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O QUE NOS FOI PERMITIDO VER? A EXPERIÊNCIA FÍLMICA DO CLUBE DE
CINEMA DE ASSIS E O CINEMA BRASILEIRO EM TEMPOS DE CENSURA
Priscila Constantino Sales1
RESUMO
Este texto tem como objetivo elaborar uma análise acerca da experiência fílmica empreendida
pelo Clube de Cinema de Assis no que diz respeito ao cinema brasileiro, por meio dos rastros
encontrados nos arquivos preservados do próprio cineclube. Através dos textos preparados
para os debates e a programação, pretende-se compreender como se efetivou um dos pilares
do movimento cineclubista: fomentar público para o cinema brasileiro. Fundado em 1966 por
professores, funcionários e alunos da FCL/Assis desenvolveu suas atividades até 1983.
Inserido em um contexto conflituoso da história do Brasil decorrente do regime militar (1964-
1985), das crescentes manifestações populares, das mudanças ocorridas dentro do espaço
universitário, da renovação do campo artístico, do engajamento político e da resistência
cultural teve um papel de destaque aglutinando em seu entorno um público ávido a fazer valer
o direito à liberdade de expressão, estreitando de forma peculiar a cultura, o cinema e a
política. Com a finalidade de promover e estimular o gosto pela arte cinematográfica,
promovia projeções, debates, mostras, cursos, ciclos de cinema, entre outras atividades dentro
da faculdade e no cinema da cidade, sendo corriqueira a exibição de filmes ou ciclos de
cinema brasileiro. Alinhado ao movimento cineclubista – Federações, Conselhos e Jornadas –
participou tanto do projeto articulado em torno do desenvolvimento da cultura
cinematográfica como sofreu as retaliações que o momento histórico lhe impunha. Trata-se de
um esforço analítico que tem como finalidade contribuir para a compreensão da relação entre
experiência fílmica, o cineclube e as problemáticas referentes à exibição do cinema brasileiro,
que tanto envolve a censura como o seu precário mercado cinematográfico.
PALAVRAS-CHAVE: Cineclubismo. Cinema Brasileiro. Resistência Cultural. Censura.
Ditadura militar.
A história do cineclubismo brasileiro vem ganhando contornos dentro da pesquisa
histórica. Apesar da problemática da documentação dispersa e fragmentada, conforme
relatada em 2008 na XXVII Jornada Nacional de Cineclubes, no grupo de trabalho de
1Mestranda em História pela UNESP/Assis. E-mail: prissales7@gmail.com. A pesquisa conta com o apoio
financeiro processo 2013/27093-9, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). “As
opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do(s)
autor(es) e não necessariamente refletem a visão da FAPESP”.
2
Memória e Comunicação, há “restrita existência de uma memória documentada e
sistematizada do movimento cineclubista”2, o que prejudica um levantamento sistemático de
suas atividades cujo início data oficialmente no Brasil de 1928 (GATTI, 2000, p.128).
Contudo, o estudo desta memória traz contribuições importantíssimas para a compreensão de
fatores relacionada ao binômio cinema/sociedade, visto que em seu entorno foi criado um
amplo debate e inúmeras praticas culturais que cumpriram papel importante para o
desenvolvimento da cultura cinematográfica e do próprio cinema brasileiro.
Por cineclube, entendemos a entidade nascida nos começo do século XX, em meio à
luta em defesa do cinema enquanto arte contra a nascente indústria cinematográfica. Tendo
como principais atividades a divulgação, pesquisa e debate do cinema, em seu
desenvolvimento histórico, também abarcou de forma aberta as questões culturais e políticas
da sociedade em diferentes conjunturas. Através de variados perfis, assumem diferentes
práticas conforme as sociedades em que se instalam.
No Brasil, teve sua origem ligada à intelectualidade, passando pelas atividades da
Igreja católica e pelo debate político durante a ditadura militar. Na cidade de Assis, nasceu em
1965, da articulação entre professores, funcionários e alunos da FCL/Assis - na época ainda
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Assis (FAFIA)3 tendo suas atividades encerradas em
1983, e durante a sua existência manteve intenso diálogo entre a universidade e a comunidade
de Assis. Passou pelo debate cinematográfico, mas também se definiu como modelo
cineclubista que utiliza o cinema como veículo social.
Como podemos observar, o estudo do cineclube se pauta pelo estudo não apenas da
relação filme e história, mas também demanda uma análise das práticas em torno do cinema
como: circulação de idéias, sistemas visuais, lazer, mercado cinematográfico, censura,
produção, evolução técnica, linguagem cinematográfica, sociabilidade, a questão da
modernidade, circuitos de exibição, cineclubismo, etc. Tais questões pensam o filme para
2Documento disponível em: http://fernandospencer.com/wpcontent/uploads/2014/03/memoria_cineclube.pdf
3 Segundo Corrêa, os Institutos Isolados (Iiesesps) era o nome dado às escolas de ensino superior públicos
criados no Brasil a partir do início do século XX, que não estavam ligados a nenhuma universidade. Houve
posteriormente, a integração dos institutos Isolados em torno da Universidade Estadual Paulista "Júlio de
Mesquita Filho" – UNESP, em 1976. O Instituto Isolado de Assis integra a UNESP como Instituto de Letras,
História e Psicologia de Assis (ILHPA), posteriormente Faculdade de Ciências e Letras de Assis - FCL-Assis
(CORRÊA, 2006).
3
além da fonte, como parte de um campo visual e seus desdobramentos histórico, social e
cultural.
É dentro desta perspectiva que apontamos a importância dos Clubes de Cinema na
formação da cultura cinematográfica brasileira, pois para empreender suas atividades criaram
instituições, revistas, boletins, textos, práticas sociais ligadas à exibição e divulgação dos
filmes e rede de sociabilidade que permitiam as discussões e o desenvolvimento de projetos
culturais. Ou seja, um conjunto de práticas coletivas que permite entendermos o
desenvolvimento da percepção do cinema como manifestação cultural em oposição ao cinema
puramente comercial, “e passível de participação, influenciando as ações no meio político e
cultural em geral” (CORREA, JR. 2007, p. 52).
