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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Educação
NA TESSITURA DE UMA HISTÓRIA ALINHAVADA POR MEMÓRIAS, AS
REPRESENTAÇÕES DA PROFESSORA PRIMÁRIA E DO MAGISTÉRIO
Janaína Aparecida Guerra
Belo Horizonte
2011
Janaína Aparecida Guerra
NA TESSITURA DE UMA HISTÓRIA ALINHAVADA POR MEMÓRIAS, AS
REPRESENTAÇÕES DA PROFESSORA PRIMÁRIA E DO MAGISTÉRIO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, como requisito parcial
para obtenção do título de mestre em educação.
Orientadora: Profa. Dra.Maria do Carmo Xavier
Belo Horizonte
2011
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Guerra, Janaína Aparecida
G934n Na tessitura de uma história alinhavada por memórias, as representações da
professora primária e do magistério / Janaína Aparecida Guerra. Belo Horizonte, 2011.
118f.: il.
Orientadora: Maria do Carmo Xavier
Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa
de Pós-Graduação em Educação.
1. Educação - Minas Gerais - História. 2. Ensino fundamental - Minas Gerais -
História. 3. Professores de ensino fundamental - História. I. Xavier, Maria do Carmo. II.
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em
Educação. III. Título.
CDU: 37(815.1)
Janaína Aparecida Guerra
NA TESSITURA DE UMA HISTÓRIA ALINHAVADA POR MEMÓRIAS, AS
REPRESENTAÇÕES DA PROFESSORA PRIMÁRIA E DO MAGISTÉRIO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, como requisito parcial
para obtenção do título de mestre em educação.
------------------------------------------------------------------------------------
Profa. Doutora Maria do Carmo Xavier (Orientadora) – PUC Minas
---------------------------------------------------------------------------------------------------
Prof. Doutor Álvaro Luiz Moreira Hypólito - Universidade Federal de Pelotas (RS)
-------------------------------------------------------------------------------------
Profa. Doutora Leila de Alvarenga Mafra – PUC Minas
Belo Horizonte, dezembro 2011
[...] conhecer o passado é uma façanha tão extraordinária quanto
alcançar o infinito ou contar estrelas, já que em sua amplitude,
mesmo quando bem documentado, ele tende a se tornar fugidio e
amplo em sua extraordinária dimensão e variedade de situações. O
passado apresenta-se como vidro estilhaçado de um vitral antes
composto por inúmeras cores e partes. Buscá-lo recompor em sua
integridade é tarefa impossível. Buscar compreendê-lo através da
análise dos fragmentos, resíduos, objetos biográficos e diferentes
tipos de documentação e fonte é desafio possível de ser enfrentado.
(Delgado, 2006)
AGRADECIMENTOS
Eu achava que este era um trabalho solitário, mas descobri vários amigos envolvidos nele. À
essas pessoas, meus sinceros agradecimentos. É com orgulho que assinalo seus nomes nas
páginas desta dissertação. De certo, esses amigos estarão sempre presentes em minhas
lembranças e guardados do lado esquerdo do peito, dentro do coração.
Aos falecidos pai e avó paterna, incentivadores de minha trajetória estudantil.
À minha mãe, manancial de força, coragem e determinação; fonte na qual extraí os elementos
necessários para tornar real esse meu ideal.
À você Eduardo, marido amigo, parceiro, presença marcante em minha vida, agradeço o
incentivo, a compreensão e o carinho com que dividiu comigo os momentos difíceis dessa
empreitada; por várias vezes, você assumiu a dupla função de ser pai e mãe de nossas quatro
filhas queridas, quando precisei dedicar tempo exclusivo a esta pesquisa.
Ao primo, Carlos Eduardo Guerra Silva, Cadu, que em meio aos atributos de um doutorando,
sempre me acolhera com carinho e competência. Pessoa que me incentivou e me ensinou a
dar os primeiros passos na conquista desse título.
À minha irmã que também foi parceira na empreitada desta obra.
Às colegas Verônica e Roanjali que, assim como minha mãe e meu marido, me fizeram
acreditar que eu seria capaz de cursar um mestrado e cuidar de minhas quatro filhas - a caçula,
acabava de completar um ano de vida, no mês em que eu iniciava esse curso, e as demais
tinham três, nove e dez anos.
À Pollyanna, amiga querida, com quem dividi os sabores e dissabores dessa nada mole
caminhada.
Aos entrevistados desta pesquisa, agradeço a prontidão e carinho com que me ajudaram a
tecer os fios da história da Mestra Ritinha, nossa conterrânea.
À Jane e Roseani, bibliotecárias da Pucminas que, pela compreensão, muito me ajudaram.
E agora meus agradecimentos a duas mulheres especiais, orientadoras inesquecíveis, que
dotadas de valiosos atributos pessoais e de competência profissional, foram bússolas a nortear
essa caminhada rumo a mais uma conquista de minha vida:
À você Carminha que com respeito, humildade, compreensão, generosidade e competência
me incentivou e me ajudou a dar forma aos primeiros esboços deste trabalho;
E você Leila, jamais esquecerei o carinho com que me acolhera no momento em que precisei
da sua ajuda. De maneira afetuosa, sempre pronta a me atender, pontual nas observações e
competente orientação, me ajudou a por o ponto final nesta pesquisa.
Finalmente, quero tecer agradecimentos muuuuuuuiiito especiais! À vocês Catharina,
Sophia, Diana e Nara, quatro filhas amigas, amores de minha vida, pessoas queridas que
estiveram e sempre estarão em primeiro plano no hall das minhas escolhas, agradeço-
lhes pelo companheirismo no percurso desta caminhada, pelas renúncias feitas, pelo
carinho, pelo entendimento da significação deste curso para mim, pela solidariedade e
incentivo nos momentos difíceis pelos quais passamos, por todas as dificuldades
compartilhadas; por tudo isso, tenho a certeza de que, este mestrado, representa uma
conquista para todas nós. Em meio às dificuldades pelas quais vivemos juntas,
crescermos e fortalecemos nossos eternos vínculos. AMO VOCÊS!
Agradeço a você Catharina que, aos 11 anos, foi iniciante no campo da pesquisa científica ao
produzir os vídeos e as fotos deste trabalho. Para além da experiência acadêmica, penso que o
contato com os idosos lhe servirá de exemplo, pois, assim como eles, devemos envelhecer
com alegria e contando muitas histórias.
À vocês Diana e Nara, agradeço-lhes a compreensão demonstrada em tão pouca idade.
E você Sophia, torno público seu incentivo carinhoso traduzido num poema inesquecível:
Mãe, você
É como uma rosa
É cheirosa!
Sabe se defender
E os desafios vencer.
Tem exemplo de determinação
E muito amor no coração
É carinhosa
E muito amorosa!
Tem um mestrado para terminar
E quatro filhas para cuidar
Tem muitas dificuldades
Mas as vence com facilidade
Mãe você me ama
E eu te amo também!
Sophia Guerra- 09 anos
RESUMO
Por esta pesquisa objetivou-se analisar as representações construídas a respeito da docência e
da professora primária, em Sabará, a partir dos processos de produção, circulação, utilização e
consolidação da memória da Mestra Ritinha, cujo nome encontra-se registrado numa placa de
endereçamento de uma das principais vias de acesso ao centro histórico dessa cidade. A Placa
considerada como lugar de memória foi o mote e o ponto de partida desta pesquisa. Até os
anos 30 do século XX, Rita Cassiana Martins Pereira se destacou na sociedade sabarense
como professora e diretora do primeiro grupo escolar de Sabará e o terceiro do estado de
Minas Gerais. Na experiência social e profissional da Mestra registrada em documentos ou
guardadas no sacrário das lembranças de poucas e privilegiadas testemunhas estão as
possibilidades de ressignificação dessa memória, no tempo presente. Para a investigação
utilizou-se do Método Incidiário de Carl Ginzburg (1991), das fontes impressas (documentos
e fotos encontradas na Escola Estadual Paula Rocha, no Arquivo Público Mineiro e em
acervos pessoais) e da produção pioneira de fontes orais que registram lembranças sobre a
Mestra coletadas de entrevistados sabarenses os quais, nesta pesquisa, foram divididos em
grupos pelo pertencimento geracional: no primeiro estão os anciãos, pessoas que conheceram,
conviveram, estreitaram vínculos afetivos e profissionais com dona Ritinha e compartilharam
do processo de construção de sua memória; no segundo estão os sujeitos que não conheceram
essa professora, mas que acessaram os registros da memória produzida sobre ela, através das
histórias contadas por pais, avós entre outros membros da comunidade sabarense. Reconstruir
a trajetória da Mestra por meio de narrativas orais oriundas das lembranças de seus
conterrâneos, implicou caminhar sobre o movediço terreno da memória. Nessa jornada, o
imbricamento entre memória e história tornou-se presente. Ambas se relacionavam mais pelas
aproximações, do que por suas diferenças conceituais. Memória, docência, gênero e raça
foram as categorias de análise desta pesquisa. Como fundamentação teórica utilizou-se dos
estudos de Maurice Halbawchs (1990) sobre Memória Individual e Memória Coletiva, das
definições conceituais entre História e Memória de Jacques Le Goff (2000), da noção de
Lugar de Memória de Pierre Nora (1993), dos estudos de Paul Ricouer sobre esquecimento e
dos escritos de Walter Benjamim (1989) sobre rememoração dentre recentes pesquisas e
publicações. Sob a abordagem da História Cultural de Roger Chartier (1988) focamos o
conceito de representação. Nas publicações de Muller (1999), Almeida (1988), Louro (2011),
Ferreira (2002), Faria Filho (2000), Lopes (1991), Crossetti de Almeida (1991), Lisly
Gonçalves (2006) dentre outros pesquisadores, apoiamos os estudos sobre docência e gênero.
Em Dávila (2006), Gomes (1995), Muller (1999), Schwarcz (2001) dentre outros estudiosos
brasileiros, fundamentamos a categoria etnia/raça. A pesquisa revelou que a memória é
produzida por diferentes grupos de pessoas, em diferentes momentos do tempo e espaço. As
representações sobre a professora primária, retratada no corpo e nos traços afrodescendentes
de Rita Cassiana e traduzidas/ adaptadas nas narrativas mnemônicas dos entrevistados, ainda
circulam pela sociedade sabarense. Ao produzirem seus discursos sobre a Mestra Ritinha, os
participantes buscavam afirmar a veracidade e legitimidade de suas falas a partir de diferentes
lugares e posições sociais, demonstrando haver uma hierarquização de valores e ideias sobre a
docência.
Palavras-chave: Memória. História da Educação. Representação. Docência. Professora
primária. Magistério. Feminização da docência primária.
RESUMEN
El objetivo de esta investigación es analizar las representaciones construidas a respecto de la
docencia y de la profesora primaria en Sabará, a partir de los procesos de producción,
circulación, utilización y consolidación de la memoria de la Maestra Ritinha, cuyo nombre se
encuentra registrado en una placa de dirección de una de las principales vías de acceso al
centro historico de esta ciudad. La Placa considerada como lugar de memoria fue el mote y el
punto de partida de esta investigación. Hasta los 30 años del siglo XX, Rita Cassiano Martins
Pereira se destacó en la sociedad Sabarense como profesora y directora del primer grupo
escolar de la ciudad y el tercero del estado de Minas Gerais. En la experiencia social y
actuación profesional de la Maestra registrada en documentos e guardadas en el sagrario de
las recordaciones de pocas y privilegiados testigos están las posibilidades de la re
significación de su memoria, en tiempo presente. Para la investigación se utilizó del Métodos
Indiciário de Carl Ginzburg (1991), de las fuentes impresas (documentarias y fotos
encuentradas del acervo de la Escuela Paula Rocha, acervos personales y del archivo público
Minero referenciados en la disertación de (ROCHA, 2009)) y de la producción pionera de
fuentes orales que documentan recuerdos sobre la Maestra colectadas de entrevistados
sabarenses, los cuales, en esta investigación, fueron divididos en grupos por el
pertenecimiento generacional: en el primer están los ancianos, personas que conocieron,
convivieron y estrecharon vínculos afectivos y profesionales con Ritinha y compartieron del
proceso de construcción de su memoria; en el segundo, están los sujetos que no conocieron
esta profesora, pero que accesaron los registros de la memoria producida sobre ella, atraves de
las historias narradas por padres, abuelos, dentre outros miembros de la comunidad sabarense.
Reformar la trayectoria de la Maestra por relatos orales originadas de los recuerdos de sus
coterráneas, implicó en caminar sobre el movedizo terreno de la memoria. En esa jornada, él
imbricación entre memoria y historia, se tornó presente, en que se evidenció que ambas se
relacionaban más por las aproximaciones, que por diferencias conceptuales. Memoria,
docencia, género y etnia fueron las categorías de analisis de esta investigación.Como
fundamentación teórica, se utilizó de los estudios de Halbawchs (1990) sobre Memória
Individual e Memoria Coletiva, las definiciones conceptuales entre Historia e Memória de
Pierre Nora (1993), de los escritos sobre Rememorização e Esquecimento de Walter Benjamín
(1989) dentre recientes investigaciones y publicaciones. Sobre la aborje de la Historia cultural
de Roger Chartier (1988) enfocamos el concepto de representación. En las publicaciones de
Muller (1999), Almeida (1988), Louro (2011), Ferreira (2002), Lopes (1991), Crossetti de
Almeida (1991), Faria Filho(2000), Lisly Gonçalves (2006) dentre otros investigadores,
apoyamos los estudios sobre docencia e género. En Dávila (2006), Gomes (1995),
Muller(1999), Schwarcz (2001) dentre los outros investigadores brasilenos, fundamentamos
la categoría etnia. La investigación reveló que la memoria es producida por diferentes grupos
de personas, en diferentes momentos del tiempo y del espacio. De esta forma, los
participantes, al producir sus discursos sobre Maestra Ritinha buscaban afirmar la veracidad y
legitimidad de sus charlas a partir de lugares y posiciones sociales, demostrando haber una
jerarquía de valores e ideas sobre la docencia. Las acciones sobre la docencia y la profesora
primaria, representada en cuerpo y alma olor de la Maestra, fueron traducidas/adaptadas en
los discursos e imágenes de las narrativas de entrevistados, las cuales circularon por la
sociedad Sabarense.
Palabras-clave: Memoria. Historia de la Educación. Representación. Docencia. Profesora
primaria.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Termos de abertura das aulas assinado por Rita Cassiana Martins Pereira
em 15 de janeiro de 1927 ........................................................................................................ 17
Figura 2 - Ata de exame e livro de ponto, ambas datadas de 1920 .................................... 18
Figura 3 - Lista de aprovação e reprovação dos alunos do 4º anno da turma de Rita
Cassiana Martins Pereira, novembro/1920 .......................................................................... 18
Figura 4 - Ex- Instituto Educacional Mestra Ritinha onde está afixada a Placa em
homenagem ao Centenário da Abolição da Escravatura e à Rita Cassiano Martins
Pereira...................................................................................................................................... 24
Figura 5 – Na teia social as lembranças sobre Mestra Ritinha .......................................... 26
Figura 6 – Rua Dom Pedro II (antiga Rua Direita onde residiu Mestra Ritinha ............. 33
Figura 7 – Placa de endereçamento de uma das principais vias de acesso ao centro
histórico de Sabará ................................................................................................................. 36
Figura 8 - Salão Nobre – fotos de ex-diretores ..................................................................... 37
Figura 9 – Sr. Hélio ao rever a foto de sua ex-professora ................................................... 39
Figura 10 – Vênica e as lembranças sobre a Mestra Ritinha..............................................40
Figura 11 - Dona Lalá abre seu bauzinho de recordações .................................................. 40
Figura 12 - Rita Cassiano Martins Pereira .......................................................................... 44
Figura 13 - Casarão da família Cassiano Martins Pereira/ 1910 ....................................... 45
Figura 14 - Mestra Ritinha naEscola Normal Delfim Moreira, 1896................................47
Figura 15 - Rua Mestra Ritinha ............................................................................................ 49
Figura 16 - Prédio do sobrado da Escola Normal Delfim Moreira, onde atualmente está
localizado o Fórum de Justiça da cidade de Sabará ............................................................ 70
Figura 17 - Anel de formatura de Vênica protótipo do anel da Mestra Ritinha. ............. 71
Figura 18 – Santana Mestra .................................................................................................. 74
Figura 19- Simbolismo da mulher professora primária: cronograma de horários da
Escola Normal Delfim Moreira/ século XIX........................................................................ 80
Figura 20- Cemitério onde se acha assignalado com uma cruz, o túmulo de D. Blandina
Mello Vianna, progenitora do Dr. Fernando Mello Vianna..................................................95
Figura 21- Rita Cassiana, em 1925........................................................................................96
Figura 22– Placa em Homenagem à Mestra Ritinha........................................................... 97
Figura 23 –Periódico sabarense em circulação no início do século XX ........................... 103
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 12
1.1 Na Placa o Objeto da Pesquisa ........................................................................................ 13
1.2 O Percurso da Pesquisa .................................................................................................... 14
1.3 Procedimentos metodológicos .......................................................................................... 16
1.3.1 Da Placa aos documentos .............................................................................................. 16
1.3.2 Dos documentos às lembranças: a produção das fontes Orais .................................. 18
1.4 Os sujeitos pesquisados .................................................................................................... 21
1.5 Memória, Subjetividade e História Oral ........................................................................ 26
1.6 As categorias de análise e os aportes teóricos-conceituais ............................................ 29
1.7 Estrutura da Pesquisa ...................................................................................................... 31
2 NA MATERIALIDADE DE UMA PLACA DE ENDEREÇAMENTO, O
SIMBOLISMO DA TRAJETÓRIA DE UMA PROFESSORA ........................................ 33
2.1 Rua Mestra Ritinha: num lugar de memória, o Ponto de Partida ................................ 36
2.3 Quem foi Mestra Ritinha? ............................................................................................... 44
2.4 Os processos de produção, de circulação e de uso da memória ................................... 47
3 MEMÓRIA, HISTÓRIA E DOCENCIA: AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA
PROFESSORA PRIMÁRIA E DO MAGISTERIO ........................................................... 53
3.1 Nas lembranças sobre a Mestra Ritinha, o imbricamento entre memória e História.
.................................................................................................................................................. 56
3.3.1 Memórias de Vidas Compartidas....................................................................................59
3.3.2 Memória e História: aproximações e diferenças.........................................................60
3.3.3 Memória e Grupo Social................................................................................................62
3.2 Mestra Ritinha: a professora modelo ............................................................................. 64
3.3 A Ideologização da Figura Docente.................................................................................68
3.4 Mestra: a visão sacralizada da docência......................................................................... 72
3.5 Mulher e Docência Primária............................................................................................77
3.6 A professora primária na emergência de uma nova sociedade .................................... 79
3.7 Mestra Ritinha: a professora mulata .............................................................................. 85
3.8 Afirmação Feminina na Profissão Docente e nos Grupos Escolares de Sabará ......... 97
4 CONCLUSÃO .................................................................................................................... 104
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 109
APÊNDICES ......................................................................................................................... 115
12
1 INTRODUÇÃO
A pesquisa não brota alhures senão, da subjetividade e indagações do pesquisador em
meio a um contexto sócio-cultural mais amplo. Por 12 anos, atuei como professora primária
em escolas públicas das redes estadual e municipal. Na oportunidade de realizar este estudo,
me pus a pensar sobre o sentido desse ofício seguido por mim, à exemplo de minhas avós,
mãe, tias, colegas e por tantas outras contemporâneas, conterrâneas ou não.
Até as décadas de 70 e 80 do século passado, normal, em Sabará, era que as jovens
fizessem o curso Normal, ofertados pelas escolas públicas, e se tornassem professoras. Para
mim, assim como para as mulheres de minha família, a prescrição ao magistério foi clara.
Todas nós fomos direcionadas pela lógica de que a profissão docente era a via de
empregabilidade rápida e condizente à condição feminina de futuras esposas e mães. Ser
professora, naquele contexto familiar e sócio-cultural da interiorana Sabará, talvez fosse a
melhor e a mais cotada escolha.
Pensar a docência primária como uma profissão revestida de uma aura tipicamente
feminina e nas competências profissionais e pessoais exigidas às mulheres que enveredassem
pelas trilhas desse ofício, motivou minha busca pelo conhecimento sobre as representações
sociais historicamente construídas e atribuídas à professora primária.
Instigada a conhecer as representações sociais atribuídas à mulher, professora
primária, na comunidade sabarense, percebi o nome da Mestra Ritinha em meio às placas de
endereçamento que registram nomes, guardam histórias, imortalizam memórias e nos
remetem à lembranças de cidadãos “ilustres” da histórica Sabará. O termo Mestra chamou
minha atenção por evocar noções de prestígio, erudição, respeito dentre outros atributos, que
no passado, representavam a professora primária.
Todavia, assim como muitos conterrâneos da Mestra Ritinha, por inúmeras vezes
transitei pela Rua sem refletir sobre o sentido da Placa que registra o nome dessa professora.
Até o momento em que busquei compreender o lugar social e simbólico da docência e as
representações construídas e atribuídas à professora primária, não me interessei saber quem
foi essa personagem da história da educação de Sabará.
13
1.1 Na Placa o Objeto da Pesquisa
A placa de endereçamento que registra o nome da Mestra Ritinha numa das ruas de
Sabará, foi o mote para minhas reflexões iniciais. Embora distanciadas pelo tempo, percebi
uma aproximação entre nós: eu, a Mestra e tantas outras conterrâneas, nos tornamos
professoras primárias. Ao mesmo tempo, algo nos diferenciava: essa educadora foi
notabilizada como figura ilustre de nossa cidade.
Inspirada em Bourdieu (1989) para quem o processo de pesquisa é a arte de fazer
aparecer problemas e de criar dificuldades fecundas nas coisas mais elementares, tomei a
Mestra Ritinha como personagem para problematizar as representações da docência primária,
em Sabará. Curioso foi perceber que até aquele momento, Ritinha era a única docente da
cidade, a receber destaque, numa placa de endereçamento.
No momento, em que nós professoras primárias gozamos de pouco ou quase nenhum
reconhecimento social, ver o nome da Mestra endereçar a principal via de acesso ao centro
histórico de Sabará, suscitou em mim, algumas curiosidades: Como essa professora primária
que alcançou visibilidade social na sociedade sabarense estaria representada no imaginário
dessa comunidade? O que teria motivado a produção da Placa que confere a essa Mestra um
lugar de destaque na sua cidade?
Para Foucault (1986) pensar e problematizar são faces da mesma moeda. Sob a lógica
desse autor, a Placa que por mais de meio século registra o nome da Mestra Ritinha, ganha
especial interesse nesta pesquisa e passa a ser contemplada na perspectiva do pensar e não
mais do simples olhar. Essa folha de metal foi o mote e ponto de partida de onde busquei
responder aos questionamentos oriundos de minha curiosidade, reconstruir o percurso
profissional da Mestra Ritinha oculto na materialidade desse objeto, conhecer e compreender
as representações construídas sobre a professora primária e o modelo de docência projetado
para as mulheres, no início do século XX. Ao interrogar a Placa, surge o problema desta
pesquisa: O que a memória produzida a respeito da Mestra informa sobre as representações
sociais da professora primária e do magistério, em Sabará?
Com o olhar clareado pela curiosidade acadêmica e com o respaldo dos instrumentos
metodológicos e das escolhas teórico-conceituais, assumi o lugar de pesquisadora e me
impliquei na tarefa de conhecer o passado da Mestra Ritinha e retratar na sua história o lugar
social e simbólico prescrito à mulher que enveredasse pelas trilhas da profissão docente.
Tomar de empréstimo as lentes do presente para ler o passado foi o movimento que
me propus a fazer neste estudo para conhecer e dar à ler as experiências sociais e a trajetória
14
profissional da Mestra. Nesse sentido, outras questões deram corpo a essa pesquisa: Quem foi
Mestra Ritinha? Quais as suas origens étnica, familiar, social e cultural? Quais competências e
qualidades definiram sua prática profissional? Que elementos do percurso profissional e
pessoal da professora Ritinha foram politicamente engessados e retidos nas lembranças da
comunidade sabarense? O que se privilegiou na construção da memória dessa professora
primária que integra o grupo das figuras de destaque do município de Sabará? Que memória
as autoridades locais produziram sobre a Mestra e fizeram circular por meio da placa? O que
na construção dessa memória se intentou preservar?
1.2 O Percurso da Pesquisa
Ao buscar responder aos questionamentos oriundos da história de Rita Cassiana me
deparei com uma questão sinalizada por Clarice Nunes (2008, p.67) ao tratar da Biografia de
educadores gonçalenses: a luta contra a invisibilidade e o esquecimento. Nesse artigo, a
autora interpela sobre o sentido de se recuperar uma trajetória individual. À partir dessa lógica
me pus a pensar: Investigar e dar a ler a visibilidade alcançada pela Mestra, oculta na Placa
serviria para explorar um problema ou apenas ilustrá-lo?
Na perspectiva sociológica de Veyne (1998) busquei a resposta para essa questão. De
acordo com esse autor, o interesse das tramas históricas atuais deve centrar-se nos
acontecimentos individualizados, porém, generalizáveis. Devemos procurar encontrar nos
representantes dos fatos históricos e sociais, o que há de semelhança com outros sujeitos, ao
mesmo tempo, em que se destaca sua especificidade. Brigitte Bardout1, George Pompidou
2 e
Frederico Guilherme3, são alguns exemplos citados por Veyne (1998, p.56-57) que em suas
especificidades, representam categorias sociais mais gerais. Apresentados enquanto sujeito de
um determinado fato, informam em sua história singular, ideologias, contextos sociais,
políticos, históricos e culturais, pertencentes a outras histórias de tantos outros sujeitos.
[...] as vidas de todos os alfaiates, sob Frederico Guilherme, muito se assemelham;
a história narrará, isso, em bloco, pois não tem nenhum motivo para se apaixonar
por um deles em particular; ela não se ocupa dos indivíduos, mas daquilo que
oferecem de específico [...] não há nada há dizer da singularidade individual que
possa servir de suporte à valorização (“porque era ele, porque era eu”). (VEYNE,
1998, p. 56-67).
1 Brigitte Bardot, atriz francesa consagrada do anos 50 do século XX;
2 George Pompidou foi presidente da França em 1960. Faleceu em 1974.
3 Frederico Guilherme descrito por Veyne como representante dos alfaiates.
15
Le Goff (1987, p.76-94) sugere alinhar-se às proposições de Veyne (1998) ao afirmar
que “a mentalidade de um indivíduo, mesmo que se trate de um grande homem, é justamente
o que ele tem de comum com outros homens de seu tempo”. Assim, pensar a prática docente
da Mestra Ritinha como meio de extrair as representações sociais construídas sobre a
docência feminina é também pensar a história de outras tantas professoras primárias.
Embora os sujeitos biografados e destacados sejam transformados em ícones, em
personalidades notórias, admiradas e desejadas produzidas para referenciar condutas e ações
de determinada comunidade, supostamente, como fora produzida a memória sobre a Mestra,
evitei, nesta pesquisa, construir um repertório acrítico e meramente narrativo, comum às
escritas biográficas.
As narrativas biográficas, tendem a tornar ausente o sujeito na sua incompletude. De
acordo com Nunes (2008, p.71) “esse sujeito fragmentado, incoerente, nem sempre idôneo ou
convicto, com dúvidas e dívidas, geralmente está ausente das narrativas biográficas de
educadores”. Bourdieu (1996) adverte sobre o aspecto ilusório e reducionista que uma escrita
biográfica pode conter. De acordo com esse autor,
Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como o relato
coerente de uma sequência de acontecimentos com significado e direção, talvez seja
conformar-se com uma ilusão retórica, uma representação comum da existência [...]
(BOURDIEU, 1996, p.185).
Assim, segundo Bourdieu (1996) devemos estar atentos à ilusão de tratarmos a vida
como uma única história, uma vez que o sujeito, porque fragmentado e incompleto, jamais
pode ser apreendido numa única versão. Pela lógica desse autor, esse tipo de escrita tende a
circunscrever o sujeito numa sequência de fatos ordenados, cronologicamente, e com
significações totalizantes.
Ao considerar a escrita biográfica um campo ambíguo e profícuo de discussões,
perceber a complexidade que esse tipo de narrativa comporta, e compreender a incompletude
de uma história investigada em função das continuidades e descontinuidades inerentes aos
processos existenciais de todo e qualquer sujeito, percebi a impossibilidade de apreender a
Mestra em todas as suas possibilidades de análise.
Em conformidade com a lógica de Nunes (2008) e atenta à ilusão biográfica sinalizada
por Bourdieu (1996) caminhei em busca das pegadas deixadas por Mestra Ritinha no percurso
de sua existência, consciente de que resgataria parte de sua experiência social e trajetória
profissional, haja vista, que sobre essa caminhada incidem variantes que apontam para as
inúmeras possibilidades de compor a narrativa de sua história e dar a ler outras tantas versões.
16
1.3 Procedimentos metodológicos
Assumindo a perspectiva analítica do método indiciário de Ginzburg (1989) - segundo o
qual, vestígios e restos podem se constituir como dados reveladores me pus a percorrer as
pegadas deixadas por Rita Cassiana na expectativa de que as pistas encontradas pudessem me
ajudar a reconstruir sua caminhada e informar sobre aspectos pessoais e profissionais de sua
vida. Conforme ressalta Raminelli (1993, p.92) “[...] indícios insignificantes, como um pé
descalço, podem construir uma realidade complexa”.
Para resgatar a história de Ritinha lancei mão de dois importantes recursos de
investigação: a fonte documental e a fonte oral produzida nesta pesquisa. Na possibilidade de
entrecruzamento dessas fontes entrevi os meios de subsidiar as questões desse estudo, além de
abrir espaço para a interlocução entre a memória oficial (documentos produzidos) e a
memória não-oficial (narrativas orais oriundas das lembranças evocadas sobre a Mestra pelos
entrevistados desta pesquisa).
1.3.1 Da Placa aos documentos
Na busca de vestígios sobre o passado de Ritinha, iniciei a pesquisa documental. Ao
privilegiar as fontes primárias, parti da Placa em direção ao Arquivo Municipal de Sabará e à
Câmara de Vereadores deste município, em busca do Projeto de Lei que oficializa a Rua
Mestra Ritinha. Para minha frustração, nenhum documento foi encontrado.
Registros de certidões de nascimento, de óbito e de batistério, dentre outros
documentos também foram investigados como meios de obter informações sobre essa cidadã
sabarense que tem sua existência indiciada na Placa de endereçamento da histórica Sabará.
Igualmente, nada encontrei. Entretanto, a escassez de informações não me intimidou.
Pesquisas à recentes produções historiográficas me apontaram o caminho. Pela dissertação de
Rocha (2008) descobri que a Mestra havia sido professora e diretora no primeiro Grupo
Escolar dessa cidade, nas três primeiras décadas do século XX.
Nesse grupo, atualmente, Escola Estadual Paula Rocha há um pequeno e preservado
acervo, no qual encontrei os primeiros vestígios comprobatórios do percurso profissional da
Mestra, como professora e diretora dessa instituição : relatórios de inspetores e diretores; livro
de matrícula; livro de ponto; documento de posse; atas de reuniões; termos de visita;
mapeamento do corpo administrativo e docente; termos de abertura e de encerramento das
aulas dentre outros documentos.
