como grupo, como o
caso do Paiol de Telha, no Paran. Trata-se, portanto, de um direito
remetido organizao social, diretamente relacionado herana, baseada
no parentesco; histria, baseada na reciprocidade e na memria
coletiva; e ao fentipo como um princpio gerador de identificao,
onde o casamento preferencial atua como um valor operativo no
interior do grupo.
A participao na vida coletiva e o esforo de consolidao do grupo o
que o direito constitucional dever contemplar, embora a legislao
brasileira de inspirao liberal no se detenha na posse coletiva da
terra. Ao mesmo tempo, tambm a capacidade de auto-organizao e o
poder de autogesto dos grupos para identificar e decidir quem e
quem no um membro da sua comunidade, mais do que a cor da pele, o
que a lei prioriza. Tudo isto sem levar em conta os processos de
expulso que impediram estes grupos de continuarem organizados e a
violncia que os descaracterizou enquanto membros de uma comunidade,
impelindo-os desagregao, extrema pobreza e marginalidade
social.
neste quadro poltico que o quilombo passa, ento, a significar, um
tipo particular de experincia, cujo alvo a valorizao das inmeras
formas de recuperao da identidade positiva, a busca por tornar-se
um cidado de direitos, no apenas de deveres. Enquanto uma forma de
organizao, o quilombo viabiliza novas polticas e estratgias de
reconhecimento. Primeiramente, atravs da responsabilidade do grupo
em definir pleitos com legitimidade e poder de aglutinao, de
exercer presso e produzir visibilidade na arena poltica onde os
outros grupos j se encontram. Em segundo lugar, atravs do
questionamento, mesmo que indireto, da funo paternalista do Estado,
da utilizao que fazem os polticos das bandeiras dos movimentos
sociais em milionrias campanhas polticas. E, em terceiro lugar,
propondo a reviso das prioridades sociais, atravs, principalmente,
da implementao de polticas sociais voltadas para pleitos
considerados mais importantes e representativos dos interesses
destas comunidades.
Tambm deste leque de questes e possibilidades que vem a grande
novidade da prpria Constituio de 1988, que a introduo de um novo
campo dos direitos tnicos, at ento inexistente: o Estado
brasileiro, ao reconhecer uma formao social diversa e desigual,
teria ento que colocar-se como rbitro e defensor deste direito,
reconhecendo com isto a existncia de grupos culturalmente
diferenciados.
Este constitui o grande n da questo e o verdadeiro impasse atual.
Como dispositivo legal, foi votado e aprovado como parte das
Disposies Transitrias e no como uma obrigao permanente do Estado.
Aurlio Veiga Rios (1996) observa, pertinentemente, e com a devida
perplexidade, que j naquele momento predominou uma viso de
sociedade em processo de embranquecimento, portanto no fazendo
sentido como lei definitiva.
Diversas tentativas de regulamentao da lei, feitas em 1995,1997,
1998 e 1999 indicam a premncia que tem a regularizao do artigo 68
do ADCT, mas at o momento, todas elas esbarraram na definio do
fenmeno referido, no sujeito do direito e nos procedimentos de
titulao, responsabilidades e competncias. Cada um deles enfrentam
forte discordncia dos diferentes setores diretamente envolvidos,
principalmente dos grupos interessados e apontam a direo dos
conflitos, que vo desde a oposio s normas estabelecidas para as
titulaes, as presses das elites econmicas interessadas nas terras
ocupadas pelas comunidades negras, passando por disputas entre os
rgos do governo que teriam a atribuio para conduzir o
processo.
Em artigo retrospectivo, Lcia Andrade e Girolamo Treccani (1998)
demonstram tambm que um dos principais motivos de discrdia diz
respeito ao fato de que estas terras esto sob diversas jurisdies e
domnios. Enumerando alguns deles: terras devolutas dos diversos
Estados da Federao e Municpios, reas que se localizam em domnios de
empresas particulares e estatais e terras que se encontram em
unidades de conservao ambiental.