Dessa forma, este texto se escreve no estudo da memória do Clube de Cinema de
Assis4 por meio do acervo Fundo Clube de Cinema - FCL5, com referência entre 1965 e 1983,
constitui-se de catálogos, cartazes e sinopses de filmes, folhetins, recortes de jornais,
circulares, livros, revistas, textos para debate, estatuto, atas de reuniões, relatórios, recibos,
faturas, células de eleição, carta de repúdio à censura de exibição de filme. Como nos lembra
Leandro Karnal e Flavia Galli Tatsch “todo documento que chega ás mãos de uma analista é
um duplo milagre” (2013, p. 24), dessa forma, o encontro com este conjunto de documentos
nos permite vislumbrar a construção da história do Clube de Cinema de Assis mediante
diálogo entre o presente e o documento.
Para tanto, partimos da compreensão do cinema como parte viva da realidade social,
ou seja, como visualidade (MENESES, 2003). Trata-se de pensar o cinema dentro de um
campo de práticas que se relacionam em determinados contextos, elucidado como construção
simultânea na e pela sociedade. Tal abordagem nos permite compreender como foi possível a
formação, as atividades e as mudanças ocorridas em torno do cinema dentro do Clube de
Cinema de Assis, principalmente se levarmos em conta sua localização fora do centro de
produção e distribuição cinematográfica.
4Tratava-se de uma entidade da FCL de Assis. Era uma sociedade civil de caráter cultural – com sede e foro
jurídico na cidade de Assis – que se destinava a estimular o gosto pela arte cinematográfica entre seus associados
e o povo de Assis em geral (VOZ DA TERRA, 1966).
5 O acervo Fundo Clube de Cinema - FCL, constitui-se de onze caixas com atas e se encontram no Centro de
Documentação e Apoio a Pesquisa (CEDAP), localizado na UNESP de Assis, foi higienizado e teve sua
organização iniciada pelo projeto “Fragmentos da memória e rastro de uma identidade estudantil – UNESP
Assis/SP, 1958 - 2009”.
4
Dentro dos limites deste texto, buscaremos focar na experiência fílmica do Clube de
cinema de Assis em relação ao cinema brasileiro dentro do período de 1969 a 1974. Tendo em
vista que a defesa do cinema brasileiro foi e é uma das principais bandeiras do movimento
cineclubista buscaremos relacionar as principais conjunturas responsáveis pela
impedimento/efetivação deste programa: a censura e as ações do movimento para dinamizar a
distribuição e exibição dos filmes brasileiros. Tal periodização se justifica por se tratar tanto
do período de maior politização da censura quanto indicativo do desmantelamento das
entidades de cineclube no país.
O Clube de cinema de Assis e o movimento cineclubista
De acordo com André Gatti (GATTI, 2000, p.129), o pioneirismo do movimento no
Brasil se deu com o Cineclube Paredão, que em 1917 reunia um grupo de pessoas que
debatiam os filmes assistidos logo após as sessões dos cinemas Íris e Pátria do Rio de
Janeiro. Formalmente o surgimento do movimento cineclubistas brasileiro data de 13 de
junho de 1928, com a fundação do Chaplin Club no Rio de Janeiro. Ambas, de forma
particular, contribuíram para o nascimento do comprometimento com o cinema, em especial o
cinema brasileiro. É o início de um movimento que irá exercer papel importante para o
desenvolvimento da cultura cinematográfica brasileira.
As inovações tecnológicas e a renovação de signos de consumo operado pela indústria
cinematografia brasileira acabam por impor um cinema hegemonicamente importado.
Segundo Lisboa as atividades promovidas pelos cineclubistas na América Latina foram
responsáveis pela abertura de um intenso debate intelectual internacional sobre os impasses da
implantação de uma indústria cinematográfica com preocupações socioculturais, em países
com mercados onde a hegemonia da produção norte-americana já era preponderante
(LISBOA, 2007). Ou seja, discussão que destaca o cinema como produto cultural,
preocupados com a recepção no campo da cultura cinematográficos, e confiantes no projeto
de divulgação cinematográfica os cineclubes buscaram uma renovação no campo da recepção:
“Ao mesmo tempo em que propunha uma forma superior de recepção, o cineclube
reconhecia a condição coletiva do espetáculo cinematográfico ao tomar a forma
associativa como modelo de agrupamento. Considerando seus elevados ideais, os
cineclubes serão, invariavelmente, criados pelas elites intelectuais, desejosas de
constituir um espaço de recepção diferenciada”. (LUNARDELLI, 2000, p.28).
5
A década de 1950 e início de 1960 foram marcadas pela maturidade do movimento e
conseqüentemente a expansão dos cineclubes pelo país, momento em que surgem importantes
críticos de cinema e segundo André Gatti “a tendência de os cineclubes agregarem-se em
torno de entidades, como museus, escolas, faculdades” (2000, p. 129). É criado o Centro dos
Cineclubes paulistas e Federações de Cineclubes, ocorre a primeira Jornada de Cineclubes
Brasileiros (1959-1989), congresso que se tornará tradição sempre realizada em diferentes
regiões do país. Surge também neste período o Conselho Nacional de Cineclubes (CNC)6,
entidade representante do movimento cineclubista, que desenvolverá o importante papel ao
reunir em seu entorno os diversos modelos de entidade, como por exemplo, os cineclubes
universitários, de bairros, sindicatos, igreja.
Em um momento de expansão das práticas cineclubistas, é instaurado no Brasil o
regime militar (1964-1985) que paulatinamente irá desarticular as atividades cineclubistas,
movimento o qual busca se reorganizar a partir de 1972. Contudo, é com a VIII Jornada em
1974 que o movimento se reorganiza e é lançada a Carta Curitiba, que delineou as ações dos
cineclubes até a volta da democracia. Este documento tinha como principais proposta o
combate a censura e o engajamento dos cineclubes em prol do cinema brasileiro (GATTI,
2000, p.129), como podemos observar no item quatro da carta:
“Os participantes da VIII Jornada Nacional de Cineclubes, cientes da importância de
seu trabalho decisivamente criativo no âmbito da cinematografia e decididos a
contribuir para o processo de afirmação de cultura brasileira, exortam todos os
cineclubes a participar ativamente da defesa do cinema nacional, através da
aplicação das recomendações formuladas neste encontro e que passam a integrar esta
Carta de Princípios7.”