17
Figura 1 – Termos de abertura das aulas assinado por Rita Cassiana Martins Pereira
em 15 de janeiro de 1927
Fonte: acervo da Escola Estadual Paula Rocha
Seguem os termos de Visita de Inspetores de Ensino referente aos anos de 1923 e
1925, nos quais Rita Cassiana é referenciada como integrante do corpo docente do Grupo; a
primeira acta da installacção dos trabalhos escolares no grupo escolar Paula Rocha4, escrita
e assinada pela diretora Rita Cassiana em 15 de janeiro de 1927; e, acta de exames referente a
novembro de 1920, no qual consta lista de aprovação e reprovação dos alunos do 4º ano da
professora Rita Cassiana. Além dos citados documentos, o acervo dessa Escola dispunha de
fotos e periódicos. Nesse sentido, optei por utilizar as fotos como mera ilustração convicta de
que a relação da fotografia com o campo da historiografia exige, no mínimo, cautela.
Outros documentos foram encontrados na dissertação de Fernanda Cristina Campos da
Rocha (2008) na qual são citados documentos que, localizados no Arquivo Público Mineiro,
APM, situado, em Belo Horizonte, versam sobre a trajetória profissional de Rita Cassiana
Martins Pereira como professora e diretora no Grupo Escolar Paula Rocha, nas décadas
iniciais do século XX.
4 Esse termo é uma transcrição, tal qual aparece no documento do ano de 1927.
18
Figura 2 - Ata de exame e livro de ponto/ 1920
Fonte: acervo da Escola Estadual Paula Rocha
Figura 3 - Lista de aprovação e reprovação dos alunos do 4º anno da turma de Rita
Cassiana Martins Pereira, novembro/1920
Fonte: acervo da Escola Estadual Paula Rocha
1.3.2 Dos documentos às lembranças: a produção das fontes orais
Apesar de reconhecida, a história de Mestra Ritinha é pouco conhecida e carente de
registros. Embora as fontes oficiais, inicialmente, elencadas nesta pesquisa, se revelassem
escassas, a empreitada arqueológica de escavação do passado dessa professora, não cessou
por aí.
19
Ao perceber que os documentos encontrados pouco, ou às vezes, nada respondiam aos
questionamentos dessa pesquisa, processei a escolha de novas fontes de investigação.
Segundo Le Ven (2010) 5, as histórias são feitas de memórias. Por essa lógica, caminhei dos
documentos em direção às narrativas orais, sagaz em obter os fios da trama da história da
Mestra Ritinha. Fui ao encontro das lembranças de conterrâneos e contemporâneos sobre essa
personagem da história da educação de Sabará.
Considero que o fato de ser sabarense e residir na cidade, loco desta pesquisa, foi
facilitador para a produção das fontes orais. Maria Laura, mais conhecida por dona Lalá, uma
quase centenária moradora de Sabará, foi quem me deu as primeiras informações sobre a vida
pessoal da Mestra ao referenciá-la como vizinha, amiga e comadre. Da mesma forma, indicou
as pessoas que, possivelmente, poderiam dar testemunho de suas lembranças sobre dona
Ritinha. O movimento de localização dos entrevistados via indicação de um sujeito para
outro, deu origem a um grupo que, nesta pesquisa, considerei como teia social.
Minha expectativa era encontrar nas vozes do passado e nas lembranças de antigos
moradores da comunidade sabarense, os fios para a tessitura da história de Rita Cassiana. Fios
que alinhavados, supostamente, informariam sobre os elementos que configuram o escopo
desta pesquisa. A idéia das representações que construímos a nosso respeito e/ou pelos nossos
semelhantes encontra-se presente nos estudos de Halbwachs (1990). De acordo com esse
autor,
A idéia que representamos mais facilmente, composta por elementos tão pessoais e
particulares quanto o quisermos, é a idéia que os outros fazem de nós: e os
acontecimentos de nossa vida que estão sempre mais presentes são também os mais
gravados na memória dos grupos mais chegados a nós. [...] (HALBWACHS, 1990,
p.49).
Nessa lógica, caminhei cada vez mais convicta de que as imagens e representações sobre
a Mestra Ritinha encontravam-se impressas na memória individual e na memória coletiva da
comunidade sabarense. Lógica que legitimou minha caminhada em direção às narrativas das
lembranças evocadas sobre essa professora. A partir do contato e da conversa informal com
dona Lalá entrevi a necessidade de documentar suas vívidas lembranças sobre a Mestra, para
subsidiar esta pesquisa. Nessa etapa do trajeto, eu completamente seduzida pelas memórias
que as anciãs e os anciãos produziam à respeito da dona Ritinha elegi tais lembranças como
fontes singulares e diferenciadas nesta pesquisa.
5 Entrevista realizada em 11/08/2010, na PUC Minas, à convite da professora Doutora Maria do Carmo Xavier
para os alunos do curso de Educação Física dessa Universidade.
20
Segundo Delgado (2006) a memória auxilia a História Oral na medida em que alimenta
as narrativas que produzirão o documento final. Conforme essa autora,
Ao registrar no tempo presente as memórias sobre o tempo que passou, o historiador
e os demais profissionais vinculados às pesquisas que utilizam a metodologia da
história oral fazem dos testemunhos recolhidos fontes de imortalidade –
documentos/monumentos, sob a forma de vozes e de textos, que ficarão arquivados
como registros vivos da multiplicidade de experiências que constituem a vida
humana na sua essência. (DELGADO, 2006, p.62).
Sob essa perspectiva lancei mão da História Oral como recurso metodológico rico e
eficaz, em resposta às questões que os registros oficiais, por sua vez limitados pela
objetividade e escassez, não deram conta de responder sobre a história em construção, nesta
pesquisa. Ao reportar-me às produções científicas de Amado e Ferreira (1996, p. XV)
confirmei a opção que fiz, pois segundo essas autoras “Na História Oral, o objeto de estudo
do historiador é recuperado e recriado por meio da memória dos informantes”.
A História Oral foi por mim utilizada como ferramenta especializada na produção e na
documentação dos testemunhos dos cidadãos sabarenses que guardam na memória,
lembranças e experiências de convívio com dona Ritinha. Memórias que, conforme, Amado e
Ferreira (1996) informaram sobre a realidade histórica e social em que Ritinha construiu sua
trajetória profissional e viveu suas experiências enquanto docente.
Desta forma, abriu-se espaço para a produção de fontes orais sobre a Mestra, até então
nunca produzidas e documentadas. Uma vez localizados os sujeitos, convocados e dispostos a
participarem desta pesquisa, foi possível a realização de um total de oito entrevistas: sendo
sete entrevistas abertas (três gravadas em áudio e vídeo; e quatro, somente em áudio) e um
roteiro dirigido, em função do impedimento alegado por uma das entrevistadas para a
realização da entrevista aberta. As entrevistas aconteceram em momentos e tempos de
duração diferenciados, hajam vistas, as subjetividades e as particularidades dos sujeitos
entrevistados. Todas as gravações, foram devidamente autorizadas e assinadas de acordo com
o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido apresentado a cada entrevistado e
entrevistada, em concordância com as normas do Comitê de Ética em Pesquisa da Pró-
Reitoria de Pesquisa e de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais. Igualmente, as entrevistas foram posteriormente, transcritas.
21
1.4 Os sujeitos pesquisados
A fim de escutar o que as narrativas mnemônicas de cidadãos sabarenses poderiam me
informar sobre a Mestra me pus, primeiramente, a escutar as vozes do passado. Desta forma
anciãos e anciãs guardadores e contadores da história de dona Ritinha6 foram orientadores do
meu percurso na escavação do passado dessa professora.
Para efeito didático, separei os entrevistados em dois grupos, de acordo com o
pertencimento geracional: no primeiro, estão os anciãos com idades entre 90 e 100 anos; no
segundo, sujeitos na faixa etária de 50 a 80 anos. No primeiro grupo eu parti da seguinte
indagação: Quem foi Mestra Ritinha? Que lembranças o senhor (a) guarda sobre a Mestra?
Com o segundo grupo solicitei que dissem tudo o que sabiam à respeito da Mestra, o que lhes
fora dito sobre essa antiga professora. Assim, as lembranças sobre a Ritinha foram
descortinadas da subjetividade de cada entrevistado. Lembranças que organizadas,
subsidiaram as análises das representações sociais sobre a professora primária e sobre o
magistério, a serem tratadas no capítulo seguinte.
No primeiro grupo participaram os anciãos: um homem e duas mulheres com
idades entre 90 a 100 anos. São pessoas que conheceram, conviveram, dividiram tempos
e experiências com a Mestra e compartilharam do processo de construção de sua
memória.
Maria Laura – Dona Lalá, conforme gosta de ser referenciada e é conhecida em Sabará,
declarou pertencer a raça branca e ser neta de imigrante português. Esbanjando popularidade,
gosto pela vida e uma memória invejável, narrou suas lembranças sobre a Mestra Ritinha-
amiga, ex-vizinha, madrinha de casamento e ex-diretora do Grupo Escolar Paula Rocha por
volta de 1926/27 (não soube precisar a data). Presa a uma memória descritiva narrou com
detalhe o casarão em que morou a Mestra. Maria Laura contribuiu com valiosas informações
sobre o pertencimento étnico, origem social e familiar, além das características físicas,
pessoais e competências profissionais de Rita Cassiana. Nas entrevistas, também afloraram
rememorações de quando era mocinha e aluna do Grupo Escolar Paula Rocha, e de quando e
como se tornou professora neste mesmo estabelecimento de ensino. Recordações que se
misturavam às lembranças de Ritinha. À época da entrevista, Lalá gozava dos seus 98 anos e
ainda residia próxima ao antigo casarão da Mestra de onde, hoje, se avista apenas um lote
6 Essa era a referencia que os entrevistados que conheceram Mestra Ritinha, faziam à respeito dela.
22
vago. Em meio às lembranças de Ritinha, dona Maria Laura indicou outras três pessoas que,
assim como ela, conheceram e conviveram com a Mestra: Dr. Hélio Costa, seu primo; a
senhora Vênica; e o seu sobrinho, José Arcanjo.
Dr. Hélio Costa – Ex-desembargador do estado de Minas, ex-aluno de dona Ritinha.
Embora fragilizado pela idade (96 anos) e caminhando com dificuldades, fez questão de me
receber em sua residência. Apesar da memória um pouco fraca, conforme sinalizado por uma
de suas filhas, se dispôs a falar a respeito de sua ex-professora e permitiu que a entrevista
fosse gravada em áudio e vídeo. A foto da Mestra Ritinha foi por mim apresentada com o
objetivo de subsidiar as lembranças desse ex-aluno; da mesma forma foi cedida à ele como
um agrado e recebida com satisfação. Educado, agradeceu o “presente”. Incrivelmente, com a
foto nas mãos adentrou o túnel do tempo e caminhou de volta ao passado. Tal qual dona Lalá,
as lembranças de Ritinha se misturavam às recordações da infância vivida em Sabará, do
Grupo Escolar Paula Rocha, da sua trajetória acadêmica, de seus pais, de seus colegas dentre
outras tantas lembranças e casos. Em meio às entusiásticas rememorações, pediu-me papel e
lápis e fez questão de esboçar a estrutura interna do Grupo para mostrar a sala onde Ritinha
lecionou para ele. Também contribuiu com informações sobre a cultura escolar da época.
Concedeu-me quase uma hora de entrevista, quando sinalizou terem esgotado suas
lembranças. Por vezes, demonstrou esquecimento e se perdeu em meio às rememorações
confirmando o que a filha havia dito. Assim como Dona Laura, ele indicou um colega de
infância e de sala, o senhor Romualdo Horta, sem saber que o mesmo já havia falecido.
Vênica dos Santos Lima - Dona Vênica, irmã de duas vizinhas de dona Lalá, conta seus
90 anos com prazer e alegria. Se autodeclarou pertencente à raça branca e católica.Diz gozar
de muita disposição para o trabalho. Tal qual a dona Ritinha, ela também foi professora e
diretora do Grupo Escolar Paula Rocha. Conheceu e conviveu com a Mestra,como diretora,
quando cursava o 4º anno no mesmo grupo que lecionou e dirigiu. Velhinha espevitada,
alegre, trabalhadora, gosta de um dedinho de proza e é famosa na cidade de Sabará por
desenvolver ações filantrópicas ofertando cursos de bordado, renda turca, entre outros coseres
para mocinhas e mulheres de todas as idades. Ação que atravessa essa cidade e desemboca
no aglomerado do bairro Serra, em Belo Horizonte, para onde vai todas as quartas-feiras. Ela
indicou seu ex-aluno José Arcanjo, o Zezinho, sobrinho da dona Lalá, que por ser historiador
talvez soubesse de muitas coisas da dona Ritinha.
23
No segundo grupo colaboraram dois homens e três mulheres, com idades acima
de 50 e abaixo de 80 anos. Este grupo é composto por cidadãos sabarenses que não
conheceram a Mestra, mas que acessaram os registros da memória produzida sobre essa
professora, através do diálogo e das histórias contadas por pais, avós, tios entre outros
membros da comunidade sabarense, o que faz com que, nesta pesquisa, esses sujeitos se
tornem partícipes da reconstrução da trajetória da Mestra Ritinha.
José Arcanjo do Couto Bouzas - Tem 66 anos, é professor de História da Cultura
Mineira, em Sabará. Disse que assim como a família Cassiano Martins, ele também é bisneto
de casamento inter-racial. Apesar de declarar pouco conhecimento sobre a história de dona
Ritinha, deu valiosas contribuições sobre a origem étnica, familiar e social da Mestra. Pouco
falou sobre ela, alegando ter ouvido mais pronunciamentos à respeito do Luis Cassiano
Martins Pereira Júnior, irmão de dona Ritinha e que igualmente legou à essa cidade inúmeras
contibuições, sobretudo no meio político e literário. Fez indicação de outras pessoas de sua
geração que assim como ele possivelmente pudessem corroborar com suas lembranças sobre
as histórias que pais, avós, tios contavam sobre a Mestra. Mencionou a senhora Maria de
Lourdes Guerra por ter escrito um livro sobre as Ruas de Sabará, o desembargador Dr. Hélio
Costa e a sua tia Lalá.
Maria Lourdes Guerra Machado – Pessoa bastante discreta e objetiva, não fez
revelação sobre sua idade, pertencimento étnico e religião. Diz ter escrito e publicado, em
1999, o livro Pelas ruas de Sabará, o qual me indicou como fonte de pesquisa sobre a vida da
Mestra Ritinha. De acordo com essa autora sabarense, o levantamento que fez sobre o
histórico da Rua que homenageia a Mestra, assim como outras ruas, fora obtido através do
contato com seus conterrâneos. Além disso, alguns de seus antigos familiares que conheceram
a dona Ritinha, legou-lhe um pouco de conhecimento sobre a história dessa professora. Dona
Lourdes optou pela narrativa escrita, alegando gostar mais de escrever do que falar. Em
respeito à sua opção, elaborei um roteiro dirigido, o qual respeitosamente foi entregue no
prazo combinado. Ela também colaborou na indicação de outros sujeitos: José A. Bouzas,
Sérgio Alexandre e Dr. Hélio. Sobre Hélio ela escreveu: conheci alguns ex-alunos da
Mestra... o Desembargador Dr. Hélio Costa que reside em Belo Horizonte e que sempre sente
prazer em contar casos acontecidos com ele e sua Mestra Ritinha, em sala de aula.
24
Sérgio Alexandre – Tem 53 anos, é produtor teatral. Se autodeclarou afrodescentente e
demonstrou orgulho por seu pertencimento étnico. Ao tecer considerações sobre a memória da
Mestra, elucidou o pertencimento étnico dessa professora, fez alusão à questões relacionadas
ao preconceito racial do início do século XX e destacou a competência profissional e o legado
cultural pertencente a história dessa professora. Assim como Zezinho, indicou a senhora
Maria Lourdes Guerra Machado, para colaborar com esta pesquisa.
A senhora Maria Izabel Lourenço, 76 anos, também participou nesta pesquisa.
Convidada a dar sua colaboração, contou- me o que sabia sobre a Mestra. Consciente do
objetivo de sua participação na concessão da entrevista, lamentou não saber mais do que havia
informado. Segundo Zazinha, conforme é conhecida em Sabará, seu conhecimento sobre a
história da Mestra Ritinha se deu a partir das histórias contadas por dona Lalá, com quem está
sempre a conversar. Outras informações sobre essa professora que nomeia a rua em que a
entrevistada reside e o educandário do qual, por décadas, foi proprietária, foram extraídas do
arquivo da Escola Paula Rocha. Há alguns anos, por iniciativa do então prefeito Wander
Borges, foi afixada nesse educandário, o Instituto Educacional Mestra Ritinha, a placa
comemorativa do Centenário da Abolição da Escravatura, a qual homenageia a Mestra.
Figura 4 - Ex- Instituto Educacional Mestra Ritinha onde está afixada a Placa em
homenagem ao Centenário da Abolição da Escravatura e à Rita Cassiano Martins
Pereira
Fonte: acervo pessoal/ 2010
25
Outra colaboradora é a senhora Maria de Lourdes Dias, 76 anos, conhecida por Lulu.
Foi professora da minha mãe no 4º ano de grupo e é cunhada de uma ex-aluna da Mestra
Ritinha. De forma inusitada nos encontramos num supermercado da cidade de Sabará e
curiosamente perguntei a ela se sabia algo a respeito da Mestra. Informalmente, naquele lugar
e momento, ela se lembrou de, que sua cunhada, fora ex-aluna da Mestra. Embora, dissesse
não saber muita coisa sobre a Mestra, ela prontificou em receber-me em sua residência e me
concedeu entrevista gravada em áudio. Às poucas lembranças sobre a Mestra se misturaram
às muitas rememorações sobre a época em que foi estudante do curso primário e do curso
normal, e posteriormente quando atuou como professora primária no Grupo Escolar Cristiano
Guimarães, em Sabará, fundado e administrado pela Companhia Belgo Mineira.
Considero que, para além dos documentos, a tessitura da história da Mestra foi
alinhavada pelas memórias de seus conterrâneos, numa teia social que integrou diferentes
gerações, homens e mulheres, anciãos, pessoas que conheceram a Mestra e pessoas que não a
conheceram, mas que acessaram informações a respeito dessa professora a partir do que
ouviram de pais, avós, tios, vizinhos entre outros sujeitos. Os entrevistados, conterrâneos e
contemporâneos de dona Ritinha, indicaram os participantes deste trabalho, por acreditarem
que a memória sobre essa professora ainda está presente no tecido social da comunidade
sabarense.
Das lembranças compartilhadas pelos diferentes sujeitos entrevistados, oriundos de
diferentes tempos, lugares e posições sociais, sairam os fios para arrematar a história oculta
por detrás da Placa. Fios que também deram visibilidade aos sujeitos que supostamente ainda
guardam no sacrário de sua memória, lembranças de histórias vividas com a Mestra e/ou
contadas sobre ela, ainda que em diferentes versões. Assim foi que dona Lalá, o senhor Hélio,
Zezinho, dona Vênica, a senhora Maria Lourdes Guerra Machado, Sérgio Alexandre, Maria
Izabel Lourenço e Maria de Lourdes Dias entraram em cena nesta pesquisa, ora como
narradores e coadjuvantes da história de Rita Cassiana Martins Pereira, a Mestra Ritinha; ora
como protagonistas da própria história, quando deixavam fluir lembranças oriundas de
rememorações e recordações pessoais.
26
Figura 5 – Na teia social as lembranças sobre a Mestra Ritinha
Fonte: diagrama produzido pela pesquisadora
1.5 Memória, Subjetividade e História Oral
Se há maior desgraça do que ser desmemoriado é ter memória demais.
Vocês bem sabem como é, por experiência própria, quando a gente topa
Com um desses queridos avozinhos que se lembram de tudo:
-Ah! os bons velhos tempos!
- suspiram eles... e parapapapapa.
Mário Quintana.
Para além das fontes documentais, encontrei nas fontes orais as possibilidades de
reabertura de um passado, de problematização e de ressignificação da história pessoal e
profissional da Mestra Ritinha. Nas narrativas mnemônicas dos entrevistados extraí os
elementos que, somados aos documentos, subsidiaram as análises sobre as representações
sociais construídas sobre a professora e sobre a docência primária, em Sabará.
27
Operar com lembranças e reminiscências do passado em que a dialética memória/
esquecimento se faz presente, tal qual a epígrafe, suscita questões relativas à validação dos
testemunhos que se apresentam enquanto fontes documentais.
No decurso dos tempos, novos campos de pesquisa foram descortinados e possibilitou
ao pesquisador explorar um variado repertório de temas de natureza humana. Isso implicou na
construção de uma ampla e variada gama de fontes de investigação. Nessa diversidade de
recursos, a implicação do sujeito enquanto elemento ativo na História veio a consolidar a
valorização da subjetividade presente nas experiências vividas, nas trajetórias de vida, nos
depoimentos e entrevistas enquanto fontes para reflexão.
O documento histórico que era visto como testemunho da verdade passa a ser entendido
como um “vestígio do passado”. Enquanto vestígio é interrogado e incorporado ao diálogo
que o historiador tende a construir com outras fontes de investigação. Nesse momento, a
História Oral entra em cena e acena como uma moderna fonte construída, historicamente, para
subsidiar os novos campos temáticos abordados pelas pesquisas. Testemunhos orais e
registros documentais tornaram-se com isso, meios possíveis de resgate das histórias de
sujeitos no contexto de sua existência.
Para Chartier (2007) a distância entre o fato passado e sua representação presente
através de formas discursivas, levanta questionamentos e dúvidas. Isso porque a transmissão
de uma informação a outro sujeito pelas vias das lembranças e das recordações, definida pela
ausência do fato ou do objeto, acontece por meio da narrativa. O fato ausente passa a ser
reatualizado e ressignificado pela narrativa contaminada de emoções e de
lembranças/esquecimentos que, tal qual as faces de uma moeda, integram a dialética da
memória.
Conforme sinaliza Chauí (1982) é possível reconstruir a história de sujeitos e fatos por
meio de lembranças, mas, uma história incompleta porque a memória é seletiva, subjetiva,
idealizadora e destituída de conflitos e tensionamentos. Enquanto manifestação de
subjetividades, a memória está sempre sujeita a provocações e inserida na dialética das
lembranças e esquecimentos. Pode ceder aos desejos de narrativas voluntárias, incontroláveis
e infinitas ou refugiar-se nas armadilhas do silêncio. Vulnerável, desacelerada, não linear,
atemporal, cumulativa, plástica entre tantas outras adjetivações, a memória pode estar inscrita
no corpo através das sensações, impressa na mente como uma cera que uma vez moldada
dificilmente se dissolve, assim como, pode ser encontrada nos souveniers, nos espaços e
lugares das cidades construídos e criados para abrigá-la.
28
A memória movimenta-se no tempo/espaço, como num jogo caleidoscópico,
possibilitando o diálogo entre presente e passado, estabelecendo elo com a História e
resgatando lembranças passadas e acumuladas, dando-lhes novas formas e novos significados.
Segundo um passado é reconstruído com os olhos emprestados do presente. Por essa lógica,
as lembranças são sempre ressignificadas e as imagens não se conservam na íntegra. Sendo
assim, as memórias produzem diferentes significações, diferentes representações de um
mesmo fato, em diferentes épocas, ainda que conservem elementos consensuais. Confome
Halbwachs,
[...] a lembrança é em larga medida, uma reconstrução do passado com a ajuda de
dados emprestados do presente e, além disso, preparada por outras reconstruções
feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora se manifestou já bem
alterada. (HALBWACHS, 1990, p.71).
Por essas características da memória, procurei dar inteligibilidade aos resíduos e
fragmentos das lembranças dos conterrâneos e contemporâneos da Mestra. Assim, as
narrativas mnemônicas mais do que legitimar a memória enquanto prática social inscreve-a no
campo da linguagem e da subjetividade. Todavia, tais narrativas, tais como os registros
documentais são conforme Roger Chartier (1988, p.63), fontes produzidas, estrategicamente,
num tempo histórico e social, regidas a partir de intencionalidades. De acordo com esse autor
“[...] materiais-documentos obedecem também a processos de construção onde se investem
conceitos e obsessões dos seus produtores e onde se estabelecem as regras de escrita
próprias[...]”.
Neste sentido, assim como os documentos, as entrevistas devem ser problematizadas,
pois essas fontes resultam de acontecimentos produzidos em sociedade, e estão sob o julgo de
interesses e manipulações. Pesquisas que, como esta, visam conhecer histórias de tempos e
sujeitos e que envolve memória e História Oral exigem do pesquisador alguns cuidados na
extração e no registro das narrativas mnemônicas, dos testemunhos e dos depoimentos que
intentam por meio de suas lembranças (re)presentificar e (re)presentar pessoas, como no caso
das memórias que se puseram a lembrar de Mestra Ritinha. Narrativas que oriundas de
lembranças precisam ser interpretados e analisados a partir da consideração de que estão
eivadas de subjetividade.
Com isso, não se intentou por este estudo buscar a verdade dos fatos nas memórias que
contam a história de Ritinha, tão pouco, resgatar o passado de modo a revisar o que
aconteceu, até porque, levado pelo tempo, o passado jamais retornará. Ainda que construída a
29
partir de interesses e de representações, ainda que carregada de emoções e sob a dialética das
lembranças e esquecimentos, interrogamos a memória produzida sobre a Mestra. Desta forma,
extraímos das narrativas mnemônicas das pessoas-fonte colaboradoras nesta pesquisa, as
representações da professora primária.
Vale destacar que, enquanto interpretações e representações da realidade e da
experiência vivida, as narrativas mnemônicas, não guardam uma verdade em si, elas apenas
representam aquilo que se está a evocar. Ainda que desvelassem o aspecto dúbio da memória
e que deslizassem pelos esquecimentos, procurei dar vazão às narrativas que eivadas de
subjetividades, latentes e carregadas de vontades de lembranças7 ajudaram a ressignificar a
história da Mestra Ritinha
1.6 As categorias de análise e os aportes teórico-conceituais
Mobilizar diferentes fontes de investigação para adentrar um tempo histórico-social e
construir uma trajetória singular evocando lembranças, e trazer de volta, ainda que, de modo
incompleto e fragmentado, um passado vivido e construído num dado momento rompendo as
barreiras do tempo para, no presente, dialogar e interrogar esse passado, foi o movimento feito
nesta pesquisa. A utilização da História Oral como recurso metodológico para a produção das
fontes orais que documentam a trajetória pessoal e profissional da Mestra Ritinha, fez com
que o terreno da memória ganhasse destaque enquanto uma das categorias de análise desta
pesquisa. A memória foi o fio condutor na reconstrução da história dessa professora primária.
Num movimento dialético, eu provocava os entrevistados quando convidava esses
sujeitos a evocarem suas lembranças sobre a Mestra Ritinha, ao mesmo tempo, em que suas
lembranças me provocavam porque se encontravam guardadas nos corações, conservadas nas
cabeças e perpetuadas pelas bocas de velhos conhecidos e companheiros dessa professora. A
história da Mestra contada e recontada por seus conterrâneos revelou o aspecto
intergeracional da memória. Eu completamente seduzida pelas memórias dos participantes,
latentes e eivadas de subjetividade, deixei que delineassem os rumos deste trabalho.
A medida que os entrevistados processavam lembranças sobre Mestra Ritinha e
costuravam a história dessa professora por suas memórias, descortinavam outras questões. Tal
qual os fios de Ariadne, iam sendo postas as possibilidades das análises desta pesquisa. Ao
recuperar a trajetória profissional da Mestra e construir sentido aos seus modos de ser e de
exercer o magistério primário, busquei compreender em que aspectos a conduta social e a
7 Termo utilizado por Pierre Nora (1993) ao discutir a Problemática dos Lugares de Memória.
30
prática profissional dessa destacada professora, se aproximava de outros modos e práticas
docentes de outras tantas mulheres, professoras primárias sabarenses. Sob a perspectiva de
Veyne (1998), na qual a história de uma vida pode representar a história de outras vidas,
foquei para além da singularidade da trajetória de Ritinha, o aspecto comungado pelas
memórias de outros atores que constroem as representações sobre a professora primária.
Nas imagens produzidas sobre a Mestra Ritinha, desenhadas no corpo e na cor de uma
mulher, encontrei um conjunto de representações sobre a docência primária, em Sabará,
construídas no início do século passado. Narrativas orais e escritas enredaram memória,
docência, gênero e etnia na trama da história de Rita Cassiana, como categorias de análise. O
trinômio mulher/professora primária/mulata foi tratado sob a perspectiva de Muller (1999)
que contextualiza essa tríade no recorte histórico da primeira república, para discutir e
apresentar a construtora da nação8. Na interface dessa visão, foram destacados os processos
histórico, político, social, cultural do magistério primário que atravessaram a trajetória
docente de Ritinha e de outras professoras de sua época. Para respaldar meus estudos sobre
docência, destacam-se os trabalhos de Almeida (1988); Muller (1999); Lopes (1991); Tanuri
(2000); Louro (2011), Faria Filho (2000); Ferreira (2002), Crossetti de Almeida (1991), Lisly
Gonçalves (2006), Gonçalves (2009) dentre outros pesquisadores brasileiros.
O conceito de representação que entremeia este estudo foi fundamentado em Roger
Chartier (1988).
Ao adentrar o arenoso terreno da memória, busquei fundamentação teórica sobre
algumas noções e conceitos que se fizeram presentes neste estudo. Dentre eles: o conceito de
memória coletiva e memória individual em Maurice Halbwachs (1990), a noção de Lugares
de memória em Pierre Nora (1993), os escritos sobre Rememoração e Esquecimento em
Walter Benjamin (1989), as relações e definições conceituais de História e Memória de
Jacques Le Goff (2000) e a definição de História a partir da perspectiva sociológica de Veyne
(1998). Além desses teóricos, dados de pesquisas e publicações recentes sobre memória e
história também subsidiaram este trabalho: Delgado (2006), Abreu (1994), Theodoro (1998),
Ribeiro (2004), Bosi (1994), Seixas (2004), Smolka (2000), Rocha (2004), Fischer (2009)
Melo (2002), Nunes (2008), Abrahão (2004) entre outros.
Enquanto fio condutor desta pesquisa, a memória mediou as relações entre os tempos
passado e presente; possibilitou novos arranjos sobre a história da Mestra Ritinha, porque a
memória é sempre ressignificada; revelou os elementos que configuram as representações
8 Termo citado por Muller (1999).
31
sociais construídas sobre a professora e sobre a docência do ensino primário, em Sabará; e,
consentiu o afloramento das “memórias de vida compartida” 9.
1.7 Estrutura da Pesquisa
Para apresentar e discutir o conjunto de informações coletadas nesta pesquisa, a partir
das diferentes fontes de análise, organizei a escrita desta dissertação, em três capítulos:
Introdução – Nesse primeiro capítulo, apresento a escolha do tema e a subjetividade
implicada nesse recorte temático. Informo sobre a construção do objeto desta pesquisa.
Descrevo o percurso trilhado que, por sua vez, foi constitutivo na escolha dos procedimentos
metodológicos. Através das opções utilizadas como recurso de investigação procurei mostrar
que não se constrói história senão pela memória. Ao tecer uma breve apresentação sobre todos
os sujeitos pesquisado, sinalizo sobre o fato de que a memória individual está sedimentada no
grupo e que a memória da Mestra foi, nesta pesquisa, construída numa teia social. Também
destaco o imbricamento entre memória, subjetividade e História Oral, apontadas neste
trabalho; por último, apresento as categorias de análise e os aportes teóricos conceituais que
fundamentam este trabalho.
