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Narrativas de dissolução. Problemas contemporâneos para o conceito de cinematografia
nacional
Pesquisador responsável (supervisor): Eduardo Victorio Morettin
Candidata: Lúcia Ramos Monteiro
Instituição Sede: Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo (ECA-USP)
Resumo:
Este projeto propõe pensar a questão do “nacional” dentro do cinema contemporâneo. Em um
momento de crise nos conceitos de “nação” e “nacionalismo”, essas noções continuam sendo
usadas no cinema, tanto pela historiografia e pelos estudos cinematográficos quanto por
festivais e retrospectivas. Em contraponto às chamadas “narrativas fundacionais” (SOMMER,
2004), que entrelaçavam felicidade doméstica e ideal nacional, nos filmes a serem estudados
as esferas “individual” e “nacional” continuam ligadas, mas em chave negativa. Por essa
razão, propomos o conceito de “narrativas de dissolução nacional”, cuja validade deve ser
comprovada (ou recusada) com base nas análises fílmicas, no exame aprofundado da
bibliografia e na reflexão teórica. O corpus preliminar é formado por produções oriundas de
países “não-centrais” no cânone cinematográfico – Brasil, China, Equador, Filipinas, Taiwan
–, cuja visibilidade se situa sobretudo no âmbito de festivais internacionais e da crítica
especializada. Os filmes escolhidos interrogam questões nacionais com base em códigos
estabelecidos pelas “narrativas fundacionais”, subvertendo-os. Entre as hipóteses
preliminares, está a relação entre esse interesse pela crise da ideia de nação, crise de
identidade nacional, e uma suposta crise do cinema, numa época em que os suportes digitais
de gravação e exibição se tornam predominantes e em que o cinema enquanto instituição e
lugar físico deixa de ter prevalência nas formas de fruição da imagem em movimento
(GAUDREAULT e MARION, 2013).
Palavras-chave: Cinemas nacionais; narrativas fundacionais; cinema contemporâneo; Jia
Zhang-ke; Lav Diaz; Miguel Gomes.
Dissolution narratives. Contemporary problems to the concept of national
cinematography
Supervisor: Eduardo Victorio Morettin
Candidate: Lúcia Ramos Monteiro
Institution: Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo (ECA-USP)
Abstract:
This project aims to think about the question of “national” in contemporary cinema. At a time
of crisis in the concepts of “nation” and “nationalism”, those notions continue to be used in
the cinematographic context, both by historiography and film studies, and by festivals and
retrospectives. In opposition to the so-called “foundational narratives” (SOMMER, 2004), in
which domestic happiness and national ideals are intertwined, in the films we will study the
“individual” and the “national” spheres continue to be linked, but in a negative way. Because
of that, we propose the concept of “national dissolution narratives”, and its validity needs to
be attested (or refused), based on the film analyses to be developed, the profound study of the
bibliography and the theoretical reflexion. Films that are not “central” in regards of
cinematographic canons – they come from Brazil, China, Equator, the Philippines and Taiwan
– and whose visibility concentrates on international festivals and specialized critics constitute
the preliminary corpus. The films chosen face national questions based on some “foundational
narratives” codes, in order to subvert them. Among our preliminary hypotheses, there is the
relation between an interest on the crisis of an idea of nation, an identity crisis, and what can
be considered a crisis of the cinema itself, in a moment when digital supports of capture and
exhibition become predominant and when cinema as an institution and as a physical space
does not prevail anymore among the possibilities of appreciation of the moving image
(GAUDREAULT and MARION, 2013).
1. Enunciado do problema
Uma sinopse de Viajo porque preciso, volto porque te amo (Karim Aïnouz e Marcelo Gomes,
2009) deve necessariamente evocar o tema da história de amor entre um homem e uma
mulher. Ele pensa nela a cada momento de sua viagem de trabalho, que o mantém longe de
casa por um longo período. Dirige solitário por uma região árida e pouco povoada enquanto
faz, em off, declarações para a amada, a quem não poderá rever antes do final do trajeto. Com
base nesse resumo, seria possível propor uma hipótese de parentesco formal do filme
brasileiro com as narrativas cinematográficas de fundação nacional1. As chamadas ficções
fundacionais, em seu registro mais característico, primeiramente literário2, costumam terminar
com a reunião do par romântico (herói e heroína se casam ou têm filhos, como se
encarnassem o casal na origem da nova nação3). Em Viajo porque preciso..., embora
elementos característicos desse tipo de narrativa estejam presentes, a história de amor pouco a
pouco se revela o avesso disso tudo: trata-se de uma separação. Se no western a travessia de
regiões desérticas aponta para o futuro de oportunidades que os terrenos despovoados do
oeste norte-americano representam, as terras inabitadas do filme de Aïnouz e Gomes – o
sertão nordestino – não oferecem futuro algum para o protagonista: a paisagem deverá
desaparecer, as obras de transposição do Rio São Francisco preveem sua inundação. O
personagem é na realidade um geógrafo, contratado para fazer o inventário do território que
deixará de existir.