Cabe tambm lembrar que no se trata exclusivamente de reconhecer o
que j existe, mas de considerar que os procedimentos legais em
curso indiretamente priorizam e demarcam novas fronteiras tnicas. A
"resistncia territorializante" ao escravismo assumiu uma grande
variedade de estratgias e desdobramentos. Parece pertinente aos
grupos negros resgatar o esforo organizativo criado atravs de redes
comunitrias de auto-proteo e a criao de novas, baseadas nas mesmas
estratgias. Sendo assim, a reconstruo do esprito da lei, pelos
procedimentos administrativos de sua implementao, vem requerer uma
extenso da cidadania a todas as comunidades negras cuja resistncia
remonta a uma memria da escravido passvel de ser reconstituda pelas
redes de parentesco e afinidades que conformam a malha do grupo. A
excluso, de antemo, de alguns grupos que j foram expulsos de suas
terras, mas que permanecem articulados a uma mesma experincia e
unidas, visando a auto-proteo, atualizando as redes de
sociabilidade atravs de vrias formas de organizao, parece
incoerente. Processos scio-histricos locais e regionais produziram
singularidades que precisam ser considerados. Na Regio Sul do
Brasil, por exemplo, importante levar em conta a especificidade e a
complexidade do fenmeno para que se estabeleam determinadas balizas
que possam resgatar o que h de mais progressista no esprito da lei
em questo. Estas podem ser verificadas nos casos em que as terras
que serviram de base para a formao do grupo foram perdidas por
intimidao, venda sob coao e violncia. Ou, ainda, nos casos em que
as terras em que residem os afro-descendentes situam-se prximas ou
no interior de centros urbanos.
H no presente momento uma forte articulao entre as comunidades que
se identificam como quilombos e diversos setores e instituies da
sociedade civil, tais como associaes de moradores, entidades de
movimentos negros, ONGs, instituies religiosas, ncleos e institutos
de pesquisas das Universidades com um saber e experincias
acumuladas sobre o assunto. Do mesmo modo que nas reas urbanas,
configuram situaes de resistncia territorializante ao sistema
racista escravista e ps-escravista, e que no reconhecido pelo atual
anteprojeto como passvel de titulao.
Embora a definio dos procedimentos e rgos competentes para conduzir
o processo parea mais complexa, sobretudo pelo grande nmero de
interesses conflitantes o problema maior localiza-se na prpria
definio e quanto abrangncia do fenmeno referido. E em seguida,
considerar qual a demanda social que est sendo identificada como
quilombola e trat-la como uma importante via de se reconhecer a
historicidade e a trajetria de organizao das famlias negras,
pautadas no conjunto de referncias simblicas que fazem daquele
espao, o lugar de domnio da coletividade que l vive, o respeito s
formas de apropriao que o prprio grupo elaborou e quer ver mantido.
E incluir, desde as que j se auto-identificam como quilombolas, at
aquelas que tm as mesmas caractersticas mas que no se autodenominam
como tal, principalmente por no dispor de meios para a elaborao de
um discursos nos mesmos termos.
Caber, sem dvida, s instncias jurdico-polticas, considerar ou no o
quilombo como uma entre as vrias expresses contidas na formao
social brasileira. Para que o texto do decreto-lei possa surtir o
efeito esperado pelos atuais pleiteastes, precisaria conter as
instrues necessrias sua plena aplicabilidade, ou seja: 1-
considerar a abrangncia e diversidade do fenmeno; 2- detalhar as
fases do processo de aes de reconhecimento e titulao; 3- definir as
atribuies, competncias e raio de ao de cada um dos rgos envolvidos;
4- considerar as vrias figuras jurdicas a serem aplicadas em caso
de terras coletivas, individuais e modalidades mistas ; e 5-
enumerar os procedimentos necessrios resoluo dos conflitos e
respectivas formas de indenizaes das partes envolvidas
Alm disto, verifica-se que a demanda por reconhecimento e
regularizao fundiria requer uma ao integrada envolvendo de forma
mais direta e participativa, os vrios rgos do governo e da
sociedade civil. Seria importante a congregao de diversos rgos
estatais e entidades da sociedade civil envolvidas com a
problemtica, reunindo assim o conjunto dos recursos jurdicos,
infra-estruturais e a necessria legitimidade para executar tal
tarefa. No por acaso, as mais bem sucedidas experincias de
implementao do artigo 68 tm sido aquelas em que se conseguiu
estabelecer uma parceria entre comunidades, entidades
governamentais e disposies locais favorveis regularizao.