Na Materialidade de uma placa de endereçamento, o simbolismo da trajetória de
uma professora - Neste capítulo, a Placa que referencia o nome da Mestra ganha destaque e
passa a ser o mote para a construção do objeto dessa pesquisa. A partir dos estudos de Nora,
considero essa Placa como lugar de memória, construído como meio de ancorar as
lembranças sobre essa professora, uma vez que a memória sobre Rita Cassiana está cada vez
mais subtraída do seu grupo de pertencimento social. Além disso, explicito o sentido da
memória oficial destacada na Placa, advertindo sobre os processos de produção, de circulação
e dos usos que se faz dessa memória produzida politicamente e dada a ler aos cidadãos
sabarenses. Aqui, faço uma breve apresentação sobre a Mestra retratando sua a origem
familiar e social, seu pertencimento étnico, sua trajetória profissional dentre outros aspectos
de sua história pessoal e profissional registrada em documentos e relatadas pelas narrativas
orais daqueles conterrâneos que dela ainda guardam lembranças.
9 Este termo citado por Abrahão (2004) referencia o imbricamento das experiências pessoais e profissionais das
pessoas-fonte no relato ao narrarem o percurso existencial de outro personagem.
32
Memória, História e Docência: as representações sociais da professora primária e
do magistério- Todavia, mais do que decifrar quem foi Mestra Ritinha, busquei no capítulo
III analisar as representações sociais da professora e o modelo da docência primária. A partir
das narrativas e documentos de onde foi possível reconstruir a trajetória dessa personagem da
História da educação de Sabará, entrevi a necessidade de destacar o imbricamento entre
memória, história e docência. Entretanto, o foco principal deste capítulo, está em conhecer e
analisar as representações que a sociedade sabarense constrói e faz circular sobre a memória
da Mestra e que será tratada sobre a ótica da História Cultural de Roger Chartier (1988). Aqui
também faço uma breve contextualização histórico e social para compreender as
representações construidas sobre a mulher/professora primária e sobre o ofício docente. Ao
alinhavar documentos e narrativas no processo de reconstrução da história da Mestra percebí
o quão convidada estava sendo para tratar de questões relativas às representações da docência
e da professora primária; ao processo de feminização do magistério primário; e à questões que
atrelaram gênero e etnia, as quais embora se constituam como categorias de análise desta
pesquisa, serão abordadas, neste capítulo, de maneira superficial, devido à complexidade de
ambas.
Conclusão - Aqui, deixo como contribuição as análises que costuradas a partir dos
fios extraídos de várias subjetividades descortinadas nesta pesquisa, possibilitaram o
conhecimento e a compreensão sobre as representações construidas a respeito da professora
primária através revelação da imagem física e simbólica que as memórias dos sabarenses
ainda constróem sobre a Mestra Ritinha, bem como da reconstrução de sua trajetória
profissional. Entretanto, considero ter apenas iniciado as buscas num campo de estudo sobre o
qual, de certo, incidirão inúmeros olhares pensando até então o impensável. Conforme
Minayo (2002, p.14) “[...] não é apenas o investigador que dá sentido ao seu trabalho
intelectual, mas os seres humanos, os grupos e as sociedades dão significado e
intencionalidade a suas ações a as suas construções”.
33
2 NA MATERIALIDADE DE UMA PLACA DE ENDEREÇAMENTO, O
SIMBOLISMO DA TRAJETÓRIA DE UMA PROFESSORA
As práticas de preservação da memória, em suas variadas formas de
materialização, revelam aquilo que os indivíduos e os grupos desejam reter como
informação essencial de seu passado. Materialização das evidências de um passado
comum, os registros de memória funcionam como validação simbólica dos
elementos considerados fundamentais na formação das identidades individuais e
coletivas. A atividade de reter traços da memória individual ou coletiva é
estimulada pela necessidade de tornar visíveis os fatores de unificação dos grupos e
indivíduos envolvidos nas glórias e derrotas de um passado comum. Portanto, é por
meio da explicação do presente pelo conhecimento do passado que se constrói a
história dos indivíduos e das sociedades. Daí a importância fundamental da
memória na vida contemporânea.
Libânia Nacif Xavier, 2008.
O processo de ocupação da histórica cidade de Sabará, um dos municípios mais
antigos do Estado de Minas Gerais, nos faz pensar na relação história e memória presente nos
seus 300 anos de ocupação. Um processo que teve início no século XVIII, em razão de suas
minas auríferas, responsáveis por atrair para a região enormes levas de população que nela se
fixaram, originando o povoamento da antiga Comarca de Sabará, também conhecida como
Villa Real de Nossa Senhora da Conceição do Sabará. O mesmo processo ocorreu em
Mariana, Ouro Preto, Caeté e outras cidades que, hoje, integram o chamado circuito do ouro.
Entretanto, a decadência desse mineral, em fins do século XIX e início do século XX,
alavancou a produção do minério de ferro, que passou a constituir a principal atividade
extrativista de Sabará, integrando esta cidade ao quadrilátero ferrífero mineiro.
Conhecida como matriz de Minas e mãe de Belo Horizonte, Sabará, situada a 20 Km
da capital mineira, é uma cidade guardiã de histórias e memórias intencionalmente,
construídas e preservadas no calçamento de suas ruas, no estilo barroco de suas igrejas, na
arquitetura colonial de seus casarões, nas ruínas da Igreja do Rosário, dentre outros espaços
desta cidade.
Figura 6 – Rua Dom Pedro II (antiga Rua Direita)
Fonte: arquivo Biblioteca Municipal de Sabará
34
Todavia, a memória da cidade de Sabará não se limita ao cenário histórico. Ela também
está presente, em um significativo patrimônio cultural composto por diferentes manifestações
festivas, costumes e celebrações religiosas, tais como: as tradicionais procissões; os carnavais
de rua; as poucas, mas ainda preservadas, celebrações afro-brasileiras como o Congado e a
Folia de Reis; e os festivais gastronômicos da Jabuticaba e do Ora-pro-nobis. De acordo com
Delgado (2006) “As cidades como espaços de vivências coletivas, são paisagens privilegiadas
de registros da memória” (DELGADO, 2006, p.117).
Nessas e em outras manifestações sócio-culturais é possível apreender a memória da
comunidade sabarense aflorada em valores, em crenças, na arte, nos saberes, sabores e
sensações traduzindo a subjetividade de seus sujeitos e revelando parte da vida cotidiana de
homens e mulheres. Entre lugares e tradições, afloram histórias e memórias de sujeitos,
homens e mulheres anônimos e de destaque social que, pelo trabalho cotidiano, ajudaram a
construir essa cidade deixando nela, as suas marcas.
Entretanto, ainda que preservada e manifesta nas tradições e costumes da cultura
sabarense, vemos a memória cada vez mais deslocada dos sujeitos para os objetos e cada vez
menos encontrada nas comunidades e nos grupos sociais. Na visão do historiador francês
Pierre Nora (1993), a necessidade de tudo comemorar que impera sobre as sociedades
contemporâneas desde fins do século passado, não somente nos dá a sensação de vivermos
sob o auge da memória, como também faz com que ela necessite de suportes exteriores. A
memória passou a depender de lugares específicos para ser guardada, preservada e jamais
esquecida. Assim, temos os museus, arquivos, coleções artísticas, bibliotecas, álbuns de
fotografias, arquivos, além de homenagens póstumas, pronunciamentos, exposições
comemorativas, aniversários, dentre outros espaços e formas de evocação e manifestação da
memória. Conforme esse autor (1993) “Há locais de memória porque não há mais meios de
memória” (NORA, 1993, p. 07).
Os lugares de memória, termo criado e divulgado por Nora (1993) são espaços criados
para ancorar e abrigar a memória. Apoiada na perspectiva desse autor considero que as placas
de endereçamento de Sabará que integram o panorama urbanístico, histórico e arquitetônico
desta cidade, mais do que orientar o trânsito local e guiar pedestres e turistas são lugares de
memória. Nelas estão destacados acontecimentos históricos, lugares e personalidades da
nação brasileira: Rua da República, Rua 13 de Maio, Rua Japão, Rua Equador, Rua França,
Rua Frei Caneca, Rua Antônio Francisco Lisboa, Rua Barão de Cocais dentre outros.
35
Entretanto, o destaque maior é dado a cidadãos sabarenses, natos ou que há tempos militam
no município em diversos campos sociais10
.
Mais que referenciar fatos, lugares e pessoas, as Placas que penduram nomes de
pessoas pelas ruas de Sabará, transcendem a ideia de serem simples códigos de
endereçamento. Guardiãs de memórias e histórias, elas carregam o sentido subjetivo e
simbólico de memórias intencionalmente produzidas e de um passado, sempre atual e ávido
de lembranças.
Abreu (1994, p.208) destaca que “a recordação confere ao morto uma espécie de
imortalidade”. Nesse sentido, não há dúvida de que os nomes registrados nas Placas
expressam o desejo de lembrar e a vontade de eternizar pessoas. São formas modernas de
culto aos mortos. São meios de conferir visibilidade social aos sujeitos destacados, imortalizar
memórias, produzir lembranças e impedir possíveis esquecimentos.
Criadas para homenagear seus mortos e simbolizar uma memória produzida para ser
eternizada e partilhada pela comunidade sabarense, as placas de endereçamento, enquanto
homenagem póstuma à cidadãos sabarenses, guardam memórias e contam histórias de homens
e mulheres, figuras públicas ou anônimas, que em seus projetos de vida experimentaram
sucessos, fracassos e conflitos deixando nela, os vestígios de sua existência. Dentre os
cidadãos e cidadãs destacadas estão: Mestre Herculino, Luis Cassiano, Ataliba de Viterbo,
Expedicionário Romeu Jerônimo Dantas, Mello Vianna, Séptimo de Paula Rocha, Virgílio
Machado, Augusta Azeredo, Rosalina Alves Nogueira, Floriano Peixoto de Viterbo,
Engenheiro Milton Marcos, Mestre Arcanjo, Prefeito Vítor Fantini, Mestre Caetano, Padre
Sebastião Tirino, Professor Raimundo Nonato Pinto, Vereador Romualdo Lopes e tantos
outros personagens da história de Sabará. Pessoas que por alguma razão, alcançaram
visibilidade social na sociedade sabarense, foram reconhecidos e destacados por seu grupo de
pertencimento social.
No entanto, é importante ressaltar que muitos foram os homens e mulheres que
deixaram em Sabará, as marcas de sua experiência social e profissional, mas poucos os que
tiveram seus nomes registrados nas praças, nas escolas, nas placas que endereçam becos, ruas
e avenidas entre outros lugares de memória desta histórica cidade.
Ainda que construídos para serem lembrados, os lugares de memória oscilam entre a
lembrança e o esquecimento. Lembranças e esquecimentos que se agregam às vivências
subjetivas e cotidianas dos habitantes da antiga Sabará produzindo uma seleção pessoal e
10
Na perspectiva de Boudieu, campo é espaço de poder e de luta simbólica pela disputa do capital social.
36
coletiva da memória que se pretende eternizar. Entretanto, pensar numa placa encharcada de
memórias, incita a busca das condições de produção, de circulação e uso dessa memória e
instiga a compreensão dos sentidos político e social implícitos à esses lugares.
2.1 Rua Mestra Ritinha: num lugar de memória, o ponto de partida
Em meio às placas de endereçamento da antiga Sabará, que registram nomes, guardam
histórias, imortalizam memórias e provocam lembranças na tentativa de impedir possíveis
esquecimentos, encontro pendurado o nome de uma professora primária endereçando uma das
principais vias de acesso ao centro histórico dessa cidade: Rua Mestra Ritinha.
Figura 7 – Placa de endereçamento de uma das principais vias de acesso ao centro
histórico de Sabará
Fonte: acervo pessoal/ 2010
Reconheço nesta Placa a força simbólica descrita nos versos do professor Alberto
Libânio Rodrigues11
,
As placas insensíveis e frias que batizam as ruas possuem alma e história. Cada rua
tem seus fantasmas e amigos, que nos contam muitas histórias de homens e
mulheres de boa vontade, que na sua luta modesta, cotidiana, ajudaram a construir o
progresso da cidade e a escrever com letras de ouro, as mais belas páginas da
memória sabarense. (RODRIGUES apud MACHADO, 1999).
Força que, sugestivamente, traduz o prestígio social alcançado pela Mestra Ritinha
para ter seu nome registrado num lugar de memória de sua cidade.
Lugares de memória, termo criado e divulgado por Pierre Nora (1993), são espaços
intencionalmente construídos pelas sociedades modernas, como meios de preservar e de
11
Na obra de Maria Lourdes Guerra Machado (1990) o professor Alberto Libânio Rodrigues é referenciado
como jornalista, escritor, historiador, membro do Instituto Histórico e Geográfico/MG e Presidente da
Academia de Ciências e Letras de Conselheiro Lafaiete.
37
evocar um passado. São lugares que guardam e materializam os vestígios de um tempo
histórico e social dado e ajudam a compor o cenário das lembranças, dos esquecimentos e das
representações coletivas de uma comunidade. São modernas formas de fugir do esquecimento
e fazer a memória permanecer nos liames sociais.
Materializados nos espaços e formas ou latentes nas manifestações sociais os lugares de
memória são criados para guardar aquilo que os indivíduos e os grupos desejam reter do seu
passado. Nessa perspectiva, encontramos, em Sabará, as placas que penduram o nome de
Mestra Ritinha, não somente endereçando a Rua, mas também nomeando a biblioteca do
Clube Cravo Vermelho e referenciando um educandário que, após algumas décadas recebeu
seu nome.
Consideramos que o retrato da Mestra, até hoje pendurado no Salão Nobre do antigo
Grupo Escolar Paula Rocha, atual Escola Estadual Paula Rocha, também ocupa um lugar de
memória. Lugar sobre o qual manifestou a senhora Maria de Lourdes Dias, Lulu, uma das
entrevistadas nesta pesquisa:
Quando a gente entrava para a escola, a gente era levado a conhecer suas
dependências. Então, a professora nos mostrou, na sala conjugada, o retrato da
dona Ritinha. Lá ficavam pendurados na parede os retratos das figuras importantes
da escola. Ela foi citada como uma das primeiras professoras do Grupo Paula
Rocha. O retrato dela ainda fica lá, em destaque, na antiga sala conjugada do
Grupo [atualmente Salão Nobre].
Figura 8 - Salão Nobre (fotos de ex-diretores)
Fonte: acervo pessoal/2010
A senhora Maria de Lourdes Guerra também faz referência à foto de Rita Cassiana neste
lugar de memória da escola ao dizer que há um retrato dela,[se referindo à Mestra Ritinha] no
Salão Nobre do Grupo Escolar Paula Rocha. Da mesma forma, Maria Izabel acionou sua
memória visual e disse: eu vi um retrato dela [Mestra] na Escola Paula Rocha.
38
Nora (1993) adverte que o interessante na observação dos lugares de memória é que são
espaços oferecidos imediatamente a experiência dos sentidos e a abstração. De acordo com
esse autor, o que torna interessante os lugares de memórias é o paradoxo neles contido. Um
jogo de contrários que é, ao mesmo tempo, simples e paradoxal, natural e artificial. Além
disso, são criados com o objetivo de “parar o tempo, bloquear o trabalho do esquecimento,
fixar um estado de coisas, imortalizar a morte, materializar o material, prender o máximo de
sentido num mínimo de sinais” (NORA, 1993, p 22).
Referenciada em espaços de visibilidade, a criação da memória sobre a Mestra Ritinha,
sugere a princípio, a vontade de lembrar, de evocar e de perpetuar lembranças sobre essa
professora primária. Uma memória que preservada legitima a existência dessa personagem da
história da educação do município de Sabará, oferecendo possibilidades para constantes
ressignificações.
Na problemática da História e da memória, os lugares de memória se inserem como
espaços intencionalmente construídos e preservados pelas sociedades como modernos meios
de evocar um passado. São espaços construídos para referenciar as lembranças do grupo
social. Essa memória enquadrada, sedimentada e cristalizada para não se tornar invisível aos
olhos e esquecida, é a memória para ser lembrada, pois, “[...] sem vigilância comemorativa, a
história depressa os varreria [...] E, se, em compensação a história não se apoderasse deles
para deformá-los, transformá-los, sová-los e petrificá-los eles não se tornariam lugares de
memória” (NORA, 1993, p.13).
Entretanto, conforme adverte Gagnebin (2004, p. 89) não se trata de uma atividade de
lembrar na perspectiva da comemoração, pois senão a lembrança “[...] desliza perigosamente
para o religioso, ou então para celebrações de Estado, com paradas e bandeiras”.
Visível ou invisível aos olhos, a memória está em nós, mas também fora de nós. Bosi
(2003) em diálogo com Nora (1993) aborda o deslocamento da memória do sujeito para os
objetos. Segundo essa autora, podemos buscar a memória nas relíquias, nas escritas
biográficas, nas coleções, nas atas, nas bibliotecas, nos pronunciamentos e homenagens
póstumas, nos arquivos públicos e privados, nas pinacotecas, nas iconotecas familiares
compostas por álbuns de fotografias, cartas e demais pertences, nos museus, santuários, nas
exposições comemorativas como aniversários e em festas cívica. Ela também pode ser
encontrada nos mobiliários, nas fotografias, nos costumes, nos totens e talismãs, nas pessoas e
em suas afeições, nas esculturas, nas pinturas, num teto, numa escada, numa sala de aula,
numa casa, num chão, numa parede e em tantos outros espaços e formas.
39
Essa noção da memória ligada a objetos, lugares e pessoas e destacada por Nora (1993)
e por Bosi (2003) está presente nos depoimentos dos velhos conhecidos da Mestra Ritinha.
Convidado a evocar suas lembranças sobre sua ex- professora, o Dr. Hélio Costa, disse:
[...] enquanto eu via a casa dela lá construída sem danos, eu me lembrava dela. [...]
Lá [se referindo ao antigo Grupo Escolar de Sabará] tinha uma mangueira enorme
e eles [os colegas de turma] cantavam o hino debaixo da mangueira. Em outro
momento da entrevista, opta pelo desenho como meio de evocar suas lembranças.
Nesse momento, toma de empréstimo papel e caneta e inicia seus esboços sobre o
Grupo Escolar Paula Rocha, em Sabará, onde foi aluno de dona Ritinha. Pelos rabiscos
traçados descreve, detalhadamente, o interior da escola:
Pelos rabiscos traçados descreve, detalhadamente, o interior da escola: [...] Eu me
lembro muito bem deles, na sala [se refere aos colegas de turma]. Era uma sala
grande que dava para outra sala grande. Aqui no centro [mostra no desenho], eram
as instalações sanitárias [...] aqui nesse meio tinha uma escada.
Bosi (2003) em diálogo com Nora (1993) destaca que pessoas, espaços e objetos
funcionam como âncoras abrigando nossas lembranças. Como disse o Dr. Hélio ao ver o
retrato da Mestra: lembro dela como se fosse hoje. Assim, materializada nos objetos, ou
invisível nos gestos, a memória nos rodeia compondo o cenário de nossas relações afetivas e
sociais. Nessa infinidade de coisas, lugares e pessoas, tudo fala em nome da memória.
Figura 9 – Sr. Hélio Costa ao rever a foto de sua ex-professora
Fonte: acervo pessoal/ 2010
40
Nesta pesquisa, o processo de evocação da memória sobre a dona Ritinha vivenciado
pelos idosos, foi atravessado por diferentes meios de evocação. De acordo com Delgado
(2006),
[...] é usual que depoentes, estimulados pelas entrevistas, recorram às velhas
relíquias ou a antigos guardados, encobertos pela pátina do tempo, como fotos,
objetos, jornais, discos, cartas, poemas, entre outros recursos, que possam contribuir
para tornar o ato de lembrar mais vivo. (DELGADO, 2006, p.17).
Por essa razão, dona Vênica ancorou suas lembranças no seu anel de formatura e numa
foto datada de 1925, na qual consta a Mestra Ritinha integrando o corpo docente do Grupo
Escolar Paula Rocha, em Sabará.
Figura10 – Vênica e as lembranças sobre a Mestra Ritinha
Fonte: acervo pessoal/ 2010
Já dona Laura, mais conhecida por Lalá, expôs com orgulho seu diploma de
normalista, datado de 1925 e um pecúlio da previdência do estado de Minas gerais, adquirido
em 1936.
Figura 11 - Dona Lalá abre seu bauzinho de recordações
Fonte: acervo pessoal/ 2010
A lógica de Ecléia Bosi (2003) de que pessoas, lugares e objetos nos remetem à
lembranças, nos faz pensar que a permanência e a imobilidade dos espaços e dos objetos que
41
nos rodeiam e que acompanharam nossas relações, assentam nossa identidade e estabelecem
um elo com o passado. Lógica que se alinha aos propósitos de Halbwachs (1990, p.25), pois
conforme esse autor, “quando retornamos a uma cidade onde estivemos anteriormente, aquilo
que percebemos nos ajuda a reconstituir um quadro em que muitas partes estavam
esquecidas”. Da mesma forma, esses autores concordam que a ausência e a alteração naquilo
que, cotidianamente, era expressivo, nos separa do passado.
Para Halbwachs (1990) nossas lembranças são motivadas pela conservação em nosso
espírito de traços de um determinado acontecimento e pelo contato com o grupo com o qual
vivenciamos um fato. Em contrapartida, o esquecimento ocorre não somente em função de
modificações dos elementos que compõem nossas lembranças, mas também do afastamento e
desapego ao grupo com quem compartilhamos certas vivências. De acordo com esse autor,
[...] podemos também, no momento, estar interessados em tal fato e não conservar
dele, apesar disso, nenhuma lembrança, a ponto de não o reconhecermos quando
nô-lo descrevem, porque, desde o momento em que ele se deu, saímos do grupo
pelo qual foi notado e a ele não retornamos mais. (HALBWACHS, 1990, p.31)
As narrativas mnemônicas de Dona Lalá, também indiciam essa noção de que os objetos
que nos circundam compõem o cenário de nossas lembranças e que a ausência deles ameaça o
êxito das mesmas. Ancorando sua memória na casa onde residiu Mestra Ritinha, ela narra:
[...] Eu me lembro de um detalhe, tinha uma sala. Junto com essa sala onde nós
ficávamos assentadas (pausa) tinha a sala de jantar, como a gente falava naquele
tempo. [...] tinha uma porta assim, com um quarto, onde de vez em quando ficavam
panos de costura, porque a irmã dela costurava.[...] andava um pouco assim perto
da janela, tinha ? (pausa) tem, um forro ? [nesse momento chama a filha para
ajudá-la em sua dúvida].
É interessante destacar que já na Antiguidade, a idéia da recordação mnemônica pela
visualização de locais e imagens já estava posta. Smolka (2000) relata em seus estudos, que
foi o poeta e pintor Simonides de Céos, que no século V a.c estabeleceu as regras da
recordação mnemônica. De acordo com a autora, Simonides apregoava que “A recordação
mnemônica requer: 1) a lembrança e a criação de imagens na memória; 2) a organização das
imagens em locais ou lugares da memória (SMOLKA, 2000, p.170). Diferente das palavras,
os lugares permanecem na memória e podem ser usados inúmeras vezes, acionando e
produzindo novas memórias. Em diálogo com Nora (1993), Smolka (2000) interpreta os
lugares de memória como espaços, formas e imagens, que se apresentam enquanto simulacros
daquilo que queremos lembrar.
42
Compondo o cenário da memória, das representações e das lembranças, os lugares de
memória, segundo Nora (1993) passam a desempenhar três funções específicas: 1) permitem
que a memória seja apreendida pelos sentidos; 2) alicerçam as memórias; 3) expressam
simbolicamente, a identidade coletiva. Ao transpor essa idéia, para a placa de endereçamento
que dá suporte a este trabalho, podemos entendê-la como sendo: 1) um lugar material, por ser
visível e palpável aos sentidos; 2) ao mesmo tempo, funcional, porque garante a cristalização
da lembrança; 3) e, portanto, simbólica, por representar a experiência da docência e evocar
lembranças de acontecimentos, mesmo naqueles que jamais deles tenham participado.
Todavia, ainda que se faça concreta e palpável, percebe-se que a placa que registra o
nome da Mestra Ritinha, enquanto lugar de memória, nem sempre é apreendida pelos sujeitos
que circulam pelos espaços da histórica Sabará. Em diálogo com os estudos de Nora (1993)
percebemos que essa „distração‟ tem sido vista por esse autor, como um fenômeno mundial
denominado por ele denominado aceleração da história12
. Para esse autor, na atualidade, o
presente vem exercendo uma força devastadora e destruidora sobre o passado e sobre as
memórias construídas coletivamente. Conforme esse historiador francês “[...] hoje, não temos
memória e sim história. A memória coletiva, presente nas manifestações sociais dos grupos
desapareceu levada pelo fogo da história.” (NORA, 1993, p.7).
Ribeiro (2004), em diálogo com Nora (1993), destaca que, hoje, os acontecimentos
cotidianos são provisórios e se processam em uma velocidade assustadora. A sensação de
rompimento com o passado, percebido como morto e acabado é característico de uma
sociedade que torna o tempo presente e forja a sensação do efêmero. Segundo esse autor, o
tempo passa acelerado deixando a sensação de esvaziamento do passado, que as memórias
labutam para compensar. Conforme destaca Ribeiro (2004), “a história passa a ser mais
dinâmica, rápida, a duração do fato é a duração da notícia, o novo é que dá as cartas e conduz
as vidas, forjando a sensação de hegemonia do efêmero.” (RIBEIRO, 2004, p.2).
Nessa lógica, os fatos flagrados pelas câmeras digitais, televisivas e dos celulares,
passam a ser arquivados eletronicamente. Midiatizados e rapidamente veiculados pelos jornais
e pelas emissoras de rádio e TVs, esses fatos são descarregados na memória dos discos rígidos
dos computadores, informatizando os arquivos mecânicos. Tudo isso nos leva a crer que, em
tempos modernos, é a memória artificial que impera sobre a memória coletiva.
Arquivística, registrada pela escrita, concretizada e materializada no vestígio, no
visível e na imagem, a memória que impera sobre as sociedades modernas, está cada vez mais
12
Metáfora usada por Pierre Nora (1993) para expressar seu entendimento sobre a relação tempo, história e
memória, em tempos atuais.
43
necessitada de suportes exteriores. Seixas (2004) assim como Bosi (2004) concorda com a
idéia de uma memória exteriorizada, defendida por Nora (1993). Para esses autores, a
memória se materializa, se exprime e se atualiza nos objetos e artefatos, nas paisagens, nos
espaços, nos odores e nas imagens.
Todavia, contrapondo-se à percepção de Nora (1993), de que os lugares de memória
denunciam uma ausência ou exílio de memória, Seixas (2004) sustenta que, é porque ainda
somos senhores de memórias que temos necessidade de lhe consagrar lugares. Segundo ela,
consagramos lugares de memória exatamente “[...] porque habitamos ainda nossa memória –
tão descontínua e fragmentada quanto o são as experiências da modernidade – e não porque
estejamos dela exilados que lhe consagramos lugares.” (SEIXAS, 2004, p. 44).
No entanto, Abreu (2004) destaca que, apesar de materializada em lugares, a memória
não deixa de lado sua função social de estabelecer os laços de continuidade entre os tempos.
Para essa autora, os lugares equivalem à necessidade de preservação de memórias coletivas,
“sem as quais a vida estancaria num eterno presente.” (ABREU, 1994, p. 207).
O debate sobre os lugares de memória revela a importância atribuída aos espaços e
construções que guardam sentido subjetivo e simbólico e são “carregados de uma vontade de
memória” (NORA, 1993 p. 25). Nessa perspectiva, a placa de endereçamento da Rua Mestra
Ritinha é um lugar de memória criado para evocar o passado e provocar as lembranças de um
tempo vivido. Nela ficou congelada a referência a uma professora primária que marcou as
lembranças de pessoas que conviveram com ela, assim como aqueles que não a conheceram,
mas que se apropriaram da sua história, através da memória intergeracional. É um espaço de
lembranças de sujeitos e gerações, que deixaram pela história, suas marcas e utopias. Um
espaço construído e criado pela sociedade para evocar o passado e provocar as lembranças de
pessoas e de um tempo vivido. Segundo Ecléia Bosi (1994), a memória, “[...] Não constrói o
tempo, não o anula tampouco. Ao fazer cair a barreira que separa o presente do passado lança
uma ponte entre o mundo dos vivos e o do além, ao qual retorna tudo que deixou à luz do sol.
Realiza uma evocação.” (BOSI, 1994, p. 59).
A evocação de lembranças possibilita a circulação da memória e a construção da
história. Histórias que ganham formas transmissíveis, porque as ações empreendidas pelos
sujeitos na sua existência, seja pela sua experiência social ou profissional, deixam pela
memória as possibilidades de construção da história. Nessa perspectiva, é no sacrário de
muitas memórias que estão guardados os fios para a tessitura da trama da história da Mestra
Ritinha.
44
2.3 Quem foi Mestra Ritinha?
Figura 12 - Rita Cassiano Martins Pereira
Fonte: acervo pessoal/2010
Rita Cassiana Martins Pereira nasceu em 24 de novembro de 187513
, na Província de
Minas Gerais, na Villa Real de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, atual município de
Sabará. Nesse lugar, Rita vivenciou suas experiências sociais e construiu sua trajetória
profissional.
Mulata, solteira e sem filhos, Ritinha dedicou parte de sua vida à tarefa de educar as
crianças de sua terra natal e se destacou como personagem da história da educação de Sabará.
De mestra de primeiras letras passou à função de professora primária e diretora do Grupo
Escolar Paula Rocha – o primeiro desta cidade e o terceiro do Estado de Minas Gerais.
Faleceu em 12 de junho de 1934, aos 58 anos de idade, supostamente vítima de tuberculose.
Conforme nota de falecimento registrada no livro de ponto do antigo Grupo, pelo então
diretor substituto, Edmundo Vieira: “foram suspensas as aulas em signal de pesar pelo
falecimento a ex-directora neste grupo D. Rita Cassiana Martins Pereira. Directoria, 12-06-
934, o director, Edmundo Vieira”.
Registros não oficiais dão conta de que Mestra Ritinha, conforme ficou conhecida em
em Sabará, é fruto do casamento entre o português Major Luis Cassiano Martins Pereira com
uma ex-escrava, cujo nome não se sabe. Dessa relação interracial nasceram quatro filhos: Luis
Cassiano Martins Pereira Júnior, Rita Cassiana Martins Pereira, Maria Luiza Martins Pereira,
Virgílio Lafaiete Martins Pereira. Conforme Maria Lourdes Guerra Machado (1999), os filhos
13
Há duas datas referentes ao nascimento da Mestra Ritinha. A autora Maria Lourdes Guerra Machado cita o ano
de 1875; já na Placa afixada no ex-Instituto Educacional Mestra Ritinha, consta o ano de 1873. Como não
consegui localizar nenhum documento comprobatório, mencionei a informação que encontrei no livro da senhora
Lourdes Guerra.
45
do Major Luis Cassiano receberam instrução escolar e uma esmerada educação do ponto de
vista social, político e intelectual: todos eles dominavam pelo menos, três idiomas.
A família Cassiano Martins Pereira residiu à Rua Direita, hoje Rua Dom Pedro II,
centro da histórica Sabará, onde permanecem o prédio que abriga a sede administrativa da
Prefeitura e o Teatro Municipal14
. Ao que se sabe, habitavam um imenso casarão, o que
corrobora com a hipótese de pertencimento a um grupo social de destaque na sociedade
sabarense da época.
