nada mais bonito que uma tarde de verÃo numa Época de...
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NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE
INVERNO...
7 ATOS
Pantoja Ramos
NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...
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Colaboraram com o texto sobre a extração de palmito no
Marajó:
Teofro Lacerda – Portel
Eliana Barbosa – Gurupá
Dedicado à luta dos trabalhadores e trabalhadoras rurais do
Marajó pela terra.
Inspirado em relatos do Sindicato dos Trabalhadores e
Trabalhadoras Rurais de Afuá, companheiros bravos e
idealistas.
Ê Suprimo Erivelton, Suprimo Cuca, Suprimo Vitoriano,
Suprimo Antônio Batista, Suprima Vanda!! Um Abraço!
NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...
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“O homem nasceu livre e por toda a parte vive acorrentado”.
Jean Jacques Rosseau – Do Contrato Social.
NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...
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NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE
INVERNO...
7 ATOS
Pantoja Ramos
Belém, 09 de janeiro de 2015.
ATO 1 – CALMA, ELE TÁ ASSUSTADO
Senhora??? Num entendi senhora??? Não, não, num posso
falar do que num me deixam. Seu Boiadeiro pode num gostar.
Eh me solta, eh me solta, macho! Ai! Rummmmm! Rummmmmmm!
Ai! Deixa eu ir, deixa? Cadê meus netos?? Quêde? Onde? Com
quem? O Beto meu filho foi junto? Foi todo mundo? Me
solta!! Impinge, o João Impinge, cadê ele? Hum, tu estás
aí! Solta ele, solta ele que ele mesmo é que num vai falar
nada! Só sobrou nós dois? Bora, me solta! Num falo, num
falo, seu Boiadeiro me pega, hum. Deixa eu ir Dona,
pelamordeDeus! Quê que vocês quer?? pelamordeDeus! Isso é
água? Tão limpinha assim? Me dá água, quero água Dona.
Água. Ahhhh.
Deus lhe pague.
Seu Boiadeiro tá por aí?? Ai se me pega! Ai se me
pega! Solta eu, solta? Rumm! Deixa eu ir pro meu Tapiri,
deixa, Dona? Dá água pro João, Dona. Ele tá te agradecendo.
Me solta!!!! Solta!!! Ai! PelamordeDeus!!! Me deixa...
Você tem bolacha? Me dá uma? Deus lhe pague. Deixa eu
ir pro meu Tapiri! Deixa? Já te falei que num quero
falar...
Posso dormir? Deixa Dona? Deus lhe pague... Te arreda
daí João Impinge.
Senhora? De novo? Qué-que isso? Remédio? É sim,
senhora, sofro dos nervos. Vou melhorar? Tu diz? É água?
Deus lhe pague Dona. Meu nome? Nicanor do Divino Ferreira.
Quantos anos? Não sei, uns setenta pra cima. Nascido e
criado no Cajari, é sim, perto do Beiradão, sabe chegar?
Num conhece? Ahh, é Laranjal do Jari agora? Mas lá nem tem
laranja?? Hum-hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas
paragens me chamam Seu Nico Caduco. Sei lá porquê? Num ri
João, senão falo de ti. O porquê de João Impinge? É nome
mesmo dele, aí João Impinge de Oliveira Pano Branco. Homem
azarado esse suprimo João Impinge tu nem sabe Dona.
Panema...
Porquê Nico Caduco? Sei lá, só sei que fico pensando,
pensando e falando, falando, caducando quando se fica velho
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né? Homem novo pensa, velho caduca, né? Rá! Não, Dona, me
chamaram de Nico Caduco quando vim pra cá. Quando? Acho que
já era no tempo do Sarney. Não, senhora, desde que cheguei
não saí daqui. Seu Boiadeiro não deixa. Eh tu não vai
contar pra ele né? Se me pega? Ai se me pega falando
dele... Quê? Me arranca o couro na certa e pendura lá no
alto das copa da sumaumeira pra humilhar. Arranca sim, João
Impinge já até teve essa dor, né Impinge? Quando? De surra
de corda de nailom. Tropeçou no assoalho do barco, queimou
os dedos no cano da descarga e no pular da dor derrubou
umas 3 rasas de açaí por ali empilhada perto da janela do
barco do homem, thibum. Nessa dita hora Seu Boiadeiro tinha
acabado de acordar da pipira da tarde, naquela dor de
moleira do sol quente. Aí já viu né? Por isso não conto
nada. O que me garante Dona? A senhora? Seu Boiadeiro tá
preso? Mas quando já? Potoca sua. Potoca. Não é potoca!
Fiuuuuuu! Cadê ele? Tá preso? Num pode. Cês são daonde?
polícia daonde? Federal? Fiuuuuuu! Se eu disser, Seu
Boiadeiro vai saber? Olha... Dona, eu já estou bem velho,
num tenho força mais pra pegar pisa de ninguém. Quêde meus
netos? Quando eles voltam de Macapá? Eu vou pra lá também?
Mas quando, Não vou não. Mas vou poder vê eles? Tá bom, tá
bom. Quando o Beto vem me buscar? Na sexta, tá bom. Vou pra
onde me tratar? Faz muitos anos que não piso em Macapá. Não
é mais ponte de madeira? Rá! Mas tu sabe, eu volto pro meu
Tapiri né?
Se eu falar não vai acontecer nada comigo? Tu diz? Não
adianta, se tiver que falar tem que ser eu, o João Impinge
não expressa nada. Eu mesmo nunca ouvi síbala dessa quase
boca. Quase boca? É que num tem dente, Dona, pode vê, abre
aí João Impinge. Coisa feia. Rá! Foi queda. Caiu com o
queixo bem no meio de tronqueira que tava num igarapé lá de
cima. Lá de cima do pé de açaí. Cortava palmito pulando de
rama em rama, parecia um capelão. Ele fazia isso sim. Pra
não perder tempo e cortar mais palmito. Um pessoal de Boa
Vista tinha ensinado pra ele essa arte. Ó, já tô falando
muito. Se o seu Boiadeiro descobre, ai se me pega! Se pega!
Melhor parar. Tem merenda? Sardinha? Serve sim, Dona. Tem
farinha? Daqui que eu faço uma farofada. Hummm. Deus lhe dê
sustento. Ó, o João Impinge, já cortou o beiço na lata de
sardinha. Parece cachorro do Mazagão. Mas tu é besta, hein?
Rá! Tô com uns tremeliques Dona, me dá daquele remédio? A
senhora é uma santa.
ATO 2 – ELE DISSE COMO FORAM PARAR ALI
O que me mata essa boca que não se quieta, peste! Se a
senhora quer me ajudar, não me faz essas pregunta, não. Se
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tá tudo resolvido, pregunta pras pessoas que moravam aqui.
Quantas? Trinta famílias. Sim, tudo moradora desta ilha dos
Catitus. Trabalhavam uns na fábrica que tinha de palmito
aqui, outros no corte do palmito. Quê? A maioria na derruba
de açaí. Eu? Ficava no palmital, cortando, cortando...
aonde? No centro, eu mais uns vinte machos. Quando? Sempre
Dona, sempre. A gente ficava mesmo era no inverno, que ali
rimava com inferno. Hum? Tu não sabe Dona o que é
aperreio... ó, já tô falando muito. A senhora tá me
enrolando.
Tem café? Tem? Dá um pouquinho? Tem bolacha? Eu gosto
dessa aí de água e sal. A doce, não? Aumenta meu treme-
treme? Tá bom. Ó, eu vim com meu filho e minha nora os dois
novinhos ainda do Mazagão, não sei, acho que os dois tinham
uns vinte e poucos anos. Eram moços os dois. Eu já era
veterano, mas ainda vivia na sacanagem por aí, Rá! Não
estufa os peito João Impinge, tu ainda mijava nos cueiros.
Sabia, Dona, que no dia que ele estreiou nos puteiros do
Beiradão, foi logo pegar a Maria-Rasga-Bunda? Rá! Coitado!
A senhora não acredita que tem mulher assim? Pois o João
Impinge viu hum-hum. Rá! Deixa pra lá. A senhora parece
daquelas que não merece esse tipo de conto. Me discurpa. Ah
tá! Nos três viemos no convidado de seu Hilário pra vim pro
trampo da fábrica daqui. A senhora sabe, em inverno é
difícil arrumar bóia e o trabalho era justamente neste
tempo. De empregado em firma já tinha trabalhado, lá no
Jari e bora que vai dar certo. Meu filho Beto era o único
que me acompanhava, os outro, Cláudio, Maria, Pedro e Diane
era tudo espalhado, uns pra Belém, outros pra Santarém.
Diane foi pra Portel. Minha mulher? Se chamava Antonieta.
Morreu, Dona, ainda nova, doença de mulher, saia muito
sangue, uma lavagem de sangue coitada dela. Sabecomoé, a
gente não tinha condição de procurar um bom médico. Demorou
muito pra gente saber o que era. Não teve jeito. Ah,
Antonieta, Antonieta que Deus a tenha... chega minha vista
quase escureceu agora. Bom, era Deus e chá que curavam a
gente. Hoje, mudou né? Não? Tu diz que saúde ainda tá
encruada! Rá!
Chegamos Beto, minha nora Valéria e eu num meio de uma
chuvada medonha. Hilário estava ali esperando a gente no
porto da casa dele. Lembro que molhou toda a nossa boroca.
É muito ruim dormir em rede molhada. A senhora já dormiu?