Neste momento os cineclubes voltam a se espalhar pelo país, contudo, segundo André
Gatti vão além das escolas e faculdades sendo criados também em sindicatos e associações,
iniciando um novo momento para o cineclubismo, o dos cineclubes politicamente engajados
(GATTI, 2000). Como bem observou a historiadora Rose Clair Matela (2008), este período é
marcado pela formação de novos sujeitos coletivos ligados aos problemas do cotidiano e pela
demarcação dos cineclubes como espaço público e alternativo, o que a autora nomeou de
6 Informações retiradas do site: http://cineclube.utopia.com.br/ acessado em 18/09/2014.
7 Informações retiradas do site: http://cineclube.utopia.com.br/ acessado em 19/09/2014.
6
experiências “instituintes”8. Apesar da problemática deste período - os cineclubes não estarem
focados especificamente na cultura cinematográfica como nos anos 50 - foi efetivado ações
importante para a circulação dos filmes brasileiros.
Os cineclubes vivenciavam constantes problemas para a locação de filmes, seja pela
falta de dinheiro para o aluguel, a falta de filmes na bitola 16 mm, ou ainda pela falta de
projetor em 35 mm por parte das entidades. Como bem coloca Flávio Rogério Rocha, esse
fato colocava muito dos cineclubes, principalmente os localizados fora do eixo Rio/São Paulo,
frente a algumas alternativas - buscar acordos com exibidores comerciais locais ou emprestar
filmes em 16 mm de embaixadas e consulados. Se a primeira opção acabava por deixar os
cineclubes dependentes da sala comercial, a segunda tinha boas chances de transformar os
cineclubes em instrumento de propaganda estrangeira (ROCHA, 2011).
Devido a esta problemática, a Carta Curitiba também conjeturou a criação de uma
distribuidora alternativa e centralizada pelo movimento, que forneceria filmes em 16 mm em
escala nacional. O curta-metragem também seria incorporado dentro das preocupações da
Dinafilmes, “pois sendo este um produto cultural quase sempre independente e fora dos
círculos oficiais, encontraria nos cineclubes um circuito para sua divulgação” (ROCHA, 2011,
p.86). A criação da distribuidora se efetivou em 1976 com a criação da Distribuidora Nacional
de Filmes – DINAFILMES - dentro do CNC. A Dinafilmes teve uma trajetória problemática
devido às constantes invasões e apreensões9 dos filmes pela Polícia Federal, como problemas
para sustentar financeiramente o chamado “mercado alternativo”. Contudo, com todos os
problemas e polêmicas a Dinafilmes de certa forma abasteceu os cineclubes durante a década
de 1970 como, por exemplo, as experiências com a distribuição dos filmes Passe Livre de
Oswaldo Caldeira e O Homem que Virou Suco, de João Batista de Andrade entre outras.
O Clube de Cinema, de Assis é fruto desse momento histórico, tem as primeiras
iniciativas em 1965, ou seja, um ano após o golpe de 1964, e é oficialmente fundado no dia 28
de outubro de 1966, momento em que a conjuntura histórica do Brasil irá paulatinamente
desmembrar o movimento cineclubista. Desenvolveu suas atividades até 1983, pouco antes no
novo desmanche do movimento decorrente da crise que dividiu os cineclubes entre os que se
mantinham com o formato 16 mm e os que optavam pelo caminho profissional do filme em
8 Rose Clair Matela entende por experiências instituintes, aquelas que se constituem em movimentos que surgem
em diferentes tempos e espaços engendrados por sujeitos históricos, envolvidos em ações coletivas, capazes de
trazer mudanças significativas/éticas no processo político, social e cultural que estão vivendo. (MATELA, 2008,
p. 20)
9 Assunto abordado na página 13 deste trabalho.
7
35 mm. A partir de 1984 os cineclubes atuam de forma isolada e como aponta André Gatti “a
“profissionalização” dos cineclubes fez com que essas entidades se descaracterizassem
completamente, perdendo os ideais básicos do cineclubismo” (GATTI, 2000, p. 130).
Pode-se observar que a trajetória do Clube de Cinema de Assis (1966 – 1983) insere-
se por completo dentro da história do regime militar brasileiro (1964-1985). Trata-se,
portanto, de um momento de crescentes manifestações populares contra o regime, das
mudanças ocorridas dentro do espaço universitário, da renovação do campo artístico, do
engajamento político e da resistência cultural (NAPOLITANO, 2011). Amparado pelo
contexto nacional e local, podemos vislumbrar o Clube de Cinema, com exceção dos seus
primeiros anos, como movimento engajado. Segundo Napolitano, a questão da arte engajada
no período dos anos 1960 tem influência direta para o campo cultural, o autor a coloca em
relação direta com a renovação da arte e a formação de um novo público. Trata-se de um
público que se formava a partir de um espaço compartilhado que viria a atingir objetivos
políticos em termos amplos do engajamento, trazendo transformações importantes para a
produção e apropriação cultural:
Podemos considerar que houve uma mudança estrutural na linguagem, que operou
não só a renovação do fazer musical e cinematográfico, mas também acabou por
constituir uma nova estrutura de recepção - um novo público – “jovem,
universitário, de esquerda” (NAPOLITANO, 2001, p. 104).
Segundo seu estatuto, o Clube de Cinema de Assis, tinha como finalidades “promover
e estimular o gosto pela arte cinematográfica entre os associados”. Para tanto, promovia
projeções cinematográficas, debates, mostras, cursos, ciclos de cinema, e manteve intenso
diálogo com as entidades de todo Brasil. Estas atividades muitas vezes eram realizadas em
parceria com a empresa Peduti10, que disponibilizava uma sala de cinema na cidade, o que
acaba por construir um diálogo entre o Clube de Cinema e a Universidade com a comunidade
assisense. Mostrando o papel desempenhado pela universidade nesse período, o da circulação
da cultura alternativa e progressista proporcionando, e tornando-se, espaços de vivência social
e cultural (CARMO, 2003, p. 136).