1 Diversos westerns norte-americanos apresentam características das narrativas fundacionais, por encarnarem um dos mitos dos Estados Unidos. Uma delas é a presença da travessia dos territórios “virgens” – entre aspas, pois se sabe que não se tratava de desertos populacionais absolutos, mas de territórios desconhecidos pela população branca, não povoados pelos brancos. No western, essa travessia masculina e não raro solitária é fundadora do ideário dos Estados Unidos enquanto “terra de oportunidades” e, ao mesmo tempo, perfaz o caminho de peripécias enfrentado pelo herói antes de encontrar a felicidade e o amor, uma terra fértil onde poderá fundar sua família, que funciona simbolicamente como a “família originária” da nação. O filme de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, ao levar às telas a travessia de um território desértico por um homem solitário, retomaria esses elementos do western e da narrativa fundacional, fazendo o herói enfrentar um périplo árduo e solitário em que só reencontrará a amada e poderá fundar sua família no final. Mas, como veremos, o filme frustra essas expectativas e se distancia do modelo clássico. 2 Autora de um estudo seminal sobre a relação, na literatura, entre o romance e os novos estados, sobretudo no contexto latino-americano, Sommer (2004) analisa como a continuidade entre as esferas pública e privada se dá em um largo conjunto de livros, interessada nas conexões entre romance e república a partir do século XIX. Nesse desenvolvimento concomitante da literatura romântica e da história patriótica na América Latina, os autores estimulavam ao mesmo tempo o desejo de felicidade doméstica e os sonhos de prosperidade nacional, construindo histórias que ajudassem a estabelecer a legitimidade das nações emergentes e direcionando as histórias nacionais para um futuro idealizado. Como se sabe, as ficções literárias de fundação nacional não surgem no século XIX, dialogando sempre com modelos ligados à história do gênero épico e do melodrama. 3 Em Death 24x a Second, Laura Mulvey relaciona esse tipo de desfecho à necessidade de o motor narrativo retornar à stasis inicial para que o filme possa se terminar (2006).
Como nas ficções fundacionais, Viajo porque preciso... estabelece um vínculo entre o destino
individual de um personagem e a história de um território determinado. Porém, enquanto as
obras do gênero estudado por Doris Sommer (2004) se afirmam no paralelo entre a promessa
de felicidade doméstica e o desenho de um futuro de sucesso para a nação, no filme brasileiro
esse paralelo é declinado na chave do fracasso. Assim, à crise do casamento corresponde a
extinção da paisagem (lembremos que, se o território a ser inundado é visível no filme, o par
romântico jamais aparece em imagens). Esse espelhamento entre história nacional e destino
privado foi forjado, na chave positiva, por uma série de escritores e realizadores, sobretudo
oriundos de “jovens nações”, que, na afirmação de sua identidade nacional, contaram com a
contribuição de autores engajados na afirmação de um projeto nacional idealizado4.
O uso de destinos individuais como estratégia de afirmação de mitos nacionais fica evidente,
por exemplo, em Young Mr. Lincoln (1939), de John Ford, filme admirado por Eisenstein e
amplamente discutido pela revista Cahiers du cinéma. Em um artigo a seu respeito, Morettin
(2011a) repertoria o uso da figura de Lincoln em uma série de produções cinematográficas e
teatrais norte-americanas para analisar como se dá, no filme de Ford, a utilização de sua
figura para afirmar a relação entre a identidade dos Estados Unidos e a democracia.
(...) a tarefa a que se propõe Young Mr. Lincoln não é propriamente a de
desmistificar o personagem principal. Pelo contrário, todo o esforço é no
sentido de transformá-lo em monumento. (...) Alegoricamente, o filme de
John Ford reforça a ideia de democracia a partir da figura de um líder que
atu[a] como mediador entre as diferentes forças sociais (MORETTIN,
2011a: 20-21).
No cinema das Américas e de países de passado colonial, as narrativas fundacionais estão
presentes em um vasto conjunto de filmes5. De modo geral, pode-se dizer que, nesse tipo de
4 Eric Hobsbawn (1990) e Benedict Anderson (2008) demonstram o quanto o conceito de “nação” é uma construção – os autores discutem os termos de “ficção” e de “imaginação” nacional, nem sempre compartilhando o mesmo posicionamento, mas de todo modo esclarecendo o quão pouco há de “objetivo” ou de “natural” no entendimento que cada nação pode fazer de si e das demais. 5 É impossível limitar a um período histórico determinado a presença das narrativas cinematográficas fundacionais. Essa produção surge em paralelo com determinados momentos nacionais – enquanto em países da América Latina as narrativas fundacionais cinematográficas aparecem desde a primeira metade do século XX, em países africanos cujas independências se deram tardiamente, há um boom de narrativas cinematográficas fundacionais – evidentemente reconfiguradas – a partir dos anos 1970. Anderson (2005) faz um levantamento das origens do discurso nacional no caso filipino a partir de um romance de José Rizal e de correspondências internacionais ligadas ao movimento independentista, estabelecendo conexões com o ideário anticolonial e nacionalista em países da América Latina e com o anarquismo na Europa. No continente africano, um caso
narrativa cinematográfica, costumam estar mescladas a história de um herói que tenta
encontrar sua heroína, para isso tendo que vencer uma série de contratempos, e a travessia de
uma porção importante do território nacional, reedição inesgotável da trajetória de Ulisses. No
Brasil, além da literatura romântica analisada por Sommer, de que José de Alencar é autor
emblemático, cineastas ativos nas primeiras décadas do século XX como Humberto Mauro e
Silvino Santos podem ser identificados a esse conjunto (MORETTIN, 2011b).