Impasses na regulamentao do dispositivo constitucional
O resgate do termo quilombo como um conceito scio-antropolgico, no
exclusivamente histrico, proporciona o aparecimento de novos atores
sociais ampliando e renovando os modos de ver e viver a identidade
negra; ao mesmo tempo permite o dilogo com outras etnicidades e
lutas sociais, como a dos diversos povos indgenas no Brasil. Vem
evidenciar o aspecto militante e de no-acomodao, contrariando os
esteretipos correntes de conformismo, sujeio, embranquecimento,
malandragem e corrupo que fundamentam as falsas noes de democracia
racial vigentes no pas desde a Primeira Repblica (1889-1930).
Escolhido para falar da dominao que se tentou exercer atravs do
argumento da inferioridade da raa, dos estigmas e da excluso
social, o termo quilombo vem expressar alguma necessidade de parte
da sociedade brasileira de mudar o olhar sobre si prpria, de
reconhecer as diferenas que so produzidas como raciais ou tnicas.
Atravs da luta e de uma complexa dinmica iniciada no perodo
colonial, o quilombo chega at os dias atuais para falar de algo
ainda por se resolver, por se definir, que a prpria cidadania dos
afrodescendentes. Neste sentido, pode ser considerada uma luta
brasileira, iniciada ainda nos primeiros quilombos no perodo
colonial, nos ajuntamentos, mocambos, moquifos favelas, ganhando
forma atravs de conspiraes, fuxicos, boicotes, rebelies, revoltas
armadas e simples conversas entre supostos aliados, constituindo-se
atravs de inmeras formas de associao, no evidentemente sem
conflito, mas gestadas pelo desejo de mudana.
O ato de aquilombar-se, ou seja, de organizar-se contra qualquer
atitude ou sistema opressivo passa a ser, portanto, nos dias
atuais, a chama reacesa para, na condio contempornea, dar sentido,
estimular, fortalecer a luta contra a discriminao e seus efeitos.
Vem, agora, iluminar uma parte do passado, aquele que salta aos
olhos pela enftica referncia contida nas estatsticas onde os negros
so a maioria dos socialmente excludos. Quilombo vem a ser,
portanto, o mote principal para se discutir uma parte da cidadania
negada.
Apesar de sua fora simblica e da oportunidade lanada em 88 pelo
recurso constitucional, o projeto de cidadania dos negros
encontra-se hoje fortemente ameaado. Seja porque a grande
quantidade de casos levantados desde ento surpreendeu os rgos
designados para coordenar o processo, seja porque o processo em si
esbarra em interesses das elites econmicas envolvidas na expropriao
de terras, no desrespeito s leis e nas arbitrariedades e violncias
que acompanham as regularizaes fundirias. No incio dos anos 90
percebia-se j: o seu campo de ao, as conseqncias mesmas do artigo
proposto e aprovado pela Constituio no seriam suficientes nem
sequer estavam sendo avaliadas pelos setores conservadores que nele
votaram. Acreditavam tratar-se de alguns pequenos casos isolados,
bons para produzir a visibilidade aos atos de governo e para
colocar uma pedra definitiva em cima do assunto. Esta uma avaliao
pertinente, compartilhada por diferentes lideranas do movimento
negro. E como hiptese no inconsistente, se for considerado os
inmeros impasses criados para sua aplicao assim que se percebeu: 1-
a grande quantidade de reas a serem tituladas no Brasil sob esta
perspectiva, j que a populao afrodescendente numerosa; 2- o poder
de mobilizao e reorganizao das comunidades motivadas pelo prprio
artigo; 3- a evidncia da redefinio de uma nova identidade para os
descendentes de africanos no Brasil, atravs da possibilidade de sua
incluso, finalmente, na condio de brasileiros, de cidados, e da
viabilidade mesma de ocorrerem titulaes em grande parte das
demandas desde ento esboadas.