Registros oficiais informam que o pai de Ritinha, o Major Luis Cassiano, foi membro
de destaque na comunidade de Sabará onde prestou notórias contribuições à Santa de
Misericórdia desta cidade ao atuar como Mordomo15
, no período de 1851 a 1873.
Rita Cassiana Martins Pereira, à exemplo de seu pai e de seu irmão, o deputado Luis
Cassiano Júnior, se destacou na sociedade sabarense no campo da educação por suas
competências profissionais e conduta pessoal.
Figura 13 - Casarão da família Cassiano Martins Pereira, à Rua Direita
Fonte: acervo de José Arcanjo do Couto Bouzas
Conforme Machado (1999) o irmão de Ritinha, Luis Cassiano Júnior, o qual também
tem seu nome registrado numa placa de endereçamento nomeando uma via perpendicular à
Rua Mestra Ritinha, além de poeta, prosador, publicista e advogado atuou como vereador e
senador nas côrtes da Província de Minas Gerais. Também pertenceu ao Clube Republicano
de Sabará, o qual durante a Monarquia, chamava-se “Clube Saldanha Marinho”. Versa-se que
uma vez proclamada a República os sócios do respectivo Clube passaram a cuidar dos
interesses da cidade conseguindo melhoramentos diversos: matadouro público, cemitério
municipal, canalização de águas, calçamento das ruas, embelezamento da Rua Direita (na qual
14 Antiga Casa de Ópera de Sabará, construído em 1819. 15
Segundo o historiador José Arcanjo do Couto Bouzas, essa era uma função administrativa de alta hierarquia, exercida na
Santa Casa de Misericórdia de Sabará, na qual inventariava-se o patrimônio material do referido local (mobiliário,
documentos e etc.).
46
morava a família Cassiano Martins Pereira), criação de escolas diurnas e noturnas, restauração
da Casa de Ópera de Sabará, dentre outras conquistas. Em fins do século XIX, Luis Cassiano
Jr. lecionou na Escola Normal de Sabará, posteriormente, denominada Escola Normal Delfim
Moreira, onde suas irmãs, Rita Cassiana e Maria Luiza se tornaram professoras primárias. De
1890 a 1889, prestou notórias contribuições à Santa Casa de Misericórdia deste município.
Posteriormente à esta data, ele foi nomeado 3º suplente do Juiz Municipal do Terno de
Sabará. Luis Cassiano Júnior faleceu em 1903 e foi enterrado no Cemitério Municipal do
Carmo, local no qual se encontra a sepultura de sua irmã Ritinha, que faleceu 31 anos depois.
O irmão caçula, Virgílio Lafaiete também professor, atuou no Colégio Azeredo, onde
lecionou Português, Latim e Francês, por um curto tempo, vindo a exercer posteriormente,
uma função administrativa, no Fórum de Sabará. De acordo com relatos da senhora Maria
Lourdes Guerra, os irmãos de Ritinha, Luis Cassiano e Virgílio, estudaram no famoso colégio
do Caraça. Luis seguiu carreira indo para o Rio de Janeiro enquanto que Virgílio preferiu
ficar em Sabará. Ao que consta, todos atuaram como professores, mas somente Luis Cassiano
Júnior e Rita Cassiana Martins Pereira, foram homenageados, postumamente, pela sociedade
sabarense ao nomear duas importantes vias de acesso ao centro histórico desta cidade.
Segundo depoimentos coletados nesta pesquisa, Rita Cassiano Martins Pereira iniciou
sua trajetória como professora pública na Escola de Primeiras Letras. Em 1896, aos 21 anos,
Ritinha passou a integrar o corpo docente da Escola Normal Delfim Moreira, onde
permaneceu até o ano de 1901, juntamente, com outras professoras que também tiveram
destaque no campo da educação de Sabará.
Figura 14 - Mestra Ritinha na Escola Normal Delfim Moreira, em 1896 Ritinha ocupa o 2º lugar da esquerda para direita, na primeira fila de baixo para
cima, composta pelo corpo docente da Escola Normal Delfim Moreira. Atrás estão as
normalistas.
Fonte: acervo da Escola Estadual Paula Rocha
47
A opção pela educação, talvez fosse a única possível, considerando que a máxima
pretensão feminina, no campo profissional, naquela época, sobretudo na pequena cidade de
Sabará, era ser professora. Segundo informações de Maria Lourdes Guerra Machado, naquele
tempo não era aceitável a saída de moças da cidade onde residiam, para estudar.
Nas décadas iniciais do século XX, especificamente, de 1907 à 1926, Rita Cassiana foi
professora primária do Grupo Escolar “Paula Rocha”- o primeiro grupo da cidade e o terceiro
de Minas Gerais, na Reforma Francisco Campos. Em seguida, assumiu o cargo de diretora até
o ano de 1934, quando veio a falecer.
Segundo Machado (1999), Mestra Ritinha foi considerada por seus contemporâneos,
como uma professora de excepcionais qualidades: sóbria, competente, sensata e dinâmica,
era expressão de bondade e abnegação. Conforme depoimento dessa autora sabarense,
Mestra Ritinha sempre foi representada como uma professora equilibrada, de atitudes claras
e leais, corajosa, firme, compreensiva, inteligente, de bom coração. Além de educadora,
coordenou projetos sociais e filantrópicos. Para muitos de seus conterrâneos, a Mestra foi
uma idealista da educação.
2.4 Os processos de produção, de circulação e de uso da memória
Através dos nomes que estão dependurados indicando ruas, praças e becos, e ao redor da
frieza das placas, existe vida – palpitante vida.
Luiz Alves Santos
Se na frieza das placas que batizam as ruas da antiga Sabará, existe vida conforme o
simbolismo da escrita do professor Luis Alves Santos16
, sobre a criação da placa que nomeia a
Rua Mestra Ritinha, pouco se sabe17
.
Registros não oficiais dão conta de que, na gestão de 1948 a 1951, foi o prefeito
Joaquim Siqueira, quem apresentou à Câmara Municipal do município de Sabará, o Projeto de
Lei para transformar em rua, uma antiga grota na parte central da cidade, situada ao fundo do
casarão da família Cassiano Martins Pereira. Segundo lembranças de antigos moradores deste
município, publicadas por Maria Lourdes Guerra Machado18
existia, na atual Rua Mestra
Ritinha, uma depressão no terreno por onde passava “um filete de água” que descia do Morro
16
Luis Alves Santos é escritor, professor de Língua Portuguesa e ex-prefeito de Sabará. 17
O Projeto de Lei que deu origem à Rua Mestra Ritinha não foi encontrado. Segundo informação de uma
funcionária da Câmara Municipal de Sabará os registros documentais disponibilizados para consulta, datam do
ano 1970 aos dias atuais. 18
O livro Nas Ruas de Sabará publicado por Maria Lourdes Guerra Machado (1990) reúne lembranças de
antigos moradores sobre a origem de algumas das ruas desta cidade.
48
São Francisco em direção ao Rio Sabará. Em época de chuva, essa água que corria
calmamente por essa grota, se avolumava de modo a causar problemas à população local.
Dona Vênica lembrou de um episódio marcante sobre esse local:
Eu me lembro de um episódio que jamais vou esquecer. Chamou a atenção de todo
mundo aqui da cidade. O Sr. Salatiel, que foi diretor do Grupo Paula Rocha perdeu
uma filha com tuberculose. Você imagina que ele jogou cama, colchão e os
pertences da menina nesse córrego. Foi uma coisa horrorosa! Na verdade era um
buraco. Bem no meio dele corria uma aguazinha, e que só enchia quando chovia. A
gente tinha que passar de uma lado para o outro e o buraco no meio. Agora você
imagina, só!
Foi o prefeito Joaquim Siqueira quem teve a idéia de transformar esse buraco na atual
Rua Mestra Ritinha. Uma idéia que ganhou a aprovação da população sabarense, pois a Rua
tornou-se reta, ampla, com calçamento e passeio, valorizando os terrenos ao seu entorno.
Machado (1999) informa que para a realização dessa obra, o Prefeito entrou em entendimento
com os proprietários dos terrenos cujas casas davam fundo para a grota, canalizou o esgoto
dessas residências e desapropriou terras, aterrou a grota e calçou a Rua com pedras, mármores
cor-de-rosa, retiradas do Morro São Francisco. Dentre esses proprietários, estavam
descendentes da falecida Mestra.
Segundo informou a senhora Maria Lourdes Guerra Machado,
A Rua Mestra Ritinha ganhou essa denominação em 1948, por iniciativa do prefeito
Joaquim Siqueira, ex-aluno da Mestra Ritinha, na antiga Escola de Primeiras
Letras, que funcionava em um velho prédio que foi demolido para a edificação do
Fórum. Para a construção da Rua a Prefeitura apropriou-se de parte dos terrenos
das residências que tinham os fundos chegando até a grota, por onde corria um
córrego até o Rio Sabará. Uma parte das terras tomadas pela Prefeitura pertencia à
casa da família de Mestra Ritinha, onde ela nasceu e passou toda a sua vida. Eu
conheci a grota onde corria o córrego que recebeu capeamento para a formação da
Rua!
De acordo com José Arcanjo,
A Rua foi aberta nos fundos da casa da Mestra. Me parece até que é por causa disso
que eles colocaram o nome da Rua que chama Mestra Ritinha. É uma Rua
relativamente nova, aberta por volta de 1960.
49
Figura 15 – Rua Mestra Ritinha
Fonte: acervo pessoal/ 2010
Contudo, não se sabe ao certo, porque e quem, de fato, indicou o nome da Mestra
Ritinha para designar a Rua que, supostamente, desde o final dos anos quarenta ou quem sabe
dos anos 60, do século passado, estampa o nome dessa professora primária, numa placa de
endereçamento de um importante acesso ao centro histórico de Sabará. Não foi possível
levantar o Projeto de Lei que deu origem a essa Rua, tão pouco, as razões que teriam
motivado a ação do “suposto” Prefeito ao designar o nome da Mestra.
O homem, em toda a sua existência, esteve preocupado em registrar e transmitir seus
feitos. Na tentativa de que suas aquisições perdurassem no tempo, que se tornassem
conhecidas por outros homens e que não fossem esquecidas, inventou várias formas de
perpetuá-las. A sociedade criou e construiu espaços para evocar o passado e provocar as
lembranças de pessoas e de tempos vividos.
Nessa lógica, vemos registrados nas placas de endereçamento de Sabará nomes de
figuras públicas ou anônimas que, na sua luta cotidiana, foram partícipes do processo de
desenvolvimento desta histórica cidade. Em homenagem póstuma estão espalhados pelas ruas
desta cidade nomes de políticos, advogados, escritores, mestres, doutores dentre outras
personalidades consideradas ilustres por seu grupo de pertencimento social. Em meio à esses
nomes encontramos o da Mestra Ritinha, professora primária que teve marcante atuação, no
campo da educação, no início do século passado dessa ex-província mineira.
Ao interrogarmos a memória construída sobre a Mestra, buscamos compreender e
explicitar a lógica político-utilitarista implícita na construção da Placa que oficializa e
„pendura‟ o nome dessa professora. Seixas (2004) chama atenção para os interesses e
demandas que expurgam a espontaneidade da memória ao exercer sobre elas, o controle
voluntário dos tempos passado e presente e do conteúdo a ser lembrado. As lembranças assim
50
como os esquecimentos, produzem representações sociais construídas e partilhadas
coletivamente.
A sociedade atua como agente seletivo daquilo que, subjetivamente, introjetamos para
ser guardado em nós, e, por nós. Nesse processo, há indícios de que lembranças e
esquecimentos passam pelos crivos pessoal e social. Para Theodoro (1998) sobre a produção
da memória, agem condicionantes históricos, pessoais/subjetivos e sociais/objetivos. Idéia que
essa autora fundamenta ao citar Otávio Paz, “vivimos entre lo mito y La negación, deiticamos
a ciertos períodos, olvidamos a otros. Esos olvidos son significativos; hay uma censura
histórica como hay uma censura psíquica” (PAZ apud THEODORO, 1998, p.61).
Assim, apartada no tempo e materializada para sempre ser lembrada, a Placa que
eterniza a memória da Mestra Ritinha pode ter sido produzida com a função de conservar as
representações do modelo idealizado da professora primária cunhado pela sociedade, nos
principados do século XX. Uma memória, quem sabe, produzida para influenciar as gerações
de futuras normalistas sabarenses e para referenciar a prática profissional dessas professoras.
Ao que sugere, essa memória está politicamente engessada no imaginário social dessa
comunidade. Conforme atesta Machado (1999) lembrar de Mestra Ritinha significa pensar em
uma professora modelo, em uma educadora com todos os predicativos que o termo comporta,
[...] professora portadora de excepcionais qualidades: sóbria, sensata e dinâmica;
era a expressão de trabalho bondade e abnegação. Participava dos empreendimentos
comunitários educacionais, sociais e filantrópicos, ocupando quase sempre a
coordenadoria de tudo. Educadora na acepção da palavra. (MACHADO, 1999, p.
299).
Todavia, vemos que a memória é vulnerável às manipulações conscientes e
inconscientes, que ela está sob o julgo do interesse, da inibição, da censura, da afetividade e
do desejo. Segundo Halbwachs (1990) nossas lembranças, ideias e esquecimentos são
determinadas pelo grau de afinidade que mantemos com nosso grupo de pertencimento social.
É ele quem age sobre nós, influenciando e persuadindo nossos pensamentos e nossos
sentimentos. Sob a ótica desse autor, buscamos compreender as lembranças que os
entrevistados evocavam sobre a Mestra Ritinha.
Fundamentado na teoria durkheiminiana, Halbwachs (1990) considera que o grupo
social é o suporte da memória e que, portanto, lembranças e esquecimentos são condicionados
às representações construídas e partilhadas coletivamente. Para esse autor, recordações e
práticas sociais para que se conservem no grupo, necessitam do outro para serem legitimadas,
reforçadas e lembradas. Igualmente ocorre com aquilo que o grupo elege para preservar e
51
transmitir a outras gerações. Conforme esse autor, as memórias são produzidas, transmitidas e
sustentadas no grupo de convivência. Em seus estudos sobre a memória coletiva ele afirma,
Para que nossa memória se auxilie com a dos outros, não basta que eles nos tragam
seus depoimentos: é necessário ainda que ela não tenha cessado de concordar com
suas memórias e que haja bastantes pontos de contato entre uma e outras para que a
lembrança que nos recordam possa ser reconstruída sobre um fundamento comum.
Não é suficiente reconstituir peça por peça a imagem de um acontecimento do
passado-para se obter uma lembrança. É necessário que essa reconstrução se opere a
partir de dados ou de noções comuns que se encontram tanto em nosso espírito como
nos dos outros, porque elas passam incessantemente desses para aquele e
reciprocamente, o que só é possível se fizeram ou continuam a fazer parte de uma
mesma sociedade. Somente assim podemos compreender que uma lembrança possa
ser ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída. (HALBWACHS, 1990, p. 34).
Ao buscarmos compreender a construção da memória oficial sobre a Mestra Ritinha
argumentamos que as lembranças assim como os esquecimentos inerentes a essa memória
foram produzidas e controladas por seu grupo de pertencimento social. Isso significa dizer
que, a memória criada sobre essa professora é, ao mesmo tempo, uma construção individual e
coletiva. Pierre Nora (1993) sugere compartilhar das proposições de Halbwachs (1990) ao
afirmar que a memória “[...] emerge do grupo que ela une [...]” (NORA, 1993, p.9).
Materializada em espaços, formas e lugares ou conservada em nossas lembranças, a
memória não deixa de lado a função social de estabelecer os laços de continuidade entre os
tempos. Propagada entre gerações, a memória circula rompendo as barreiras do tempo e do
espaço conforme destaca Michel Le Ven (2010) “[...] a memória não é cronológica, nem
linear.” (LE VEN, 1996, p. 59).
As histórias perpetuadas entre os grupos são favoráveis à circulação da memória e a
construção da história. Por mais que a memória individual possa existir nos seus recônditos
mais íntimos, ela não deixa de estar vinculada à outros sujeitos. Nascemos inseridos num
grupo social e é nele e por ele que, segundo Halbwachs (1990) se opera a transmissão
geracional da memória. Para esse autor, o contato da criança com anciãos do seu grupo de
pertencimento social, faz com que ela recue no tempo e se coloque em contato com um
passado remoto, recebendo deles o legado da memória coletiva do grupo ao qual pertencem.
De acordo com Halbwachs,
[...] é na medida em que a presença de um parente idoso está de algum modo
impressa em tudo aquilo que nos revelou de um período e de uma sociedade antiga,
que ela se destaca em nossa memória não como uma aparência física um pouco
apagada, mas com o relevo e a cor de um personagem que está no centro de todo um
quadro que o resume e o condensa. (HALBWACHS, 1990, p. 66).
52
Desta forma, as lembranças dos mais velhos, quando narradas, favorecem o
intercâmbio entre os tempos passado e presente possibilitando o entendimento de uma época
com suas especificidades e seus paradigmas. Tempos e estilos de vida que acabam por se fixar
dentro da memória de quem se põe na escuta dessas narrativas.
De acordo com Bosi (2006), anciãos e anciãs, guardiões e guardiãs do passado, tem
como função social aconselhar, lembrar, recordar e rememorar. Eles são os transmissores e
principais perpetuadores das muitas histórias que suas memórias dão conta de contar. Assim
foram construídas as narrativas daqueles que não conheceram a Mestra Ritinha, mas que
puderam acessar os registros da memória construida sobre essa professora.
Entre lembranças e rememorações, a história de Mestra Ritinha foi aos poucos
costurada por velhos conhecidos. Ao se lembrarem da Mestra, acabavam por rememorar fatos
de sua vida pessoal e de suas próprias experiências. Entre memórias compartilhadas e
transmitidas entre gerações, a memória vai se popularizando. Nesse movimento novos
elementos surgiram e compuseram a história da Mestra costurando representações sobre o
magistério e a professora primária. Conforme destaca Abrahão (2004), “Neste ato de
reinterpretação constante dos fatos do outrora no presente... o ouvinte reinterpreta os fatos
narrados e, nesse processo de reinterpretação, traços do conto original permanecem enquanto
outros são recriados.” (ABRAHÃO, 2004, p. 211).
Naquilo que contam daqui e dali, a história de Mestra Ritinha ainda permanece no seu
grupo de pertencimento social. De acordo com Halbwachs (1990), o que vai garantir a
permanência da memória e possibilitar tais representações é a duração do grupo e o lugar que
cada membro ocupa em relação aos demais. Em outras palavras, a duração da memória é a
duração do grupo. E nele, cada membro tem seu lugar ocupado no conjunto, o que dará
destaque a um sujeito quando dele, o grupo se lembrar.
Ainda segundo Halbwachs (1990) é comum, que na sociedade que os indivíduos
formam entre si, um deles venha ocupar lugar de destaque perante o restante dos indivíduos, e
jamais tenha a consciência do significado desse lugar no pensamento dos seus semelhantes.
Senão prevenido tardiamente e ainda em vida, do sentido atribuído pelo grupo ao
comportamento, gestos, palavras e expedientes de um indivíduo, pode ser que esse
reconhecimento seja atribuído, postumamente.
53
3 MEMÓRIA, HISTÓRIA E DOCENCIA: AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA
PROFESSORA PRIMÁRIA E DO MAGISTERIO
Narrativas, sujeitos, memórias, histórias e identidades. É a humanidade em
movimento. São olhares que permeiam tempos heterogêneos. É a História em
construção. São memórias que falam.
Lucília de Almeida Neves Delgado
Nas memórias que ainda contam histórias sobre a Mestra Ritinha, traduzidas em
imagens e discursos, encontramos os elementos para problematizarmos o sentido da docência
como espaço de atuação profissional das mulheres, nas primeiras décadas do século XX. As
representações sociais da professora primária e do magistério, naquele tempo histórico e
social, tomaram conta das palavras, da interlocução e do diálogo das pessoas-fonte. Mestra
Ritinha foi representada como professora modelar, dotada de atributos pessoais e
competências profissionais. Representações também registradas pelos documentos
pesquisados.
Ao dividir espaço com a memória oficial que registra fragmentos do percurso
profissional de Rita Cassiana, as narrativas mnemônicas dos entrevistados nesta pesquisa -
oriundas de diferentes sujeitos, gerações, tempos, espaços, lugares e posições sociais -
informaram sobre os sentidos construídos e atribuídos às mulheres, que pelas vias da
prescrição ou da predileção assumiram as salas de aula das escolas públicas e se tornaram
professoras primárias republicanas.
O entrecruzamento das fontes orais e documentais foi o movimento feito neste
capítulo para analisarmos as questões indiciadas pela tessitura dos fios da história da Mestra.
Por esses recursos metodológicos buscamos compreender como os discursos políticos e
religiosos de grupos dominantes hegemônicos produziram a professora primária. Que
representações físicas, pessoais, intelectuais e sociais foram atribuídas à mulher que
enveredasse pelas trilhas da profissão docente? De que maneira o magistério primário foi
prescrito às mulheres? Que competências profissionais e condutas pessoais foram exigidas ao
exercício da docência primária?
Na história que as memórias individuais e sociais levantaram sobre Ritinha encontramos
elementos que apontaram para a ocupação maciça das mulheres, professoras primárias, nas
salas de aula dos grupos escolares, construídos nas décadas iniciais do século passado –
ocupação considerada como um fenômeno que transcendeu os espaços geográficos e ficou
conhecido mundialmente como feminização do magistério primário. Também sinalizaram
54
para o modelo de docência primária prescrito aos cursos normais, inspecionado na prática
docente.
De acordo com Vidal (2003, p.5) a ação de ressignificar tempos, sujeitos e fatos só se
torna possível porque “[...] nos fragmentos da memória encontramos atravessamentos
históricos e culturais, fios e franjas que compõem o tecido social”. Nesse sentido, conhecer o
contexto sócio-histórico que atravessou o percurso profissional da Mestra, nas três primeiras
décadas do século XX, e de tantas outras mulheres que, assim como ela, se fizeram
normalistas e professoras primárias, foi fundamental para alinhavar as representações,
imagens, expectativas e sentidos alocados ao sexo feminino e à função docente.
Bourdieu (1996) considera que na reconstrução de um percurso de vida é fundamental
compreender a realidade em que jaz o sujeito, a qual ele denomina como “superfície social”.
Chartier (1988) em diálogo com esse autor entende que as ações e representações oriundas da
relação do sujeito com o mundo social [com a realidade histórica e social] ao qual pertence,
externalizadas nas práticas sociais e profissionais desses sujeitos, refletem pensamentos e
idéias dominantes de uma época.
Entretanto, Chartier (1988, p.41) adverte para o fato de que, embora pensamentos e
idéias de uma época se expressem na singularidade e subjetividade alheia através de práticas
sociais e profissionais, acabam que “[...] refletem a mentalidade sempre coletiva que rege as
representações e juízos sociais, sem que estes o saibam”. O que nos leva a supor que para
além da subjetividade de quem escolheu enveredar pelos caminhos da profissão docente, o
tornar-se professora primária, mais que predileção, foi, sugestivamente, uma prescrição ditada
por aspectos sociais, culturais, políticos e religiosos dentre outros.
Os significados construídos social e historicamente sobre o magistério primário, assim
como a definição da imagem da mulher enquanto professora primária, engessados no
imaginário coletivo e social, incidiram, conforme Rabello (2007, p.58) a “escolha” da
profissão docente. Nesse sentido, vemos o poder controlador e constituidor que a memória
exerce sobre o indivíduo e suas escolhas profissionais. De acordo com a autora “Dentre as
profissões historicamente destinadas ao gênero feminino, à função de professor envolve um
direcionamento histórico, uma memória [...]”. Do diálogo com essa autora, buscamos
entender a imbricação entre memória, história, docência e gênero presentes na trajetória de
Rita Cassiana.
Todavia, tornar-se professora segundo Chartier (1994), vai ao encontro da apropriação
que cada um faz da realidade sócio-cultural em que está inserido. Em outros termos, é a partir
de como essa realidade é incorporada e ressignificada que esses sujeitos constróem sentido
55
para suas vidas, fazem escolhas e definem estratégias de atuação. Uma apropriação que, de
acordo com esse autor, oriunda da articulação entre as estruturas objetivas da realidade social
– tal qual a sociedade prescrevia a docência à mulher – com as representações subjetivas –
quer dizer, da maneira como os sentidos atribuídos ao ofício docente foram incorporados,
ressignificados e colocados em prática.
Do diálogo com Roger Chartier (1988) surgiram duas questões: a partir dos diferentes
modos de apropriação sobre a qual incidem questões de ordem objetiva x subjetiva, como as
mulheres reagiram às prescrições impostas à profissão docente e destinada às elas? A partir
dessa apropriação como deram a ler suas práticas profissionais manifestas nos modos de ser
professora e de exercer o magistério? Respostas que buscamos analisar à luz das memórias
produzidas sobre a Mestra Ritinha e dos sentidos da docência e da professora no ensino
primário, em Sabará.
Rabello (2007, p.59) sugestivamente alinha-se às idéias de Roger Chartier (1994) ao
destacar que “A escolha de uma profissão não é somente pessoal [...] depende de
condicionamentos sociais mais profundos”. A perspectiva dessa autora não somente confirma
a lógica de Chartier (1994) da relação sujeito/subjetividade x sociedade/objetividade, como
faz ressalva às forças que produzidas no ambiente social e cultural operam sobre a
subjetividade dos sujeitos.
Louro (2011, p.103) ao tratar das representações sobre professores e professoras em
seus estudos sobre Gênero, sexualidade e educação vai dizer que “Essas representações não
são, contudo, meras descrições que “refletem” as práticas desses sujeitos; elas são de fato,
descrições que os “constituem”, que os “produzem”. Assim, as representações inerentes à
prática profissional e social dos sujeitos, evidenciam o modo como que estes são produzidos,
e conduzidos ao exercício das mais diferentes atuações a partir de condicionantes oriundos de
contextos históricos e de configurações sociais.
Nesse sentido, trabalhar com as representações sociais individuais e coletivas forjadas
a partir da memória construída sobre Mestra Ritinha implica em destacar a sua singularidade e
contextualizar suas vivências num tempo e espaço dados; implica em colocar em cena os
condicionantes históricos e sociais envolvidos na sua trajetória pessoal e profissional
destacadas pelas memórias que ainda contam sua história. Os sentidos e as marcas extraídas
sobre as competências profissionais e condutas pessoais dessa personagem da educação da
história de Sabará, possibilitaram a compreensão de um modelo de docência e da professora
primária.
56
Desta forma, para além das práticas e representações singulares, para além do modo
como Rita Cassiana incorporou o magistério e construiu sua prática docente, procurei
compreender e explicar as imagens e as representações atribuídas às mulheres professoras
primárias e à profissão docente, bem como as expectativas sociais, que dão a ler as ações
desses sujeitos e a de seus semelhantes, tal como pensam que é ou como gostariam que
fossem.
O conceito de representação utilizado, neste capítulo, se distancia de análises centradas
em processos psicológicos. Construído por Chartier (1988) é um conceito inscrito no campo
da História Cultural, e segundo esse autor possibilita “identificar o modo como em diferentes
lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler”
(CHARTIER,1988, p.16-17).
Nessa lógica, as representações presentes nos discursos e práticas de sujeitos e grupos
visam identificar as classificações, os usos e as interpretações coletivas construídas sobre o
mundo social. Elas se manifestam em práticas e discursos “que permitem avaliar o “ser-
percebido” que um indivíduo ou um grupo constrói e propõe para si mesmo e para os outros”
(CHARTIER, 1990, p.43). São interpretações culturais construídas, num dado tempo histórico
e social, e ofertadas à apropriação de nossas percepções e de nossos sentimentos, assim como
aos sentidos e afetos do grupo de pertencimento social ao qual nos vinculamos.
Todavia, para além da memória dos mortos e da marca de alguém que já viveu uma
época, há algo maior que transcende a singularidade da trajetória profissional e das
experiências sociais da Mestra Ritinha e que caracterizam o sentido da docência e a imagem
esculpida para as mulheres, que, assim como Rita Cassiana, assumiram as salas de aula dos
grupos escolares, naquele alvorecer do novo século, como professoras primárias.
3.1 Nas lembranças sobre a Mestra Ritinha, o imbricamento entre memória e história
A história de Mestra Ritinha contada pelas lembranças de seus conterrâneos e
contemporâneos mostraram quão estreita é a relação entre os campos da Memória e da
História. Compreender essas relações tornou-se tarefa crucial nesta pesquisa, embora, bastante
difícil, se considerarmos a complexidade que os termos comportam.
A capacidade humana de vivenciar e de produzir a memória para não ser esquecida,
faz com que o homem se mantenha em constante relação com o passado. Lógica implícita nas
homenagens póstumas à docentes, como a Placa que registra o nome da Mestra Ritinha.
Igualmente, podemos considerar os versos da poetiza Cora Coralina ao externar suas
57
rememorações sobre sua única professora, a Mestra Silvina, que lhe ensinou a ler e a desenhar
as primeiras letras. “Sempre que passo pela casa, me parece ver a Mestra, nas rótulas.
Mentalmente beijo-lhe a mão. Bença, Mestra”. (CORALINA, 1985, p.77)
Entre rimas e narrativas os sujeitos produzem memórias, contam e registram histórias.
Assim, por meio das lembranças, os distintos grupos de entrevistados resgataram os fios da
trama da história da Mestra Ritinha, que costurados produziram sua memória. À seus modos,
tempos, lugares e posições sociais, os quase centenários sabarenses, ao contarem histórias do
passado pelas narrativas, dão destaque à memória enquanto prática social, tal qual a poetiza
Cora. Naquilo que contam daqui e dali, as vozes do passado operam a transmissão geracional
da memória e dão a conhecer uma época com suas especificidades e seus paradigmas.
Tal qual a história da Mestra Silvina, lida por muitas gerações, a história sobre Mestra
Ritinha também foi perpetuada na comunidade de Sabará. Fato que possibilitou aos sujeitos
que não conheceram essa professora, serem partícipes na construção de sua memória.
Memórias que ressignificadas apresentaram e representaram essa professora primária, do
início do século passado, nos mais variados aspectos de sua existência. Mestra Ritinha ganhou
“vida” através das lembranças guardadas no sacrário da memória de quem ainda perpetua sua
história. Conforme destacado por Theodoro (1998, p.69) “[...] o mágico da memória é
perceber que quem conta e reconta aumenta um ponto, pontos que nos fazem tornar a história
viva, sedenta de movimento”.
Fundamental para a história, a linguagem possibilita o relato de lembranças e
experiências vividas. Segundo Smolka (2000), a linguagem é o elemento constitutivo da
memória e sua via de socialização. A memória é forjada pela palavra, se inscreve e se molda a
ela, assim como as práticas no discurso. Para essa autora, a memória é considerada objeto da
fala e da emoção humana. Lógica que sugere alinhar-se às considerações de Thompson (1992,
p.41) “As palavras podem ser emitidas de maneira idiossincrática, mas, por isso mesmo, são
mais expressivas. Elas insuflam vida na história”. Dona Lalá, em prantos, deixa patente essa
idéia através das narrativas de suas lembranças sobre Ritinha: Ela era tão boa para mim! Por
que é que uma pessoa assim morre?
Subjetivas, fragmentadas, dispersas, embaçadas , as memórias organizam, dão o tom e
movimentam a história, ressignificando as ações humanas e os resquícios por elas deixados.