O cinema neorrealista, cujo papel de inaugurador de um certo modernismo cinematográfico
foi amplamente discutido, marcadamente a partir de Deleuze (1983, 1985), é fundamental ao
enlaçar os destinos dos personagens aos da nação na chave da crise, o que evidentemente se
relaciona ao peso da Segunda Guerra Mundial no contexto europeu. Não por acaso, os filmes
estudados no âmbito desta pesquisa mantêm uma conexão mais ou menos explícita com o
neorrealismo, conexão esta que será explorada e analisada ao longo do estudo, num
prolongamento de uma pesquisa iniciada em minha tese de doutorado, intitulada A iminência
da catástrofe no cinema 6 , e desenvolvida no artigo “Remaking a post-war décor in
contemporary China. Jia Zhang-ke and the neorealism” (RAMOS MONTEIRO, 2015), que
defende o paralelismo entre o cineasta chinês e alguns cineastas italianos. Por outro lado, a
presença da consciência da crise nas alegorias nacionais forjadas por cineastas do Cinema
Novo brasileiro tem sido amplamente discutida, a partir de Alegorias do subdesenvolvimento
(XAVIER, 2012), em diálogo com a questão da alegoria nacional no cinema norte-americano
e europeu, a partir de Griffith, estudada em outros trabalhos do autor (1984, 1999).
Pela inversão que faz de alguns dos elementos característicos das narrativas fundacionais,
Viajo porque preciso... pode ser encarado, quando visto por esse prisma, como uma anti-
narrativa de fundação ou, de acordo com o conceito que este projeto propõe, como uma
“narrativa de dissolução”. Forjamos o termo “narrativa de dissolução” inicialmente a partir do
filme Still Life (2006), de Jia Zhang-ke, em que, de modo curiosamente próximo a Viajo
porque preciso..., histórias de separação são narradas sobre uma paisagem nacional
emblemática também em vias de desaparecer, de ser submersa. No caso, dois casais separados
por um longo período reencontram-se (para logo separarem-se novamente) às margens da
represa das Três Gargantas, que está prestes a inundar a cidade onde viveram – a inundação,
interessante é o moçambicano, em que sobretudo a produção cinematográfica tenta estabelecer as bases comuns de um discurso nacional, na esteira da independência de Portugal, em 1975 (RAMOS MONTEIRO, 2010, 2011). 6 L’imminence de la catastrophe au cinéma, tese em estudos cinematográficos e audiovisuais defendida na Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3 em janeiro de 2014, no âmbito da Escola Doutoral Arts et Médias.
real, ocorre no ano seguinte à rodagem. O filme de Jia teve um papel central em meu
doutorado, em que imagens de catástrofes na paisagem funcionam como alegoria de
profundas transformações políticas e sociais, encaradas também como catástrofes. Ao mesmo
tempo, Still Life e o cinema de Jia em geral apontam para uma transformação do cinema
enquanto arte e instituição – depois de experiências em 35mm, seus longas passaram ao
digital (e Still Life inclui efeitos especiais criados digitalmente); além disso, seus filmes
chegam ao público por circuitos alternativos – mercado pirata, internet e festivais –, sendo
raramente exibidos em sala no país.
A ideia de trabalhar o conceito de “narrativas de dissolução” surge no ensejo da tese de
doutorado e do visionamento da obra mais recente de Jia Zhang-ke, em particular Um toque
de pecado (2013), longa composto de episódios rodados em distintas regiões da China,
regiões estas anteriormente visitadas pelos filmes do cineasta, oferecendo desse modo uma
continuação para as histórias que ele havia iniciado anteriormente e constituindo-se assim ao
mesmo tempo como síntese e prolongamento de sua filmografia precedente. Esta pesquisa dá
continuidade a interrogações e hipóteses que emergem na análise de filmes e pretende basear-
se, novamente, na análise fílmica, alimentada pela reflexão teórica e pela historiografia.
Se em Still Life, Um toque de pecado e em outros filmes de Jia o destino dos personagens é
inseparável do destino nacional – o cineasta e seus comentadores apontam que seu objetivo
constante é filmar as consequências das transformações na economia e na política chinesas na
vida das “pessoas ordinárias” –, e se “a transformação da nação” é fato na China que Jia
filma, é difícil hoje falar em “cinema chinês” sem problematizar a questão do “cinema
nacional” ou da “cinematografia nacional”7. Berry e Pang (2008) discutem o problema, ao
afirmar a necessidade do uso do “s” na expressão “cinemas chineses” (“Chinese cinemas”) e
ao discutir sua qualidade eminentemente transnacional. Não se trata apenas de afirmar as
distintas geografias recobertas pelos cinemas chineses (a que alguns autores também se
referem como “cinemas em chinês”, embora tampouco haja homogeneidade nas línguas e
dialetos falados), reconhecendo a existência de diferenças entre o cinema que se faz na China
7 Ainda que por vezes apareçam como sinônimos, os termos “cinema nacional” e “cinematografia nacional” têm uso diferenciado. O último aparece sobretudo no contexto francófono (cf. por exemplo DUMONT e TORTAJADA, 2007), onde parece haver elementos comuns com a distinção entre história e historiografia. “Cinema nacional” daria mais ênfase à produção fílmica de um determinado país, enquanto “cinematografia nacional” estaria mais ligado às maneiras de organizar, narrar essa produção. Essa discussão, menos profícua no contexto anglófono e brasileiro, precisará ser aprofundada no decurso da pesquisa.
continental, no de Taiwan, no de Hong Kong e no da diáspora mas, mais profundamente, de
entender que não há ideia comum de cinema e nação nem mesmo no interior dos territórios.