Nunca? É agonia e frio no espinhaço, que vai tudo pras
bacia, numa vontade medonha do mijo. João Impinge conhece
isso de dormir no molhado. Uma vez ele arrumou de caçar,
né, João, nas terras alta do rio Jaburu. Pra evitar a onça,
armou a rede bem nos alto de uma pracuubeira. Mas quando,
ispia que deu uma saída da lua que danou-se a encharcar e
tudo e quando João Impinge percebeu, tinha inundado quase
tudo, era balde, rede boiando, onça boiando bem no ladinho
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dele? Ele ali deitado na rede boiada no rio, de noite, no
escuro, escutando aquele esporro de onça afogada que
resolveu se prender na rede dele. Foi arranho pra todo
lado. Fechou a madrugada molhado e todo ferido da bichona.
A onça? Quando encostou nele pegou a panemice do João
Impinge e morreu afogada na hora. Pá-tche-béi. Esse Lepra
me atrapalha a conversa.
No outro dia fomo apresentado na fábrica. Tinha ali
uns trinta empregados. Seu Boiadeiro, tava ali, chapéu de
fazendeiro, eu mal podia ver a vista dele, era escura do
chapéu que não dava pra ver direito a beirada de baixo do
olho. Passava malvadeza naquela sombra. Tinha uns outro
ali, cara feia, diziam ser o Espinho, o Fogoió e o
Jacuraru. Nunca soube o nome deles Dona. De nenhum deles.
Sebastião Cardoso dos Santos, esse era o nome do Seu
Boadeiro? Fiuuuuuuuuu!!! O tal gerente da fábrica era Chico
Santos, irmão do seu Boiadeiro, esse eu sabia. Trampamos
ali no primeiro dia, botando palmito nos vidro. O palmito
vinha numa polia porruda e nós botava rápido nos potes. Ali
ficamos os três uma semana mais ou menos. Aí eu velho,
quebrava de vez em quando uns potes e meu filho era fortão
do jeito que eu era quando molecão. Olhando tal jeito, Seu
Chico Santos mandou nós dois pro palmital e a Valéria ficou
na fábrica.
O João Impinge? Quando chegou? Humm, acho que foi uns
cinco anos depois. Foi né, João? Foi. No pouco que falou na
vida para mim disse que tinha vindo lá de Tabatinga
descendo o rio Amazonas. Diz alguma coisa peste!! Viu só,
nada. É muito difícil mesmo este macho falar. Até brinco
que só fala quando tem briga de jabuti. A senhora já viu
briga de jabuti? É uma desgraça de barulheira! E quase
ninguém neste mundo de Deus viu bestial coisa. Mas quem vê?
Hum-hum, Eu hein? Mas sim, ele me falou que estava indo pra
Belém, mas deu discunforme cole, sabe o que é Dona? Cólera?
Prefiro falar Cole. Pois é, deu Cole no barco quando tava
em Almeirim. Ele mesmo pegou a praga e teve que ir tomar
soro sem parar naquela cidade. Se vazava todo naquele fedor
de dentro do bucho. Quase bateu o cacau. Ali acabou o
dinheiro da passagem. O Impinge teve que ficar por ali
mesmo, mas uns garimpeiros daquelas bandas juraram ele de
morte e ele caiu no primeiro barco que ia pra Santana. Sem
as condição, escutou que tinha uma boa fábrica em Afuá e
veio pra aqui em busca de sorte. Se lascou! Rá!
Só sei que as coisas de repente ficaram mais feias
ainda. O Seu Hilário sumiu. Sumiu mesmo. E foi meu susto
quando voltei na casa dele pra visitar, a gente costuma
visita os amigos, vocês fazem isso? Poisé, não vi ninguém
na morada. Tudo esquisito, fiquei umas quantas horas ali
esperando, aporrinhado já. Nada de Hilário, a mulher e as
duas filhas aparecerem. Já com fome, saí pra varrida e dei
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de cara ali, Dona, ali, com duas cruzes fincadas no chão.
Naquele meio breu de seis horas no mato. Ali, Dona, ali! Me
subiu um arrepio no cangote do que podia ser e saí no
disparo de volta. Até parecia que escutava o gemido das
almas a me pedir ajuda lá de longe onde estavam as cruz.
Pra lá ficaram as visagens. Acho que foi coisa dos três do
Boiadeiro. Quando cheguei perto da casa do Hilário vi de
longe Fogoió olhando pro meu casco. Deitei na lama mesmo,
no meio dos açaizeiros. Putamerda! O peste subiu no porto e
depois pro mato com uma espingarda. Dona, eu num ia trocar
tiro com ele, pois também tinha minha cartucheira fiel. Me
bateu o medo. Sou medroso, sou de paz. Me escondi no pé de
um mututizeiro que tava por ali por horas até que Fogoió se
foi. Acho que foi buscar alguém, o sacana. No que tomei
coragem, dei a volta na posse do Hilário até chegar na
costa da Ilha dos Catitus. Lá longe vinha um barco. Fiquei
quieto e vi o dito Fogoió com mais dois olhando pro mato.
Eu ali no meio do aturiá. Ainda bem que tava escurecido. E
lacraia me ferrando chega eu chorava fino. Larguei o casco
de mão. Voltei pelo palmital. Como achei de volta Dona?
Olha, eu tinha que achar senão iam desconfiar que eu tinha
sumido. Nestas horas nasce até inteligência na gente. Vixe,
deu até uns beribéris em mim agora falando nisso. Você tem
aquele remédio Dona? Deus lhe pague. João Impinge, calma
João, deita aí na tua rede. Acho que é fome Dona, tem aí o
que comer?
ATO 3 – ELE DISSE COMO ERAM TRATADOS
Nem sei como abri boca dessas coisas Dona. A senhora
conseguiu arrancar de mim a fala né? Ó, lembra da promessa,
Seu Boiadeiro não pode saber que te falei viu? Se me pega,
tu num sabe...Como era o palmital? Bom ali tinha uns
Tapiris pra gente quietar, só os esteios de virola, palha
de buçu como coberta pra chuva e sereno, assoalhado de
açaizeiro. Encerado, o que é isso? Hum-hum. Só nossas
redes, corda de cipó, o Tapiri, o facão, uma espingarda, a
poronga e a guarnição levantada dos bichos. O que tinha lá
na guarnição? Charque, sal, açúcar, café. Só. Carne a gente
tinha que arrumar no mato, uma cutia, um jacaré, um
camaleão, uma galinha d´água quando a gente via. Umas
pacas. Hummmm. Umas pacas. Dona que eu tinha faro pra caçar
paca gorda. Era eu meter a cabeça no mato, que elas se
aperriavam, saiam doidas pra lá Pei! Pra cá Pei! Eita,
eita. Era num tempo que tinha muita, mas aí a gente não
pensava nas prenhas. Como sabia? Num sabia, desconfiava que
tinha paca prenha quando dava fevereiro, inverno crescendo.
Mas a fome a senhora já viu né? Não dava pra ficar com
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murrinha de ir fazer varrida nem pensar nas pacas que a
gente caçava. Tinha que brigar pelo de comer. Mas não era
complicado, tinha muita paca. Muita cutia. Peixe então, nem
te falo! A gente fazia a tapagem dos igarapés com pano de
pari, na maré alta. Depois era só fiu!! Muito jaraqui,
jiju, jacundá. Era o que salvava a gente naquele tempo. A
senhora já trabalhou com fome e ter que contar que ia
arrumar algum de comer? Poisé, os macho sempre butucava
sobre isso. Cachorro que estava com a gente, o Saliente,
era o melhor dos narizes e era quem eu mais botava fé.
Saliente? Sim, era o nome do cachorro que a gente tinha.
Bom, demos o nome de Saliente porque gostava de montar nas
caça abatida e tentar fazer filho nelas, desde mirradinho o
pulguento. Pois foi: Saliente. Era preto e branco, seco,
mas forte que nem eu fui a vida toda. João Impinge bom
caçador? Que nada. Uma vez conseguiu, tu acredita, pegar
uma peia de um mutum. Bicho brabo, mas não é pra tanto
quando se é macho. Mas João Impinge neste dia foi mexer no
ninho da fêmea e pegou bicada até não querer mais. Olhe
Dona, correu tanto que escorregou e descambou de um
barranco em cima de um pé de murumuru, foi espinho bem no
meio da moleira. Rá! Com a mão na cabeça em minha direção
pra eu catar o espinho. Abri a cabeça do danado e estavam
ali o espinho, o piolho, a pulga e uma tucandera. Valha-me-
Deus! Que dei com o sumo de anhinga na cabeça do infeliz
pra espantar aquelas bichas. Só faltava dar tapuru, hum não
falta muito pra esse panema. Olha a cara dele aí, senhora,
todo desconfiado. Rá!
Dona, não pede pra respondê isso. Não quero. Chega me
deu beribéri. Tá na hora do meu remédio, né? Tô com sono.
Posso dormir?
Bom dia senhora. Bom dia. Bom dinha pra cá João
Impinge, Rá! Hein Dona, esses homi aí contigo não tem casa
não? A senhora não tem casa não? Eu tenho. Meu Tapiri. Fica
ali no centro de Ilha dos Catitus. Lá eu tenho minhas
coisas, retrato de Antonieta, minha Antonieta.
Donzela, minha donzela,
No dia que fui pra guerra
Jurei voltar pra sua terra
Pra gente ter que casar...
Ah Antonieta, que saudade. A senhora é casada? Pudera.
Muito bonita. Eu fui casado. Sim, no tempo de Antonieta não
tinha outra mulher na história. Fui cabra direito. Depois.
Bom. Depois fui viver nas quebradas até chegar no Beiradão
do Jari. Ah, bons tempos de sacanagem. Quase me ajunto com
Dinéia. Foi quase. Eu até podia ter tirado ela daquela
lida, mas num fui homem de guerrear com os outros. A dona
do puteiro, como chamava ela? Como chamava? Paloma! Isso,
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Paloma. A porra da Paloma tinha uma ciumeira da Dinéia,
acho que era enrabichada por ela. Mandou recado que seu
fosse tirar a Dinéia de lá, uns maranhenses facudo ia
visitar minha rede e a dela. Larguei dela, que chorou, me
arranhou todo no peito pra eu ficar. Não dava. Me fui. Sou
muito medroso. Não. Outra vez mulher minha morrendo não dá.