Resquícios que organizados pela memória, são transformados em História. Segundo Le Goff
(2000, p.11) “[...] o processo da memória no homem faz intervir não só a ordenação de
vestígios, mas também a releitura desses vestígios”. Durand (1988, p.42) sugere alinhar-se à
58
citação de Le Goff (2000) ao dizer que “a memória é poder de organização de um todo a
partir de fragmentos”.
Em diálogo com Seixas (2004, p.49) entendemos como a história de Ritinha,
personagem desta pesquisa, pôde ser novamente trazida à tona pelas vias da releitura dos
vestígios, pois “[...] o passado que “retorna” de alguma forma não passou, continua ativo e
atual e, portanto, muito mais do que reencontrado, ele é retomado, recriado, reatualizado”.
Entretanto, as marcas de alguém que já viveu uma época, as experiências vividas, num tempo
e espaço específico, jamais são trazidas para o presente, igualmente, como ocorreram no
passado. Lembranças evocadas e provocadas pelos vestígios são sempre relidas e
ressignificadas, no tempo presente.
O diálogo com Le Goff (2000) e Seixas (2004) nos leva a pensar que memória e
história se relacionam no plano das temporalidades da História. E que ao introduzirmos os
diversos passados no presente, a memória procederá sem alterá-los, embora, sempre
atualizando o vivido. Por essa razão, o passado é desconstruído e reinventado a cada tempo
presente. E, ao ser revivido e representado no presente, não se repete.
O que se percebe nesse processo de reatualização das experiências é que parece
ocorrer uma fusão dos tempos, em que o tempo passado se insere no tempo presente. Uma
fusão que só a memória é capaz de fazer acontecer. Nos fhasches das lembranças de Dona
Lalá, é possível percebermos a manifestação dessa fusão em meio à dúvida temporal: [...] ali
[aponta como se fosse hoje] tinha um horror de pano, tinha um quintal e seguia um quarto,
onde tinha lá uma janela. Perto da última janela tinha... tem? Um forro na mesa. Por essa
narrativa vemos que o passado se presentifica e se atualiza através da memória afetiva e das
narrativas.
Nos imbricamentos que se fizeram presentes, nesta pesquisa, entre os campos da
Memória e da História, a primeira ia se revelando nas suas diversas faces: ainda que as
narrativas mnemônicas dos entrevistados urgissem da singularidade de cada um desses
indivíduos, originavam-se de uma construção social; porque presentes nas vívidas lembranças
dos anciões e anciãs sabarenses nutrindo as lembranças de gerações, conservando e
perpetuando a história de Ritinha, a memória mostrou ser intergeracional; da mesma forma,
revelou-se compartilhada porque as pessoas-fontes imbricavam as suas experiências pessoais
e profissionais nos relatos que construíam sobre a professora em destaque.
59
3.1.1 Memórias de vidas compartidas
Eu nasci em 1920. Com sete anos, eu tinha muita vontade de entrar para a escola!
Nessa época que eu tinha essa idade... Você sabe aquele sobrado que pegou fogo,
ali, na rua Comendador Viana? Nós morávamos lá. E nesse sobrado Melo Vianna
morava um casal que a mulher era servente do grupo [se refere ao Grupo escolar
Paula Rocha]. A minha mãe da janela do sobrado lá de casa com Zezé [a irmã] no
colo, perguntou: Raimunda, a Vênica está doida pra saber que dia ela vai poder ir
para a escola. Já abriram as matrículas? Eu tinha sete anos. Naquela época era
assim, tinha que ter os sete anos. Não tinha jardim, não tinha nada. E eu doida pra
ir pra escola. Depois, que eu entrei pra escola é que fiquei conhecendo a dona
Ritinha, quando eu tava no quarto ano. Quer dizer, eu conheci por causa da minha
ida lá na escola, no meu estudo. Ela já era diretora nessa época. Você está vendo?
Eu me lembro de dona Ritinha. Eu estudei no Paula Rocha. (Vênica).
Olha, eu comecei a dar aula com 24 anos. E ela [a Mestra] me pegou pelas mãos
me levou até a sala... os meninos estavam todos lá sentadinhos e ela disse: Minha
filha, esta é sua sala! Daqui em diante você está só, eu não estou! (Lalá)
Olha aqui, você sabe (...) a gente forma e quer trabalhar!Eu não consegui. Tive que
ir para o comércio do meu pai, que naquele tempo tinha padaria, bomba de
gasolina, venda e eu ia pra lá fazer a escrita do comércio dele. Só depois que casei
é que fui dar aula. Lembro disso como se fosse ontem! (Vênica)
Naquela época, quem não fizesse o dever de casa, ficava depois da aula.Tinha uma
escrita que os alunos tinham que fazer, diariamente.Era o cabeçalho: escrita com a
data. A gente tinha que fazer bonito à tinta e sem borrões. Isso era exigido!E quem
não tivesse feito em casa, teria que fazer depois da aula. (Lulu)
Nos fragmentos de lembranças sobre a Mestra encontramos misturadas rememorações
sobre a vida pessoal e profissional dos entrevistados. Sobre esse entrecruzamento de
narrativas pessoais às histórias de vidas alheias, Khoury (2000, p.43) vai dizer que “[...] ao
narrar as pessoas estão sempre fazendo referências ao passado e projetando imagens, numa
relação imbricada com a consciência de si mesmas [...]”. Entre lembranças e rememorações,
naquilo que contavam e recontavam, Lalá, Vênica e Lulu dentre outros participantes desta
pesquisa, externavam a satisfação vivida naquele momento da entrevistada, pela oportunidade
de relembrar e de falar sobre o passado. Mais do que evocar suas lembranças sobre dona
Ritinha, elas queriam falar de si próprias, das suas histórias vividas num tempo e espaço
dados. Dona Lalá e dona Vênica, demonstraram adorar um dedinho de prosa. A cada
despedida nossa, elas diziam: Oh minha nega, volta mais aqui para a gente conversar.
Nos mais variados jeitinhos de contar estórias, os entrevistados davam testemunho
sobre o passado. Nas lembranças descortinadas por eles, o passado é legitimado como o
elemento de intersecção entre memória e história. Entretanto, apesar de unidas por esse
elemento, vale lembrar que são conceitos distintos.
60
3.1.2 Memória e História: aproximações e diferenças
Caminhar sobre o movediço terreno da memória para contar a história dessa professora
suscitou em mim, simultaneamente, dúvidas e constatações: O que é História? O que é
Memória? Em que ponto se assemelham? Em que aspectos se diferenciam? Por algumas
vezes, nesta pesquisa, uma foi tomada como sendo a outra. Todavia, ainda que Memória e
História se enquadrem em campos conceituais diferenciados e opostos, a história de Mestra
Ritinha contada por narrativas mnemônicas, apontou para um imbricamento entre elas.
Conforme destaca Félix (1998, p.44) “A história capta e estuda memórias; constrói-se
também com elas [...]”.
Smolka (2000) sinaliza em seus estudos, que foram vários os conceitos sobre memória
legados da humanidade e produzidos historicamente. De acordo com essa autora, muitas são
as formas de falar, de pensar, de registrar, de lembrar, de investigar, de inventar, e também, de
inventariar a memória. Muitos foram os autores que, desde o início do século passado, se
debruçaram sobre o movediço terreno da memória, tentando delimitar seus contornos
conceituais.
Halbwachs (1990) em seus estudos sobre memória coletiva e Nora (1993) ao tratar dos
Lugares de Memória advertem sobre as delimitações entre os campos conceituais da Memória
e da História. Segundo esses autores, mesmo que esses conceitos se entrelacem em certos
sentidos, convém lembrar que são oposições, jamais sinônimos.
Chartier (2007, p.24) vai dizer que história e memória não são facilmente identificáveis,
o que leva a pensar que são fortes as relações entre ambos. Reconstruir o percurso da Mestra
Ritinha para compreender e explicitar o sentido da docência e as representações construidas
para a professora primária, implicou no adentramento do labirinto da memória e da história.
Nele encontramos emaranhados os fios desses dois campos conceituais, que se misturavam
ofuscavam a tênue linha que divide suas fronteiras. De acordo com esse autor,
[...] a primeira [a memória] é conduzida pelas exigências existenciais das
comunidades para as quais a presença do passado no presente é um elemento
essencial da construção de ser coletivo. A segunda [história] se inscreve na ordem
de um saber universalmente aceitável „científico‟. (CHARTIER, 2007, p. 24).
Nora (1993) acrescenta que a história emana da perda da tradição e da memória
coletiva. Enquanto memória envolve emoção, a história é laica e envolve razão e operação
intelectual. Do contato desse autor com a teoria de Halbawchs (1990) surgem, de forma
sintetizada, as diferenciações entre história e memória. Para Nora (1993), memória
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[...] é a vida, sempre carregada por grupos vivos... está em permanente evolução,
aberta á dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas
deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de
longas latências e de repentinas revitalizações [...] fenômeno sempre atual, um elo
vivido no eterno presente [...] afetiva e mágica [...] se alimenta de lembranças vagas,
telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível á todas as
transferências, cenas, censuras ou projeções [...] instala a lembrança no sagrado [...]
emerge de um grupo que ela une [...] é por natureza, múltipla e desacelerada,
coletiva, plural e individualizada [...] se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na
imagem, no objeto [...] (NORA, 1993, p. 9).
enquanto história,
[...] é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais [...] é
uma representação do passado [...] porque operação intelectual e laicizante demanda
análise e discurso crítico [...] pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá uma
vocação para o universal [...] só se liga ás continuidades temporais, às evoluções e às
relações das coisas [...] só conhece o relativo. (NORA, 1993, p. 9).
Segundo Nora (1993) a história é a operação intelectual problematizadora, que
demanda análise e explicação, e que representa o passado de forma crítica e sistematizada.
Aquilo que hoje consideramos memória, é apenas história porque as sociedades-memórias
não mais existem. E a história começa exatamente no ponto de falência dessas sociedades.
Sendo, portanto, uma atividade da escrita, uma operação intelectual laicizante, cabe à história
problematizar as memórias e não apenas escrever o que ela dita. Nesse sentido, interrogamos
a memória produzida sobre a Mestra para compreendermos as representações, os significados,
os símbolos, as prescrições, as expectativas e a imagem que modelaram a figura da professora
primária e do magistério.
Na perspectiva de uma reconstrução incompleta e problematizada, e no imbricamento
entre História, Memória e docência primária foi possível reconstruir a experiência profissional
da Mestra e de algumas entrevistadas que rememoraram suas vivências como professoras
primárias. Desta forma, percebemos a memória movimentando a História. Le Ven (2010)
reforça esse imbricamento, a medida em que destaca que a relação entre História e memória
se inscreve no ponto em que a memória passa a validar a história. Segundo esse autor, não há
como produzir História sem nos valermos das memórias. Mauad (2002) sugestivamente
alinhando-se à lógica de Le Ven (2010) considera que a história inexiste sem a memória.
Essa relação de interdependência entre História e Memória amalgamadas nas
lembranças e narrativas sobre a Mestra Ritinha, alinha-se à citação de Nora (1993) que
embora tenha mostrado as diferenças conceituais entre esses dois campos conceituais, sugere
considerar a interação entre ambos. De acordo com esse historiador, “na mistura, é a memória
que dita e a história que escreve” (NORA,1993, p.24).
62
Da mesma forma, em Chartier (1988) torna-se também notório pequenos
apontamentos sobre a relação História e Memória através do discurso, da narrativa. Para esse
autor “a história é sempre relato, mesmo quando pretende desfazer-se da narrativa” [...] “a
compreensão histórica é construída no e pelo relato, pelos seus ordenamentos e pelas suas
composições [...]”(CHARTIER, 1988, p. 82).
Por esta pesquisa, vimos que História e Memória se inscrevem nas possibilidades e nas
necessidades de intercâmbio de experiências humanas e de diálogo entre passado e presente.
Mais do que servir de elo entre o que passou e o que ficou sobre a existência pessoal e
profissional de Mestra Ritinha as lembranças/esquecimentos que representaram essa
professora primária, indiciaram uma memória intergeracional, mas também, possibilitaram a
manifestação de uma memória compartilhada. História é instrumento de construção social e
Memória, além de ser à base de identificação e união do grupo social, é elemento fundamental
na composição e na produção de uma história.
3.1.3 Memória e grupo social
Para Weiduschad e Fischer (2009) memória, história e narrativas estão de alguma
forma, condicionadas a um grupo de pertencimento social. Igualmente, as lembranças e
imagens que os entrevistados desta pesquisa relataram sobre a Mestra Ritinha, ainda que
evocadas de maneira singular, estão fundamentadas na memória da comunidade sabarense.
Conforme essas autoras, “A lembrança de qualquer pessoa vai estar ligada à construção
histórica e à identificação com o grupo que a constitui, pois as relações sociais e culturais dos
grupos são marcantes na formação destas memórias coletivas” (WEIDUSCHAD &
FISCHER, 2009, p. 75).
Segundo Halbwachs (1990) para que as narrativas mnemônicas dos entrevistados
possam representar pessoas, fatos e lugares, é preciso que haja um ou mais elementos comuns
presentes nas memórias daqueles sujeitos que se dispõem a evocar suas lembranças. Ainda
que apresentem divergências em alguns pontos, o que se torna passível de acontecer, é,
sobretudo necessário, que concordem em algum ponto. Para esse autor é possível a
reconstrução de lembranças e o reconhecimento das mesmas, desde que um ou mais
elementos menmônicos estejam presentes na intersecção das lembranças desses sujeitos.
Nesta pesquisa, a relação entre memória coletiva e memória individual está presente
nas narrativas dos entrevistados.
63
Olha, ela [se refere à Mestra Ritinha] foi uma educadora excelente. Ela reunia na
sua própria casa, crianças que estavam às vezes num nível mais atrasado na sala de
aula. Ela dava aula particular assumindo a alimentação, o agrado dessas crianças
em sua própria residência, fora do horário do trabalho normal. Ela tinha de dar
reforço para elas ficarem assim mais ou menos de acordo com o resto da turma.
Segundo me disseram, ela era uma professora enérgica, mas, muito carinhosa
também. (Maria Izabel)
Igualmente diz a senhora Maria de Lourdes, Lulu: fiquei sabendo que ela reunia em sua
própria casa as crianças que estavam com dificuldades na escola, que estavam atrasadas.
Influenciado pelo pensamento durkheiminiano, Halbwachs (1990) não deixa de lado a
ação dos condicionantes sociais sobre o indivíduo. Somos seres individuais, ao mesmo tempo,
sociais. Sob essa perspectiva, está posta a dimensão coletiva da memória. Conforme esse
autor,
[...] a memória individual, enquanto se opõe à memória coletiva, é uma condição
necessária e suficiente do ato de lembrar e do reconhecimento de lembranças? De
modo algum. Porque se essa primeira lembrança foi suprimida, se não nos é possível
encontrá-la, é porque, desde muito tempo, não fazíamos mais parte do grupo em cuja
memória ela se conservava... (HALBWACHS, 1990, p. 34).
Vemos, portanto, uma memória necessitando de grupos e comunidades para
permanecer ou mesmo se constituir. Nessa lógica podemos compreender o que disse José
Arcanjo Bouzas,
A maioria da população sabarense não sabe quem foi a Mestra Ritinha. Até a
década de 80 ainda se ouvia falar sobre a Mestra Ritinha porque o pessoal antigo,
pai, mãe, avô, avó... ainda estavam todos aqui. Então gente da minha idade, pessoal
da minha geração, essa turma nossa ai... todo mundo ouviu falar da Mestra Ritinha.
Acho que as professoras de hoje, não saberiam dizer quem foi a Mestra Ritinha. É
porque a maioria delas, não são daqui ou estão aqui na cidade há pouco tempo.
No relato da senhora Maria de Lourdes, a memória ancorada no social também se faz
presente: “Não conheci a Mestra Ritinha, mas ouvia falar a respeito dela. Pelas narrativas
nesta pesquisa intentamos mostrar que a memória resulta de uma construção social e que se
assenta na comunidade de pertencimento social dos sujeitos, onde é representada, produzida e
conservada.
A fim de traçar um perfil da atuação profissional e da experiência social da Mestra,
deixei que as memórias não oficiais disputassem espaço com a memória oficial destacada na
Placa. De acordo com Delgado (2007, p.43) “Narrativas sob a forma de registros orais ou
escritos são caracterizadas pelo movimento peculiar à arte de contar, de traduzir em palavras
64
os registros de memória [...]”. Sob a lógica dessa autora, o que os registros oficiais e as
narrativas mnemônicas dos sujeitos desta pesquisa, informam a respeito da Mestra Ritinha?
Que fios dessa história podemos puxar para costurar as representações da mulher, da
professora e do magistério, tomando como referência o contexto social e o recorte temporal
das três primeiras décadas do século XX?
3.2 Mestra Ritinha: a professora modelo
Segundo Marj Kibby (1997) “[...] representações são apresentações”. Louro (2007) em
diálogo com essa autora explica que as representações são modos culturais de apresentar,
nomear e referenciar os sujeitos. Ferreira (2002) em diálogo com Halbwachs (1990) vai dizer
que na perspectiva desse teórico, as representações podem ser individuais e/ou coletivas.
Mestra Ritinha foi representada pelos entrevistados desta pesquisa, como figura
modelo, exemplo a ser seguido pelas gerações de mulheres que, por prescrição ou predileção,
assumiram as salas de aula do ensino primário, em Sabará. Sérgio Alexandre considera que A
vida da Mestra é como um exemplo (...) Ela era referência. A sua própria conduta do dia a
dia, de forma natural, acabou destacando Mestra Ritinha nos campos da educação, da arte e
da cultura. Ela passou muitos bons valores para as pessoas. Para a senhora Maria de Lourdes
Dias, Lulu, a Mestra foi um baluarte, um exemplo, uma referência para Sabará. Maria Izabel,
dona Zazinha, à exemplo de Lulu e Sérgio Alexandre, também considerou a Mestra, uma
figura exemplar: Eu acredito que naquela época, ela deve ter passado muita coisa boa. Tanto
é que o nome dela é respeitado até hoje.
Em diálogo com Ansart (1978, p.22) consideramos que as representações enquanto
construção histórica, fixam simbolicamente normas, valores e símbolos que prescrevem o
comportamento dos sujeitos. Assim as representações sobre a professora primária estão
diretamente relacionadas à construção da imagem feminina formatada em diferentes espaços,
em diferentes momentos e por diferentes culturas e nacionalidades.
Gay (1988) sinaliza que embora variações geográficas e culturais tenham incindido
sobre as representações atribuídas à mulher, era possível perceber noções incomuns e
consensuais, esperadas no comportamento feminino na sociedade ocidental. Conforme esse
pesquisador,
Cada raça... desenvolveu sua concepção particular da mulher [escreveu o cientista
C.de Varigny, em 1899]. Para os franceses, „ela representa o ideal‟; para os
espanhóis, „ela ainda é uma Nossa Senhora numa igreja‟; para os italianos, „uma
65
flor no jardim‟; para os turcos, „um utensílio de felicidade‟; para os ingleses „ a mãe
de seus filhos e a gerente da casa‟ (GAY, 1988, p.138-139).
Curioso é observar que essa lógica da representação feminina atravessou fronteiras e
esteve presente no pensamento de um poeta sabarense. Em Sabará, um poema datado de 1912,
em circulação num dos periódicos dessa cidade, informa sobre o significado da mulher na
sociedade da época.
A Mulher
O que poderia dizer de ti ó mulher, si Salomão, o mais sábio dos homens, exgotou
os objectivos e paraphrases das línguas orientaes na sua constante melopéia, no
esboçar-te as bellezas e attrativos?...
[...] Irei buscar o poeta da legenda dos séculos, no tom condoraino a engrinaldar-te a
fronte com seus tropos divinos, estudante sob todos os aspectos? Ou apegar-me-ei a
Milton chamando-te bello defeito da natureza? És ó flor da creação, a mais bella
manifestação da bondade divina, deixada ao homem para seu lenitivo.
[...] É Ella o meigo anjo do lar que nos inclutiu primeiro a poesia da crença no amor
e o amor da Pátria. É Ella quem nos ensinou a amar a verdade!Ainda, ó mulher-
mâes, és o anjo da creação, cimentando de bênçãos a via amargurada da existência.
És também anjo.Noiva: és tu ó mulher, o santelmo vital a clarear a senda da nossa
existência. Mulher esposa és anjo sublime amparando nossa miséria do dia a dia,
quando tudo nos assoberba, paixões, pobreza e ambição... És mais do que anjo, és
dominação pelo sacrifício e carinho sem limites.E nós os homens, que te damos em
troca de tanto amor? Trahição, desprezo, abandono... e ainda rimos de ti, ó anjo da
vida.
[...] Trocastes a seda farfalhante de tuas vestes pelo burel de caridade, e correste a
estancar o sangue que espanada, vertido pela metralha, ou silenciosa a orar nos
hospitaes, lenes a dor do maribundo, ou espancas as trevas da ignorância ensinando
com meiguice inexcedível aos que há pouco te cuspiam no rosto.
És então ó mulher, o anjo da caridade, E então o homem, que maldade e hypocrisia
poderá de ti maldizer, ó anjo?
(Tão Júnior. O Sabará. Anno I. Sabará, 7 de janeiro de 1912. N. 13)
Presentes em poemas de autores de pouco reconhecimento, apresentada por grandes
nomes da literatura brasileira ou retratada nas coleções de renomados pintores, vemos que as
mulheres sempre foram alvos de representações. Meigo anjo do lar e da vida, fllor da
creação, santelmo vital, bondade divina, estudante de todos os aspectos, bello defeito da
natureza, a mais bella manifestação da bondade divina deixada ao homem para seu lenitivo,
sacrifício e carinho sem limites foram atributos que, destacados, no poema, do não tão
reconhecido autor e poeta sabarense, fazem alusão as novas representações cunhadas para as
mulheres no alvorecer do século XX.
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Sob a lógica da meiguice,da bondade, do sacrifício, as mulheres foram concebidas
professoras primárias. Para além desses predicativos, assiduidade, boa morigeração,
inteligência, disciplina, organização e responsabilidade, dentre outras qualidades pessoais e
profisasionais, aquilatavam as representações produzidas e prescritas às mulheres, professoras
primárias, naquele começo do século XX. Preceitos sobre os quais foi construida a memória
da Mestra Ritinha, que informam sobre as representações da professora primária e que jamais
devem “cair no esquecimento” da comunidade sabarense.
Ela foi competente. (Zezinho)
Dona Ritinha foi uma educadora excelente (...) Ela foi uma professora muito
respeitada pelo seu trabalho, pela sua inteligencia. (Zazinha)
(...) ela preocupava muito com os alunos e queria que eles se saíssem bem.
Falavam que ela era muito preocupada com a educação. (Lulu)
Era freqüência total na escola. (...) Ela era sempre alegre, boazinha e carinhosa.
(...) era uma senhora super fina e educada. (...) A gente queria imitar as qualidades
dela. (Vênica)
Ela tinha um ótimo relacionamento com os alunos, professoras, diretora. Tratava
todos muito bem. (Sr.Hélio)
Era de uma inteligência fora do comum. (...) andava muito bem vestida. (Lalá)
Um grande ícone da educação em Sabará e da cultura sabarense. (Sérgio)
Professora respeitada, de saber inestimável. (Maria Lourdes Guerra)
Dona Ritinha era exigente com o comportamento dos alunos, com a disciplina;
Quando alguém tinha dificuldades em alguma matéria, ela ficava pelejando até o
aluno aprender. Sabia ensinar, todos aprendiam muito com ela. Ela ensinava
caligrafia. Eu tive caligrafia em casa dela. Era macia pra falar com os alunos.
Tinha bom relacionamento com alunos, professoras, diretoras, com todos. Era
professora querida. De tanto que os alunos gostavam dela, procuravam estudar a
matéria dela. Todos tinham por ela o mácximo respeito e admiração. (Sr. Hélio
Costa)
Sabia punir os que não obedeciam. Naquele tempo, as professoras ensinavam e os
alunos aprendiam. Naquela época em que eu fui aluna, nós todas respeitávamos a
professora. Ela entrava na sala e a gente levantava. Assim também a gente fazia
com a diretora, com as autoridades da escola. Pessoa de peso e medida, de
responsabilidade. Ela tinha todas as qualidades de uma mestra para exemplo de
tudo: educada, bondosa, figura de respeito, carinhosa, era assídua, solidária... Só
você vendo! (D. Vênica)
Era sincera pra falar, não escondia nada de ninguém. Enérgica, mas, carinhosa.d
Dosava afeto e carinho. (D. Lalá)
Pessoa de gabarito e instrução, competente e querida. (Zezinho)
Sopro de genialidade. (Sérgio)
Exigia escrita bonita. (Lulu)
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Esforçava-se para a aprendizagem dos alunos para eles passarem de ano. Dava
aulas de reforço. (Zazinha)
As atitudes, os comportamentos, as competências profissionais e qualidades pessoais
presentes nas narrativas dos entrevistados, também estão presentes nos documentos
encontrados. O diálogo com a pesquisa de Fernanda Cristina Campos da Rocha (2008) sobre
a Reforma João Pinheiro nas práticas escolares do Grupo Escolar Paula Rocha, mostrou-nos
que a Mestra Ritinha foi notabilizada e destacada como professora modelo, por seus
superiores.
Ainda que a docência não seja o foco de sua pesquisa, Rocha (2008) destaca um
conjunto de registros documentais que fazem alusão ao corpo docente do Grupo. Neles a
Mestra é representada como uma professora que se destaca no exercício da docência e na sua
atuação como diretora. Dentre os relatórios identificados e destacados por essa pesquisadora,
consta o relatório emitido pela diretora da escola Maria José dos Santos Cintra, que enviado
ao Dr. Delfim Moreira da Costa Ribeiro, Secretário do Interior, em 1912, destaca a Mestra
Ritinha e suas competências,
A cadeira feminina do terceiro anno, regida pela professora D. Rita Cassiana
Martins Pereira, preencheu cabalmente seus fins. Esta intelligente esforçada
professora, cujos predicados educativos a collocam em destaque, sabe alliar o amor
por sua nobilíssima missão ao zelo por tudo que diz respeito à sua classe. (MINAS
GERAIS apud ROCHA, 2008, p. 102).
O relatório oficial de inspeção escolar, emitido em 1914, pelo inspetor de Instrução
Pública, Arthur Queiroga também tece elogios à Mestra Ritinha e igualmente a considera uma
excelente professora,
4ª classe do 1° anno e sexo masculino. É a classe brilhante do grupo... os trabalhos
para cada edade e para cada sexo, porquanto está entregue a pericia incontestavel, à
habilidade traquejada e a vocação irresistível da eximia mestra que é D. Rita
Cassiana Martins Pereira. É a docente professora sem rival, de entre as muitas que
hei conhecido no já longo periodo do meu officio. (MINAS GERAIS apud ROCHA,
2008, p.102).
De acordo com Rocha, no período de 1907 a 1925, Rita Cassiano Martins Pereira foi
considerada a melhor professora do Grupo não só na opinião da diretora e do inspetor já
citados, mas também do delegado e inspetor Dr. Remígio Dias Duarte, o qual escreveu:
68
Como presidente da banca examinadora, seja-me permittido consignar aqui, a
magnífica impressão deixada em meu espírito pelo aproveitamento extraordinário
apresentado pelas alunnas do terceiro anno do grupo „Paula Rocha. Expressão usada
pelos inspetores.Deixo aqui os meus mais enthusiasticos parabéns a Srª Professora
do terceiro anno feminino (D. Rita Cassiana Martins Pereira) pelos louros colhidos
no final de seu trabalho esforçado. (MINAS GERAIS apud ROCHA, 2008, p102-
103).
Ao costurarmos os documentos e as narrativas para reconstruirmos a história da
Mestra Ritinha, entrevimos subentendido o papel de ideologização da figura docente, também
subjacente à Placa que destaca o nome dessa professora. Uma memória que produzida por
discursos e documentos oficiais concentrou na figura da Mestra o ideário da mulher
professora e do magistério primário.
3.3 – A ideologização da figura docente
Para Bosi (2003, p.15) “A memória oral é um instrumento precioso se desejamos
constituir a crônica do quotidiano. Mas ela sempre corre o risco de cair numa „ideologização‟
da história do cotidiano, como se essa fosse o avesso oculto da história política hegemônica”.
Lógica que sugere alinhar-se a afirmação de Thompson (1992, p.23) ao considerar que “A
própria estrutura do poder funcionava como um gravador, que modelava o passado a sua
própria imagem”. De forma simplista, estão postas na figura da professora Ritinha, a quem os
sabarenses devem considerar, respeitar e enaltecer, as referencias pessoal e profissional que
devem ser tomadas de exemplo. Referencias, que em circulação na comunidade e destacadas
nas entrevistas, indiciam a função político-utilitarista de ideologização da figura docente
como modelo, produzida pela memória oficial.
De acordo com Nunes (2008) as memórias oficiais que registram nomes de
personalidades “ilustres” guardam representações de uma memória produzida para informar e
fazer veicular, naquilo que deixa subentendido, condutas pessoais e profissionais, modelares e
heróicas, exemplos a serem seguidos. Uma idéia atestada pela senhora Lourdes Guerra, Meus
pais me ensinaram a conviver com professores e professoras reconhecendo neles a marca dos
grandes benfeitores...
Para os entrevistados que não conheceram a Mestra, a Placa de endereçamento que há
décadas „pendura‟ seu nome numa das ruas de Sabará, foi o meio de evocar suas lembranças
sobre as histórias que dela ouviram contar. Ao referenciarem a Placa, esses entrevistados
denotavam o sentido da memória oficial produzida e engessada no imaginário da sociedade
69
sabarense. Para Maria Lourdes Guerra Machado19
“O nome de Mestra Ritinha na placa dessa
rua constitui uma justa homenagem da Câmara Municipal a esta professora e um sinal de
gratidão eterna do povo de Sabará.” (MACHADO, 1999, p.299-300). José Arcanjo alinhando-
se à opinião de Machado (1999) considera que Foi feita uma homenagem muito justa pra ela,
pela competência dela. Fizeram uma bela homenagem de dar o nome dela à Rua.
Nunes (2007) em seus estudos sobre Biografias de educadores gonçalenses: a luta
contra a invisibilização e o esquecimento destaca o papel que a formação de lideranças
moralizadoras do povo, inculcada nas universidades e escolas normais européias do século
XIX, assumia enquanto estratégia de ordenamento social. De acordo com essa autora, a
ideologização da função docente ocorria pelas vias da “[...] imposição de certos modelos
construídos a partir de perfis de educadores que funcionaram como guias de conduta”
(NUNES, 2007, p.69). Mestra Ritinha é um símbolo para todas as professoras de Sabará
afirmou a senhora Maria de Lourdes Guerra Machado.
Seguindo a lógica de Nunes (1998), os nomes „pendurados‟ nos lugares de memória ,
assim como o que aparece na Placa referenciada nesta pesquisa, foram produzidos com a
função de sustentar, influenciar e controlar uma cultura local. Nomes de ex- docentes, por
exemplo, buscam transmitir um modelo de professor ou de professora, um perfil de educador
(a) que, segundo essa autora, encarnavam a “perfeição”. Mestres e mestras brasileiras
deveriam ser seguidos como modelos e guias de conduta pelas novas gerações. Conforme
dona Maria Lourdes Guerra meus pais me ensinaram a reconhecer neles (professores) a
marca dos grandes benfeitores e cooperadores para o engrandecimento de um pais instruído,
educando e orientando as crianças e jovens.