Alguns autores optam por estudar os cinemas chineses dentro de uma perspectiva
transnacional – o transnacional seria uma característica do cinema produzido na China
contemporânea, conforme propõe Sheldon Hsiao-Peng Lu já em 1997, discussão prolongada
por Berry e Pang (2008), Higbee e Lim (2010), entre outros. Monvoisin (2013), que discute a
questão do “s” em seu trabalho sobre os cinemas asiáticos, mantém o nacional como
categoria nos estudos que propõe do cinema japonês, chinês e taiwanês (no singular),
excluindo do que considera “cinema chinês” a filmografia de Jia Zhang-ke, por não ser
suficientemente “representativo”. Ainda no que se refere a Jia, Mello (2013a, 2014a), sem
negar a dimensão transnacional de seu cinema, vem afirmando a presença de elementos da
cultura e das artes “nacionais” chinesas na filmografia do autor.
Como se sabe, o “nacional” é uma categoria da historiografia clássica, seja por fornecer uma
estrutura para as histórias gerais, seja para descrever cinematografias específicas, como
aponta por exemplo Tortajada (2008: 9). Se há pelo menos três décadas o conceito de “cinema
nacional” vem sendo questionado, nomeadamente pela “nova história”, que traz reflexões
metodológicas sobre as histórias nacionais do cinema8, influenciadas por trabalhos sobre o
conceito de “nacionalidade”, “nacionalismo” e “nação”9, o “nacional” enquanto categoria
cinematográfica está longe de tornar-se obsoleto. Sua importância é atestada em festivais de
cinema internacionais, em que os filmes são representantes de seus países, assim como em
retrospectivas organizadas por cinematecas e instituições culturais, que não raro propõem
recortes nacionais ou regionais em seus programas. Além disso, o critério nacional continua
sendo usado pela historiografia10 e mais amplamente pelos estudos de cinema, do Atlas du
cinéma de Labarrère (2002) à coleção dirigida por Hayward para a Routledge 11 . As
expressões “cinema nacional” e “cinematografia nacional” seguem correntes no léxico de
8 A literatura a esse respeito é abundante, sobretudo no mundo anglófono (cf. ROSEN, 2006 [1984]; HJORT & MACKENZIE, 2000; VITALI & WILLEMEN, 2006), mas também presente no universo francófono (FRODON, 1997; SORLIN, 1996a). O tema é central nos estudos do cinema asiático, sobretudo na China. 9 A esse respeito, nos referimos aos trabalhos de Anderson (2005; 2008), Gellner (1993) e Hobsbawn (1990). 10 São interessantes os estudos sobre cinema silencioso que levam em conta a questão do “nacional”, já que, nas primeiras décadas do cinema, por não haver diálogos falados, os filmes circulavam mais facilmente entre os países. Por outro lado, estudos do cinema silencioso apontam para as bases da relação entre cinema e sentimento nacional, como é o caso dos artigos de Morettin tanto sobre cinema brasileiro sobre como cinema norte-americano (2011a e 2011b). 11 HAYWARD, 1993; SORLIN, 1996b; GITTINGS, 2002; TRIANA-TORIBIO, 2003.
cineastas e críticos de regiões “periféricas”12, como um contraponto em relação ao que seria o
“cinema imperial”, feito em Hollywood – ainda que, historicamente, o conceito de cinema
nacional tenha sido nutrido por produções norte-americanas.
Tomaremos como parâmetros cinemas nacionais estabelecidos na primeira metade do século
XX, assim como a literatura sobre eles, que ajudou a conformá-los, já na segunda metade do
século XX. É o caso, marcadamente, do cinema alemão realizado no período entre as duas
Guerras Mundiais, analisado por Kracauer (1988), e do cinema japonês, estudado por Burch
(1979), além, é claro, do cinema hollywoodiano e do western. Kracauer, Burch e outros
estudiosos de cinemas nacionais 13 trabalham portanto a partir da identificação de
características comuns a um conjunto de filmes (em geral de um determinado período), e da
relação entre essas características e questões como identidade nacional, situação histórica,
tradição cultural, etc. Nesse sentido, a exemplo do que ocorre na literatura do século XIX com
as narrativas fundacionais, não é raro que cinematografias nacionais apropriem-se de mitos de
fundação nacional (ou mesmo os criem), repetindo-os de um filme a outro, em geral dentro de
gêneros, como no caso dos Estados Unidos ocorre com o western e o melodrama14.
Em um esforço de sistematizar a reflexão sobre o cinema nacional, Rosen afirma:
Discutir um cinema nacional pressupõe não somente que exista um
princípio ou princípios de coerência entre um grande número de filmes, mas
também implica o pressuposto de que esses princípios têm algo a ver com a
produção e/ou a recepção desses filmes dentro das fronteiras legais de um
12 A expressão “periféricas” é problemática e denota uma visão eurocêntrica do cinema. Aqui, nos referimos à produção não europeia e não estado-unidense. Shohat e Stam (2006) discutem a questão do eurocentrismo nos estudos de cinema e propõem um estudo em bloco de filmografias “não-canônicas”, interessados nomeadamente no cinema latino-americano, do Oriente Médio e da África. O nosso recorte segue o caminho aberto pela dupla. 13 É o caso ainda de Elsaesser (1996), sobre o cinema alemão; de Dumont e Tortajada (2007), dedicados à história do cinema suíço; Grilo (2006), Costa (2007) e Baptista (2010), no caso português, e de Monvoisin (2013; 2015), que estuda diferentes cinematografias nacionais asiáticas. Baptista (2010) trabalha a hipótese, originalmente apresentada por João Bénard da Costa, de que o cinema português não se caracteriza por um gênero específico – como o western nos Estados Unidos, o “polar” ou filme policial de baixo orçamento na França ou o cinema “metafísico” dos países nórdicos – mas por sua dedicação em investigar o imaginário nacional. 14 Sobre a força do melodrama e de elementos melodramáticos na constituição do cinema nacional dos Estados Unidos e nas narrativas cinematográficas contemporâneas do país, cf. SZONDY (2004; 2011) e MULVEY (2006). Mulvey identifica a presença de elementos característicos da narrativa melodramática em grande parte do cinema clássico dos Estados Unidos, relacionando-os com os motores da própria narrativa. Ela analisa nomeadamente o papel do casamento como abertura ou fecho de uma série de filmes, responsável pelos momentos iniciais ou finais de “stasis”, em contraponto à ação que conduz o interior da narrativa. Xavier (2014) se debruça sobre o cinema de John Ford e a ligação do ideário do western com os pressupostos da formação nacional dos Estados Unidos. Sobre o cinema de Griffith e o melodrama, Cf. igualmente XAVIER (1984; 2003).