Purquê digo? Vai que puxei pra panemice do outro aí, o
Impinge pra num ter sorte. Esse aí teve mulher sim, umas
quatro, mas foi corno de todas. Pra você vê, Impinge foi
bom, não batia, trabalhador, mas foi corno da ocasião.
Pensa que ficou cuíra e quis matança, que nada. Foi sempre
pegando seus panos de bunda e se mandando. João Impinge de
Oliveira Pano Branco. Aqui se juntou duas vezes o praga.
Não diz isso, moça, num tô enrolando a senhora não. Só não
gosto de falar daqui.
Na fábrica, Valéria começou a recramar do trabalho.
Dizia que não davam nem água pra ela. Começava o trampo às
sete da manhã, almoçava um pouco e já caía na tarefa.
Terminava de noite a lida começada de manhã, deitando na
rede bem lascada do cansaço. Não sei nem se aguentava meu
filho precisado. Ô vida das mulhé! Hoje eu entendo, hum.
Seu Boiadeiro? Tinha montado uma vila de um primeiro
trapiche, e disso moravam lá os funcionário. Pagamento? A
gente recebia, mas devolvia para pagar a comida que deixava
em casa. Meus netos, Mário e Mariana, já estavam correndo
pela morada e precisavam de roupa e comida. Passarinho quer
comer, não quer saber. E Valéria tava fininha, fininha como
uma taboca. Foi quando teve os nenéns que aproveitou o
resguardo pra descansar. E ali ficou mufina a Valéria de
tanto trabalhar. Ganhava 100, devia 300 pro armazém do Seu
Boiadeiro. Foi se enrolando, enrolando. Tinha que trabalhar
mais e mais pra saldar a dívida. Aquilo num findava. Quanto
tempo durava um resguardo Dona? Na cidade é isso? O nosso
durava uns 90 dias no costume. Mas na terra de Seu
Boiadeiro, era só de um culto pra outro. E só.
O pessoal da vila também estava todo endividado. Não
tinham nada. Seu Carlos se emputeceu daquilo e tentou sair.
Disse que ia cair no mundo. Pegou os filhos e a mulher e
saiu numa casco dentro do igarapé do Hilário. Pegaram eles
já na praia do Visconde no outro lado. Os filhos ficaram. A
mulher também. Mas seu Carlos sumiu. Acho que fincaram mais
uma cruz por aí. Vixe! Daí tiraram a televisão da vila e a
partir disso a gente não sabia do mundo. Foi por isso que
me apelidaram Nico Caduco. A senhora vê, eu era a pessoa
mais velha e que tinha rodado. Conhecia uma mina de cidade.
Quando eu falava de uma fábrica que tinha o tamanho aqui ó
da ponta da vila até a dobrada naquela ponta ali ó, eles
falavam que eu ia caducando. Devia tá. Mas eu vi atracar
aquela balsona lá no Jari. Quando falei isso, que ela veio
de balsa diz-que do Japão, aí que me chamaram de Caduco. Só
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eu dizia as coisas do Brasil, os presidente, Médici,
Gaisel, Figueredo, Tancredo morreu coitado, Sarney, até
quando eu pude saber. Dali em diante fiquei fora do mundo.
Pensa naquelas crianças. Meu neto tem 14 anos. Minha neta
tem 13. Nunca botaram a vista numa televisão, acredita
senhora? Não estudavam, não sabem lê até hoje. Como é que
eu podia ajudar? Mal sei lê. Sei desenhar meu nome. Até
comecei, mas eu mesmo não sei direito escrever Mário e
Mariana. Ô peste ... só falava pra eles pra sonhar com a
escola. Que iam virar doutô. Ele professor. Ela enfermeira.
Ah, quem odera. Mas eu pedia, sonha tu, sonha ela, sonha
tu, sonha ele. Pior. Já estava Mariana na fábrica. Já
estava Mário no centro cortando palmito. Foi quando vocês
apareceram.
Se o trabalho do palmito era ruim? Deixa eu te dizer
como era mais ou menos, é pusquê suprima, desculpe a
intimidade, Senhora, deixa eu te dizer, a gente vivia
molhado. Era uma vida na água. Da barriga da perna e da
barriga sempre com frio. Uma sensação insossa da vida,
sabia? Vez em quando uma beliscada na batata da perna, da
friagem. Seu Boiadeiro juntava os homens no trapiche da
fábrica dele, dava a guarnição naquela miséria, e nós a
amolar o facão. A gente amolava o facão enquanto ele
falava. Nós de cabeça baixa amolando. Jurando. Jurando. A
gente sempre jurava, mas não cumpria o que vinha na cabeça.
Ele escrotiava com a gente, chamava de tiricentos, pra ele
todo mundo era preguiçoso ou corno. O Bixuga, coitado, já
tinha o pobrema da cara cheia daquela bolotas, ainda tinha
que ouvir quieto o Boiadeiro falar do jeito dele. Dizia que
era veado, o que a gente já sabia e nem ligava, pois era
pessoa boa e muito, mas muito trabalhadora. Seu Boiadeiro
fazia questão de humilhar ele. O disgrama do Espinho,
jagunço fedido, vivia batendo no Bixuga, sei lá porque. Sem
motivo. Te digo que teve vez que ele foi lá no Tapiri só
pra judiar no Bixuga, cê credita? A gente amolava o
terçado. Aquele Jacuraru com o revólver olhando pra gente,
reinando. Fogoió olhando pra mim, eu de cabeça baixa,
amolando, percebia. Beto sentado no porto com as pernas
balançando bestava olhando pro mato, vivia assim.
Do porto a gente caía no mato, tinha que ir lá pro
centro. A gente acordava antes no cagá-dos-pinto no alerta
do Jacuraru, dependendo da maré pra pegar de enchente até
chegar no palmital. Os cascos tudo ali na boca do igarapé
do Hilário. Até lá a gente andava. Seguia na fila, sempre
tinha uns dez armados andando conosco. Quantos? Éramos
vinte. Diabo do Boiadeiro contava um armado pra dois com
terçado, só pra ter certeza quem ganhava no caso de um
pára-pra-acertá. Se tinha bota? Rá! O nosso sapato era o pé
mesmo, vê aqui a grossura da sola do meu pé, viu? Ó!
Murumuru é brinquedo pra mim. Mas o João Impinge coitado,
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mostra pra ela macho? Deu nojo? Isso é tudo buraco de bicho
que deu nele. Cabra com pezinho de moça. A Dona acredita
que ele pisou até em carataí?? Sei lá como se deu, só vi
quando o peste correu pra mim deu um pé só como saci. Rá!
Esse Impinge... mas o complicado era as cobras. Tem medo de
cobra? Nós também. Eu tenho um medo, medo, medonho.
Combóia. Coral. Surucucu. Jararaquinha. Vixe!
A combóia é bicho traiçoeiro. Tá sempre na espreita
nos pé de açaí, naquela ramada de baixo. Veneno forte
daqueles que apodrece onde pega. Se enrola de tal maneira
que num se percebe. Fica da cor de tudo a desgraçada. Na
lama do chão, na touceira, debaixo da paxiúba, ali no
mututizeiro, dificilmente no aturiá, num gosta muito eu
acho. Seu Lau, um dos nossos, quando estava pegando pela
folha do açaí pra cortar, foi batido ainda bem que na ponta
do dedo fura-bolo, foi rápido Tchá e saiu dali sem contar
conversa, pegou o facão, torou a cabeça da bicha e ponta do
dedo envenenado. Vap. Andiroba aqui. Pracaxi ali, uma reza
do Xarles, nosso pajé, o fogo pra terminar de queimar o
dedo pra num dá tetanu e o homem ficava bom. Só que com o
dedo que parecia uma cabeça de jiju de tão feia. Remédio
pra cobra se a gente tinha? Rá! Hospital? Rá! No máximo a
gente mandava recado pro agente de saúde, o Ramalho, que
mandava pra gente ampola com negócio dentro. Não, ele não
vinha aplicar, paresque que seu Boiadeiro num deixava. Dava
pro Xarles e ele se virava. Mas isso quando chegava a
notícia pra ele.
Coral era fogo. Tu num dá nada. Pequena, nem tem dente
pra fora. Anda quieta e nem te pula. Graças a Deus num te
pula. Tchá!Rá! Te assutei Dona? Rá! Tu acredita que o João
Impinge conseguiu se picado de coral? Num morreu num sei
porquê, achou uma rastejando em cima do short pendurado no
varal e começou a desafiar a coragem, brincou com ela,
atazanou, frescou com a cobrinha, dava beijo na cabeça da
sujeita. Tava porre? Pior que tava. Aliás, taí um homem que
gosta de uma cachaça! Nós gosta, mas ele quando vê uma cana
cai de boca. Nesse dia ele estava bem boneco mesmo. Bem
boneco. Dançou com a coralzinha, já emputecida se me
permite pensar. Eu ficaria. A senhora ficaria? Pois é, e
num dormiu ali desbundado com a cobrinha perto? Joguei
longe. Mas acho que a coral tinha pegado tanta corda do
Impinge que veio devagar, devagar, veio pelo cipó que
amarrava a rede, desceu pelo punho e foi chupar bem devagar
o pobre do Impinge. Só de raiva. Dona, esse homem quase
morreu. Deu febre. Popocou braço do cabra. Olhava pra
cima, pra cima, queimando, queimando, os olhos tavam
branquejado. Achei que o sacana ia bater o cacau desta vez.