Supostamente nessa lógica, talvez foi essa a intenção, senão quem sabe, uma estratégia
do então Prefeito de Sabará, Joaquim Siqueira, responsável pela elaboração do Projeto de Lei
que, no século passado, registrou o nome da Mestra Ritinha na Placa situada aos fundos da
residência onde ela provavelmente, nasceu e morreu. Memória produzida em cumprimento à
função político-utilitarista de propagar um ideário de professora primária a ser seguido pelas
normalistas sabarenses e pelas professoras primárias em atuação nos grupos escolares da
cidade. Um ideário que sugestivamente, alinha-se ao relato da senhora Maria de Lourdes
Guerra ao registrar que:
A Rua Mestra Ritinha ganhou esta denominação em 1948. O responsável por essa
iniciativa foi o prefeito Joaquim Siqueira, ex-aluno da Mestra Ritinha, na antiga
19
Em 1999, essa entrevistada escrever e publicou o livro Pelas Ruas de Sabará.
70
Escola de Primeiras Letras, que funcionava em um velho prédio que foi demolido
para a edificação do Fórum.
Figura 16 - Prédio do sobrado da Escola Normal Delfim Moreira onde, atualmente, está
localizado o Fórum de Justiça da cidade de Sabará
Fonte: acervo da Escola Estadual Paula Rocha Fonte: acervo pessoal/ 2010
Entretanto, é curioso pensar no contexto sócio-político do início da década de
cinqüenta, em Sabará, quando a Rua Mestra Ritinha foi inaugurada. Naquela época, talvez
pudessem ocorrer rumores das professoras mineiras quanto às possíveis descontentamentos
com as condições de trabalho.
Em diálogo com a pesquisa de Maria Teresinha Nunes (2000) percebemos que o início
dos anos 50 do século passado, principiou a organização das professoras pela militância da
categoria profissional. Somente mais tarde, em 1959, eclodiu o movimento grevista do
professorado, nas instituições públicas de ensino de Minas Gerais.
Foi no contexto sócio-político de fins da década de 50 que, supostamente, se
processou a escolha do nome para ser registrado na Placa que viria a nomear uma das
principais vias de acesso ao centro histórico de Sabará. Destacar o nome da Mestra Ritinha
enquanto docente de conduta exemplar e ao que sugere pouco questionadora, serviria quem
sabe, como estratégia política de contenção à adesão das professoras sabarenses ao
movimento grevista que eclodiu na capital mineira, na época em questão. Uma suposta
estratégia que ao evitar sublevações futuras das professoras sabarenses, ilustra conforme
Seixas (2004), a dimensão política implícita no processo de produção de memórias, uma
produção atravessada por interesses.
Para além da memória oficial produzida que reforça o ideal de professora primária
modelo, encontramos as representações da figura docente produzida histórica e socialmente
nas narrativas que os quase centenários cidadãos sabarenses construíram sobre a Mestra.
Narrativas oriundas de lembranças vívidas e originais daqueles sujeitos que conheceram e
71
conviveram com essa professora, com ela dividiram experiências de tempos e espaços e que
compartilharam da construção de sua memória.
A memória produzida sobre a Mestra aquilata as representações da professora primária.
Representações expressas nas qualidades e virtudes que Rita Cassiana dava a ler pelos seus
modos de vida pessoal e no exercício da docência. Ao que sugere, o nome da Mestra
destacado na Placa, traduz a memória que se encontra presente no imaginário da sua
comunidade de pertencimento social como figura ilustre, venerável e icônica,
individualidades notórias, admiradas ou desejadas tal como relatou dona Vênica:
[...]Dona Ritinha era uma figura admirada por todos; todas as minhas colegas
queriam ser iguais a ela. [...] quando criança eu via o anel de dona Ritinha que ela
usava no dedo indicador e sentia vontade de ter um igual, tão logo me formasse no
curso normal; eu ficava com aquele trem na cabeça, aquela coisa gravada... Mas
que anel lindo gente! E eu pensava: quando me formar professora eu vou fazer o
modelo do anel de dona Ritinha. Eu tenho ele ai e posso mostrar. Era um anel de
formatura feito de brilhante e esmeraldas. Ela não tirava ele do dedo. Era uma
anel que todo mundo queria copiar. Eu mesma pedi ao seu Buju [ourives] que
fizesse o meu anel igual ao dela. Olha ele aqui!
Se reportando ao seu bauzinho de recordações, dona Vênica retira o anel guardado e faz
questão de colocá-lo em suas mãos. Vou colocar no mesmo dedo que dona Ritinha usava.
Você está vendo? É uma esmeralda e dois brilhantes.
Figura 17 - Anel de formatura de Vênica protótipo do anel da Mestra Ritinha.
Fonte: acervo pessoal/ 2010
O diálogo com Paul Marie Veyne (1998) nos informa que a partir das novas
abordagens da história, não mais se intenciona colecionar biografias e salvar a memória de
alguns indivíduos, assim como o nome da Mestra na Placa. Longe de se refugiarem nesse
repertório de modo acrítico, o tom da Nova História em voga a partir do século XX, faz com
72
que a história seja crítica, ainda que memorialística. Captar um fato significa questionar os
atores, o tempo e o espaço nele inseridos.
Na contemporaneidade, o fato é desnaturalizado, o sujeito é dessacralizado e a história
desmitificada. Nas páginas da história de hoje, inscrevem-se inúmeras vidas e sujeitos, atores
ou figurantes que fazem história, não pela sua singularidade, mas por representarem algo que
seja generalizável. A passagem do singular/individual ao específico – que concentra ao
mesmo tempo o geral e o particular – faz com que o indivíduo passe a representar milhões de
outros indivíduos.
Produzir sentido e significado para as ações humanas, contextualizando-as no tempo e
espaço, histórica e socialmente é operação historiográfica à que Veyne (1998) nos convida
neste trabalho. Para além da figura modelo e exemplo de conduta pessoal e profissionalismo
subjacente à Placa, destacados nos documentos amarelados pelo tempo e conservados nas
lembranças dos atores dessa pesquisa, há algo que transcende a trajetória de Rita Cassiana e
que sinaliza para as representações produzidas sobre a professora.
3.4 Mestra: a visão sacralizada da docência
Ela tinha todas as qualidades de uma mestra para exemplo de tudo, disse dona
Vênica. No jogo das representações em que a imagem da mulher é purificada, a docência
aparece como missão e vocação. De acordo com Dr. Hélio, ex-aluno de Rita Cassiana, no ano
de 1921, época em que entrou para o grupo, as professoras eram referenciadas como mestras.
A gente falava dona Ritinha ou Mestra; só Mestra! Ela era erudita!
Na subjetividade das rememorações da escritora e poetisa Cora Coralina, encontramos
o sentido sublime e metafísico da palavra Mestra, traduzido em versos. E a Mestra?Está no
céu. Tem nas mãos um grande livro de ouro e ensina a soletrar aos anjos.(CORALINA,1985,
p.76-77-78).
De acordo com Ferreira (2002, p.61) “Durkheim, em seus estudos, corrobora com a
idéia de que a religião teria dado origem aos primeiros sistemas de representação sobre a
imagem da professora primária. O culto às Marias, às figuras santas – assexuada, frígida, que
carregam o ideal de pureza, figura à que todas as mulheres deveriam espelhar e se tornarem
fiéis seguidoras – passa a ser a representação feminina dominante. As mulheres que se
destinassem à tarefa de ensinar, tornariam-se mães espirituais.
Numa incursão histórica, Santos Lopes (1991, p.26) sinaliza que dos séculos XV ao
XVIII “[...] o que professavam era a maternidade espiritual, pois que a vida dedicada a um só
73
noivo [Jesus], casadas com uma só instituição [a igreja], impedia serem mães segundo a
natureza [...]”.
Em seus estudos sobre História e Gênero, Gonçalves (2006) aponta o período
oitocentista como o século das mudanças, ao mesmo tempo, das contradições e ambigüidades,
sobretudo em relação as questões relacionadas às mulheres. Em meio ao jogo de interesses
religiosos e políticos a imagem feminina foi ressignificada e pautada nos novos
entendimentos que iam sendo construídos sobre a sexualidade da mulher.
À partir das publicações de Crossetti de Almeida (1991) vemos que a igreja - em temor
à desagregação familiar que ameaçava acontecer, em fins do XIX, por causa do envolvimento
das mulheres com as questões postas pela modernidade, sobretudo, porque seduzidas pela
possibilidade do trabalho fora do lar - passou a exercer vigilância e controle sobre o sexo
feminino.
O advento da modernidade, na transição dos séculos XIX para o XX, foi sentido como
ameaça pela Igreja. Na visão clerical, a possibilidade da mulher deixar o lar para trabalhar e
conquistar sua autonomia afetiva e econômica levaria à desagregação familiar. Reforçada
pelos preceitos do Cristianismo, a Igreja prescreveu normas de conduta ética e moral às
mulheres e pregou-lhes a incompatibilidade entre casamento, maternidade e vida profissional.
Visão que atravessou os séculos, influenciou gerações e que está presente na narrativa da
senhora Vênica:
O progresso atrapalhou a direção da família. Na época que eu estudei minha mãe
educava os filhos em casa e todos eram muito bem educados. Isso em 1927, eu tinha
sete anos. Você faz as contas, eu nasci em 1920. Éramos 13 irmãos. Ela era o esteio
da família. Hoje as mães tem que trabalhar fora e não tem tempo de educar os
filhos. E o que a gente ta vendo ai? As mães não estão dando conta de educar os
filhos. Antes ainda contava com as avós e pessoas de bem para ajudar. Hoje,
precisam trabalhar para comprar as coisas boas e para ajudar no orçamento da
família, mas não tem com quem deixar os filhos. Por isso, acho que o progresso
atrapalhou nesse sentido. Mas também trouxe coisas boas. Passamos a ter telefone
que naquela época não tinha, e outras coisas mais. (Vênica).
Crossetti de Almeida (1991) em diálogo com Gay (1988) entende que o temor da Igreja
pela desagregação familiar e, em contrapartida, os reforços do cristianismo nesse período, se
tornam as principais alavancas para fundamentar o novo constructo social da imagem
feminina.
Assim, numa época em que instituições como família e casamento passam a ser
ameaçadas pelos valores pregados pela modernidade que acabavam por estimular ainda mais
a militância feminina em prol dos avanços sociais e do livre acesso ao espaço público,
majoritariamente masculino e negado ao sexo oposto, a sexualidade feminina passa a ser
74
vista, “[...] como última amarra a ser preservada” conforme destaca Crossetti de Almeida
(1991, p. 162).
Uma vez que o que estava em jogo era o controle da sexualidade feminina, passava a
ser função da Igreja Católica exercer controle sobre as mulheres. Entretanto, esse controle, só
seria eficaz na medida em que novas representações fossem processadas sobre a imagem
feminina. De profanas, Evas e demônios, as mulheres foram comparadas às figuras sagrada e
angelicais, à imagem e semelhança da Virgem Santa.
Figura 18 – Santana Mestra
Fonte: Caderno de Educação Editora Abril
Pureza e meiguice atrelados à missão de ensinar compunham a nova imagem da mulher,
assim como a que está representada no quadro de horários e disciplinas que ficava afixado nas
paredes da Escola Normal Delfim Moreira, em Sabará, onde a Mestra lecionou. Escola em
que dona Lalá dentre outras normalistas sabarenses obtiveram o diploma do Curso Normal.
75
Figura 19 – O desenho contido no cronograma de horários da Escola Normal Delfim
Moreira, século XIX, expressa a representação da professora primária
Fonte: acervo pessoal/ 2010
De acordo com a entrevistada senhora Vênica, a Mestra Ritinha era mãe de todos,
alunos e professores, tratava todos como filhos. Os filhos que sugestivamente por opção, ela
não teve. Conforme a própria Vênica, Ela morreu solteira, todas duas irmãs morreram
solteirinhas da silva! Versão confirmada por dona Lalá ao dizer que (...) nenhum dos filhos do
Sr. Cassiano se casou e deixou herdeiros. Ritinha vivia da casa pra escola e da escola pra
casa. Não ia a lugar nenhum, não se relacionava na sociedade indo à bailes e festas da
cidade, só nas festividades da escola. Ela era diretora!
Ferreira (2002) em recente pesquisa historiográfica sobre o lugar social do professor
no imaginário social brasileiro, mostra, a partir de notas publicadas no Jornal do Brasil, como
a profissão docente até os anos cinquenta do século XX, era laureada por atributos de dom,
vocação e missão. Por essas representações, mestres e mestras continuavam sendo
considerados como santos, missionários e predestinados. Conforme com esse autor,
“O professor tem, quase sempre, sua imagem relacionada ao “sacerdócio”, à
“missão nobre”, ao “sacrifício”, ao “dom”, à “vocação”. Por diversas vezes a figura
do “mestre” é remetida a “algo de transcendental”, chegando até mesmo a ser
comparada aos “anjos” e a “Deus”. (FERREIRA, 2002, p. 71-72).
Em diálogo com a literatura, percebemos que Cora Coralina também traz em seus
versos, as representações da visão sacralizada da docência e da docente. Não havia chamada,
e sim o ritual de entradas compassadas.“- Bença, Mestra”. (CORALINA, 1985, p.76-77-78)
Essa forma cultural de representar a professora influenciada por visões sacerdotais
também está posta numa das narrativas mnemônicas de quem não conheceu a Mestra, mas
76
que dela modelou uma imagem, a partir das lembranças guardadas na memória de pais, avós,
tios entre outros conterrâneos de Ritinha. Maria de Lourdes Dias, ao destacar a palavra Mestra
deixou subjacente a valorização, prestígio e competência de que gozavam as docentes: Só a
palavra Mestra já dizia alguma coisa!
Sérgio destacou a ideia do dom e da vocação, que naturalizam o oficio docente como
algo inato, assim como as outras profissões da humanidade. De acordo com esse entrevistado:
A partir do momento que aquilo que pra você é um sacerdócio, aquilo que brota do
coração, aquilo que você tem como compromisso no seu dia a dia que é a
formação de pessoas, eu acho que isso te projeta naturalmente pra posições de
destaque, mesmo que você não queira que eu ache que é o caso dela. [...] Acho que
o primeiro pensamento de Mestra Ritinha, pelo pouco que a gente sabe dela, era
com o homem, com o ser. Agora esse compromisso, essa coisa que brota do espírito,
assim como brotam as grandes obras de arte, as grandes poesias, os quadro, as
grandes músicas e naturalmente, rompem a barreira do tempo e sobrevivem a
qualquer acontecimento dentro da humanidade. (Sérgio Alexandre)
Ao dialogar com os estudos de Crossetti de Almeida (1991) observamos que foi
Comte20
quem inspirado na figura da mulher maternal criou pelas vias do doutrinamento
religioso essa nova representação social para o universo feminino. Segundo essa autora, em
fins do século XIX, a doutrina Comtiana ganha adeptos no Brasil, infiltrando nos saberes
médicos e pedagógicos. Noções de assepsia e reforço à maternidade são os pontos-chave
daquilo que médicos, educadores e clérigos iriam transmitir, influenciando nas representações
para as mulheres, prescritas e vigiadas pela Igreja.
Das noções Comtianas de assepsia e de maternidade associadas à mulher, propagadas
em fins do XIX e intensificadas no XX, do esvanecimento das noções de lasciva e pecado
atribuídos à mulher abolidos pela Igreja, foi processada a limpeza da imagem da mulher. Com
isso surge a figura da professora primária. Para Crossetti de Almeida (1991, p.164) essa
limpeza, conforme ela mesma denomina, é condição prévia para a abertura da educação das
crianças às mulheres. A imagem da mulher novamente ressignificada passa a ser associada à
figura da “[...] professora como mãe e da escola como o lar.” Representação que se fez
presente nas apresentações que os entrevistados teceram à respeito da Mestra Ritinha: Ela era
uma criatura, uma segunda mãe que a gente tinha na escola. (Vênica).
Assim, embora agregado aos sentidos missionário e apostolar, a função da mulher em
educar a criança chega ao século XX ressignificada como trabalho de professora. A idéia da
vocação, aliada à do sacerdócio e da missão, construída socialmente, foi a representação que
20
August Comte pensador iluminista do século XVIII.
77
mais corroborou para que, sobretudo nas décadas iniciais desse século, as moças optassem
pela docência.
3.5 Mulher e docência primária
Conforme informa Cécile Dauphin (1993, p.141) “Os ofícios novos abertos às
mulheres [assim como o magistério primário] neste fim de século levarão a dupla marca do
modelo religioso e da metáfora materna: dedicação-disponibilidade, humildade-submissão,
abnegação-sacrifício”. A marca da religiosidade impregnada advogava a profissão do
magistério primário as mulheres que podiam ser mães efetivamente, assim como as que não se
casavam ou não podiam ser mães por qualquer impedimento, convertendo-as em mães
espirituais. Essas mulheres, assim como a Mestra Ritinha, se dedicavam integralmente a
docência reforçando o caráter de missão e doação, deixando de viver sua própria vida e se
entregando completamente à escola e à seus alunos.
O negócio dela era só com as crianças e com a escola. Não fazia mais nada em
casa, a não ser dar aula de reforço para as crianças. Sua irmã, a professora
Mariquinha, costurava em sua casa e dava aula. Dona Ritinha vivia da casa para o
Grupo e do Grupo para casa. Não se relacionava muito com a s pessoas; não ia à
sociedade alguma. Não se casou. Nenhuma das irmãs e nem dos irmãos! Morreram
solteirinhos. (Lalá)
Ela é daquelas professoras que, na época dela, dificilmente se negava a receber
algum aluno na casa dela. Ela estava sempre recebendo as pessoas que queriam
aprender as primeiras letras. Isso eu sei, porque minha mãe e minha tia Lalá, me
diziam!(Zezinho).
Para as moças solteironas o magistério era a salvação. Nas fotografias como uma
figura austera, de poucos sorrisos, cuja afetividade se escondia, demonstrando apenas uma
secura nos seus gestos, nos seus trejeitos, nas suas relações, no seu modo de se apresentar
socialmente. Outra representação social atribuída à mulher, especificamente às solteiras em
sua relação com o magistério era como que um casamento entre ambos. Apesar de não casar
algumas mulheres vislumbravam no magistério prestígio intelectual, social e econômico.
Ainda que mal remunerada e com sua liberdade controlada, gozava-se de uma parca
autonomia social fora do espaço do lar.
A religião preconizava que se deveria assumir como filhos espirituais, os filhos de
outrem, enquanto atividade sacerdotal e missionária. Segundo informou dona Lourdes Guerra
Mestra Ritinha não se casou, mas considerava seus alunos, como filhos, desenvolvendo um
78
trabalho pleno de idealismo tudo fazendo por aqueles que tiveram a felicidade de estarem sob
seus cuidados!
Num dos nossos encontros, dona Lalá emocionada e com os olhos lacrimejantes disse
que assumiu a sala de aula em 1925, no Grupo Escolar Paula Rocha. Que adorava a profissão.
Eu adorava meus alunos. Eles eram meus filhos, só meus! Eles vinham me acompanhando até
aqui em casa. Eles brigavam para carregar minha bolsa, de tanto que eles gostavam de mim
e eu deles.
Dona Vênica também emocionada disse que adorava seus alunos. Que fazia de tudo
para que eles se saíssem bem no fim do ano letivo. Eu pegava meus alunos depois da aula,
trazia eles aqui pra casa e dava reforço, ensinava o dever, dava lanches até que um dia meu
marido reclamou que eu não estava me dedicando muito à profissão.
Dentre as ambigüidades de ser a mulher mãe biológica/mãe espiritual vemos a questão
da gravidez, que tacitamente, dizia sobre a relação casamento e sexualidade da professora. A
gravidez poderia despertar certas curiosidades e indagações das crianças, o que levaria a uma
exposição da vida afetiva e sexual da professora. Fato rememorado por Dona Lalá, nas
memórias compartilhadas sobre a Mestra Ritinha, amiga e companheira:
Senti orgulho em ser professora, mas também sofri com uns alunos rebeldes. Sofri
muito com um aluno minha filha. Um dia fui chamar a atenção dele e ele me
respondeu assim: „a senhora está brava porque está pra parir‟. Por isso é que
quando a gente ficava esperando um filho e a barriga começava a crescer, eles [se
referindo à direção da escola] tiravam a gente de sala e colocavam a gente pra
fazer outras tarefas na escola: na biblioteca, na secretaria... é pros meninos não
ficarem perguntando muito, sabe como é que é, né. Naqueles tempos não se tocava
nesse assunto com a criança. Era o máximo respeito. Hoje não, hoje fala tudo, de
qualquer jeito... Está uma perdição! (Maria Laura do Couto Guimarães, 97 anos).
De acordo com Jane Soares de Almeida (1988) a docência foi construída e apresentada
ao universo feminino, na transição dos séculos XIX e XX, como uma das opções possíveis de
ingresso na vida pública, prescrita e aceita socialmente. O magistério foi inicialmente,
representado como profissão ainda que dotada de predicativos religioso, feminino e
vocacional, conserva os preceitos da entrega, doação e do amor e da vocação.
Dona Vênica ao se referir à Mestra disse: Ela não trabalhava esperando só dinheiro
não. Ela tinha uma vocação especial. A idéia do dom, da vocação esteve atrelada às
rememorações de suas experiências pessoais:
Eu sai do grupo e entrei para o Colégio das irmãs da Piedade. Depois de três anos
de adaptação, a gente ia escolher o que queria ser. Ah, eu quero ser professora! Ai,
eu fiz mais três anos do curso de professora. Toda vida eu acho que eu tive muita
vocação para ensinar, sabe? Todo mundo fala assim: Ah, dona Vênica eu não sei
como é que a senhora agüenta ensinar. Mas, eu tenho paciência, graças a Deus,
79
sem modéstia eu falo. Por que se eu não gostasse de ensinar e não tivesse paciência
não tinha ninguém aqui comigo. [Se refere aos ensinamentos de bordado, renda
turca dentre outros que realiza em sua casa em Sabará, e no bairro Serra, em Belo
Horizonte].
3.6 A professora primária na emergência de uma nova sociedade
Em fins do Império, a situação da mulher brasileira começa a mudar. De acordo com
Muller (1999) os ideais de liberdade e igualdade defendidos nas campanhas abolicionistas e
republicanas em fins do período oitocentista, abriram campo para as mulheres se educarem e
terem papel mais ativo na sociedade. A abolição da Escravatura e a Proclamação da
República, nesse fim de século, passa a ser pauta de discussões entre segmentos distintos da
sociedade brasileira.
Naquele contexto histórico, o Brasil passava por mudanças políticas, sociais,
econômicas e culturais: a industrialização, a crescente urbanização e a diversificação social
com expansão da classe média, as novas oportunidades de trabalho, as novas representações
construídas acerca da população brasileira e a necessidade de instruir a população. Mudanças
que repercutiam no campo educacional, sobretudo na educação das mulheres e mobilizava
políticos e intelectuais brasileiros em torno de um ideal: urgia a necessidade de ordenação e
construção da nação brasileira.
À escola primária é posta a tarefa de construir a nação brasileira, através da
propagação de valores, de formação de hábitos e atitudes, e inculcação dos deveres/direitos
para o exercício da cidadania. A professora primária entra em cena como agente difusor dessa
idealizada tarefa.
Faria Filho (2000) considera que esse ideario da mulher como agente difusor de
educação e dos princípios de moralidade, adotado em 1906, por políticos mineiros, já dava
sinais claros da inserção feminina no espaço escolar. De acordo com o preâmbulo do
Regulamento da Instrução em Minas, citado por esse autor, fica patente o direcionamento e a
prescrição da política mineira às mulheres. “O regulamento estabelece a preferência da
professora para o ensino primário – é o meio de abrir à mulher mineira uma carreira digna e
proporcionar-lhe ensejo de ser útil à pátria.” (MINAS GERAIS apud FARIA FILHO, 2000,
p.108). [grifos da pesquisadora]
80
Razão subjacente à carta escrita por uma normalista sabarense enviada ao Secretário
do Interior do Estado de Minas Gerais em 14/10/1919 e publicada num Semanário21
da
cidade, em 26/10/1919:
Exm. Snr. Dr. Affonso Penna Junior, dd, Secretario do Interior do Estado de Minas
Geraes: é confiada em sua bondade... que venho importunar V Exc uma sabarense
que deseja o progresso de sua amada terra a histórica Sabará, a filha querida de
Borba gato, a qual já foi em tempos primitivos, uma densa rica e formosa, reclinada
em um berço, formado por gigantescos montes, assentado em alicerces de ouro, que
concorreu para a grandeza de outras cidades, hoje cheias de orgulho e que nem se
lembram da sua irmã, hoje tão débil, tão fraca! Pois bem! Sabará caiu!É verdade!
Mas... para que tem Ella seus filhos? [...] É, pois, fiada em seus sentimentos
justiceiros, entre os quais sobresae o amor à pátria, que venho animada, pedir a V.
Exc. Um auxílio para um “Instituto Profissional Feminino” que se vai fundar aqui,
afim de cultivar, de burilar, a habilidade de tantas moças pobres, precisadas, as quais
vão receber neste Instituto, as necessárias instrucções para fabricação de artefactos
próprios para moças. [...] Quem pede esse auxílio a V.Exc. crê que não será negado
um pedido tão justo, de quem como V.Exc, tem tanto prestígio perante o governo! É
necessário que se levante a nossa Sabará, do abatimento em que Ella está, por meio
destas industrias, que mais tarde, coroarão numa aureola de luz aurifulgante, a fronte
altaneira da rica Princeza de Minas! Os sabarenses sentem-se enthusiasmados,
aguardando somente o auxilio do governo, obtendo este, a nossa divisa será a
seguinte: “A mácxima dedicação ao trabalho e à instrucção, para a mácxima
grandeza da nossa tradicional cidade”! [...] Aguardando ansiosa a resposta do pedido
que faz a V.Exc, subscreve se com auta estima e consideração, a Primeirannista da
E.N.”Delfim Moreira”. Sabará, 14 -10- 1919. (grifos da pesquisadora)
A partir dai as Escolas Normais do país são revitalizadas para a tarefa de formar a
professora primária e propagar esses ideais de civilidade e cidadania. Para operar essa
transformação e realizar o ideal de arregimentar a pátria brasileira, consolidar uma nação
politicamente forte, moderna e portadora de uma identidade nacional, procedeu-se, na visão
de Muller (1999) a idéia do respeito às autoridades constituídas, amor à pátria, veneração aos
heróis e símbolos pátrios, especialmente à bandeira, à partir das noções de ordem e progresso.
Elementos presentes nas rememorações do senhor Hélio, ex-aluno da Mestra Ritinha e da
senhora Vênica.
Lá no grupo os meninos cantavam o hino debaixo de uma mangueira enorme!(Dr.
Hélio).
Eu me lembro que a dona Ritinha participava nas festas, como o dia da árvore, da
independência e de tantas datas comemorativas, falando para as crianças lá
reunidas ali no pátio da escola. Ela falava sobre a importância daquela data. E nós
éramos obrigadas a cantar o hino nacional, da bandeira, todos os dias! A gente
tinha muita disciplina, não é essa bagunça que a gente está vendo ai hoje nas
escolas, que eu vejo na TV e escuto pelo radinho, na Itatiaia.
21
O Alfinete – SEMANÁRIO DEDICADO AO BELLO SEXO - Redactor – Antônio O. Rondas – NUM.38 –
Sabará, 26 de outubro de 1919 – ANNO I
81
José Arcanjo complementa essa informação, ao mesmo tempo em que nos convida à
uma reflexão.
Naquele tempo a gente tinha muito respeito. Antigamente, quando o professor era
valorizado, eu estou falando de antigamente, ninguém chamava a professora de tia,
É estranho você hoje chamar professora de tia. Será que isso é carinhoso, ou será
que isso é uma discriminação com o professor?
Conforme referenciado por Faria Filho (2000) o Regulamento de Instrução Pública de
Minas via na professora a educação e regeneradora dos filhos dos outros “[...] a mulher
melhor compreende e cultiva o caráter infantil, e a professora competente é mais apta para a
educação sem corrupções e sem degradação do caráter [...]” (MINAS GERAIS apud FARIA
FILHO, 2000, p. 108).
Ainda que a visão da irracionalidade feminina continuasse presente sustentando as
relações e posições hierárquicas entre homens e mulheres, o que se vislumbrava naquele
momento, era a função pública moralizadora e não propriamente instrutiva. De acordo com
Louro (2008) a ênfase dada à educação das mulheres estava na formação do caráter e não
necessariamente na instrução. Com vistas a serem mais educadas do que instruídas, para
muitos legitimados representantes do universo masculino, religiosos e políticos à mulher
caberia
[...] doses pequenas ou doses menores de instrução [...] não havia porque mobiliar a
cabeça da mulher com informações ou conhecimentos, já que seu destino primordial
– como esposa e mãe exigiriam acima de tudo, uma moral sólida e bons princípios.
Ela precisaria ser, em primeiro lugar, a mãe virtuosa, o pilar de sustentação do lar, a
educadora das gerações do futuro. (LOURO, 2008, p. 446).
No contexto republicano, mais do que instruir a professora deveria educar e moralizar.
Para tal, ela deveria acima de tudo ser um modelo a ser seguido, um exemplo de caráter e
moral. Assim foram prescritos às mulheres professoras primárias, valores éticos e estéticos.
Foi Ritinha quem me apresentou à Dona Mariquinhas Cintra, na época, diretora do
Paula Rocha [antigo Grupo Escolar Paula Rocha] para eu dar aula lá [...] Eu
comecei a dar aula com 24 anos, quando Mestra Ritinha me levou até a sala. Todas
as crianças estavam nas carteiras e ela falou: De hoje em diante você assume a
sala. Você vai fazer o favor de não assentar na ponta das carteiras e nem assoviar.
(Dona Lalá)
A escola normal e da mesma forma, a escola primária, foram organizadas de maneira a
inculcar valores morais, ainda que houvessem transgressões. Em meio às lembranças
compartilhadas, Dona Lalá, a quem Mestra Ritinha prescreveu recomendações de conduta
82
dentro da sala de aula, e lembrou de uma colega que transgredia às normas institucionais: Eu
conheci uma professora que xingava palavrão dentro da sala de aula.
Segundo Louro (2011), disciplinar o corpo, a mente, a alma, os desejos,
comportamentos, linguagem e pensamento das mestras era a meta das escolas normais.
[...] Dona Ritinha era figura recatada, de bons modos, nunca deu a falar nada a ser
respeito na cidade, de pouca conversa (Lalá); andava sempre muito bem vestida
com uma blusa de cashimire, um casaco e uma saia comprida acho que tinha um
macho na frente. Era uma figura exemplar, nota 10. Eu me lembro do barulho do
sapato dela toc... toc...toc...andando pelos corredores da escola. (Vênica)
A lembrança que a senhora Vênica traz à tona do barulho do sapato de Ritinha à
percorrer os corredores do Grupo Escolar Paula Rocha, diz claramente da inculcação moral,
do disciplinamento e ordenamento social que estava prescrito às professoras para nos seus
modos de ser e de exercer a docência. Também nas representações de Zezinho, esses valores
se fazem presentes: A professora tinha uma função, ainda tem ainda. A gente enxergava a
professora como uma coisa tão... uma estima, prestígio social. Era isso que as pessoas
enxergam, os ex-alunos dela, as pessoas que conviveram, com ela.