dado estado-nação (ou que eles se beneficiem de capital controlado dentro
dele). Ou seja, a coerência intertextual está conectada a uma coerência
sócio-política e/ou sociocultural, implicitamente ou explicitamente
assignada à nação. (ROSEN, 2006: 18, nossa tradução)
No mundo anglófono e também no Brasil, importantes trabalhos de revisão do conceito de
cinematografia nacional foram feitos por pesquisadores do “cinema transnacional” e da ideia
de “transnacionalidade”, atentos ao fato de que tanto no nível diegético como no nível da
produção cinematográfica, um conjunto crescente de filmes vem operando deslocamentos
internacionais, de modo que classificá-los segundo critérios nacionais seria redutor e pouco
proveitoso15. Embora a literatura a esse respeito seja de grande valia para a presente pesquisa,
o caminho a ser tomado é outro, pois mais do que o critério de transnacionalidade, o que nos
importa é o questionamento de temas como “identidade nacional” e “cinematografia
nacional” no interior de filmes que, apesar de realizados por cineastas de determinada
nacionalidade e dentro de um determinado estado-nação, problematizam a cinematografia
nacional na qual estariam inseridos. O critério de transnacionalidade aplica-se, porém, como
metodologia de estudo cinematográfico, ou seja, nosso corpus não é nacional, mas
transnacional, por entender que as questões trabalhadas ultrapassam fronteiras nacionais.
Corpus preliminar
Good bye, Dragon Inn, de Tsai Ming Liang (Taiwan, 2003).
Evolution of a filipino family, de Lav Diaz (Filipinas, 2004).
Independencia, de Raya Martin (Filipinas, 2009).
Viajo porque preciso, volto porque te amo, de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes (Brasil,
2009).
Más allá del mall, de Miguel Alvear (Equador, 2010).
Um toque de pecado, de Jia Zhang-ke (China, 2013).
As 1001 noites, de Miguel Gomes (Portugal, 2015).
15 Cf. por exemplo SHOHAT e STAM (2003), DENNISON e LIEU (2006), FRANÇA e LOPES (2010) e NAGIB (2012), entre outros autores. Ainda a respeito de cinema transnacional, a pesquisa de LUSNICH (2014) aponta para uma filmografia latino-americana que alia o transnacionalismo no âmbito diegético e de produção desde a primeira metade do século XX, desconectando a questão da transnacionalidade do fenômeno da globalização e dos estágios mais avançados do capitalismo.
O corpus é formado por filmes realizados entre 2003 e 2015 por cineastas oriundos de países
“periféricos” em relação ao cinema canônico, polarizado no eixo Estados Unidos-Europa
central. Esses filmes, que ganham visibilidade no âmbito de festivais internacionais e da
crítica especializada, sem atingir grandes bilheterias sequer em seus próprios países,
trabalham sob forças contraditórias: nota-se, por um lado, a intenção de imprimir na fatura
processos históricos e características culturais (nacionais, regionais, locais) como forma de
afirmação de identidade; por outro lado, essa afirmação se dá em uma chave negativa, a chave
da dissolução do mundo tal como ele era conhecido pelos personagens (e do próprio cinema).
A seleção de filmes do século XXI a serem estudados no âmbito desta pesquisa prioriza
títulos que apontam para os limites das possibilidades de coerência e, ao mesmo tempo, lidam
com questões de nação, nacionalidade, nacionalismo e identidade nacional. É preciso fazer a
ressalva de que a filmografia de Jia e Tsai são problemáticas, excepcionais e não se incluem
em um conjunto de filmes nacionais, em primeiro lugar por toda a complexidade que envolve
a questão nacional no caso da China e de Taiwan. No que diz respeito a Alvear, Gomes, Jia,
Diaz e Martin, os filmes escolhidos condensam questões evocadas em obras anteriores dos
mesmos cineastas, de maneira que, através desses títulos, é possível abordar pontos
fundamentais para o trabalho de cada um deles. Tomemos o exemplo de Um toque de pecado:
se os filmes anteriores de Jia eram realizados em uma determinada localidade da China, este
traça um percurso entre diferentes cidades, recuperando personagens presentes nos filmes
anteriores, dando-lhes continuidade, propondo desfechos para suas histórias. Um dos
protagonistas de Still Life reaparece como trabalhador imigrante de uma mina. A paisagem
das Três Gargantas também ressurge, agora já no pós-inundação. Estudar Um toque de
pecado é, portanto, uma maneira de entender todo o cinema de Jia.
Com seis horas de duração distribuídas ao longo de três episódios, As 1001 noites associa a
narrativa de Xerazade, povoada por reis, princesas, mercadores e escravos, à crise vivida por
Portugal nos dias atuais. Miguel Gomes intensifica, assim, algo que já havia realizado em
Tabu (2012) e Redemption (2013), em que valia-se de um registro formal de características
épicas para contar uma história cujo objetivo é o desmonte da mitologia nacional – no caso
dos filmes de 2012 e 2013, tratava-se de remexer nos fundamentos da memória colonial
portuguesa e europeia; com As 1001 noites, o que se produz é antes de mais nada um duro
diagnóstico do presente, diagnóstico que invalida mitos históricos com relação à (heroica)
identidade portuguesa.