Nos arquivos do CEDAP, encontramos algumas destas atividades, como por exemplo: Curso
“O moderno cinema brasileiro” e “O cangaço e a realidade no Norte” com o crítico Jean Claude
Bernardet em 1967; conferência de Maurice Copovilla em 1975; palestra sobre o romance São
10Empresa Teatral Peduti (1927 – 1979), atuante no segmento cinematográfico na época áurea do cinema, com
salas de exibição em todo o interior de São Paulo, Paraná, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Na cidade de
Assis funcionava no atual Cinema FAC - pertencente à Fundação Assisense de Cultura (FAC).
8
Bernardo e o filme de Leon Hirszman em 1977, Plano de Interiorização do Cinema Cultural em
1978 11 , entre outras. Diante da dificuldade dos cineclubes, principalmente para as entidades
localizadas fora dos centros de distribuições 12 , o Clube de Cinema de Assis utilizava múltiplas
possibilidades para o aluguel dos filmes. Seu acervo aponta para constantes recorrências as
embaixadas e consulados, a distribuidoras comerciais, a Cinemateca, e em 1972 firma acordo
com o exibidor comercial Peduti.
Apesar do risco apontado acima - de dependência da sala comercial e instrumento de
propaganda estrangeira – uma análise atenta nas circulares trocadas pela agremiação e os
locatários de filmes, permite balizarmos que a recorrência a variadas formas de locar os filmes
e a posição muitas vezes firme dos dirigentes do Clube de Cinema de Assis possibilitaram, em
grande parte, programações autônomas. Não estamos aqui amenizando os problemas relativos
à programação enfrentados por esta entidade, mas em seu arquivo encontramos diversos
enfrentamentos com distribuidoras, com a empresa Peduti e consulados, seja por envio de
filmes errados, seja por negociação de programações, ou mesmo por divisão de bilheteria e
atraso do envio dos filmes.
É nesse período de lutas e resistência, que se inscrevem as práticas cineclubistas de
Assis, dentro da trajetória do Clube de Cinema de Assis podemos encontrar diversos
movimentos ao longo do tempo relativos a diversas temáticas. No que tange a exibição do
cinema brasileiro, podemos destacar que foi preocupação constante dentro de suas atividades
e debates, contudo, com discursos e ações variadas. Em um primeiro momento visualizamos
uma programação voltada para a discussão estética e social sobre os filmes brasileiros - por
exemplo, o convênio firmado com a Cinemateca em 1978 possibilitou que se dedicasse o
2°semestre ao Cinema Brasileiro com 31 aulas e palestras proferidas por Jean Claude
Bernardet e 30 filmes brasileiros entre longas e curtas-metragens13.
Já a partir da década de 1970, encontramos documentos que inscrevem o cinema
brasileiro em um discurso que destaca o papel dos cineclubes como agentes democratizadores
11 O Clube de Assis teve um papel importante de representante do Plano de Interiorização do Cinema Cultural
organizando os cursos realizados no decorrer do ano de 1978 na região do Vale do Paranapanema. Tal iniciativa
foi empreendida pela Federação Paulista de cineclubes com verba pleiteada junto a Secretaria de Cultura, tinha
intuito de fortalecer os cineclubes no interior e criar cineclubes nas cidades que não contavam com esta entidade. 12 Assis encontra-se a 400 km da capital São Paulo, com o índice populacional, no período da existência do
Clube de Cinema, em crescimento – 1960: 42.666; 1970: 57.220 e 1980: 67.357.
13 Informações encontradas no acervo Fundo Clube de Cinema – FCL nas Caixas 2 e 10.
9
da cultura e/ou como intervenção cultural. Destacamos uma circular 14 que convoca os
cineclubes a incluir no calendário da Federação Paulista o mês do cinema brasileiro
objetivando uma programação unificada e que declara luta aberta contra a dominação do
mercado pelo cinema estrangeiro:
“luta essa que se corporifica na questão da obrigatoriedade de exibição de um curta
metragem nacional junto a cada longa estrangeiro e na manutenção das conquistas já
alcançadas e sua ampliação, como os 133 dias15, entre outras. Os cineclubes se
constituem em agentes democratizadores da cultura pelo caráter de sua organização
e pela relação que mantém com seu público, distantes das injunções próprias ao
circuito comercial”
Tal declaração nos mostra um cineclube que olha para o cinema brasileiro de forma
engajada, exemplificada na palavra luta e na tentativa de organização ampla com discussões
em Assembléia para definição do filme, temas e textos, programação esta proposta para o mês
de setembro de 1978. Identificamos assim, dois momentos distintos do clube de cinema de
Assis para com o cinema nacional que dialogam em partes com o movimento cineclubista,
visto que foi a partir da retomada, após o recrudescimento da censura, que se costuma apontar
para o surgimento dos cineclubes politicamente engajados, que se uniram contra a censura e
em prol do cinema brasileiro.
Os mecanismos de censura no campo cinematográfico
Os estudos sobre a censura na Ditadura Militar brasileira ainda se encontram em
construção. Como aponta Carlos Fico (2002), as primeiras contribuições vieram, em sua
maioria dos estudos memorialísticos, dos textos produzidos pela imprensa, da falta de
documentação oficial e da problemática heurística da pesquisa histórica sobre a censura.
Longe de um “fetiche historicista pelo documento” a liberação de documentos inédita sobre a
Ditadura Militar tem trazido descobertas e revisão para estes estudos. Importante contribuição
tem sido “o esclarecimento das especificidades (e, muitas vezes, dos conflitos) dos diversos
“setores repressivos” do regime militar” (FICO, 2002, p. 2), que por vezes foram entendidos
numa relação homogênea.
14 Informações encontradas no acervo Fundo Clube de Cinema – FCL na Caixa 2. 15 Em 1978, a Concine edita a resolução número 23, que regulariza a exibição de 133 dias de filmes brasileiros
por ano nas salas de cinema (RAMOS & MIRANDA, 2000, p.223).