Xarles começou umas reza, uma folha, uns chás, uns restos
de ampola na veia do homi e foi e foi. A chuva pegava forte
nesse tempo, a gente chegou a cobrir o João Impinge com um
NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...
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ajuntamento de tururis que acabou virando um porrudo
lençol. Depois de sete dias começou a melhorar. A febre
indo, indo. Taí o peste se mostrando pra senhora. Vai
brincar com coral de novo, vai?
A surucucu, Dona? Ahh, aquela sim que mete medo. Eu
diria que a mãe das cobras. Peçonhenta! Filha duma água!
Ela persegue o caboclo. Num acredita? Pois digo e digo de
novo, ela te marca, te pega raiva, ela corre atrás de ti.
Tava eu e o Valdo no rastro de um tatu, quando escutamo se
mexendo lá dum buraco uma coisa. Valdo disse que o tatu
escondia ali. Tá não, tá não, foi pra ali. Bora? Ele
teimou. Tá, dá uma cutucada com vareta que eu vou ispiá lá
por trás daquele pau-mulato ali. Valdo pegou da vareta.
Cutucou, mexeu. Cutucou. Mexeu. Resolveu pegar o tatu na
unha e lá no meio do esforço de chegar no fundo, um troço
pegou na chave da mão dele e puxou ele pra dentro. Ficou no
buraco até o ombro. Puxou, repuxou, lutou. No grito dele eu
vim correndo e ele tirou o braço de dentro nas últimas.
Perguntei que foi Homi? Ele só disse que um troço mordeu e
puxou ele. Nessa hora saiu a bichona lá de dentro, Dona?
Como é grande, amarelona, pitú, pitiú que só a senhora
vendo. E veio pra cima da gente. Veio mesmo. E haja nós
tentar dá com o facão. A espingarda? Estava tudo já no chão
e começamos a correr, quando olhei pra trás, a maldita ali
no nosso rastro. Deus que carrera a minha e fumo embora que
nem dois tijubina! Dizem que a cobra quando não pega alguém
fica com tanta raiva que começa a se morder toda. Deve tá
lá até hoje me esperando. Mas o Valdo, coitado, levou
mordida demais. A mão foi apodrecendo, apodrecendo... ficou
por ali com a gente cotoco do braço, aqui no ombro. Ah, a
Senhora conheceu ele? Pois é, aquilo foi surucucu.
Jararaquinha era o que mais pegava no pé. Pegava
mesmo. Havaiana, coitada, num tem como segurar e quase tudo
nós tinha fisgada de jararaquinha no calcanhar, no dedão. É
pequena a bichinha mas dá um prejuízo... Num dá pra
brincar. Se não cuidar morre mesmo sendo pequena a cobra. O
filho do Miguel, coitadinho, coitadinho Dona, coitadinho.
Brincando no terreiro de casa, num tinha nem dois anos. Num
pode deixar pequeninho andar pelo barro, num tem sustança
pra essas coisas. Ninguém entendia a febre, só a mãe olhou
aqueles furinhos no pezinho da criança. O bichinho gemia,
Dona. Gemia até quietar o suspiro. Ai meu Deus! Meu Deus!
Ai que o mundo vira carambela se as crianças se vão. Ai que
tudo é só uma tristeza medonha. Sem fim. Ai que o Miguel
sofreu muito, ai que Dona Marlene gritou, gritou chega a
gente tapava as orelhas. Miguel dava com a cabeça no esteio
da casinha deles na vila com tanta força que quase veio
abaixo. Ai Dona, que dor. É assim mesmo Dona, num chora.
Era assim que eram as coisas. Tô com sono, posso dormir?
Deus lhe pague.
NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...
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Bom dia, senhora. Bom dia Impinge, eita, que chuva que
num pára, né? Daquelas cor-de-rato, passa agora não, Dona,
melhor continua quieta na rede. Rá! Como a gente aguenta? A
gente se acostuma. É muita chuva na moleira. A gente pegava
a canoa de manhã e saía pro palmital. Tudo quieto, uma
encarnada aqui, outra piada alí. E a gente remando. Era pra
passar o tempo. Uma hora e meia de remada. Aquele frio que
num passava, haja café pra esquentar por dentro. Haja
baforada da porronca nossa. Eu remava com meu parceiro
aqui, o Impinge, devagar, só na manha pra poder reparar a
lama no pé das plantas, como tem planta nessa mata, tudo de
um jeito diferente, nunca repetia. Pra senhora repete, só
que pra nós não. Tudo é novidade. Aquele mulateiro
esgalhado pra buscar o sol, por isso cambou pro lado assim
ó. Aquele assacuzeiro enorme que tinha um furo no meio. Uma
árvore deitada quem nem uma fêmea jeitosa. Desculpa o
atrevimento, Dona. A gente remava quieto depois da piada
pra guardar força pro trampo, cada um dos vinte pensando
sei-lá-num-sei-quê. Xarles pensava acho que nos remédio alí
no mato e vez em quando reparava um chicuã que só ele via,
mais ninguém. Se benzia. Dizia que era agouro. Mas aí
olhava pro João Impinge e ria. Valdo remava capenga de seu
só braço, acho que ele invejava os outros remando de cada
lado, mas juro que a puxada da água dele era mais forte.
Ele Num queria perder pro outro. Era a peconha mais segura.
Era a melhor terçadada no palmital. Sei lá, era meio que
com raiva. Bixuga era calado, mas sempre a oferecer café
pra esquentar a gente, vez ou outra pegava ele olhando para
a cor dos tajás, as flor que dá pro ali. Bromélia, Dona?
Pra nós, tajá. Rá! Ele olhava, olhava, como se quisesse
tirar mais cor daquelas flor eu digo até bonita. Ele sempre
catava e plantava no Tapiri. No início a gente brigava com
ele pra num empatar nossa ida pro palmital, mas ele ia
assim mesmo e caia na água e de lá um jeito de trepar nas
árvore. Trazia na camisa aquele mato velho. Mas num é que
dava uma florada bonita, como é qui pode daquele musgo saí
uma flor daquela? Só Deus. Só Deus mesmo. Paramo de pegar
no pé dele depois disso. Num fazia mal pra ninguém e o
porra do Espinho a atazanar ele.
Osmar era outro que pegava coisa do mato. Tava sempre
na parceria com seu Lau, o do dedo torado da combóia,
lembra? Mas Osmar pegava peixe. Era um bom pescador. Sempre
na linha, no caminho das canoas estava ali na busca pela
jatuarana. Eita peixe gostoso. Num gostava de tapagem,
dizia ser uma covardia no enfrentar do peixe, ele queria
té-ti-a-té-ti. Contava prosa que lá em Almeirim, era terra
de jatuarana graúda. Lá dos igarapés que chegam no Lago
Branco. Eu concordava com ele. Comi muito desse peixe por
lá quando fui mais novo. João Impinge fazia cara de fome
quando a gente falava desse pescado. Rá! Ispia, que nem
NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...
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essa. Tem bolacha, Dona? Dá uma pra ele. Rá! Sei lá, não
tinha a mesma graça. A jatuarana quando se pegava ia pro
casco e do casco pro fogo, moqueado. Mas num tinha o mesmo
sal. Lá em Almeirim quando lembro a gente ria no comer,
pois depois da bóia, cada um rumava pro seu destino, como
apontava na venta. Aqui não, sempre meio tristeza e esse
frio nas pernas. É de perder o sal. Nem vento chega na
testa da gente por aqui. Nós tudo pensando na família da
gente sem uma vida que prestasse. Naquele silêncio a turma
remava. Naquele molhado sem fim. Naquela toada plóft, plóft
de remo sem alegria. Vez em quando pulava o macaco de
cheiro por entre as cabeças nossas, nem prestavam a atenção
na gente. O pé nosso sempre friorento, esbarrando na cuia
que tirava a água da canoa. A bunda sempre aguada do limo
do sentador da montaria. Saliente naquela tremedeira de
frio de cachorro. Cabelo da gente sempre lavado da galhada
batida por nossa cabeça e vinha aquelas muitas gotas de
água a nos benzer. E tinha um ingazeiro no meio do rio, uma
ucuúba, mututi. Quando o facão não liberava aquele
impedimento, os machos iam pra água pra acertar de machado
ou até pra botar em riba das tronqueiras nossas canoas. O
Flaviano tinha uma gripe que num passava o abençoado. Era
aquela tosse de cão perdido. Sabe quem é? Aquele mesmo que
vocês levaram com passamento. Hum, tuberculose? A Senhora
diz que ele tinha? Bem que ele tossia muito. É mesmo, mais
tossia do que falava. Quando começou? Por causa desse aí, o
Impinge. Numa das viagens, a gente se viu olhando aquele
veado grandão, vermelhão ali por cima de uma restinga.
Saímos com a cartucheira, pulamos dos cascos pra cercar o
bicho. O cachorro Saliente combinou conosco que iria pelo
outro lado trazer ele pra essa banda. Nós concordamos. O
seu Lau, de cá, o Impinge de acolá por dentro do igarapé, a
água malmente aparecendo a boca dele. Quando percebemo tava
o João ali parado no pé da paxiubeira inundada, olhão
aberto, quando o Valdo chegou perto gritou Puraquêêê!! Olha
o sacana pretão ali por perto dando choque no Impinge. Ele
ali preso ó disgraça no meio daquela raiz toda pontuda. Eu
fico hoje imaginando como esse piolho do João se mete
nessas coisas? Tentamos espantar, jogamos o remo pro peste
fugir e nada! O Saliente veio desembestado latir, e ficou
por ali na redondeza né, já na proa do casco, num é besta
né? Foi quando Flaviano deu com terçado no cocorote do
Puraquê, que foi ele voar como se uma maresia de navio
tivesse jogado ele oitos braças pra trás. O danado rabiou e
saiu por dentro duma caída. Pegamos o João. Por pouco não
bateu o cacau. De novo! Flaviano ficou na febre. Na febre,
uma fraqueza no peito. Deu uns pigarros sempre por ali a
partir daquele susto. Até parou da porronca. Tosse. Tosse.