De maneira reiterada, Lav Diaz e Raya Martin voltam-se a episódios marcantes da história
filipina para narrá-los não com cores grandiosas ou heroicas, mas sim na tonalidade da mais
absoluta melancolia – ambos filmam em preto e branco e com pouca luz –, como se cada fato
fosse, na realidade, um luto. Dessa maneira, o cinema dos dois também associa elementos
típicos das narrativas fundacionais históricas, mas revertidos na chave da dissolução, da
morte.
O filme de Tsai Ming Liang constitui-se como um terreno em que se pode analisar mais
frontalmente a associação entre crise da nação e crise do cinema – o longa trata da
desmontagem de um velho cinema de Taipei, que exibe Dragon Inn, filme de espadas de
King Hu, de 1967. A história do cinema enquanto patrimônio fílmico encontra-se assim
entremeada com a história do cinema como patrimônio arquitetural e, num plano alegórico,
com a história dos comportamentos e a história nacional taiwanesa.
Mais explícito, Más allá del mall questiona frontalmente a existência de algo que possa ser
chamado de “cinema nacional equatoriano”, recuperando as alegorias nacionais do filme
anterior de Miguel Alvear, Blak Mama (2009) e, por fazer referência a um conjunto de filmes
equatorianos que trabalham a partir da matriz melodramática, acaba tangenciando uma série
de questões centrais para esta pesquisa.
Equador, Portugal, China, Filipinas, Taiwan e Brasil, os países de origem dos realizadores dos
filmes acima listados, são fortemente marcados por relações de dominação, passados
coloniais e situações pós-coloniais ou neocoloniais que seguem conflituosas. Questionar
códigos estabelecidos por cinematografias nacionais paradigmáticas poderia configurar-se
como uma maneira de recusa da importação de códigos forjados por potências imperiais.
Apesar da circulação nos festivais internacionais e interesse constante da crítica especializada
internacional, Tsai, Diaz, Martin, Aïnouz & Gomes, Alvear, Jia e Miguel Gomes têm todos,
em diferentes escalas e por distintas razões, dificuldade de financiamento e de visibilidade de
em seus países; ao mesmo tempo, estão interessados em questões nacionais e na cultura
nacional, e insistem em filmar em seus países. Da filmografia de cada um, foram escolhidos
os filmes mais ricos no que diz respeito às questões trabalhadas. Trata-se de filmes que, seja
pela duração longa, pela ideia de narrativa, ou por elementos formais, dialogam com o
universo da arte contemporânea, inscrevendo-se na discussão sobre “pós-cinema”
(GAUDREAULT e MARION, 2013; DUBOIS, 2015).
Ainda que os filmes do corpus preliminar venham, em maior ou menor grau, sendo objeto de
estudos acadêmicos16, eles não costumam estar relacionados e raramente são encarados a
partir de perspectivas que questionam a questão nacional no cinema contemporâneo. O único
caso em que isso se explicita mais frontalmente é o de Jia Zhang-ke, sobretudo em função das
interrogações a respeito do que seria “o cinema nacional chinês”. Assim, se por um lado a
obra dos cineastas do corpus carece de estudos mais aprofundados, por outro a abordagem
proposta por este projeto é absolutamente inédita.
Objetivos
O presente projeto pretende analisar um conjunto de filmes em que, à maneira das narrativas
fundacionais, “romance e república” estão conectados; em que “felicidade doméstica” e
“projetos de construção nacional” se encontram entremeados; mas em que, à diferença do
gênero trabalhado por Sommer, não há um desejo de construir um futuro idealizado nem
qualquer subsídio aos sentimentos patrióticos, muito pelo contrário. O objetivo, portanto, é
estudar a dificuldade de lidar com questões de identidade nacional em narrativas
cinematográficas contemporâneas, em que a crise da nação e do conceito de nacionalismo
encontra-se em primeiro plano. Almeja-se, assim, produzir uma nova visada sobre as
categorias nacionais costumeiramente utilizadas nos estudos de cinema, um novo discurso de
nossa disciplina com relação as narrativas fundacionais, mais em sintonia com o momento
atual de questionamento das categorias do “nacional” e dos “nacionalismos”.
2) Resultados esperados:
A partir de filmes realizados a partir de 2000 e oriundos de países que ocupam um lugar
“periférico” dentro da história do cinema (China, Taiwan, Brasil, Equador, Portugal,
Filipinas), este projeto pretende estudar os problemas que eles apresentam para o próprio
conceito de “cinema nacional” e observar ao mesmo tempo os empréstimos e as inversões que
operam com relação às narrativas fundacionais. Segundo a hipótese preliminar proposta por
este projeto, os filmes do corpus criam um elo entre histórias privadas e narrativas históricas,
16 Há diversos estudos sobre Jia Zhang-ke, Tsai Ming Liang e os cinemas chineses, alguns deles abordando justamente a questão nacional e as transformações políticas na China contemporânea (cf. BERRY e PANG, 2008; BERRY, 2004; CORNELIUS, 2002; MA, 2010, etc.). Os estudos recentes sobre o cinema de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes (MALCHER DOS SANTOS, 2014; SAMPAIO e DUARTE, 2015) vão por caminhos distintos. O cinema de Miguel Alvear carece de estudos acadêmicos de fôlego, bem como o de Lav Diaz e o de Raya Martin.
cujo modelo não é mais o de busca da felicidade doméstica aliada à construção de um
caminho de prosperidade nacional, como foi o caso com as narrativas fundacionais, mas o de
dissolução de uma e outra esfera.