10
Segundo Leonor Souza Pinto, coordenadora do projeto Memória da Censura no
cinema Brasileiro 1964-198816, “a censura praticada no Brasil, de 1964 a 1988, não foi
apenas repressão localizada, mas mecanismo essencial para a estruturação e a sustentação do
regime militar” (PINTO, 2006, p.3). Neste momento a censura é reorganizada e centralizada
para atender o projeto políticos da Ditadura Militar.
Como bem nos mostra Miliandre Garcia em sua tese Ou vocês mudam ou acabam:
teatro e censura na Ditadura Militar (1964-1985), a existência de censura no Brasil não se
localiza apenas nos regimes de exceção, tendo uma longa trajetória que data do período
colonial “até chegar ao período republicano com a criação de órgãos especializados”
(GARCIA, 2008, p.12).
Para o assunto tratado neste trabalho, nos interessa mencionar a criação em 1945 do
órgão Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP) com atuação até 1988. Justificada
pelo seu papel de controle moral dos meios de comunicação, a partir do golpe militar este
órgão passará por uma re-significação acrescida da censura política e subordinando o órgão à
Polícia Federal. Em sua trajetória “respondeu aos imperativos políticos dos governantes e
transitou de uma ação mais rigorosa e centralizada desde 1967/68, passando por uma fase de
instabilidade no final da década de 1970 até transformar-se numa atividade burocrática e
inexpressiva no fim da ditadura” (GARCIA, 2008, p13).
No período de recrudescimento político no Brasil com o golpe de 1964 o campo
cinematográfico brasileiro vivia um momento de efervescência com o surgimento do Cinema
Novo e todas as discussões, produções e polêmica em seu entorno. O movimento cineclubista,
como já assinalado, também vivia um momento de expansão com 6 Federações regionais que
incorporavam cerca de 300 cineclubes filiados ao Conselho Nacional de Cineclubes17. As
ações empreendidas pela censura que passaram por momentos distintos irão, se não abortar
por completo os projetos, silenciar algumas ações, interferir nas produções, mudar os
caminhos no campo do cinema.
As ações da censura no cinema se mostraram contraditória. Na busca por uma
produção cinematográfica que representasse o projeto político do regime militar, a censura
acaba por proibir filmes para exibição interna ou com cortes, ao passo que os liberavam para
festivais e mostras internacionais. Tal contradição se justifica no esforço do regime em
16 O projeto disponibilizou gratuitamente documentos relativos a filmes brasileiros, processos de censura,
documentos do DEOPS-SP e material de imprensa. Disponível no site:
http://www.memoriacinebr.com.br/projeto.asp 17 Informações retiradas do site: http://cineclube.utopia.com.br/ acessado em 18/09/2014.
11
“montar” uma imagem democrática do país no exterior; para tanto, eram escolhidos filmes
com notória qualidade que recebiam o carimbo de Boa Qualidade (BQ) e de Livre para
Exportação, como o caso de Terra em transe, de Glauber Rocha (PINTO, 2006, p.4).
Os estudos de Leonor Souza Pinto (2006; 2005) nos apontam para uma periodização
da censura no cinema pós-golpe. A primeira fase que se concentra em 1964 e 1966 da
continuidade a censura moral, ainda localizada nos órgãos estatais, representando os setores
da sociedade que colaboraram para legitimar o golpe. Segundo a autora a novidade é a franca
utilização de cortes. Miliandre Garcia, cautelosa, concorda que neste período prevaleceu a
censura moral, contudo lembra que este fato “não desvincula a censura moral e dos bons
costumes de fenômeno localizado no campo da política nem tampouco despolitiza a censura
de diversões públicas” (GRACIA, 2008, p. 37). E acrescenta que esta conclusão não abranda
as ações censórias que interferiram tanto para as produções artísticas quanto ao
desenvolvimento da cultura brasileira.
Os problemas decorrentes da censura moral no cinema brasileiro podem ser melhor
compreendidos quando atentamos para o fato de que filmes como Vidas secas, de Nelson
Pereira dos Santos, Deus e o diabo na terra do sol de Glauber Rocha, Ganga Zumba, de
Carlos Diegues e Os Fuzis de Ruy Guerra, participaram de festivais e mostras internacionais;
ao passo que A falecida de Leon Hirszman recebeu parecer negativo para exportação como
demonstra o parecer censório no qual conclui que o filme: “não deve receber BQ e nem
mesmo ser liberado para exportação porque irá depor quanto à indústria cinematográfica
brasileira que já sofre das deficiências permanentes tanto técnica como artística [assinatura
ilegível]” (PINTO, 2006, p.6). Ou ainda o filme O Padre e a Moça, de Joaquim Pedro de
Andrade, vetado em 1966, que segundo Miliandre Garcia foi um caso, onde “a censura moral
correspondeu à reivindicação política de setores conservadores” (GRACIA, 2008, p. 45).
Estes dados colaboram para a indicação de que a censura moral não deixou de
interferir, muitas vezes prejudicar, seriamente a produção cultural e artística brasileira.
Dentro do projeto de centralização conflituoso das próprias estruturas administrativas
da censura, temos a segunda fase entre 1967 e 1968, a de militarização dos órgãos de censura
e “início de uma preocupação com o conteúdo político das obras, presente nos pareceres”
(PINTO, 2006, p.8). Nesse momento a esfera federal assume o domínio sobre as diversões
públicas, os cargos de chefia são transferidos para militares, o Serviço de Censura de
diversões Pública é subordinado a Polícia Federal e observamos a ascensão da censura
política. Como explica Carlos Fico sobre as disputas internas do regime e nas estruturas
12
censórias: “quando a linha dura definitivamente assumiu o poder, com o AI-5, a censura
moral das diversões públicas também passou a se preocupar, de maneira mais enfática, com a
política” (FICO, 2004, p. 45). Data desse período o recolhimento das cópias e proibição do
filme Terra em Transe de Glauber Rocha, a interdição do filme Jardim de Guerra, de Neville
D’Almeida, entre outros. O parecer de filme Jardim de Guerra subscreve: “É um filme, como
já disse, que explora, do princípio ao fim, temas políticos, procurando conscientizar o público
para problemas ideológicos que não são aqueles que enquadram dentro do atual sistema de
governo”18.