Tosse. Eu bem que achava ele meio magrelo depois disso,
chega aparecia as costelas todas pra contagem. E molhado.
NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...
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Encharcado. Como todos nós sempre naquela labuta. Viu o que
tu fizeste João? Impinge de Oliveira Pano Branco. Mas quê
Dona? Como num brigar com ele, é cheio de arrumação. Vai
ficando com dó, vai? Ele te passa a chaga dele. Rá!
Aí Senhora, quando enxergava o Tapiri, ai que festa.
Era ficar menos molhado, até seco por umas horas. Dormir
cansado da lida, ali naquele ajuntamento de redes, de
toalha e roupas ali penduradas, tudo com pouca cor,
retiradas por tanta água. Eram quatro casinhas, cada cinco
num Tapiri. Mas a gente repartia tudo. Era uma turma unida.
Nunca puxamos briga um com outro. Não. Minto pra Senhora.
Teve só um caso, quando o Valdo se estranhou com o Mundico.
Mundico era muito bafento. Daquele tamanho, queria ser
patrão de nós. Faz isso, faz aquilo. E um dia soltou um
porra quando o Valdo deixou cair a água da panela no fogo
que cozinhava. Sabe aquela cara de Ei-seu-aleijado! Vê se
olha! Pois o Valdo olhou sério pra ele e foi cortar lenha.
Pegou o machado e veio de um jeito que a gente se arrumou
pra evitar o pior, mas o homem passou pelo Mundico, que
ficou ali parado, todo cagado. Valdo parou perto de cepo de
um matamatá. Cada braçada era uma lenha! Cada braçada uma
lenha pro fogo. Valdo mirava Mundico. Mundico não mexeu
mais. Tirando isso, todo mundo trabalhava em paz. Nossa
bronca era com o Espinho, Fogoió e Jacuraru. Eu por eles
amolava o terçado.
Nossa matemática era assim, muito palmito. Cada três
de nós tinha que fazer um milheiro por dia. Vap. Vap. Do
sol saindo até noite. Os três homem do Seu Boiadeiro
espiavam se a gente estava matando rancho. Quando, Dona?
Ali mesmo no inverno. É quando as água fazia chegar nos
centros. Um imenso dum açaizal a perder de vista, parecia
que era uma vida inteira para cortar. Vap. Vap. Cortava o
açaizeiro ali caindo um por cima do outro. Vap. Vap. Tirava
a cabeça, fazia o descasco e com o facão mesmo empurrava
num canto o resto daquele refugo. Os pés de açaí maiores,
os mais criados, a gente torava de machado. João Impinge
arrumava as pilhas de palmito. Quando eu cansava, trocava
com ele ou com o Valdo, nós formava nosso trio. Trezentos
pra mim, trezentos pra João, trezentos pra Valdo no mínimo,
depois a gente metia lenha pra mais cem, fechava o
milheiro. Era cota feita. No outro dia, a gente só fazia se
benzer e de novo e de novo. Muitos anos assim foi a vida.
Tudo por causa de um troço que nem é bom de comer! A
senhora gosta de palmito, Dona? Eu não! Nenhum de nós comia
palmito. E vivia nas portas da morte por ele. Nunca entendi
nem pra onde ia. Pra São Paulo? Hum. Às vezes o Osmar
mascava um, sei lá, era uma misura dele.
Como se trabalhava muito naquele tempo. Milheiro e
mais milheiro. E quando chegava o tempo das carapanãs?
Quando era? O ano todo! Rá! É por isso que a gente fumava
NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...
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tanto. Pra espantar aquelas praga do mal. Zunindo. Ai meu
Deus, como cantava no ouvido Tá ali!! Tá ali!! Nico! Nico!
Peste de carapanã naquele canto lá dentro da alma. Aquilo
não é bicho de Deus não. Deve ter saído de um buraco para
azucrinar Adão quando saiu do Paraíso, só pode! Uma vez
Dona, deu tanto carapanã, mas tanto que num dava pra abri a
boca! Miséria! Foi quando eu vi, naquele bando de açaizeiro
cortado aqueles copos que a gente deixou nos açaizeiros
abandonados, ó que dançavam os filhote de carapanã. Olhei
pra frente e vi aquele mundo de açaí cortado. Um mundo de
copinhos naquelas touças cortadas. Muito carapanã pra
nascer ali. Combinou a gente que o corte do palmito seria
pra fazer um bico de gaita, pra escorrer a águinha nas
touceiras mortas, isso pra tentar diminuir aquelas fera.
Nesse dia que a gente não abriu a boca, o João Impinge
achou de trampar com camisa preta. Eita que ficou aperreado
mais ainda. E corria e corria, e aquela nuvem perseguindo
ele. O Saliente latindo atrás. Todo mundo rindo. Naquela
noite foi dormir todo pirento, popocado. Nossa sorte é que
eu sabia fazer fumaça com o bagaço da semente da andiroba.
Ela espanta carapanã. Quem me ensinou? Uma senhora lá do
rio Ipixuna, lá pra banda do Lontra da Pedreira, no Amapá.
Muito carapanã. E muita malária dava lá. Tive, Senhora,
tive uma dez malária. Toda gente tinha malária aqui no
palmital. Foi o que matou a Glorinha, Oh meu pai, tão
bonitinha a pequena. Foi no tempo que as mulheres começaram
a vir pro palmital. E se vinha mulher? Vinha... depois
conto pra Senhora.
Mas quando não era moriçoca, era mutuca. Ahh, desgraça
é mutuca. Ah dialho de sujeita. É mosca sem vergonha, vai
ali, te ferra, e sai. Te ferra de novo, e sai. Tu ralha.
Ela volta na cara-de-macaco. E dói a danada. A Senhora já
pensou no meio daquele sono bom, de costela com quem a
gente se enrabicha, no bom no bom, e vem aquela agulha por
debaixo da tua rede te ferra bem na costa, eita dialho. Mas
tem coisa pior... Quando o Mundico morreu... é Dona,
morreu. Foi um negócio esquisito. Começou a babar, a
golfar, uma alta febre. Xarles disse que aquilo era veneno
de sapo. Só se ele lambeu a costa dum, disse o Valdo. Nada.
Nada. Foi mutuca que passou veneno de sapo pra ele. O
enterro foi ali na posse do Hilário. Fizemos daquilo nosso
cemitério. Que Deus tenha todos eles. No dia do funeral do
Mundico, tinha acabado a porronca que a gente fumava.
Olhando pra cova e se batendo todo pelas muriçocas, seu Lau
disse que aquilo num era vida. Nesta hora, Todos nós
puxamos fundo ar pro peito com um punhado de inseto junto.
NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...
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ATO 4 – ELES NÃO SABIAM DOS ROUBOS
A senhora gosta mesmo de anotar as coisas, né? E eu
falando todo tempo nesse meio jeito cabocão. A senhora me
perdoa tá? Queria ter estudado mais, mas você vê que aqui o
pessoal me achava sabido. Vem cá, quando a gente vai pra
Macapá mesmo? Humm, atrasou né? Num carece pedir perdão, a
gente entende, né João? A Senhora é boa pessoa. O quê?
Cadeira de roda? Que é isso? Pra eu usar? Rá! Num carece,
num carece. É por isso o atraso? Dona Sílvia, posso ter
chamar pelo nome? Posso? A senhora é uma santa de verdade.
Eita café porreta. Sabe quem fazia um café assim? Seu
Apóstolo. Ele tinha umas mistura com erva-doce. Dona Sílvia
sabe quem é? Pois é. A gente conheceu aquele justo homem.
Num dia, todo mundo ali danado no corte do palmito.
Vap. Vap. Lá no meio da tarde, veio os capangas do Seu
Boiadeiro chamar a turma pro Tapiri. Pensei que era um dia
de cobrança da guarnição, só pra endividar mais ainda.
Quando chegamos lá tinha mais uns sete cabras, tudo armado
de revólver. Disse o Fogoió Olha esses homem aqui vão ficar
com vocês uns dia aí viu? Num pergunta quem é pra quê nem
qual foi que num interessa entendido estamos?? E deixaram
eles ali, com uma penca de rancho a Senhora imagina?
Sardinha, conserva, margarina, mortadela, bolachona
salgada, doce. Hummm. Só pra eles. Enxotaram oito de suas
casinhas e nós tivemos que ficar amontoado nas outras.
Ficaram ali uns sete dias. Nós cortando palmito e eles nos
Tapiris só ali, fumando, conversando baixinho, parece que
bolando arrumação ruim pro mundo inteiro. Vixe! No dia que
o Espinho e o Jacuraru vieram falar com eles, mandaram nós
ir pra casa da fábrica também. Fizeram questão de passar
conosco na posse do Hilário, ai meu Deus do céu, que
arrepiava. Chegando perto da fábrica deram umas pás pra uns
cinco da gente e os outros foram lá pro porto. E haja força
suprimo, traziam uns motor de embarcação, dois, três,
quatro, cinco... nove motor. Pediram pra enterrar essas
máquinas. Hunf, que fiquei com medo de uma pazada dar em
defunto lá embaixo na terra. A gente só fazia enterrar. E
falaram pra num preguntar o que era. Logo nós... os sete
homem se foram. Aliás, iam e vinham sempre. Se tocaiava ali
com a gente e aparecia mais motor. Vez em quando o pessoal
desenterrava uns dois ou três, acho que pra vender, só
pode.