Em recente pesquisa, Rocha (2008, p.93) indicia a importância do cumprimento das
condutas prescritas às professoras primárias para a implantação das propostas de políticas
públicas, na Reforma João Pinheiro, em Sabará, no ano de 1907, como aquela que
“presenteou” a sociedade sabarense com a criação do primeiro Grupo Escolar da cidade e o
terceiro no Estado. “[...] a Reforma, para ser realizada, dependia, em boa medida, da
possibilidade e capacidade das professoras cumprirem as determinações legais: os programas
deveriam ser atingidos com a Reforma dos professores” .
Isso nos leva a crer que o sucesso da Reforma dependia do bom desempenho didático
do professor, além de uma boa relação institucional que acatasse e desenvolvesse a política
pedagógica prescrita. Lulu informa que
[...] a Mestra era uma excelente educadora... Que ela tinha os métodos dela de
educação, não sei se na época eles eram contraditórios... Pra nós agora seriam né?
Mas que ela preocupava muito com os alunos e queria que eles se saíssem bem, que,
por exemplo, no caso de uma pessoa canhota, eu tive uma parenta que me informou
que ela amarrava a mão esquerda com a mão pra trás, para que a pessoa não
usasse a mão esquerda para a escrita. Exigia uma escrita muito bonita e muito
correta, como todos comprovam, a caligrafia dela e dos que foram alunos dela.
Os ideais, expectativas, prescrições e condutas pessoais e profissionais atribuídas às
professoras, naquele início de república deram sentido aos seus modos de ser e de exercer o
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magistério primário. Atributos inspecionados e que, segundo os inspetores de ensino,
classificavam as docentes como, competentes e incompetentes. Faria Filho (2000) faz menção
a uma Boletim Reservado que produzido pela Secretaria do Interior era utilizado pelos
inspetores e servia como meio de avaliação e controle da professora no exercício de suas
funções. Transcrevemos a seguir partes do Boletim registrado por esse autor:
BOLETIM RESERVADO [...] Cadeira: grupo escolar “Paula Rocha”. Professora:
...É intelligente?É preparada? Tem aprendido didactica? É moralisada? Gosa de
boa fama? Emprega o methodo intuitivo? Adopta calligraphia vertical? Que método
de leitura adopta? Precisa de assistência techinica? Precisa ser
substituída?(ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO/códice: SI3675/Grupos escolares –
1917 apud FARIA FILHO, 2000, p.123).
Entretanto, Rocha (2008) destaca que o Regimento Interno dos Grupos Escolares e
Escolas Isoladas, de 3 de janeiro de 1907, aprovado pelo decreto nº 1969, da lei 439, no que
dizia respeito ao pessoal, aos professores primários, eram atribuídas muitas funções. Segundo
a autora,
No estabelecimento de ensino, competia aos professores: executar o programa de
ensino, nos horários estabelecidos; manter a disciplina nas suas aulas, zelar pelo
material escolar; manter a ordem de entrada dos alunos em classe e a sua
distribuição permanente; verificar a higiene e o asseio dos alunos; fiscalizar os
alunos durante o recreio. Além dessas, outras funções deveriam ser assumidas pelos
professores, como: apresentar-se com pontualidade e decência no Grupo ou escola,
retirando-se do estabelecimento escolar somente depois de esgotadas as horas
destinadas às aulas. (ROCHA, 2008, p.94-95).
Dona Vênica em suas rememorações faz ressalva a outro importante elemento que
permanece depois de 1930, logo que ela entra para o magistério:
Na época em que eu dava aula, a gente trabalhava muito. Tinha que fazer plano de
aula todos os dias. Até hoje eu tenho um calhamaço de caderno de plano guardado.
A diretora passava de porta em porta para dar visto nos planos. Eu me lembro de
um dia, que uma colega não fez o plano e foi desesperada em minha sala pedir o
meu para ela copiar, antes\que a diretora passasse. Muitas copiavam. Eu não,
graças a Deus eu sempre cumpri com minhas obrigações ali ó!
Ainda segundo Vênica as professoras eram muito cobradas. Elas eram vigiadas e
tinham que vigiar os alunos.
Na época em que eu aluna, não tinha indisciplina, nós todos respeitávamos a
professora. Mas na época que eu dei aula eu me lembro que, eu tinha um aluno que
todo dia pulava a grade da escola e fugia. Um dia ele quis pular até a janela da
sala, aquela janelona alta sabe qual é? Eu passei um aperto minha filha, que só
você vendo, eu fui chamada atenção pela diretora. E eu disse, ué o que é que eu
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posso fazer? Naquele tempo a gente ainda contava com ajuda da família. Eu chamei
os pais dele e resolvemos a questão!
Sobre a aprendizagem dona Vênica destaca No tempo em que eu estava estudando,
menina e depois quando fui dar aula a mesma professora ensinava todas as matérias, não
tinha isso de troca troca; a criança pegava amor á professora e a gente à elas. E elas[as
crianças] até aprendiam mais.
Noções postas também através do aprendizado das disciplinas ensinadas nos cursos
normais, tal qual as rememorações de Lulu dão conta de informar: A gente tinha noções de
tudo, no Curso Normal: Moral e Civismo, Religião, História de Minas, do Brasil, Língua
Pátria, Ciências.... e mais outras. Depois a gente ensinava na escola.
Segundo as narrativas que contam a história de Ritinha, a Mestra possuía todas as
competências profissionais e qualidades pessoais exigidas à docência primária. De acordo
com seu ex-aluno, o senhor Hélio, Mestra Ritinha tinha muita disciplina com os alunos. Ela
tinha fala macia, falava maciamente com os alunos. Se a gente esquecia de fazer a lição eu
chegava pertinho da gente na carteira e falava com carinho que tal. tal...tal... . De tanto que
os alunos gostavam dela, eles estudavam as matérias dela e aprendiam mais.
Por unanimidade, os entrevistados justificaram a visibilidade social alcançada por essa
professora atribuindo ao seu profissionalismo e boa morigeração.
Dona Ritinha, era muito recatada, sempre muito bem vestida, tinha um anel de
formatura muito bonito, imponente, que ela usava no dedo indicador, um anel muito
diferente, que poucas professoras tinham na época [...] falava um português muito
correto, era amorosa com as crianças e rigorosa com disciplina de professores e
alunos. (Vênica Maria Lima, 91 anos, ex-professora e diretora do grupo Escolar
Paula Rocha).
Sempre ouvi as pessoas falarem dela, inclusive minha mãe, que era uma exímia
mestra, querida e competente, professora de primeiras letras, uma sumidade, dizia
minha mãe. (José Arcanjo do Couto Bouzas, 66 anos, historiador).
Pessoa de prodigiosa inteligência aliada a uma cultura intelectual; se notabilizou
pela cultura, capacidade criadora e dedicação aos problemas fundamentais da
educação de seus alunos em sua classe.
Dona Ritinha era pessoa de respeito e muito inteligente, cumpridora dos deveres e
muito correta para falar. Não rendia conversas na escola e não tinha inimigas, não
se casou e fora da escola não ia a lugar nenhum, era de casa para a escola e da
escola pra casa, levava alunos para dar aula de reforço fora do horário escolar e lá
agradava os meninos com guloseimas. (Maria Laura do Couto Guimarães, 98 anos,
ex-vizinha e professora do Grupo Escolar Paula Rocha no período em Rita Cassiana
foi diretora).
85
Ela era erudita! Exigente com o comportamento dos alunos, com a disciplina, era
macia para conversar com os alunos, dava aula de caligrafia na casa dela e eu que
tinha aula na casa dela, sabia caligrafia muito bem. (Hélio Costa, 96 anos, ex-aluno
de Dona Ritinha, ex-desembargador do Estado de Minas Gerais).
[...] de família honesta, recatada, muito educada, asseada, solteira e respeitada...
Diretora muito boa para falar com crianças, rigorosa, amorosa, idealista, enérgica
(SL, 2010).
De acordo com Maria de Lourdes Guerra Machado (1999) Ritinha Cassiana foi
[...] portadora de excepcionais qualidades: sóbria, sensata e dinâmica era a
expressão de bondade e abnegação. Participava dos empreendimentos
educacionais, sociais e filantrópicos, ocupando quase sempre, a coordenadoria de
tudo. Educadora na acepção da palavra. Esta competente Mestra engrandeceu o
magistério em Sabará, na escola normal, primária e como diretora do Grupo
Escolar Paula Rocha tendo sido nomeada pelo presidente do estado Fernando
Mello Vianna.
Partindo do pressuposto de que uma professora só poderia inculcar preceitos morais se
os tivesse adquirido, pinçamos nas narrativas mnemônicas dos entrevistados alguns dos
predicativos que atribuídos à Mestra Ritinha aquilatam a força das representações cunhadas
para a professora primária:
[...] enérgica; inteligente; corajosa; bondosa; caridosa, alegre, boazinha e
carinhosa; muito bonitinha, muito arrumada; consoladora;, um encanto de pessoa;
era uma simpatia; recatada demais; solteirinha da silva; super fina e educada; ela
era nota 10, chique;, sempre um bom trato com a gente;erudita; tinha voz macia
para falar com as crianças; sopro de genialidade;, inteligência fora do comum;,
uma pessoa que venceu o preconceitos [racial]; pessoa de fibra e garra; idealista de
educação; amiga; pessoa de gabarito e de instrução;, exímia mestra.
Para além dos predicativos que laurearam Rita Cassiana como professora e que
informaram sobre os atributos gestados e engessados como representações sociais da
professora no exercício do ofício docente de educar e civilizar a nação brasileira, na imagem
que os entrevistados revelaram sobre a Mestra Ritinha estão demarcadas nas suas
características físicas, o seu pertencimento racial.
3.7 Mestra Ritinha: a professora mulata
Ela era bem morena, meio gorda, usava o cabelo bem espichadinho num coque
muito bem feito! (D. Vênica)
Ela era moreninha, pequenininha e bem jeitosinha. (D. Lalá)
Segundo a fotografia, ela era uma pessoa mulata, bem morena. (Maria Izabel)
Ela era mulata, mulata clara, bem clara. (Sr. Hélio)
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Minha avó falava que eles eram descendestes de escuro. (José Arcanjo)
À partir das apresentações que representaram a Mestra Ritinha em seus aspectos físicos
e indiciaram seu pertencimento racial, buscamos compreender a trajetória profissional dessa
professora mulata, que alcançou mobilidade social e teve destaque na sociedade sabarense, no
contexto pós-abolicionista das décadas iniciais do período republicano.
Para Louro (2007) gênero, etnia e classe social foram alguns dos “marcadores sociais” -
conforme termo citado por Britzman (1996) – que, a partir do período colonial, imputaram
diferenças significativas à educação feminina. Presentes na vida das mulheres, desde cedo,
esses „marcadores‟ definiram-lhes rumos e trajetórias.
Muller (1999) em seus estudos sobre Educadores e alunos negros na Primeira
República sinaliza sobre a questão do atrelamento entre raça e gênero, assim como Louro
(2007). Segundo essa autora, nos registros oficiais dos três estados pesquisados, dentre eles
Minas Gerais, “[...] os professores negros pareciam ocupar melhores posições que as
professoras negras”.
Gonçalves (2006) igualmente destaca que o gênero, concebido enquanto diferenciação
anatômica e aliado à classe social, etnia e religião, foi determinante na definição de espaços e
papéis sociais ocupados por homens e mulheres, em diferentes tempos e sociedades. Porque
procriadora, a mulher estaria mais próxima à natureza, enquanto que o homem à civilização.
Para essa autora a lógica da bipolaridade dos sexos sustentou por séculos, a oposição
hierárquica de valores entre homens e mulheres. Oposição concebida e defendida pelo sexo
oposto que naturalizava a condição biológica feminina e por isso, subjugava, sobrepujava e
relegava as mulheres às escalas cognitivas inferiores.
No século XIX, o dualismo dos sexos foi de tal maneira intensificado, que chegou a ser
abordado pela literatura. Jules Michelet, escritor francês, foi quem deu destaque à
diferenciação entre homens e mulheres, ao tecer as representações sobre os sexos masculino e
feminino sob a lógica anatômica e biológica. Lógica que corroborou para a definição de
lugares e funções sociais alocados aos sujeitos, nas sociedades. Gonçalves (2006) em diálogo
com a obra desse escritor vai dizer que,
Michelet ressalta o papel da relação dos sexos como motor da História e condiciona
a estabilidade das sociedades ao equilíbrio assumido por essa relação. Mas não se
trata de uma relação entre iguais. Ao contrário. Ao associar as mulheres à natureza
[...] e o homem à civilização, à cultura, o autor sintetiza a principal interpretação
dominante à época e que possuía longa tradição na história ocidental.
(GONÇALVES, 2006, p. 46-47).
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Para Gonçalves (2006, p.47), ao naturalizar o sexo feminino e aproximar a mulher de
sua condição anatômica, Michelet dá ênfase a desigualdade que a condição biológica da
mulher assume. Conforme esse escritor francês afirma A Mulher carrega o fardo de uma
pesada fatalidade enquanto que A natureza favorece o macho.
Todavia, a visão apresentada e defendida por Michelet sugere ter transcendido tempos e
fronteiras. Segundo Gonçalves (2006, p.45) no século XX, Freud - líder do movimento
psicanalítico em Viena que, por ironia do destino incorporou em grande parte as mulheres,
inclusive sua própria filha, Anne Freud – proferiu a frase “Anatomia é destino” a qual, aos
olhos das feministas poderia ter-lhe custado a vida. Perrot (1988, p.457) dá destaque a outro
comentário de Freud: “[...] a mulher analista... se sai melhor desempenhando a tarefa a que foi
destinada pela biologia – a da mãe”.
Em diálogo com os estudos de Gonçalves (2006), temos que os atributos construídos
para as mulheres, existentes desde períodos imemoriais da História, ou maquinados no
próprio período oitocentista [quem sabe ainda em vigência nos dias atuais], profanizaram e
desqualificaram o sexo feminino. Para além do gênero, pensado enquanto condição
anatômica, raça e classe social também pesaram sobre as representações sociais femininas. De
acordo com Crossetti de Almeida (1991), no Brasil, diferentemente da Europa e de outros
países, a representação demoníaca historicamente alocada ao sexo feminino foi construída sob
a perspectiva da sexualidade da negra, da mulata e da escrava. Conforme essa autora destaca,
[...] Os seres excepcionalmente excitáveis (e malévolos) no Brasil – não apenas no
período colonial, mas mesmo no século XIX com seus arroubos de modernidade não
são as mulheres, mas sim os negros, os escravos. As escravas em particular [...]
pervertendo os brancos com seu contágio [...] (ALMEIDA, 1991, p.168)
Na sociedade escravocrata e patriarcal, a imagem das negras, mulatas e escravas estava
intimamente relacionada a perversão, a luxúria e aos prazeres da carne. Delas os homens
brancos se resguardavam, uma vez que, sedutoras e pecaminosas, poderiam levá-los às
condutas desviantes. Enquanto que as negras, mulatas e escravas eram vistas como seres,
impuros e de natureza perversa, pecaminosa, as mulheres brancas, em contrapartida,eram
representadas como figura angelical, pura e assexuada. Ao que sugere a citação de Almeida
(1991), apenas as negras e mulatas representavam perigo ao sexo oposto.
Todavia, em meio às mudanças advindas da modernidade que principiava no início do
século XX, da propagação dos discursos sobre a formação do Estado-nação, da necessidade
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de instruir, educar e civilizar a população brasileira, do receio do catolicismo sobre a
desagregação familiar em função dos ideais feministas, e da nova concepção da infância
vemos ser processada uma limpeza na imagem social da mulher.
Essa ressignificação das representações sociais sobre o sexo feminino que se deu em
função de interesses políticos e religiosos prescreveu o gênero ao magistério. As mulheres
passaram a ser convocadas à tarefa de civilizar e construir a nação brasileira pelas vias da
educação. Mas haveria alguma exigência na identificação étnico-racial dessas professoras?
Schwarcz (2001, p.67) responde a essa questão ao dizer que “[...] embora os censos
tenham sido realizados no Brasil em 1872, 1890, 1940, 1950, 1970 e 1980, o item cor não foi
utilizado pelo menos em três momentos: 1900, 1920 e 1970.” Resultados que nos levam a crer
que o quesito raça não se constituía como elemento impeditivo para o exercício da docência,
nas décadas iniciais do século XX, quando a Mestra exerceu a docência.
Ainda segundo Schwarchz (2001, p. 72-73), “a questão racial é muitas vezes uma
questão relacional no Brasil: varia de indivíduo para individuo, depende do lugar, do tempo e
do próprio observador”. Assim, sob a lógica das relações interpessoais, sobretudo, daqueles
entrevistados que conhecerem a Mestra e com ela estreitaram vínculos, buscamos
compreender a definição da cor dessa professora. Supomos que, para além da variação do
tempo, do lugar e do observador, a dificuldade encontrada pelos conterrâneos de Ritinha
possa estar ligada ao seu pertencimento social e familiar, pois ainda conforme Schwarchz
(2010, p.73) “trata-se de certo uso social da cor”.
Dona Ritinha era escura, morena escura, era moreninha. A irmã era mais clara um
pouco. Eles falavam que ela era de ouro. Pra mim ela parecia de ouro, de tão boa
que ela era. Ela era azul, branca, marrom, não importa a cor. Ela era um doce de
pessoa. (Maria Laura).
Ela era mulata, mulata clara, bem clara (Sr.Hélio).
Ela era uma pessoa mulata, bem morena. (Maria Izabel)
Ela era um cruzamento, com certeza de português com negro. Como é que dá
isso? Mulata?[Ela era mais escura que você]. Muito bonitinha, muito arrumada.
Por aquele retrato, você viu não é? Ela era morenona. Como é que a gente fala
essa cor? Ela não era preta, ela não era branca... Era que cor? (D.Vênica).
De acordo com Muller (1999) a representação e a definição de cor oriunda de uma
construção social. Conforme essa autora “Essa atribuição dá-se numa relação social [...] a cor
de pele vem acompanhada de um elenco de atributos valorativos, no mais das vezes de
conteúdo moral” (MULLER, 1999, p.40 ).
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Dona Ritinha era de família honesta, recatada e educada. (D.Vênica).
A sua própria vida é um exemplo pra todo mundo. Ela era referência. (Sérgio).
A gente ouvia uma referencia muito boa do trabalho dela. (José Arcanjo).
A gente ouve muito falar de tudo o que ela fez. Ela passou muitos bons valores
para as pessoas. (Maria Izabel).
Sobre a questão da identificação racial dos professores, Dávila (2006, p.157), em seu
estudo sobre a Política social e racial no Brasil no período de 1917 a 1945, vai dizer que,
enquanto exigência social ou auto-identificação “È impossível saber se tinham um senso
uniforme de sua cor, raça ou etnicidade. Como profissionais que trabalhavam no estado [aqui
se refere ao Rio de Janeiro, onde realizou sua pesquisa], eles podem ter assumido uma
identidade „branqueada‟ ”.
A lógica de Dávila (2006) de um suposto embranquecimento do professorado carioca no
início do século passado e a afirmação de Schwarcz (2010,p.11) “[...]„raça social‟ (que faz
com que as pessoas “embranqueçam ou empreteçam”, conforme a situação social e mesmo
econômica [...]”, fundamentariam as narrativas mnemônicas sobre dona Ritinha e seu irmão
Luis Cassiano - também figura de destaque na placa de endereçamento da rua transversal à
Rua Mestra Ritinha. Narrativas que sugerem que o diploma e a posição social branqueavam o
negros e mulatos:
O próprio Luis Cassiano que era mulato, tornou-se uma grande figura, porque ele
estudou, ele teve oportunidade, ele pôde fazer isso. (José Arcanjo).
Ela tinha um irmão bem escuro, mas muito educado e muito inteligente que foi
advogado e deputado. (D. Lalá).
Na visão de Dávila (2006) e Scwarchs (2001), à questão do branqueamento da raça
atrelavam-se o lugar e a posição social ocupados pelos negros, tal qual está posto nas
lembranças de José Arcanjo, o Zezinho:
[...] é a mesma coisa que eu falo aqui de D. Ritinha, de seu Luis Cassiano, que eles
eram filhos de negra com branco, como minha bisavó, meu bisavô que tinha uma
filha de português com uma negra . Aquela pessoa que não é aceita, socialmente.
Esse meu bisavô porque era muito rico e o Luis Cassiano porque era um homem
inteligente, formou-se em direito, foi um dos responsáveis pela transferência da
Capital de Ouro Preto para a região de Sabará, do Curral Del Rei; ele acaba que é
uma pessoa importante. Luis Cassiano junto com Arthur(?) era um dos fundadores
do jornal “O Contemporâneo.”Então quer dizer, era uma pessoa que soube se fazer
destacar. Ai a cor, torna-se de menor importância para as pessoas daquela época.
Era uma pessoa importante, uma pessoa que sabia se posicionar [...] No caso do
Luis Cassiano, foi isto. Imagino que com D. Ritinha também foi oportunidade,
embora seja uma pessoa de gabarito, de instrução.
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Jerry Dávila (2006) sugestivamente alinha-se às idéias de Gonçalves (2009) e de Muller
(1999) ao informar que, o contexto republicano que prescreveu o magistério primário ao
universo feminino, inseriu a mulher branca e não- branca no espaço da vida pública, até a
década de 20 do século XX. Da mesma forma, que segundo Muller (1999) inseriu os alunos
negros. Fato presente nas lembranças do Dr. Hélio ao dizer naquela época (1920/1921) na
sala haviam meninos negros, mulatos e brancos; era tudo misturado.
Dávila (2006, p.158) ao coletar informações de uma ex-professora de cor aposentada
que estudou e lecionou no regime do Estado Novo, sugere que até esse período, não era
exigido formação específica para dar aula nas escolas públicas, “eles se valiam de sua
educação básica para ensinar as “primeiras letras” nas escolas públicas”. Coincidência ou não,
vemos similitudes com a trajetória de Ritinha de acordo com informações dos entrevistados:
Minha avó e minha mãe contavam que ela era uma exímia Mestra, professora de
primeiras letras.(José Arcanjo).
Meus avós maternos se relacionavam bem com a Mestra Ritinha [...] meu tio e
minha mãe foram alunos da Mestra e de sua irmã na escola de primeiras letras da
antiga escola onde hoje é o fórum. (D.Maria de Lourdes Guerra Machado)
De acordo com Muller (1999), uma vez proclamada a República, o magistério que
alistou as professoras primárias como construtoras da nação brasileira, considerado uma
profissão socialmente aceita, concedia status e prestígio social às mulheres brancas e não
brancas.
Ela foi uma professora muito respeitada pelo seu trabalho, pela sua
inteligência;(Maria Izabel)
Naquela época, professora era muito respeitada, tinha status, prestígio. (D.Vênica);
Ser professora naquela época era o máximo, nós éramos muito respeitadas; ser
professora era uma coisa acima, era cotada... Falavam na cidade assim, fulana é
professora, ela formou e isso me fazia sentir um orgulho que só você vendo.
(D.Lalá).
Concebido como dom, vocação e atributo feminino divinizado pelo caráter maternal que
comparava a mulher à virgem santa, o magistério, no início do século XX, foi ressignificado
de maneira a exigir estudos e conhecimentos das professoras. Muller (1999) argumenta que na
construção da nação brasileira, do referido século, esses debates produziram a professora
primária. Na visão dessa autora, as representações social, religiosa e política construíram um
perfil ético e estético para a mulher brasileira e professora, dando sentido e significado ao seu
91
pensar, agir, falar e ensinar. Momento, em que as mulheres reagiam a essa tarefa proposta de
erigirem o país, tentando se inserir no magistério.
Entretanto, o dever de erigir o país à Estado-nação não foi concedido a todas as
mulheres. A produção da professora primária nesse Projeto de Brasil Republicano das décadas
iniciais do século XX, presente nos discursos de intelectuais brasileiros como Fernando de
Azevedo, externava um ideal elitista de professor pautado nos valores éticos e estéticos do
qual as professoras tinham que ser sadias física e psicologicamente e fenotipicamente
europeizadas. A influente opinião da intelectualidade prescreveu restrições às
afrodescendentes. Conforme aponta Muller: “No que se refere à ocupação e desocupação de
postos no interior da carreira de magistério, já sabemos que ocorreu um processo intencional,
ainda que não explicitamente definido, de negação desse espaço profissional a esse grupo
racial”. (MULLER, 1999, p.4).
Gomes (1995) informa que, em fins do século XIX e início do século XX, a elite
branca dominante buscava resolver o problema do racismo brasileiro. Uma das estratégias foi
o embranquecimento da raça negra pela miscigenação, advinda das teorias eugenistas em
voga na Europa. Vê-se claramente, nesse período como o quesito raça influenciava a docência
prescrevendo ao magistério o perfil de professora pelo fenótipo e pelo biotipo: cor de pele,
tipo de cabelo, formato dos lábios, assim como os antagonismos saúde/doença, beleza/feiúra,
capacidade/incapacidade intelectual e superioridade/inferioridade das raças, prescreviam a
aparência feminina desejada. Tem-se aí a produção simbólica cultural da cor que estratifica
socialmente o sujeito, demarcando seus lugares de pertencimento nos patamares relacionais
de hierarquia social e étnica.
A partir dos anos 20 do período nonocentista, as sucessivas reformas educacionais
exigiram formação e diploma, mérito e biótipo saudável. Com isso, o magistério primário
passou a ser “uma profissão branca, feminina e de classe média [...] valores da
profissionalização marginalizaram sistematicamente os professores de cor” afirma (DÀVILA,
2006, p.161-162).
Nesse sentido, como pensar a mobilidade social da Mestra Ritinha, mulher mestiça
descrita como mulatona, moreninha, pequininha, morena escura e que não gozava desses
atributos europeizantes, que participou do projeto de construção da nação brasileira pelas vias
magistério primário e ocupando cargo de destaque como diretora do primeiro grupo escolar da
cidade de Sabará, sendo notabilizada por seus superiores e pela sociedade sabarense? Segundo
Rocha (2008):
92
A professora Rita Cassiana era vista como exemplo para as outras professoras. Ela
possuía as qualidades que se esperava de uma boa professora: era dedicada, assídua,
pontual, inteligente, dentre outros predicados, mesmo não mantendo constantemente
a disciplina de suas classes, único “senão” da professora. Esta professora foi
considerada, no período em que lecionou no Grupo (1907-1925), a melhor
professora do Grupo, tanto pelos inspetores, quanto pela diretora Maria José dos
Santos Cintra. (ROCHA, 2008, p.73).
Pelas lembranças dos entrevistados que denunciaram o pertencimento social da Mestra
Ritinha - ela era filha de um português socialmente influente na cidade e tinha um irmão
professor, advogado e deputado- supomos que sua trajetória profissional, embora tenha sido
construida com galhardia, competência e mérito, possa ter sido influenciada por sua condição
econômica, cultural e social, bem como por um suposto favoritismo político pela influencia
do irmão que fora deputado influente na província mineira.
Consta em Muller (1999) que o esforço de galgar profissões de destaque como a de
escritor e do magistério primário ainda que prescrita política e ideologicamente, perpassava a
questão econômica. A diferenciação biológica fenotipicamente expressa no corpo e
culturalmente produzida pela sociedade da época se constituíam como impeditivos, por
representarem a resistência da elite em aceitar que o negro se colocasse em posição de
igualdade com ele, na pirâmide social e por perderam lugar nos espaços de dominação.
Mestra Ritinha, assim como seu irmão Luis Cassiano, sugere ter sido branqueada por
sua erudição, por sua inteligência, pela cultura adquirida no domínio de três línguas, por seu
pertencimento social e econômico e por ser filha de um casamento inter-racial.
[...] sua posição social que a privilegiava como irmã do deputado Luis Cassiano,
que ocupou o cargo de 8º Suplente de Juiz Municipal do Termo de Sabará. (José
Arcanjo)
[...] Mestra Ritinha era filha de rico português, amigo do abastado, também
português, Manuel Pereira de Mello Vianna, pai do presidente do estado de Minas
Geraes em 1924 e vice-presidente da república em 1926, Fernando Mello Vianna.
( Maria deLourdes Guerra)
Entretanto, ainda que Rita e seu irmão alcançassem notoriedade vindo a serem
homenageados na cidade, seja por mérito ou por favoritismo sociais e políticos, não podemos
deixar de ressaltar que, de certo, outros negros e mestiços sabarenses que também
colaboraram com os ideais republicanos de progresso do país, permaneceram no anonimato.
A teoria do branqueamento da raça acalhou no processo de embranquecimento do
magistério primário, até que surgiu outro modo de se conceber o racismo, motivada pelo
equívoco de que o problema racial era um elemento complicador para a definição da
nacionalidade brasileira. Eis que surge a teoria da democracia racial que conforme Gomes
93
(1995, p.69), “[...] se afirmou como mito e que atendeu prontamente aos interesses da elite
brasileira, ávida de uma solução para o problema racial [...]”
Após as vãs tentativas de branqueamento da raça, a escapatória vislumbrada por quem
pensava, debatia e prescrevia a ideologia sobre o racismo recaiu sobre a miscigenação das
raças. E o processo de homogeneização do magistério primário só passa a ser revertido em
meados do século XX com a expansão da escola pública que passa a ampliar e a confirmar a
igualdade de direitos sociais pela educação. Todavia, questões relacionadas ao preconceito
racial foram sugestionadas pelas lembranças de alguns entrevistados:
Sua genialidade venceu as barreiras, principalmente as barreiras do preconceito
racial, porque era afrodescendente, numa sociedade bastante preconceituosa. O
saber foi a sua grande ferramenta, o seu grande instrumento de integração a essa
sociedade. Não era esse uma preocupação de Mestra Ritinha, era uma
conseqüência do seu trabalho, uma conseqüência natural.Não que tivesse ela uma
preocupação de ter uma aceitação social, eu acredito! Mas a própria conduta ética
e conduta moral, o seu compromisso com a formação do cidadão sabarense, da
formação do homem em si inovou uma conseqüência natural de uma grande
admiração dentro daquela sociedade daquele período, um tanto quanto fechada, um
tanto quanto preconceituosa. Essa genialidade de Mestra Ritinha é que a coloca
entre as grandes formadoras da personalidade e do caráter cultural do sabarense.