Neste período também é baixada a lei nº 5.536, de 21 de novembro de 1968 que
dispões sobre a censura de obras teatrais e cinematográficas e cria o conselho Superior de
Censura. Esta lei abarcará os cineclubes e cinematecas definindo sua organização:
“Parágrafo único. As cinematecas e cineclubes referidos neste artigo deverão
constituir-se sob a forma de sociedade civil, nos têrmos da legislação em vigor, e
aplicar seus recursos, exclusivamente, na manutenção e desenvolvimento de seus
objetivos sendo-lhes vedada a distribuição de lucros, bonificações ou quaisquer
vantagens pecuniárias a dirigentes, mantenedores ou associados”19.
E, quanto à exibição de filme, liberando os filmes em versão integral para atividades
culturais:
Art. 5º A obra cinematográfica poderá ser exibida em versão integral, apenas com
censura classificatória de idade, nas cinematecas e nos cineclubes, de finalidades
culturais.
Art. 6º A sala de exibição que haja sido registrada no Instituto Nacional do Cinema
para explorar, exclusivamente, filmes de reconhecido valor artístico, educativo ou
cultural, poderá exibi-los, em versão integral com censura apenas classificatória de
idade, observada a proporcionalidade de filmes nacionais, de acôrdo com as normas
legais em vigor.
Art. 7º Para a exibição de que tratam os artigos 5º e 6º será concedido Certificado
Especial à obra cinematográfica20.
Com a implantação do Ato Institucional nº. 5 (AI-5) em 13 de dezembro de 1968, a
censura prévia entra na ordem do dia. De 1969 a 1974, dá-se a terceira fase classificada por
18 Informações retiradas do site http://www.memoriacinebr.com.br/filme.asp: acessado em 15/09/2014.
19 Informação encontrada no acervo Funda Clube de Cinema – FCL nas Caixas 6, e confirmada no site
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L5536.htm: acessado em 15/09/2014. 20 Idem op. Cit.
13
Leonor Souza Pinto de Censura político-ideológica, momento em que assume abertamente
seu caráter de sustentação do regime e caracterizado pelo enfrentamento e pela repressão
direta. Para tanto, os censores se profissionalizam21, entram em cena campanhas ufanistas por
parte dos militares. “No cinema, a resistência inaugura a fase da metáfora e da alegoria”
(PINTO, 2006, p. 6).
Para driblar os censores os cineastas lançam mão de algumas estratégias que, em
última instância, também significa uma interferência direta na linguagem e roteiros do campo
do cinema. Trata-se da tática de trabalhar com linguagem figurativa, releituras de personagens
históricos e montar cenas que atraiam o olhar do censor por meio de excessos de palavrões ou
cenas de nudez. Eram essas cenas oferecidas aos censores nas negociações em Brasília. No
teatro também podemos observar tais estratégias que se valiam de “episódios/personagens
históricos e de obras/autores clássicos para discutir a situação atual e a realidade brasileira ou
utilizar-se de linguagem figurativa, títulos dissuasivos ou palavrões em excesso para desviar a
análise da censura” (GRACIA, 2008, p. 306). Ainda que no teatro tanto o texto quanto a
montagem sofriam com censura, no cinema a censura era feita diretamente nas cópias, o que
garantiu a preservação dos roteiros e negativos (PINTO, 2006, p. 13).
Sobre a complexa relação entre alegoria e política, vale lembrar, o recurso às alegorias
não advém apenas da questão política, mas também apresenta motivações estéticas; nas
palavras de Ismail Xavier, as alegorias:
“não podem ser reduzido a um programa imediato de denúncia programada e velada
do regime autoritário, pois compreende uma gama de motivações e estratégias de
linguagem, bem como efeitos de sentido conforme a postura estética do cineasta, sua
forma de organizar o espaço e tempo, e sua relação específica com o espectador”
(XAVIER, 2003, p 31)
Para o movimento cineclubista, este período se caracteriza com o ápice das ações
autoritárias que paulatinamente vinham criando entraves para suas atividades; concretiza-se o
desmanche de sua organização e o fechamento das entidades. Os documentos mostram que as
notas de repúdio, denúncias de prisão de filmes e invasões na Dinafilmes tornam-se
corriqueiros. A apreensão de filmes é costumeira inclusive quando amparados pela lei nº
5.536, anteriormente citada. Elucidativa é a circular Nota Oficial expedida pelo Conselho
21 Como, por exemplo, o curso ocorrido em 1972, o primeiro curso que se tem data : Curso de Mensagens
Justapostas nos Filmes (de teor subversivo), ministrado por Waldemar de Souza, diretor da Editora Abril.
(PINTO, 2006, p. 11).
14
Nacional de Cineclubes que denuncia a apreensão em 1978 de 76 filmes pela Policia Federal,
segue trecho com alguns títulos:
“Entre as obras objeto da repressão da Censura, encontram-se vários clássicos da
cinematografia mundial, como "A Paixão de Joana D’Arc” (considerado como uma
das dez maiores obras- primas da História do Cinema), a comédia "A General" de
Buster Keaton, "O Homem Môsca" de Marold Lloyd, um curta-metragem de "O
Gordo e o Magro" "Ouro e Maldição" de Stroheins "Outubro" de Eisenstein e
diversos curtas de Mclaren. Não se perdoou, sequer, os autores Mèliès, Boireau e
Emile Cohn, todos da primeira década deste século e pioneiros da História do
Cinema. Foram atingidos até filmes didáticos e instrutivos como "Conserve seus
Dentes", "Os Olhos de suas crianças", "Férias na França" e documentários sobre
Molière, Gaugin, Rubens. Também documentários realizados pelo exército inglês,
na segunda Guerra Mundial, como :"A Vitória da Birmânia" e "A Vitória no
Deserto" não conseguiram escapar do sequestro da Censura brasileira”22.