É notável, nos corpus tradicionalmente estudados dentro da perspectiva das cinematografias
nacionais, a afirmação de um poder do cinema tanto para refletir questões de identidade
nacional como para interferir na formação dessa identidade (como atestam os filmes de
Griffith e as leituras que deles costumam-se fazer). O corpus da presente pesquisa contém
filmes que se colocam propositalmente na contramão: eles traduzem o esfacelamento de seus
estados-nação tal como eram conhecidos e a impotência de o cinema forjar uma identidade
nacional coerente, afirmativa.
Dentre os resultados esperados, está a proposição do conceito de “narrativas de dissolução”, a
ser forjado com base na análise dos filmes. A pesquisa irá no sentido de verificar a validade
do conceito e sua pertinência para entender questões colocadas pelo cinema contemporâneo.
Em primeiro lugar, a pesquisa fará uma atualização do aparato teórico a respeito do conceito
de “cinema nacional” e “cinematografia nacional”, confrontando-o a produções
cinematográficas contemporâneas oriundas de diferentes nacionalidades. Esse trabalho tem
sido feito tanto por parte de pesquisadores que trabalham na chave do cinema transnacional
ou mundial (DENNISON e LIEU, 2006; FRANÇA e LOPES, 2010; NAGIB, 2012). Aqui, a
ideia é confrontar a problemática da cinematografia nacional a questões nacionais trabalhadas
sobretudo por um cinema independente, que circula em festivais.
3) Desafios científicos e tecnológicos e os meios e métodos para superá-los:
Há pelo menos três décadas, os conceitos de “cinema nacional” e “cinematografia nacional”
vêm sendo questionados e revistos. Dentro de um vasto universo de trabalhos, destacam-se
primeiramente pesquisas que percorrem a literatura sobre o assunto tendo como objetivo o
entendimento de uma cinematografia nacional (ou regional) específica, da interrogação sobre
a cinematografia nacional portuguesa (GRILO, 2006; COSTA, 2007; e BAPTISTA, 2010,
entre outros), à proposta de uma história do cinema suíço (DUMONT e TORTAJADA,
2007). A questão nacional é particularmente delicada no continente asiático, e em especial na
China e em Taiwan, já que identidade cultural e nacionalidade nem sempre caminham juntos,
dadas as diferenças de regime político, o legado pós-colonial e as relações de dominação.
Mais recentemente, a discussão em torno do conceito de cinematografia nacional ganhou uma
importante atualização por parte de pesquisadores concentrados no chamado “cinema
transnacional” (DENNISON e LIEU, 2006; FRANÇA e LOPES, 2010; NAGIB, 2012). O
desafio a que a presente pesquisa se propõe inclui uma atualização do pensamento teórico e
crítico a respeito da categoria do “nacional” no cinema tendo como objetivo não o
aprofundamento na história de uma cinematografia específica, nem tampouco a análise de
produções transnacionais, mas o estudo de um conjunto internacional de filmes que colocam
em crise o próprio conceito de cinema nacional.
É claro que é impossível levar a cabo o trabalho sem fazer nenhum tipo de delimitação
temporal ou geográfica. Com relação ao critério cronológico, a pesquisa se concentrará em
filmes realizados nas duas primeiras décadas do século XXI, ainda que para entendê-los
dentro da chave da questão nacional seja necessário recorrer a cinematografias nacionais dos
países de origem desses filmes e a títulos paradigmáticos no que diz respeito às narrativas
fundacionais e à questão da identidade nacional. Com relação ao critério geográfico, a
pesquisa parte do pressuposto warburgiano segundo o qual duas regiões sem ligação aparente
podem produzir obras que se esclarecem mutuamente, a exemplo do historiador da arte
alemão, que compara a iconografia renascentista à dos índios Hopi norte-americanos17.
Afirmar esse pressuposto não implica, porém, numa completa indistinção. Os filmes que
integram o corpus foram realizados em países que, além de apresentar um passado colonial
ainda não completamente superado, vêm passando por uma profunda revisão em seus
próprios critérios de nação e nacionalidade, em meio a crises econômicas e transformações
políticas radicais.
Com relação aos meios e métodos solicitados para enfrentar esses desafios, em primeiro lugar
será necessário estabelecer uma constelação 18 de filmes que problematizam a questão
nacional dentro do cinema contemporâneo de autor. Esse será o corpus principal da pesquisa.
O corpus preliminar já constituído deverá ser enriquecido, atualizado e precisado. Em
seguida, o corpus secundário será precisado, na definição de um conjunto de filmes
considerados paradigmáticos por seu papel “fundador” na constituição de narrativas
17 A esse respeito, cf. MICHAUD (1998) e WARBURG (2015). 18 O princípio da “constelação”, norteador do trabalho de Aby Warburg em seu Atlas Mnemosyne, vem sendo empregado por diversos historiadores da arte, à exemplo de Georges Didi-Huberman. A formação de constelações temáticas está na base da proposta curatorial de suas exposições Atlas. How to Carry the World on One’s Back (2010-2011) e Afteratlas (2014).
cinematográficas fundacionais e, paralelamente, pelo estudo do que se costuma considerar
como “cinematografia nacional” nos países de origem dos filmes estudados.