O texto constitucional expressa a necessidade do reconhecimento da
cidadania destes grupos tnicos, entendida como direito ao exerccio
da diversidade tnico-cultural (Paoli, 1993 apud Andrade &
Treccani, 1998) mas esbarra nas discordncias sobre o prprio
significado do que vem a ser este reconhecimento : se uma questo
mesmo de preservao de um patrimnio cultural ou se uma questo de
direito terra e diversidade tnica (Andrade & Treccani, 1998:
36)
Justificam-se, sob este prisma, as sadas que vo sendo vislumbradas
pelos setores conservadores: a morosidade dos processos, a discusso
interminvel sobre de quem a competncia na conduo do processo, a
falta de investimento nas pesquisas para o conhecimento
histrico-antropolgico do assunto, a falta de sensibilizao e
informao para os funcionrios das instituies governamentais
responsveis, como Incra, Ministrio Pblico, Ministrio da Justia,
Ministrio da Cultura, Fundao Palmares e outros. Passaram-se quase
doze anos e os processos j concludos com base no artigo 68 no
chegam a consumir os dedos das mos.
Alia-se a isto, sem dvida, todo um conjunto de aes, enfatizadas
pela mdia, com o intuito de transformar o chamado equivocadamente
de "remanescente" em mais uma pea do folclore nacional. Trata-se,
conforme Muniz Sodr, de um etnicismo que produz guetificao ou a
turistizao das diferenas, que segundo ele "exige das culturas uma
'autenticidade', uma espcie de 'alma popular', para melhor
consumi-las
D-se dessa forma a manuteno do princpio de identidade das
diferenas: o outro tem que ser positivamente avaliado. Incorre-se
assim numa forma mais sutil de discriminao, uma vez que o
discriminado se obriga a conviver com um clich (extico, atemporal e
desterritorializado) de si mesmo, terminando por achar-se estranho
sua imagem prpria, no que ela sempre marchetada pela Histria, logo
pela conjuntura scio-poltica.
So inmeros os desafios, e o prprio termo comunidade remanescente de
quilombo apresenta em si um conjunto de questes de ordem conceitual
ainda por serem melhor discutidas e detalhadas, para que possa ser
um instrumento de mediao s aes interpostas no judicirio. Um
refinamento conceitual depende do conhecimento mais detalhado das
vrias situaes existentes, e da colaborao de diferentes reas
cientficas. Esta tarefa, sabemos agora, mais de uma dcada depois da
promulgao da Constituio de 88, no foi suficientemente cumprida,
embora alguns passos tenham sido efetivamente dados em direo ao
estabelecimento de diferentes projetos de pesquisa e debates entre
os diferentes setores da sociedade.
At aqui, os processos j em cursos por regularizao fundiria com base
no artigo constitucional tm encontrado principalmente a seguinte
barreira: os juristas aguardam por de critrios universais para a
definio dos sujeitos do direito. Muitas vezes, preocupados em
encontrar uma definio genrica de quilombo que se aplica a todos os
casos, deixam de considerar que os processos de
apropriao/expropriao somente guardam uma pertinncia pela sua
especificidade histrica. Esperam dos cientistas sociais,
objetividade para que possam exigir a aplicao da lei. Esperam por
um nico conceito de quilombo universalmente aplicvel a todos os
casos, ou que os antroplogos invistam mais nos laudos periciais e
em torno de argumentos tericos consensuais, capazes de definir, de
modo preciso se uma comunidade ou no remanescente de quilombo. Esta
tem sido mais uma armadilha, ou forma de prolatar a lei evitando
(ou adiando) a arbitragem necessria em processos que envolvem tambm
reas que so ao mesmo tempo de interesse direto das elites
econmicas.