A documentação também nos dá pista sobre algumas ações efetivadas e planejadas
pelo movimento cineclubista relativo ao mesmo episódio acima citado, como também
demonstra o engajamento político na luta contra a censura. Em circular de 20 de março de
1978 remetida pelo Conselho Nacional de Cineclubes, se posiciona:
“O CNC abriu nova fase na sua luta pela recuperação dos 76 filmes apreendidos
pelo Departamento de Censura da Polícia federal, e pertencentes ao acervo da
Dinafilme. Esgotadas todas as possibilidades legais e normais de encaminhamento
da questão, a diretoria do CNC enviou nota de denúncia da apreensão dos filmes a
todas as Federações. Temos conhecimento de sua divulgação em “O Estado de São
Paulo", "folha de São Paulo", “O Globo" e "Jornal do Brasil”, "TV Cultura" e “TV
Tupi”. No entanto, a repercussão à denúncia foi apenas relativa, aquém da esperada.
O Sr. Rogério Nunes, chefe da censura, quando inquirido pessoalmente pelo "O
Estado de São Paulo", alegou desconhecer o caso. Esta afirmação motivou uma
segunda nota do Conselho, onde manifestávamos nossa estranheza pelo fato do Sr.
Nunes estar desinformado em relação a atitudes tomadas pelo próprio órgão que
chefia. Neste momento, o CNC (...) prepara um mandado de segurança contra o ato
da censura. Igualmente, estão sendo articuladas denúncias no Congresso Nacional e
no exterior. O Conselho ainda recomenda a todos os cineclubes a divulgação da nota
(em anexo) junto a seu público, como uma forma de dinamização da luta pela
recuperação dos filmes, e também como uma forma de luta contra a própria censura.
A apreensão dos filmes não atinge "simplesmente” a Dinafilme, mas todo o
movimento cineclubista (...) que não deve, neste momento abdicar de seus
princípios, mas sim confirmar a sua condição de agente democratizador da cultura
brasileira.”23
Por fim, temos a quarta fase de distensão, de 1975 a 1988, que segundo Leonor Souza
Pinto não encerra as ações da censura, mas opera uma mudança de foco para proibições de
filmes exibidos na televisão, visto que nesse momento o grande público começa a esvaziar as
salas de cinema e se concentrar em torno da televisão. Dessa forma, os filmes são liberados
22 Informações encontradas no acervo Fundo Clube de Cinema – FCL nas Caixas 2.
23 Informações encontradas no acervo Fundo Clube de Cinema – FCL nas Caixas 2.
15
para as salas de cinema com cortes mais moderados. Segundo a autora, o cinema também irá
gradativamente abandonar a metáfora, e num movimento de resistência passará a recorrer
mais intensamente ao Conselho Superior de Censura e com o fim a censura previa em 1978 a
imprensa, esta passa a apoiar as campanhas para liberação dos filmes (PINTO, 2006).
Contudo, esse abrandamento é irregular, como podemos ver na gestão de Solange
Maria Teixeira Hernandes na direção da DCDP entre 1981 e 1984; nesta, será restaurado o
“controle político das diversões públicas, dos meios de comunicação e das expressões
artísticas” (GRACIA, 2008, p. 306). Em desacordo, portanto, com a referida abertura política.
Torna-se importante também enunciar as constantes apreensões de filmes do circuito de
exibição cineclubista como também a emblemática apreensão do filme Pra frente Brasil de
Roberto Farias, de 1982 que liberado para exibição no Festival de Gramados foi apreendido
no próprio evento por meio de um mandado de busca e apreensão, apesar de liberado
posteriormente sem cortes.
O que nos foi permitido ver?
Com o levantamento das informações acima apresentadas, voltamos agora para a
experiência fílmica do clube de Cinema de Assis em relação ao cinema brasileiro. Tendo
atuado, segundo as documentações consultadas, de 1965 a 1983, esta agremiação apresenta
seu próprio movimento dentro da história do movimento cineclubista. Pode-se observar um
momento de iniciação das atividades com a nomeação de uma comissão para a escrita do
“anteprojeto estatutário”. A oficialização acontece em 28 de outubro de 1966, seguindo-se
constante exibição de filmes, cursos e palestras. Dá-se a primeira participação na VI Jornada
de cineclubes, os primeiros contatos com outros cineclubes – o Cineclube de Marília tem
presença marcante nas trocas de circulares - e as filiações. Este período que se estende até
1968 apresenta relação estreita com a Cinemateca brasileira, uma programação marcada por
títulos brasileiros e preocupações estéticas.
Nos anos de 1969 e 1970 os documentos são quase inexistentes e não apresentam
pistas sobre a realização de atividades. Posteriormente é iniciada a reorganização dos quadros
associativos e a volta das ações de forma mais engajada contra a censura e as políticas que
afetavam as Universidades, pelo convênio com a sala comercial Peduti, elaboração de
projetos conjunto com instituições do movimento e a conquista por alguns anos consecutivos
16
de subvenções sociais24 do Ministério da Educação e Cultura (MEC). A partir de 1982 vemos
as atividades se extinguir, finalizando em 1983.
Em toda a existência do Clube de cinema de Assis, o cinema brasileiro recebeu
atenção especial e calorosas discussões. Contudo, a exibição cinematográfica nunca foi uma
atividade fácil. Se no contexto nacional o cinema brasileiro sofria com as regras do mercado
cinematográfico e com a censura, no contexto local a distância dos grandes centros trazia
inúmeros problemas. O movimento cineclubista apresentava constante inquietação com os
cineclubes do interior; a organização do Plano de Interiorização do Cinema Cultural é a
concretização de uma série de esforços para fomentar as entidades interioranas, e em seu
projeto esclarece que a intenção é “fortalecer as entidades já existentes e criar cineclubes nas
cidades em que eles não existem”.25
Elegemos aqui o período de 1969 a 1974 para observar detalhadamente quais filmes
brasileiros puderam ser vistos no Clube de Cinema de Assis: tal recorte se deve ao fato de ser
um momento de recrudescimento da censura e desmantelamento dos cineclubes. Neste caso, a
ausência também se torna importante, visto que nos anos de 1969 e 1970 os documentos se
“silenciam”, ou seja, não há qualquer menção sobre atividades realizadas. Contudo, não
podemos afirmar a inexistência de ações apenas pelos documentos, pois sabemos das
intempéries e lacunas que a sobrevivência de um acervo trás. Ainda que não possamos
precisar ao certo, acreditamos que o avivamento da censura neste período influenciou a falta
de atividades, ou mesmo de registros, do Clube de Cinema.