Serão realizadas análises fílmicas19 dos títulos contidos no corpus principal, a partir de
métodos apoiados no estudo do contexto histórico e de produção, com atenção particular para
a contribuição dos estudos visuais e de trabalhos sobre alegorias históricas, inconsciente
político, sobrevivência das formas e questões de identidade, de autores como Auerbach
(2001), Jameson (1992, 1981), Warburg (2015) e Canclíni (2010).
Como já dissemos, a escolha de filmes de diferentes origens está na base de uma perspectiva
transnacional dos estudos de cinema. O termo “transnacional” é reivindicado não apenas pela
presença de diferentes geografias na fatura dos filmes ou pelo fato de a maioria deles ter
sistemas de coprodução internacional, mas sobretudo por dialogar com uma concepção de
“estudos transnacionais do cinema”, discutida notadamente por Lu (1997), para quem os
estudos dos cinemas chineses são necessariamente transnacionais, e por Zhang (2007), que vê
no gesto analítico transnacional uma metodologia antes de mais nada comparativa, que parte
dos estudos de literatura comparada mas que se distingue dela pelas especificidades da arte
cinematográfica. Aqui, a metodologia comparativa adotada será transnacional, posto que o
objetivo é ressaltar movimentos comuns a diferentes filmografias “periféricas”.
4) Cronograma20: Duração total do projeto: 24 meses
Período Plano de trabalho
1º semestre • Elaboração da problemática.
• Levantamento bibliográfico com foco na constituição do edifício
teórico da pesquisa.
19 Como se sabe, não existe a análise fílmica enquanto metodologia única. Há diversos métodos de análise fílmica, a partir do modelo que se funda enquanto disciplina com base nos estudos literários e o estruturalismo; a primeira necessidade da análise fílmica era portanto a de restituir o “texto inencontrável” de que fala Raymond Bellour (1979). Aumont e Marie (2008) repertoriam alguns desses modelos – o psicanalítico, o interpretativo, o textual, o “imagético”, etc. Neste projeto, a análise fílmica leva em conta não apenas o “texto” dos filmes mas também, e sobretudo, sua visualidade, ou seja, sua maneira de relacionar-se com a história da arte e do cinema, e com outras linguagens artísticas (os trabalhos de Luc Vancheri [2007] sobre cinema e pintura constituem um exemplo metodológico, bem como os modelos apresentados por Aumont e Marie no capítulo dedicado à análise da imagem e do som). Finalmente, os trabalhos de Ismail Xavier (1999; 2012) sobre a alegoria histórica no cinema, em diálogo com Jameson (1981; 1992) e Auerbach (2001), constituem um grande norteador metodológico para a presente pesquisa. 20 Cabe destacar que durante toda o período da pesquisa serão realizadas atividades de participação em congressos específicos das áreas envolvidas nessa pesquisa, assim como a elaboração de artigos acadêmicos com os resultados parciais obtidos em cada uma das etapas.
• Ampliação e precisão das três instâncias de corpus fílmico (corpus
principal e dois corpus secundários).
2º semestre • Início das análises fílmicas.
• Levantamento de bibliografia específica sobre os cineastas e os
filmes principais do corpus.
• Assistência sistemática. Primeiras análises fílmicas.
3º semestre • Realização de entrevistas com os principais cineastas estudados e
estudo dos trabalhos sobre cinematografias nacionais dos países
estudados.
• Organização de um colóquio internacional sobre cinema
contemporâneo e identidade nacional.
4º semestre • Elaboração dos resultados finais, na forma de relatórios e artigos.
• Realização do colóquio internacional sobre cinema contemporâneo e
identidade nacional, e preparação de uma publicação.
5) Disseminação e avaliação:
Durante o período em que esta pesquisa for realizada e após o seu término, pretende-se
desenvolver a elaboração de artigos que analisem os filmes selecionados, especialmente em
uma perspectiva comparada. Dessa forma, pode-se dizer que a principal forma de
disseminação dos resultados obtidos será feita por meio de revistas científicas renomadas
(Qualis A e/ou B).
Outra forma de disseminação será a participação em congressos e encontros acadêmicos, de
preferência de amplitude internacional, considerados momentos importantes também para o
estabelecimento de laços com outros pesquisadores.
Está prevista a realização de um encontro internacional sobre o tema, reunindo pesquisadores
oriundos dos países de origem dos cineastas trabalhados (Portugal, China, Taiwan, Filipinas,
Equador e Brasil), e de outros países. Também está programada a realização de uma mostra
de filmes que abordem questões de nacionalidade e identidade nacional e a publicação de
artigos em revistas reconhecidas e de um dossiê temático sobre o assunto na revista
Significação e em revistas anglófonas e/ou em língua espanhola21 internacionais. Além disso,
a candidata fará participações em colóquios internacionais, participará das atividades do
grupo de pesquisa CNPq ‘História e Audiovisual’, coordenado pelos professores Eduardo
Morettin e Marcos Napolitano, e ministrará um curso na pós-graduação sobre o tema.
No relatório científico final enviado à FAPESP, serão elencados e apresentados os textos
publicados, as comunicações realizadas e o programa do curso, para colaborar com a
avaliação dos resultados obtidos durante o período da bolsa.
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21 Publicações em língua inglesa têm sido ao mesmo tempo frontais e abrangentes ao abordar a questão dos cinemas nacionais no mundo contemporâneo, sobretudo pela atenção dada às especificidades de distintas cinematografias asiáticas. O aporte histórico que o pensamento produzido em países da América Latina sobre o assunto deve ser levado em conta e, por essa razão, também será necessário dialogar com interlocutores de língua hispânica.
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