Num desses dias de trampo, percebemos alguém se
aproximando. Pensamos que era os sete mal encarados mais os
três do Boiadeiro. Não. Era só um. Um homem alto, de
barbona branca até chegar por aqui no meio do peito, pele
escura, rosto sério com um par de olhinhos e cabelo da cor
da barba. Tossindo, Flaviano falou olha lá, será um dos
apóstolos? Eu ri, mas ri meio desconfiado que poderia ser
NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...
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mesmo naquele nosso fim e do mundo trazida a notícia por um
profeta. Ele chegou e disse Êh, a gente Êh. Fumo puxando
prosa. Ele disse que seu nome era Belquior e tinha achado o
barco dele sem motor parado lá na praia do outro lado,
quando viu um pedaço de camisa amarrado na rama de um
aturiá e decidiu seguir o igarapé até bater no nosso
Tapiri. Tu é doido, seu Apóstolo? Se espantou o Bixuga.
Pronto, ficou o apelido de Apóstolo. Vaitimbora que se os
homem te pega... avisou seu Lau. Mas o João Impinge estava
tão empolgado e eu também tamanho velho veja só que
começamos a perguntar das coisas que nem a Senhora faz com
a gente. De noite, foi ele quem começou a nos tirar a
resposta. Seu Apóstolo mostrou uma cara braba quando soube
como a gente vivia no Tapiri. Mais ainda quando soube de
mulher e criança que vivia presa na vila da fábrica.
Dormimos tarde essa noite. De manhã fez seu primeiro café
com aquele cheiro cheiroso. Hum. Disse que era erva-doce.
Que sempre carregava o próprio café, encomendado de um
senhor morador das bandas que reparte o Pará do Maranhão,
terra quilombola. Ispia que queria um daquele. A senhora já
provou café assim? Seu Apóstolo aparecia quando a gente
menos esperava. Acho que ele vinha umas quatro vezes por
ano. É sim. Eu falei que o Seu Apóstolo parecia Papai Noel.
Os outros me perguntaram quem é esse Papai Noel. Quando
disse quem era, disseram que eu era caduco, onde já alguém
espalhar brinquedo de graça pra criança? Aquilo não
existia. Perguntaram se eu vi. Disse que não. Taí. Nunca
vi. Uma vez Seu Apóstolo varou com a mulher dele, Dona
Estela. Uma senhora muito bonita mesmo com a idade madura
que já tinha. Os dois traziam mortadela pra gente, tabaco
do bom, isqueiro novo, uma vez trouxeram até feijão. Mas ah
que João Impinge num queimou a comida na primeira e única
vez que fizeram de cozinheiro. Ah credo, que o Valdo pegou
Impinge cozinhado e coçando o saco, cozinhando e coçando.
Ainda bem que o feijão queimou. Imagina a pimenta cominho
de onde vinha, disse o Bixuga. Rá! Seu Apóstolo dava cada
gaitada. Dona Estela duma panelada fez um negócio com
macarrão, com mais conserva, que juntamos rapidinho com um
jacaré desfiado pegado pelo Osmar. Humm. Que bóia boa
naquele dia, né João? Seu Apóstolo era um homem da lei do
céu. Aconselhava, dava força. Falava umas frases bonitas
que só a Senhora vendo. Não, não parecia ser pregação de
igreja. Dizia que a felicidade é quando a alma nela mesmo
se ajeita. A gente ouvia quieto, parado. Beto meu filho
parecia abobado naquela prosa. A liberdade vem de dentro,
não é questão de capricho, falava. Quando ele vinha, a
gente ficava mais leve. Mas Seu Apóstolo e Dona Estela se
iam deixando sempre saudade. Bixuga repetia, a felicidade é
quando a alma nela mesmo se ajeita e começou a fazer um
jiral ali numa canoa velha, haja cebolinha, chicória,
NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...
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ervacidreira, hortelãzinha, essas plantas, que ele cuidava,
cuidava.
ATO 5 – GANÂNCIA, GENTE, GANÂNCIA
Os sete cabra dos motores de repente ficaram passando
mais tempo com a gente. Iam pra vila e ali ficavam. Eu acho
que eles eram parente do Seu Boiadeiro, porque um deles
pedia benção, vê se pode uma peste daquela pedir bença o
desnaturado de tão ruim! Chamavam de tio. Tio Boiadeiro. E
foram ficando. Piorou até pra gente beber açaí. Antes até
que sobrava metade pra gente beber, a outra metade das
rasas era do seu Boiadeiro. Mas aí com a chegada dos sete,
nem isso. Quando se ficava com uma rasa era sorte, os
pestes botavam no barco da fábrica e iam vender longe. Acho
que pra Santana, não sei direito. Não era bom. Cortava
palmito, não tinha fruto, chegava safra, mal tinha fruto e
ainda tinha que dá assim ó pra aqueles sujeitos! Vivia
tomando açaí parau escondido. Mas tomava! Rá!
Numa época o palmital começou a diminuir na Ilha dos
Catitus. Pudera né? Tanto anos cortando. Desta feita,
começaram a levar uns da gente pra cortar em outro lugar,
na Ilha do Paraíba. Eu mesmo nunca fui. Osmar foi. João
Impinge foi. Mambira foi. Mambira? Mambira era um cara
esperto daqueles, era o melhor de ficar ali por cima dos
açaizeiros cortando lá por cima. O apelido era pra ser
guariba. Tem vez que passava uma tarde inteira sem pisar no
barro, vinha limpo. Sempre falava que avistava longe os
barcos passando pra lá e pra cá. E até um barco de ferro
dos grandes avistou. Olhava para os periquitos que passavam
por cima, e ralhava com eles, numa conversa que via bem ao
lado dele, mas não entendia o que passava. Depois paresque
que já entendia a prosa daquele finalzinho de sol. Mambira
e os periquitos a conversar ali naquela cor-de-céu
alaranjada, nem frio, nem quente, do jeito que a vista da
gente gostava. Mas olha, Mambira preferia ficar lá em riba.
Porque Dona? Algum de nós invadia a posse dos outros lá na
Ilha do Paraíba, forçado pelo Seu Boiadeiro. Coitados, só
iam cortar. Os sete e o Jacuraru mandavam bilhete pra
pessoa avisando que iam cortar palmito lá e que não era pra
ter reação. A Senhora imagina? Eu penso nos pai de família
enraivado de querer mandar fogo naqueles safados. Já pensou
se pega no João, no Osmar, no Mambira que num tem nada a
ver com a reza? Estão a mando. Pra senhora ver. Era muito o
abuso. Mandavam bilhete que iam roubar o palmito e tudo que
tinha na casa de valor. Só que um dia um senhor lá da
divisa com Breves não contou conversa e Pei!, mandou chumbo
neles. Morreu um pelo que eu soube depois, ao menos não
NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...
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nenhum de nós. Piratas? Era isso que chamavam eles? Eu ia
botar um apelido desse neles, mas aí iam me chamar de
caduco de novo.
É Dona Sílvia. Ganância. Botaram as mulheres pro
palmital. As crianças. Desembestou o seu Boiadeiro. Eu via
Mário e Mariana no suor dos dias sem poder fazer nada. O
fel me vinha na língua quando eu pegava um dos sete menos
um que morreu em Breves, acho que chamavam de Cutelo,
olhando pra minha neta com aqueles olhos de urubu, chega eu
reinava. Ele olhava pra ela toda, do fio de cabelo ao
dedinho do pé, quem nem uma envira rasgando devagar.
Valéria puxava ela pra perto e o Beto chegava junto. Por
mais que eles tivessem arma, mexer na alma de um pai pro
causa da filha não é bom negócio de mexer.
Pra num ter a confusão de macho precisado, Seu
Boiadeiro mandava trazer umas pequenas de Macapá, Santarém,
até de Belém. Juntou uma vez quatros moças para os seis
levar pro Tapiri. Glorinha, Dalva, Nicéia e Solange. Se
eram mulher da vida? Duas eu digo que sim, a Dalva e
Nicéia, mas Solange e a Glorinha eu duvidava que fosse, mas
sei lá. Só sei que duas se fartavam nos homem do seu
Boiadeiro, não pelo apego, mas pelo dinheiro que mostravam
pra elas. Escancaram uma boca de poucos dentes de gosto e
pediam pra gente botar música no rádio. Eu só fazia mudar a
estação xiiii-xiiii pra uma que só tocava lambada do
Caribe. Como eu sei?? Ih, Dona, as lambada de hoje vieram
de Caiena tu não sabe?. Ó Impinge, dança aí,
Ipithipithiiiiiii. Esse Impinge! Rá! E os homem dos motor
e as mulher ficavam ali na sacanagem. João Impinge até
tentou dá uma, mas a Dalva e o Fogoió lhe deram uma remada
de lá que teve que se esvaziar na mão mesmo. Rá! Nós tudo
vendo, Glorinha e Solange tudo vendo. Solange fazia mais na
calada da noite, no hu-hu do jacaré. Glorinha era arisca.
Acho que não era do ramo.
Não, Senhora, Glorinha era moça direita. Tava ali não
sei porque. Ela se deu com o Mambira. Até deixou o peste de
conversar com os periquitos. Mambira ficava ali amuado de
ver o Jacuraru levar ela pro meio do mato. Dizia ela que ia
pegar cacau para não ofender o Mambira. Êta homem bobo que
não entendia nada. Ele até me contou que a pequena veio da
cidade de Belém, fugida de outras confusão por lá por causa
dos irmãos. Como foi prometida de morte por conta dos manos
dela, pediu ajuda pra uma amiga, que disse a uma comadre,
que indicou pra uma vizinha, que a destinou para uma
madame, que ofereceu à mulher oficial de Seu Boiadeiro os
préstimos de Glorinha, ela ali toda durinha a provocar os
caboclos. Quando se espantou, a moça tava embarcando pra
nossa ilha, no jeito de pagar as dívidas de comida e roupa
que lhe davam. Esse Boiadeiro é o filho do cão!
NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...
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Os seis homem e o três capangas já não saiam do
Tapiri, tudo de pimba desembestada pras mulher. Quer dizer,
nem tanto o Espinho, que parecia mais dar surra nelas do
que se fartar. Teve dia que a gente ralhou com o Bixuga,
que falhava no comer da gente quando voltava da empreita
por causa que estava cuidando do olho roxo da Solange.
Nicéia e Dalva não falavam nada. Apanhavam. Ali quietas
ficavam. E deu a febre nelas, a febre certinha de poente.
Era maleita. Foi nisso que Glorinha morreu, abobando
palavra, palavra abobando. Ai mano, ai mãe, ai pai que a
gente vai quando andar de carrossel?? Olha o cavalinho azul
que roda que roda! Vai mano, joga a peteca lá, lá. Pai e
mãe tão vindo aí? Êêêêê... todo dia a falar mais baixo,
mais baixinho de bater os dentes do falso frio da febre.
Mambira ali no lado dela foi testemunha de seu riso
derradeiro, olhando pra ele com aquele olhão de gratidão,
parecia duas sementes de olho-de-boi viajantes da baía do
Vieira. Foi mufinando, mufinando. E morreu aquela flor.
Mambira, Osmar e seu Lau ajudaram no enterro. Depois dessa
morte, Seu Boiadeiro deu sumiço nas pequenas. Mambira
voltou a ficar lá em cima nos pé de açaí, chorando ao lado
dos periquitos, que retribuíam o choro do amigo. Era de
arrepiar a espinha aquela lamúria de fim de dia. Ó Dona,
deu moleza no corpo, posso me deitar? Agradecido Dona.
Mas eu esqueci de falar ontem, Dona, a Solange foi
levada por seu Apóstolo e Dona Estela. Como? Quando ele
veio nos visitar, encontrou a mulher ali na rede ardendo na
malária. Perguntou quem era ela? Dissemos Solange e só.
Como Boiadeiro tinha levado primeiro a Dalva e depois a
Nicéia para não atrapalhar algum curioso do bater de dentes
delas em dizer da morte da Glorinha, na vez da terceira seu
Apóstolo veio ver a gente, justo quando os seis tinham
caído na patifania de mais roubo. Perguntou De onde veio a
Solange? Ela mesmo disse no febril lascado, de Macapá, das
bandas que vinham do Oiapoque, acho que da estrada. Dona
Estela agasalhou a moça em duas redes mais um lençol da
gente, aprumaram-se na canoa e seguiram adiante pro rumo da
Ilha deles. Seu Apóstolo disse que tava na hora de alguém
tomar uma posição daquilo tudo. Meu filho Beto até quis ir
com ele, mas achou melhor não ir pra não me deixar só ali.
Por mim ele sumia e levava meus netos.
Dona Sílvia, o tempo depois do fato da Glorinha ficou
muito pior. Os machos não só cortavam palmito e enterravam
assalto de motor, já escondia também outros pertences dos
outros. Quando voltava pra fábrica, era o aumentar da
tristeza do pessoal que tava nos potes de palmito mais
magro, mais necessitado. Valéria e algumas outras senhoras
reclamavam já de falta de comida pra elas, pros meninos,
pros machos do palmital. Só que ali tava o Jacuraru
NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA DE INVERNO...
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mostrando o dente de ouro, a pulseira de ouro. Fogoió era
até discreto. Mas tava lá o Espinho com um relojão
daqueles, camisa pra dentro da calça, de botão, sapato
fino. Só não dava a coragem nele de botar chapelão, porque
aí o próprio Boiadeiro ia ficar enciumado de sua gabolice,
querendo ser mais patrão do que o patrão. Tanta pavulagem e
perdia tempo fazendo maldade nos outros, no Bixuga o alvo.
João Impinge tá rindo olha a cara do sacana. Porque Dona?
Ahhhhh, sei lá se conto. Conto Impinge? Conto. E num dia
desses de vap vap de palmito, veio o João Impinge numa cara
abestalhada, do tipo que viu briga de jabutis. O que foi
Impinge? Apontou pro rumo do rio Canhoto, veio de água que
passa uns cem passos de caminhada do Tapiri, onde a gente
costuma fazer tapagem para pescar. Lá o Bixuga costuma
lavar as louça, pois diz que a modo que a água é mais
limpa. Pois foi Impinge atrás de uma paca que tinha topado
pelo caminho do palmital. Olha se eu não digo pra ele ir
atrás da bichinha, tinha perdido a história! Impinge vem
devagar no silencioso dele viu de longe aquele movimento de
roupa lá longe, veio de butuca, desconfiado. Rá! Desenhou e
fez os gestos que quando eu entendi cai na gargalhada, eu e
mais o resto dos machos do palmital. Até os carapanãs
pararam pra escutar. Mostrou Impinge que o Bixuga tava
montando até o toco no Espinho, ajeitado numa sapopema de
mututi. Rá! Soube de onde vinha o teima-teima do Espinho
com o Bixuga! Rá! Impinge fez gesto que o Espinho suava!Rá!
Quando voltamos, tudo tava normal. Tudo no seu costume. O
Espinho tinha caído fora. Bixuga ali com cara desconfiada.
Disfarçada. Perguntamos E aí? Bixuga disse com a cara
avermelhada de bolotas: A comida foi feita do jeito. Osmar
disse Aposto que sim. Todos riram. Rá! Ó Dona Silvia, o
Impinge chorando de rir.
São essas coisa, Senhora, o que fazia a vida ter um
gosto mais de mel, menos de fel. A encarnação, a
brincadeira, ninguém pegava desavença, tudo na paz. Só não
teve paz pro seu Apóstolo. Não deviam ter levado a Solange.
Deviam era tá até hoje com a gente, contando prosa,
ensinando as palavras bonitas. A gente falava que ele era
um homem sabido. Só dizia assim Tudo que sei é que nada
sei. Seu Lau repetia, todo pavo. Dizia que a liberdade era
o nosso destino e depois a nossa desgraça, como pode? Ser
livre é ser marcado na vida? Ele dizia que é um fardo
pesado ser livre, era bom, era preciso ser livre, mas
também era carga decidir sozinho o caminho, sem ninguém pra
levar a canoa, sem um leme, era nós todos desembestados
nesse mundão, sem eira nem beira. Mambira lá de cima do
açaizeiro até esquecia um pouco da Glorinha. Até ria de
canto de boca. Voltava depois pros os periquitos dele.
Seu Apóstolo foi homem de fato. Depois do acontecido,
soubemos que ele foi até Macapá levar a Solange e dar
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denúncia da situação da moça largada a morrer de sezão na
terra do Boiadeiro. Quem contou? O Ramalho, lembra? Depois
do Belquior Apóstolo era o que mais dava as notícias. E nos
contou que Apóstolo tava marcado, ai que já tinha ido na
delegacia falar dos roubo de palmito em outras posses. Ai
que delatou a venda dos motores e da pirataria dos seis. Ai
que encontrou na rua passando o Boiadeiro no lado do
Fogoió, que esbarraram no seu ombro e disseram com aquele
ódio dos traidores pra ele, Sim, Tu tá queimado! Ai que
Apóstolo foi pra casa na enchente da maré das seis, levando
rancho da venda do camarão naquela safra de agosto. Ai.
Ai que Belquior tava na janta com a Estela, mais
netinha Lucinha, mais a Solange que tinham se afeiçoado e
tido como filha mais velha. Ai que os cabras e o Fogoió
chegaram de mansinho, combóias se esgueirando pela lama da
maré vazante, por meio da anhinga fedida de terra, nem os
tralhotos tinham coragem de chegar perto naquele deslizar
da folha de mamorana no meio para não fazer o barulho e
assim espantar os que moravam naquela casa de Deus. Ai que
os seis subiram como onças cheio das fomes, esgalamidos no
dentar das pacas, boca babando na carne dos jacarés na
brecha que acharam no couro. Malditos. Ai que chutaram a
porta velha de madeira, entrando pelo salão da casa,
batendo em todas as paredes, o oco, o oco, oco, cai o
motorádio, cai o retrato de sua mãe, Belquior, ai que caiu
de cara pro chão, graças por ela não ver o que se passaria.
No que se espantou Apóstolo, não deu nem tempo de pegar a
cartucheira, já estavam todos os braços maus por cima de
sua goela, num suor de gente ruim a se engatar no seu
Belquior. Pega perna. Pega pé. Pega braço. Segura cabeça.
Ai que as mulheres correram pro mato porque seu Apóstolo
pediu naquele derradeiro grito Corre mal saído de sua goela
esprimida! Ai que ali mesmo bateram nele, judiaram mesmo,
deram um tiro no queixo dele, lá vai a boca de lado de dor,
ai que deram nele com o cabo de um machado, sangraram a
cabeça dele até o homem desmaiar. Ai que deram mais um tiro
por dentro da boca dele. O sangue deixou Fogoió porre
daquele cheiro, parecia que tinha cheirado tóxico. Amalucou
ou já era assim como vai sabê? Resolveu pegar gasolina, se
deu o trabalho de ir no porto do homem procurar e achar o
petróleo, empapou a barba de seu Apóstolo ali no morre-num-
morre. Ai, ai, ai, tacaram fogo naquela cabeleira, naquela
barbona, numa arribação de fogaréu que botou a casa toda a
arder, começou pelo calendário de Jesus Cristo e de Nossa
Senhora ali no testemunho dos mártires. já não era mais o
corpo do Belquior, mas um bicho judiado por aqueles pestes.
Não isso não. Nem caça morta tem aquele fim sem respeito.
Ai.