A partir de 1971 o Clube de Cinema de Assis tem uma tímida volta de suas atividades,
com algumas iniciativas importantes quanto ao cinema brasileiro. Com o total de vinte e cinco
exibições, dentre elas as curtas metragem brasileiro Folia do divino e Bahia de pedra e de
ouro, a organização do Ciclo de estudos do cinema Brasileiro com palestras de Jean Claude
Bernadet, e ainda a discussão do texto “Caminho e Descaminho do cinema brasileiro” de Alex
Vianny. Com o convênio da empresa Peduti, pode-se notar um aumento das exibições, visto
que a locação muitas vezes é intercambiada pela empresa, levando assim à apresentações
tanto na faculdade quanto no cinema localizado no centro da cidade de Assis. Temos como
destaques do cinema Brasileiro o filme O profeta da fome de Maurice Capovilla, Macunaíma
24 Encontramos no acervo Fundo Clube de Cinema – FCL referências do recebimento da subvenção social nos
anos de 1976 a 1980.
25 Informações encontradas no acervo Fundo Clube de Cinema – FCL nas Caixas 2.
17
de Joaquim Pedro de Andrade, em comemoração ao aniversário de 50 anos da Semana de arte
Moderna, e Ganga Bruta de Humberto Mauro.
O ano de 1973 conta com o ciclo Candeias, com exibições e estudos da produção do
cineasta Ozualdo Candeias. O ano subseqüente coincide com a reorganização do movimento e
a futura criação da Dinafilmes, contudo esse esforço coletivo em prol do cinema brasileiro só
se fará perceber no Clube de Cinema de Assis nos próximos anos. Sendo assim, o ano de
1974 fecha com a apresentação de apenas um filme brasileiro, A rainha diaba de Antonio
Carlos Fontoura, produção do mesmo ano. Apesar de o número ser desanimador, vale
ressaltar o esforço do cineclube para conseguir a cópia; em circular à empresa Peduti,
argumenta:
“A propósito da exibição de filmes nacionais, cujo elenco não podemos nos furtar a
exibir pelo menos uns dois. Mas sabemos perfeitamente das dificuldades
decorrentes, motivo pelo qual, estudamos uma fórmula para superá-las. (...)
soubemos em São Paulo que a empresa adquiriu o filme “A rainha diaba”, produção
nacional que temos interesse em apresentar, independente da programação já
estabelecida. (...) caso êle seja incluída na programação normal da emprêsa, abrimos
mão da nossa participação financeira, mas garantimos assim mesmo ampla cobertura
e maciço comparecimento”26
Em outra circular se posicionando enquanto interventor cultural mediando a relação
entre cinema e público:
“Salientamos que é importante para nós a fidelidade de uma certa linha de filmes,
fundamental para a consolidação de vez da volta da juventude universitária aos
cinemas, o que vem sendo confirmado com a crescente presença às nossas sessões
no cine Peduti”.27
Estes trechos destacados apontam para a volta do público ao cinema e para um
posicionamento firme do clube de cinema de Assis nas negociações com as distribuidoras e
empresas de exibição; mostra também a militância em prol do cinema brasileiro, que diante
das dificuldades não se rendeu, mas buscou saídas para os impasses do momento. Se os
números apresentado nos arquivos assustam – cerca de sessenta exibições espalhadas em três
anos – o engajamento político se mostra não apenas político, mas também preocupado com a
estética do cinema brasileiro.
26 Informações encontradas no acervo Fundo Clube de Cinema – FCL nas Caixas 10.
27 Idem op. Cit.
18
Por fim, não podemos deixar de mencionar que a presença do cinema brasileiro terá
um aumento significativo nos anos seguintes, o que indica que os esforços coletivos a nível
nacional deram resultados, ainda que não o esperado.
Conclusão
Buscamos neste artigo balizar as exibições de filmes brasileiros dentro do clube de
cinema de Assis no momento de recrudescimento da censura no Brasil. Se ações autoritárias
trouxeram dificuldades para a entidade neste momento, o fato de estar localizada fora do eixo
de distribuição cinematográfica sempre prejudicou os cineclubes interioranos. Considerando o
papel importante desempenhado por estas agremiações em locais onde as produções do
cinema pouco tocam o cotidiano dos cidadãos, e ainda, o singular papel que o movimento
cineclubista brasileiro teve na formação da cultura cinematográfica nacional, tentamos avaliar
o real impacto da censura nas exibições de filmes brasileiros.
Para tanto, tivemos como personagem principal o Clube de Cinema de Assis no
período de 1969 a 1974. Escolhemos olhar as fontes por meio do mapeamento das relações e
as práticas sociais no contexto do movimento cineclubista e da censura empreendida na
ditadura Militar. Ao tratar o cinema como visualidade, buscamos inverter a pergunta “o que
foi?” para “como foi possível?” a experiência fílmica do Clube de Cinema de Assis com um
de seus pilares: o cinema brasileiro.
Devido ao limite do texto e ao fato da pesquisa estar em andamento, admitimos que as
conclusões aqui levantadas sejam preliminares28. Contudo, o arquivo nos deu pistas para
algumas assertivas. Podemos constatar o desmanche dos cineclubes empreendido pela
censura, que apesar de sua forma acidentada, foi organizada e centralizada procurando moldar
o cinema dentro do projeto ideológico do poder então vigente. Se tais ações mudaram o rumo
do cinema e do cineclubismo, não paralisaram suas atividades, como visto pelo viés do Clube
de Cinema.
Referencias Bibliográficas
Arquivo
Acervo Fundo Clube de Cinema – FCL/CEDAP, Assis, SP.
Bibliografia
28 A pesquisadora ainda desenvolverá entrevistas com alguns dos principais participantes e dirigentes do Clube
de Cinema de Assis.
19
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