Por outro lado, os antroplogos pontuam situaes especficas e
defendem mais do que exclusivamente um direito universal, a
qualificao da experincia de constituio dos grupos, a arena poltica
propriamente, na qual os negros surgem como excludos sociais, a
alteridade em sua dupla face: a que se impe e a que escolhida pelo
grupo como expresso de sua organizao, de sua identidade
positiva.
Kabengele Munanga (1995) consegue sistematizar os atuais impasses
tericos e demonstrar muito bem como opera uma das lgicas
anti-racistas no Brasil: a individual-universalista, baseada nos
princpios universalistas dos Direitos Humanos e que tende a ver a
luta pelo direito diferena como particularismos" e obstculo
integrao dos grupos. E uma outra, denominada
tradicional-comunitarista que v a ideologia fundamentada no
universalismo como exterminadora das diferenas. Estas duas lgicas,
segundo ele, acabam por no se comunicarem, por no se misturarem,
configurando uma espcie de "dilogo entre dois surdos.
Os processos de regularizao fundiria j em curso apontam a
dificuldade em identificar os sujeitos do direito, uma vez que a
malha social sob a qual o direito se debrua revela tambm as inmeras
estratgias ou sadas produzidas pelos grupos, dentre elas a prpria
miscigenao, como uma forma encontrada pelos descendentes de
africanos para se introduzirem no sistema altamente hierarquizado e
preconceituoso. Ento essa nova condio colocada pelo artigo 68 serve
para revelar que estratgias individuais e grupais vm operando
concomitantemente no Brasil, de modo que integrao e segregao
interagem atravs de vrias formas de convivncia intra e entre
grupos.
Sem dvida, esta compreenso do processo vem faltando, inclusive,
para os prprios militantes negros, quando esperam muitas vezes ver
o quilombo atravs dos exemplos norte-americanos e sul-africanos, no
percebendo, a maioria, a prpria especificidade do modelo de
convivncia local ou regional onde coexistem inmeras formas de
associao e na qual emergem mulatos e brancos plenamente
identificados com a luta dos negros. A prpria noo de grupo contm
uma dimenso especfica em cada lugar, dependendo do que
compartilhado, daquilo que considerado como sendo comum a todos os
que dele participam. Alguns militantes ainda se apegam a uma viso
ora romntica, ora vitimada dos negros, chegando a v-los ou
projetados numa imagem negativa da excluso ou atravs de uma viso
folclorizada, construda de fora e reforada por eles prprios. Com
isto contribuem para aquela verso que foi muitas vezes idealizada
em alguns estudos de comunidade e em diversas etnografias, quando,
ao reconstituir processos polticos de reafirmao tnica, enaltecem a
solidariedade e a resistncia, menosprezando os nveis de conflito
presentes no interior do prprio grupo como um importante agente de
transformao e mudana.
Para alm de uma identidade negra colada ao sujeito ou por uma
cultura congelada no tempo, que deve ser tombada pelo patrimnio
histrico e exposta visitao pblica, a noo de coletividade o que
efetivamente conduz ao reconhecimento de um direito que foi
desconsiderado, de um esforo sem reconhecimento ou resultado, de um
lugar tomado pela fora e pela violncia. Coletividade no sentido de
um pleito que comum a todos, que expressa uma luta identificada e
definida num desdobrar cotidiano por uma existncia melhor, por
respeito e dignidade. a por onde a cidadania deixa de ser uma
palavra da moda e passa a produzir efeito no atual quadro de
desigualdades sociais no Brasil.
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