E as mulheres? Fizeram o que seu Apóstolo pediu e
sumiram por entre o mato, no pique que podia, caíram numa
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ribanceira até a lama quase afogar suas caras. A pequena
Lucinha chorava, Solange e Dona Estela tapavam a boca da
menina e vejam o que é a precisão: arrumaram um jeito e
ficaram deitadas por vários dias ali por dentro de um
burutizeiro junto com as aranhas, as lacraias e as cobras
cipós, graças ao bom Deus era só cobra cipó. Quietas
enxergavam passar de vez em quando um homem por ali
procurando por elas, as vezes viam que era um dos seis, mas
nunca o Fogoió, ó bom Deus graças! Se fosse esse, ia de
bater o olho nelas, sujeito de pacto do mal que a tudo via.
Acho que foi dar sumiço no corpo de Seu Apóstolo. Ai, ai,
ai.
Ramalho nos contou tudo depressa, Dona, sem disse-me-
disse, foi matando a gente com as palavras. Quanta
judiação! Achou as três balançando a camisa pro barco dele,
no medonho jeito de contar com a sorte que podia ser gente
não do Boiadeiro. E se fosse o Jacuraru? Ou Espinho? E se
fosse um dos seis? Não foi, era Ramalho. Contaram o fato
pra ele, chorosas, a menina se tremendo, Solange quieta a
contar com a voz tremida. Como elas sabiam do jeito que
Apóstolo morreu? Dona Estela ouviu de longe os gritos,
parava no correr, olhava pra trás, escutava naquelas braças
corridas Queima a Barba Dele! Queima a Barba Dele!! Ai que
queria voltar, morrer e matar por seu amor, ali espocado a
nuca dos chumbos, queimado na covardia. Ali passou num
repente aquela lembrança do jovem Belquior catando a flor
do jambeiro para lhe colocar na beira da orelha presa
naquele cabelo liso de índia moça dos olhinhos miúdos e
cabelo dos graúdos, ali pegou a mão dela pra passear por
aquele caminho de flor avermelhado, parecia Estela a rainha
do mundo e era. Ali ficou sua fotografia pro resto dos
dias. Disse ela a Ramalho isso, sem mais a vergonha das
coisas do amor. Agora, só homenagem.
E nisso, Senhora Sílvia, nós adoecemos todos por
dentro. Foi um quebranto geral, até o Impinge ficou sem
comer ou fazer perturbação, todo mundo mofinou. Eu lhe
digo, Dona, que a vida ficou com gosto de lima daquelas bem
sem graça. Ali eu comecei a adoecer. Me começou os
beribéri. Uns tempos depois, a fraqueza chegou nas pernas,
chegou nos braços, só fiquei no Tapiri. Nem dava pra chegar
um e dizer Ei Macho, levanta! Tudo mundo tava baquiado.
Nunca vi o jiral do Bixuga cheio de mato como ficou depois
disso, nem tajá, nem as cebolinha. Tudo acabou. Desde
agosto foi essa terminação. Calado acordava, calado a gente
dormia. Eu sei, Dona, eu sei, a gente devia de ter força
pra reação, mas o Boiadeiro acertou em cheio. Passamos
meses nesse medo, palmito, palmito. Lá na fábrica, as
mulher tudo humilhada naquele abrir de pote e fechar de
pote sem fim, as crianças sem futuro, a salmoura a ferver a
derreter a vida. Nem o Ramalho apareceu mais, acho que por
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desconfiança de morrer, eu não condeno o amigo. Eu sem
poder mais nada do doente que estava, ali fiquei largado no
Tapiri, nem ia mais pra fábrica, acho que tavam me matando
aos poucos. O pessoal me carregava no caso das situações,
melhor do que cagar todo o Tapiri. Um dia Osmar me levava,
outro dia, Seu Lau, outro dia o Bixuga, O Beto ali sempre
fiel meu filho também no trabalho de me depositar naquele
buritizeiro de bubuia. Lá ficava e me lavava. Saliente me
reparava. Foi quando o Beto sumiu.
O que aconteceu Dona? Ah que a gente foi apontado de
tudo quanto é jeito pelos seis, pelo Fogoió, cadê o Beto?
Cadê o Beto? Pior que não sabia. Eu via ele sempre olhar o
mato ali quieto, butucando e de momento fiuuuuu. Seu
Boiadeiro se destacou de lá pra tomar satisfação. Ficamo
sem o rancho que já não tinha. Aí a fome apertou. Mas quer
saber a senhora, demos um jeito assim mesmo. Discunforme.
Valdo zagaiava. Osmar caçava. Mambira mariscava. Seu Lau
cozinhava junto com Bixuga. Xarles preparava os chás pras
caganeras. Todo mundo se virava. Até eu de cartucheira lá
da minha rede matei umas e outras galinhas d´água que
ciscavam por ali. Era garça. Era mutum. Tudo ave por que eu
só mirava pra cima. Rá! Saliente vinha com bicho do tamanho
da brabeza dele, um tijubina, um camaleão, um filhote de
jacaré-tinga. a gente cozinhava. João Impinge deu de pegar
poraquê, já tinha virado macho mesmo e senhor de sua
panemice, cacetava os bichos sem medo nenhum. Nós comia.
Breu não faltava para continuar o fogo. Nem coragem. E isso
foi crescendo na gente, começou pequeno e foi aumentando
tal o rasgo da envira preta. E veio a lembrança do seu
Apóstolo. E a lembrança da Glorinha. E do Hilário. E Dona
Estela. E Valdo olhava pro braço dele. E Mambira se
convencia da raiva. E Seu Lau do dedo dele. E Osmar
lembrava da Jatuarana. E Bixuga se revoltava. E Xarles
rezava. E nós com a pergunta sobre o Beto, o que de repente
sem combinação geral ficou a ter a resposta na mente que
podia ter ele podido buscar ajuda. Eu não tava caducando
sozinho, começou a nascer esperança!!
ATO 6 – NÓS CHEGAMOS TARDE
Dona Sílvia, quando vocês vieram rapiscobra todo mundo
saiu da rede apressado naquela barulheira de motor de
avião. Eu não sei se era trovão ou se era o fim do mundo!
No meio daquele céu cinzento de maio veio umas pázona do
nada! Não era avião? Era o quê? Licópi? Poisé, esse bichão
aí jogou vento pra tudo quanto é lado, eita a pororoca dos
céus eu gritei! E foi o corre-corre que nem um bando de
catitu perdido do chefe, Rá! João Impinge deu com a cabeça
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numa paxiubeira, a mesma que prendeu ele lá pro poraquê,
não gosta dele mesmo Rá! Saliente se mandou pra banda da
fábrica.
Mas olha daqui eu vi o Valdo, o Osmar, o Mambira, o
Bixuga e o Seu Lau não saírem de susto, cada um pegou o
terçado e se espalharam na ilha. De lá do Tapiri eu vi,
deitado naquela minha rede velha fedida de mijo. Me
imaginei indo, e peguei o terçado ao menos pra amolar.
Sabia o que era, queria ir com eles. O que Dona Sílvia? Me
diz como o pessoal do Boiadeiro reagiu? Quê?? Só de
cueca??!! Saco de dinheiro?? Boiadeiro ofereceu?? E vocês??
Toma-te!! Cadeia! Queria ter visto a humilhação? E os
outros? Quantos morreram? Só dois dos seis? Foi tiro? Não?
Terçadada? Soltaram o Valdo? Não sabe? Ele é boa pessoa.
Não merece. E o Jacuraru? Não acharam? Vocês viram o
Mambira? Não? Hummmm... entendi.
E o Espinho? Rá! Como é? Vocês pegaram ele pegando uma
surra do Osmar e do Bixuga. Com a chapa do terçado? Pelado?
Vixe!
E o Fogoió? Não entendi. E o Fogoió? O quê? Atrás do
Beto meu filho?? Queéisso!! Ele não tava com vocês?? Meu
Deus! Como foi isso?? Ele tá bem?? Tá bem?? Meu Deus que
homem do tinhoso! Agarrados no mesmo facão, quem sangrou?
Os dois? Ai que Beto morreu? Não? E quem acudiu ele?
Arrastando pro lado dele? Cobra, é uma cobra este peste! O
Seu Lau chegou? A Valéria? Na hora!! Cortaram a cabeça do
Fogoió? Fiuuuuuuuuuuuuu... a senhora vai fazer o quê com
eles? Não sabe? Hum-hum.
Como tão meus netos? Quietos? Não falam nada.
Assustados? Ô, meu Deus! Vocês chegaram tarde...
ATO 7 – O QUE APRENDI COM ELES
Dona, é assim, a senhora me leva pra ver meu filho,
minha nora e meus netos e eu volto pro meu Tapiri, tá?
Cadeira de roda, coisa bacana... mas não acostumo. Por que
voltar? Sei lá, ficar com minhas coisas, em paz agora,
lembrar das pessoas, de Antonieta, quietar com minhas
caduquices naquele silêncio da mata que enche e vaza. Pra
mim basta o barulho do quiquió. Só vou dar trabalho pra
onde for. Chega. Sim, Dona Sílvia, pode ficar com o
Saliente... O Impinge? Sei lá, onde ele ficar tá bom pra
ele. Ele é um cabra que tem felicidade. Não é isso que o
seu Apóstolo falava? A felicidade é quando a alma nela
mesmo se ajeita. Esse tem jeito próprio do querer bem das
coisas. Onde é aquilo? Macapá? Aquilo é um homem? Quem é
aquele homem lá longe no meio do rio senhora?? É santo?? É
São José?? Um Santo no meio das águas!1 Não tô caduco! Não
Tô caduco! Acena também Dona Sílvia!
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João Impinge, acena!!
Olha só a boca sem dente escancarada dele!! Rá!
Ispia que Céu Azul Impinge! Má Rapá que Sol de Deus!
Quié Impinge? Larga meu braço! Quié macho?
João? Vai falar João? João? Vai Homi!
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