(Sérgio)
Ela deve ter sofrido com o preconceito racial na sociedade do início do século; A
gente sabia por alto, que tinha tido uma pessoa muito inteligente, uma pessoa muito
corajosa, porque lutou com muito preconceito da época para poder conseguir uma
posição assim na educação, tão importante, como a primeira diretora do Grupo
Escolar Paula Rocha, em Sabará; Foi diretora numa época em que o racismo era
acirrado... Ela conviveu com a nobreza. Ela conviveu com aquela elite orgulhosa
daquela época. Então não foi fácil ela ter vencido não, de jeito nenhum. (Maria
Izabel);
Negra, conseguiu conquistar seu espaço... Ganhou respeitabilidade... Sopro de
genialidade; sua genialidade vencia barreiras. Naquele momento da sociedade, da
nossa cultura, era uma coisa, corriqueira, o preconceito racial. Eu ouvi de uma
pessoa que a conheceu, e que teve um contato mais ou menos com ela, um contato
não tão grande, mas acredito ter sido através dos seus pais... Essa pessoa usou um
termo que é até pouco recomendado hoje e deveria ser pouco recomendado
sempre, porque é um termo que não devia ser usado nunca !Não dentro dos nossos
conceitos de raça, porque raça só existe uma que é a raça humana e pronto! Mas
quando fui buscar um quadro dela [se refere à Mestra] uma fotografia em
determinado lugar ouvi essa pessoa se referir à Mestra Ritinha como “ uma negra
de alma branca”. Pela ingenuidade da expressão que foi colocada de forma
alguma pejorativa, mas a gente percebia que essa pessoa ouvia isso dentro de
casa, não tinha noção do tamanho da bobagem que essa frase representa. Mas, eu
absorvi de outra forma. Eu percebi que essa pessoa queria fazer um elogio imenso
a ela, sabe? Que o que ela estava fazendo ali naquele momento, ela não percebia a
tamanha grosseria da frase, a tamanha estupidez do pensamento, de se pensar
dessa forma, mas era mais muito mais uma expressão de admiração pelo trabalho
dela. (Sérgio)
94
O termo negra de alma branca a que Sérgio faz menção e repudia também foi citado
por Afrânio Peixoto em 1917 ao proferir uma de suas aulas na Faculdade de Medicina do Rio
de Janeiro, e ao que sugere está relacionado às questões de ordem sócio-cultural. “[...] Muito
preto e mestiço conheci, e venero, porque tiveram e têm culta alma branca. O disvelamento
das raças no Brasil insisto, é menos pigmentar do que cultural...” (PEIXOTO, 1938, p. 140-
141)
Entretanto, as narrativas e representações que apresentaram a Mestra reforçam nossa
hipótese de que, embora uma nova imagem de professora primária europeizada tivesse sido
esculpida, produzida e propagada no início do século passado, diferentemente do possa ter
acontecido com outras mulheres negras e mestiças, Rita Cassiano não deve ter sofrido
preconceito racial, tão pouco teve vetada a sua participação como docente na escola pública,
assim como em outros espaços de socialização dos brancos.
Na visão do historiador sabarense José Arcanjo, entrevistado nesta pesquisa, o
preconceito existente nos idos do início do século passado, não sugere ter influenciado a
Mestra:
[...] eu quero deixar claro o seguinte: preconceito sempre houve, infelizmente! Seja
no Brasil ou qualquer outro lugar. No Brasil, nesse final de século[XIX] e início de
século [XX], essa coisa de cor de pele da pessoa, não tinha influencia assim tão
grande não. 80% da população brasileira era formada de negros e mulatos. E
Sabará não ficava atrás. E completa: Um fato curioso aconteceu, eu me lembro que
teve uma pessoa aqui de Sabará, um mulato, que tentou desafiar a sociedade da
época ao tentar entrar no clube cravo vermelho, clube só de brancos de imigrantes
europeus que trabalhavam na Belgo. Quando ele entrava, o pessoal olhava meio
torto para ele e a entrada dele era barrada. Ai um dia, ele resolveu ir numa festa,
num baile, não me lembro... Eu sei que eu estava lá e vi , ele foi vestido de militar.
Ele era do exército sabarense, mulato. E ai ele entrou, foi de uniforme, você
entendeu? Ai, as pessoas podiam até não gostar, mas já passaram a aceitar. E
aceitaram normalmente dentro do clube e foi com ele que abriu essas coisa do
preconceito aqui na cidade. Eu não me lembro nome dele.
Sobre a demarcação das diferenças raciais diz Silva (1997) ao se referir ao senso
comum.
“[...] Isso de cor é bobagem. A cor branca é vaidade. O homem só se conhece por
sua capacidade. Pela pronúncia correta. E pela moralidade. Você falou em Caim? Já
me subiu um calor! Nessa nossa raça preta, Nunca teve um traidor; Judas sendo um
homem branco Foi quem traiu nosso senhor [...]”. (SILVA, 1997, p.93)
As narrativas mnemônicas de quem conheceu a Mestra e com ela estreitou vínculos
afetivos, nos leva a crer que Rita Cassiana foi embranquecida. O relato da senhora Lourdes
Guerra associado a uma pequena nota informativa que ilustra a foto do cemitério da
Irmandade do Carmo que abrigava sabarenses de visibilidade social, e em cujo local, Mestra
Ritinha foi enterrada, conforme informou o Sr. Hélio Costa, reforça a hipótese do uso social
95
da cor e do branqueamento da Mestra. A minha esposa foi enterrada numa sepultura próxima
à de Dona Ritinha, no cemitério do Carmo.(Sr.Hélio).
Figura 20 - Cemitério onde se acha, assignalado com uma cruz, o túmulo de D. Blandina
Mello Vianna progenitora do Dr. Fernando Mello Vianna.
Fonte: Minas Geraes, 1925/ Imprensa Oficial – Acervo da escola Estadual Paula Rocha.
Ao se reconhecer e ser reconhecida nesses espaços, Rita Cassiano legitimava seu
branqueamento pela notoriedade alcançada por posição social e familiar, mas também por sua
notável inteligência e contribuição no campo da educação.
Como professora primária, Mestra Ritinha se mostrou equilibrada, de atitudes
claras e leais, de bom coração, corajosa, firme e compreensiva, todas essas
qualidades aliadas à sua admirável inteligência. (Maria Lourdes Guerra);
[...] sua prodigiosa inteligência, aliada a uma elevada cultura intelectual a
destacaram no campo da educação. (Sérgio)
Ela era de uma inteligência fora do comum. (D. Lalá)
96
Figura 21 – Rita Cassiano, 1925
Fonte: acervo Escola Estadual Paula Rocha
Pelas acepções de Nora, supomos que a Placa comemorativa de tributo à Mestra, afixada
no Ex-Instituto Educacional Mestra Ritinha localizado à Rua Mestra Ritinha, se constitui
enquanto um outro lugar de memória da cidade que protege a Mestra da invisibilidade social.
Na homenagem póstuma prestada a essa professora está o reconhecimento de seu trabalho e
de sua luta contra um suposto preconceito, mencionado por Maria Izabel e Sérgio Luis.
Eu achei tão bonita essa homenagem pela consciência negra, o dia da Consciência
Negra, que eu achei que indiferente do meu trabalho de educação, ali estava um
testemunho também de admiração pela garra que ela teve, pela fé que ela teve em
Deus e nela mesma. Além de educadora, ela estava sendo homenageada como uma
pessoa que venceu preconceitos. (Maria Izabel)
Figura 22: Placa em homenagem à Mestra Ritinha
Fonte: acervo pessoal/2010
97
Igualmente, encontramos o nome de Mestra Ritinha na secretaria do Clube Cravo
Vermelho, localizado à Rua Borba Gato, em Sabará.
Contudo, não se pode negar que Rita Cassiano Martins Pereira foi uma afrodescentente,
que pela competência, erudição e conduta moral exemplar, se destacou na história da
educação de Sabará, como professora primária, num momento em que as mulheres
adentravam os espaços das salas de aula dos grupos escolares e buscavam se afirmavar
profissionalmente.
3.8 Afirmação feminina na profissão docente nos grupos escolares de Sabará
Figura 23 – A diretora dona Ritinha e o corpo docente do Grupo
Escolar “Paula Rocha” /1930
Fonte: acervo da Sr.Vênica
A gente estudava para ser professora (D.Vênica).
Meu pai matriculou eu e minhas irmãs na escola normal, ele queria que nós
fôssemos dar aula! (D.Lalá)
Mestra Ritinha foi citada como uma das primeiras professoras do Paula Rocha.
(Maria de Lourdes Dias)
Naquela época não era aceitável a saída de moças da cidade de Sabará para
estudar. Aqui em Sabará existia a Escola Normal Delfim Moreira onde estudaram
as mulheres, assim como Mestra Ritinha e sua irmã. (Maria Lourdes Guerra
Machado)
Sobre a questão do gênero na docência e sobre a feminização do magistério primário
ocorrido em Sabará, Rocha (2008) traz importantes elementos para uma compreensão do
contexto em que Mestra Ritinha atuou profissionalmente e construiu sua inserção social. A
autora chama atenção para o longo tempo de permanência do corpo docente do Grupo Escolar
98
Paula Rocha, além do fato de que a maioria das professoras primárias dessa instituição eram
alunas egressas da Escola Normal Delfim Moreira, dentre elas Mestra Ritinha e Dona Lalá.
Segundo Rocha (2008) Mestra Ritinha integrou o primeiro corpo docente desse Grupo – o
primeiro da cidade de Sabará, na Reforma Francisco Campos realizada, em 1907.
Nos primeiros anos da República, o exercício da docência feminina era um grande
incentivo às mulheres, pois a elas seria dada preferência para assumir o magistério. De acordo
com Álvaro Luiz Moreira Hypolito (1994),
Dentre as características que permitiram o ingresso maciço das mulheres na
profissão de ensinar ou dentre as características femininas que se adequavam ás da
profissão podem ser destacadas: a proximidade das atividades do magistério com as
exigidas para as funções de mães: as “habilidades” femininas que permitem o
desempenho mais eficaz de uma profissão que tem como função cuidar de crianças;
a possibilidade de compatibilização de horários entre o magistério e o trabalho
doméstico, já que aquele pode ser realizado em um turno; a aceitação social para que
as mulheres pudessem exercer essa profissão [...] (HYPOLITO, 1994, p.64).
Na visão Crossetti de Almeida (1991), assepsia e maternidade influenciaram na
demanda das mulheres pelo curso normal, fato que repercutiu na feminização do magistério
primário. Cada vez mais atrelado ao universo infantil e aos atributos femininos de
maternagem, a docência primária passou a ser interpretada como uma atividade de
prolongamento da educação dada no lar. Com isso, caberia mais à mulher do que ao homem, a
tarefa de educar os rebentos. A partir dessa lógica, as Escolas Normais foram se configurando
como espaços predominantemente feminino de formação e preparação para a docência do
ensino primário.
As representações desse processo de feminização se propagavam pelos espaços
escolares e sociais e se presentificarem nos currículos, normas, uniformes, prédios,
corredores, quadras, mobiliários, retratos enfim, em todos os pertences da escola. No
cotidiano das escolas normais, mestres e mestras corroboram para transformar jovens
normalistas em mulheres professoras. Um conjunto de rituais, saberes e objetos, além do
comportamento ético e estético formavam, informavam e conformavam as futuras
professoras, constantemente vigiadas, reguladas, disciplinadas e ordenadas por crucifixos,
bustos de personalidades ilustres, bandeira, retrato de autoridades e etc. Dona Vênica se
lembra da vestimenta de Ritinha: Era fina e recatada. Usava uma blusa de cashmere por
baixo, um caso por cima, saia comprida, acho que tinha um macho na frente.
Nessa lógica, o espaço da escola se mostrava como sendo um espaço limpo, sem risco
à integridade moral da mulher, isento de conflitos políticos, sociais e religiosos, cercado de
99
afeto e maternagem, no qual a inserção feminina se legitima cada vez mais. Conforme Louro
(1997),
[...] Se as diferentes instituições e práticas sociais são constituídas pelos gêneros (e
também os constituem), isso significa que essas instituições e práticas não somente
“fabricam” os sujeitos como também são, elas próprias produzidas (ou engendradas)
por representações de gênero, bem como por representações étnicas, sexuais e de
classes... (LOURO, 1997, p.88).
De acordo com Moacyr (1937) a existência da professora primária fora prevista num
projeto de lei datado de 1830, três anos após da criação da primeira lei de Instrução Pública
brasileira, em 15 de outubro de 1827. Conforme registra esse autor “[...] no magistério das
escolas públicas se dará preferência às mulheres” (MOACYR, 1937, p.229).
Ao mapearem a evolução do corpo docente sabarense, no século XIX, os estudos de
Santos e Faria Filho (2003) informam sobre a inserção da primeira mestra. “O primeiro
provimento feminino o qual encontramos foi da professora Maria Anna de Assumpção de
10/03/1836 da cadeira de instrução primária do sexo feminino” (SANTOS; FARIA FILHO,
2003, p. 588). Uma evolução que os autores interpretaram, a partir do levantamento feito
junto ao Arquivo Público Mineiro, tomando como referencia o período de 1822 a 1887. Na
análise dos registros de provimentos docentes feita por esses pesquisadores, consta que 78%
do corpo docente era provido por homens e apenas 22 % de mulheres.
Entretanto, a participação das mulheres no ensino primário só foi concedida a partir da
lei de 1827 que ao criar escolas para meninas, passou a selecionar mestras para o exercício da
docência. Embora a participação feminina estivesse garantida por lei, não era vista com bons
olhos. Pesquisas realizadas por Leonor Maria Tanuri (2000) informam que representantes da
política tentavam vedar essa possibilidade ao sexo feminino. Conforme destacado por essa
pesquisadora,
[...] A Lei de 15/10/1827 que „manda criar escolas de primeiras letras em todas as
cidades, vilas e cidades mais populosas do Império‟, também estabelece exames de
seleção para mestres e mestras, embora num movimentado debate na Câmara muitos
parlamentares tenham solicitado dispensa das mulheres dos referidos exames.
(TANURI, 2000, p.62).
O preconceito do trabalho feminino fora do lar, o direito da mulher de transitar pelo
espaço de domínio majoritariamente masculino e de obter uma parca autonomia financeira,
representava uma dupla ameaça para o sexo oposto: primeiro porque a mulher, um pouco
100
mais livre, poderia romper com sua condição de total subalternidade ao homem; segundo
porque disputaria com o universo masculino, decisões políticas e tarefas administrativas.
Assim por muito tempo, as mulheres de famílias ricas permaneceram na ignorância
uma vez que era indicador de pureza, segundo os valores em vigência nas sociedades do
período colonial. Na contramão, conhecimento e sabedoria para as mulheres indicava má
conduta feminina. Um preconceito que se estende pelo século XIX e que presente nas obras
de grandes literatos, como Machado de Assis e José de Alencar, retratam de forma negativa a
professora primária. De acordo com Muller (1999) nessas obras a relação entre “o „ser‟
professora e o „ter‟ que ganhar o pão de cada dia” é vista como maus olhos, como afronta ao
universo masculino uma vez que o homem deveria ser o único provedor financeiro da família
(MULLER, 1999, p. 99).
Além desses renomados literatos, outros autores também revelaram como eram
representadas as mulheres que exerciam o magistério no século XIX. Macedo (1945, p.173)
faz a seguinte citação “[...] não é lá uma grande honra ser mestra, ou professora de meninas;
aqui no Rio de Janeiro qualquer bicho-careta abre colégio de meninas”. Assim, representar de
forma negativa a professora desprestigiando a docência, era a forma como muitos homens
tentavam impedir o transito da mulher para o exercício dessa profissão, que há, iniciando-se
com os jesuítas, vinha há séculos sendo exercida pelos homens.
À parca representatividade social que gozavam a docência primária e a mulher
professora, somam-se as constantes falências na criação das escolas normais, no período
imperial. Na visão de Tanuri (2000, p.64) essas escolas não passaram de “projetos
irrealizados”. Para essa autora, o modo como as escolas normais foram organizadas, nesse
período, não as fez prosperar: a organização didática simples com no máximo dois
professores para atuarem em todas as disciplinas, o currículo pobre que não ultrapassava o
ensino primário, a reduzida freqüência dos alunos, as interrupções administrativas, a falta de
incentivo político e financeiro, as descontinuidades do processo escolar foram as principais
causas do insucesso na criação e permanência de grande parte, senão, de todas as escolas
normais criadas no século XIX. Moacyr (1940, p.239) ao parafrasear um político paranaense
em atuação nesse século, vai dizer que “[...] a criação dessas escolas pode se comparar às
“plantas exóticas: nascem e morrem quase no mesmo dia”.
Entretanto, a transição para o XX, foi marcada por significativas mudanças no quadro
político e social do país, as quais repercutiram positivamente, no sistema educacional. A
propalada ideologia de que “... um país é o que a sua educação o faz ser”... (TANURI, 2000,
p.66) ganha adeptos de diferentes partidos políticos e ideológicos contribuindo assim para o
101
ressurgimento das escolas normais, decadentes pela falta de credibilidade e consequente
investidas políticas. Essas escolas renascem mais valorizadas, com novas propostas
curriculares, com ampliação de requisitos para seu ingresso e com mais abertura para inserção
do sexo feminino.
O ideário político republicano presente em fins do período oitocentista, pautado nos
discursos científicos das teses higienistas da época passaram a valorizar a infância e a investir
nos cursos de formação de professores, cada vez mais dirigido ao público feminino. Conforme
Louro (1997) as propostas pedagógicas e psicológicas que iam surgindo naquela época,
influenciaram na prescrição do magistério ao sexo feminino:
[...] à medida que as novas teorias psicológicas e pedagógicas passam a considerar o
afeto como fundamental, passam a considerar o amor como parte do “ambiente
facilitador” da aprendizagem. A representação do magistério passa então a ser mais
claramente feminina – pelo menos do magistério que tem como alvo as crianças, o
magistério primário ou de primeiro grau. (LOURO, 1997, p. 98).
Em diálogo com Muller (1999), vemos que no alvorecer do século XX o que está em
voga é a necessidade de educar as mulheres e vinculá-las aos propósitos de modernização e
construção de uma nova sociedade. Essa nova lógica política faz com que as representações
sociais sobre a docência e sobre a professora primária, sejam ressignificadas. Representantes
políticos, religiosos e intelectuais passaram a entender e a defender a inserção das mulheres
no espaço público, creditando que a elas função de formar novos trabalhadores e futuros
líderes políticos.
Começava a ser propalada a idéia do magistério primário como atividade atrelada aos
princípios da vocação e da maternagem, compondo a tríade mulher-mãe-professora. Essa
cultura do magistério primário que prescrevia a docência dos infantes à mulher, foi muito
prevalecente, sobretudo nas três primeiras décadas da Primeira República, corroborando para
a inserção maciça da mulher nos espaços escolares – movimento cunhado na História como
feminização do magistério primário.
Em diálogo com Lourenço Filho (1921), vemos que a efervescência das mulheres nos
cursos normais deflagra e legitima o movimento mundial conhecido, na história da docência,
como a feminização do magistério primário. Conforme destaca esse pesquisador,
O magistério primário é em todos os países do mundo uma função feminina; no
Brasil, as últimas cifras publicadas avaliam a cooperação das mulheres em quase
70% do total de funcionários encarregados do ensino. Particularmente em São Paulo
há uma crise de homens no magistério público. [...] Formaram-se, em 1881, nove
homens e uma mulher, em 1882, nove mulheres e onze homens. [...] Daí por diante,
desde 1888, o número de senhoras formandas normalistas foi gradativamente
102
crescendo, a ponto de nos últimos dez anos ser quase o triplo. (LOURENÇO
FILHO, 1921, p.51).
A crescente proliferação feminina no espaço escolar vinha acontecendo em diversas
localidades do país. Em Sabará, as escolas primárias já denotavam esse movimento das
mulheres para o magistério. Rocha (2008) em recente pesquisa sobre a Reforma João Pinheiro
nas Práticas Escolares do Grupo Escolar Paula Rocha em Sabará, constata que em 1907 havia
apenas um professor no corpo docente dessa escola enquanto que, em 1908, esse corpo
docente passou a ser, majoritariamente feminino. De acordo com essa pesquisadora,
A quase totalidade do corpo docente do GEPR foi constituída, desde a sua época de
fundação, por mulheres. Na inauguração do grupo em 1907, o corpo docente era
composto pela professora Maria José dos Santos Cintra (que fica no cargo até
1919). Em 1908 o corpo docente passa por sete mulheres e dois homens, sendo um
deles o professor Francisco Antunes de Siqueira que era o diretor e também
lecionava em uma classe [...] (ROCHA, 2008, p. 96).
As lembranças do Dr. Hélio e D.Vênica confirmam a inserção majoritária das
mulheres, confirmada pela data de inserção no Grupo, 1921 e 1927 respectivamente. Sobre
isso disse o senhor Hélio: Homem não dava aula, era só as mulheres, eram só as mestras.
Dona Maria Laura (Lalá), assim como Mestra Ritinha compartilharam essa transição do
êxodo masculino e da crescente inserção das mulheres no espaço escolar. Eu me lembro de ter
tido uns poucos colegas na escola normal delfim Moreira, eram uns gatos pingados.(Maria
Laura).
De acordo com nota de divulgação dos formandos da Escola Normal Delfim Moreira -
naqueles tempos, única na cidade – registrado pela imprensa sabarense do início do século
XX, nota-se que o maior número de mulheres é significativamente maior que o de homens,
indiciando a opção das mulheres pela inserção no magistério, conforme o que afirmou D.
Lalá. Uma pequena nota publicada no periódico, O Sabará22
, de 1912, informa sobre a
promoção dos alunos da Escola Normal Delfim Moreira:
“Foram promovidos em todas as matérias do 1º anno os alunnos Pedro Paulo
Gomes Baptista, Raymunda Ferreira Coutinho, Maria Marieta de Viterbo,
Hermengarda de Lima Rosa, Maria Josephina Pereira da Silva, Palmira Ronestin,
Leonia Dollabela Alves, Loyda Dollabela Alves da Silva, Mello, Augusta de Lima,
Ruth de Mello, Hermengarda de Lima Rosa, Antônia Ferreira de Almeida, Maria
Josephina Pereira da Silva, Judith de Paula Rocha, Genny de Paula Rocha, Ruth
Pinto, Edith de Assis Costa, Dulcina Augusta Guimarães, Else Alda do
22
(O Sabará. Anno I. Sabará, 31 de março de 1912. N.13).
103
Nascimento, Rosalina Alves Nogueira, Eulina Martins, Zoraida Ferreira, Jenny de
Assis Pereira, Carmem Sepúlveda, Ida Baptista dos Santos.
2º anno
Malvina de Carvalho, Marieta de Souza Cintra, Zahira Baptista Cintra e
Cristovam de Miranda Lima.
3º anno
Maria Aline de Azeredo Lopes, Anna de Magalhães, Eliza Hermount Goulart, Anna
da Silveira e Carmem Rocha.
De um total de 22 mulheres e um homem, no 1º ano, tem-se cinco mulheres e nenhum
homem ao final do curso normal.
Figura 24 – Periódico sabarense em circulação no início do século XX
Fonte: arquivo da Biblioteca Municipal de Sabará.
A ocupação do magistério primário pelas mulheres também ia acontecendo em outras
localidades, assim como na capital mineira, conforme aponta Faria Filho (1996) “... em Belo
Horizonte, a escola primária era local quase que exclusivo de mulheres” (FARIA FILHO,
1996, p.107 e 108).
A feminização do magistério primário no início do século XX coincide, segundo
Muller (1999) com a tarefa de construir a nação brasileira. Uma missão que, parte da
sociedade brasileira representada por políticos e intelectuais brasileiros, destinaram à escola e
a professora primária a tarefa de concretizá-la institucional e sistematicamente.
104
4 CONCLUSÃO
Dirás o que puderes lembrar. Trabalho com fragmentos de episódios, restos de
acontecimentos, e tiro disso tudo uma história, tecida num desenho providencial.
Quando me salvaste, tu me deste o pouco futuro que me resta e te recompensarei,
devolvendo a ti o passado que perdeste.
Mas minha história talvez não faça nenhum sentido...
Não existem histórias sem sentido. Sou um daqueles homens que o sabem encontrar
até mesmo onde os outros não o vêem. Depois disso a história se transforma no
livro dos vivos, como uma trombeta poderosa, que ressuscita do sepulcro aqueles
que há séculos não passavam de pó... Para isso, todavia, precisamos de tempo,
sendo realmente necessário considerar os acontecimentos, combiná-los, descobrir-
lhes os nexos, mesmo aqueles menos visíveis...
Umberto Eco
A inserção feminina no espaço público e social foi por longas datas, ditada por
interesses políticos e pautada na hierarquização da oposição da diferenciação dos sexos. Uma
oposição que, a priori, prescreveu o recinto do lar e as tarefas domésticas às mulheres,
enquanto ao homem coube a regência das funções público-administrativas e a guinada dos
rumos da história.
No Brasil do período oitocentista, mudanças nos sistemas de governo e questões de
ordem política, econômica e social levaram à ampliação da escolarização, o que favoreceu a
entrada das meninas nas salas de aula, embora não garantisse a isonomia de gênero, raça e
classe social. Assim, resultante de uma concessão ditada por interesses políticos dominantes
de uma sociedade androcêntrica, o espaço social da escola também foi aberto às mulheres
professoras primárias. O ideal republicano de formar o Estado-nação arregimentou as
brasileiras brancas, não brancas e de todas as classes sociais à tarefa de tal civilizar e
moralizar a população brasileira.
A missão patriótica de construção do país posta às mulheres na transição dos séculos
XIX para o XX deflagrou a ocupação maciça das mulheres nas salas de aula das escolas
públicas, em todas as cidades e capitais do país. Paralelamente, essa ocupação também ocorria
em outros países, num movimento conhecido como feminização do magistério primário.
Mas tal ocupação não ocorreu isenta de tensionamentos. Temerosos à perda do poder e
da hierarquia social da oposição sexual, os homens prescreveram a docência às mulheres. Sem
perder de vista o controle e a vigilância sobre o sexo oposto, os homens, em sintonia com o
passado religioso revestiram a docência de caráter missionário e sacerdotal e produziram a
105
figura da mestra: abnegada, símbolo de virtude moral, à imagem da virgem santa puras,
assexuadas e mães espirituais.
A modernização que adentrou o século XX repercutiu na educação de modo a laicizar
o ensino. Embora subordinadas à autoridade do estado, a Igreja não perdeu a tutela sobre as
mulheres. Em nome da manutenção e da ordem familiar, e preocupada com questões da
sexualidade feminina trazidas com os arroubos da modernidade, a Igreja continuou a
prescrever condutas de boa-moça às professoras primárias. Se o objetivo de educar era
moralizar e inculcar valores mais que instruir, as mulheres precisavam ser moralizadas e
gozar de bons atributos pessoais, ético e moral, essenciais ao ofício docente.
Assim, como clérigas-leigas, controladas por dispositivos e regulamentos na vida
pessoal e profissional, as mulheres deveriam apresentar um comportamento social acima do
comum, que modelaria a figura da professora: gestos, atitudes, desejos, falas, conhecimentos,
vestimenta, dentre outros predicativos. Qualidades pessoais e competências profissionais
passavam pelo autocontrole, pela vigilância e punição de diretores, inspetores e pela própria
sociedade. Controles e exigências favoráveis ao bom desempenho do papel de ensinar,
civilizar, inculcar valores e formar crianças e jovens. Esse era o perfil da professora modelo.
Ainda que tenha sido produzido um modelo ético e estético para o ofício docente
feminino, devemos considerar as diferenças de cada sujeito na relação com o meio social, nas
formas de apropriar da realidade em que está inserido, ressignificá-la e, como via de mão-
dupla, responder a ela. Ocupando lugares e posições sociais distintas e por vezes
hierarquizadas, as mulheres que enveredaram pelas trilhas da profissão docente responderam
às prescrições do magistério primário. Nos seus modos de ser e de exercer a prática docente
podem estar contidas as respostas do sentido desse ofício, seja pela mera aceitação e
legitimação das representações construídas e atribuídas à professora e/ou pelas vias da
transgressão.
Múltiplas e variadas, algumas dessas práticas docentes incorporadas e ressignificadas
transcenderam diferenças e se fixaram, seja por interesse político de grupos hegemônicos e
dominantes, seja porque consideradas condizentes e adequadas pelas redes de pertencimento
social do grupo. De uma forma ou de outra, essas práticas legitimaram as representações
produzidas, da mesma forma que as produziram e tiveram mais força para se impor e fixar
como verdadeiras e modelares.
Sem desconsiderar as diferenças e as subjetividades alheias, entendemos que a prática
docente incorporada e ressignificada por um sujeito no singular, no caso uma professora,
possa referenciar a conduta profissional e pessoal de tantos outros sujeitos. Muitos indivíduos,
106
assim com Mestra Ritinha, serviram à ideologização da função docente e foram destacados e
apresentados como figuras icônicas atravessadas pela idéia de louvação, da gratidão, da figura
exemplar, símbolo da idoneidade moral, representantes da instituição social totalizante e
duradoura, figura modelo, exemplo de ordem social e conduta a ser seguida.
Entretanto, fugindo à lógica da produção de uma memória laudatória sobre a Mestra e
sem fugir ao escopo desta pesquisa que interroga a memória produzida sobre ela para analisar
as representações da professora primária. Neste trabalho a singularidade da Mestra Ritinha foi
focada sob a perspectiva de Veyne, como representante de sua categoria profissional, de seu
grupo social. Seu modo particular de ser e de exercer a docência primária, informam sobre as
representações sociais gestadas no período republicano e engessadas na memória social, que
conforme nos lembra Rabello (2007) chega a imbricar gênero e docência de tal maneira a
prescrever a sala de aula às mulheres. Tal qual, supomos ter acontecido com Mestra Ritinha,
outras professoras sabarenses e outras tantas mulheres, por prescrição ou predileção,
enveredaram pela profissão docente, especificamente, pelo magistério.
É sob essa lógica que reflito sobre a visibilidade social alcançada por Mestra Ritinha,
notabilizada por seus superiores pela competência à nobillissima missão da docência,
destacada na Placa de rua de sua cidade como exemplo a ser seguido pelas professoras
sabarenses e referenciada, por unanimidade, pelas memórias que guardam e contam sua
história. A história de uma professora modelo, exemplo à ser seguido, prescrito e engessado
no imaginário social.
A construção da história pessoal e profissional de Rita Cassiana Martins Pereira,
referenciada por Mestra Ritinha tomou conta do diálogo e das palavras daqueles cidadãos
sabarenses entrevistados, que guardam e conservam na memória individual e afetiva a
imagem da Mestra e da professora ideal. Consagrada como personagem da história da
educação de Sabará, ela simboliza no imaginário social da sociedade sabarense, o protótipo da
professora modelo, e aquilata as representações sociais construídas para a professora primária:
esforçada, zelosa, assídua, erudita, inteligente, carinhosa, amorosa por vezes enérgica,
disciplinadora, respeitosa, sopro de genialidade, meiga, recatada, pessoa de garra, fibra,
competente, exímia mestra, ícone da cultura, dedicada, sóbria, sensata, dinâmica,
organizada, bondosa, abnegada, ensino bom accessível à infância, faz a tríplice educação
pelo seu suave temperamento e ao que sugere pouco questionadora, foram alguns dos
predicativos presentes nos documentos e nas narrativas mnemônicas dos sujeitos
entrevistados que se dispuseram a evocar suas lembranças sobre a Mestra.
107
Predicativos que informam sobre a sua capacidade enquanto mulher e professora
mulata contrariando a imagem feminina cultivada até o século XIX como ser frágil, dotada de
pouca capacidade intelectual. Apesar das ambigüidades postas no início do século XX para as
mulheres, Mestra Ritinha foi mãe espiritual, professora e diretora, dirigente e dirigida;
predicativos que possivelmente a embranqueceram e hipoteticamente justificam uma das
representações presente nas lembranças de um dos entrevistados e quem sabe de muitos
outros sabarenses, que a viam como negra de alma branca; predicativos que possivelmente
lhe credenciaram o magistério e a função administrativa do grupo escolar, uma vez que seu
biótipo fugia às representações europeizantes produzidas para a professora primária,
sobretudo a partir da segunda década do século XX, quiça para o cargo de diretora de escola.
Predicativos que para além da sociedade eram dados à sua própria leitura e que
supostamente respondiam pela negação de seu pertencimento racial e pela sua auto-imagem
embranquecida; predicativos que respondem pela sua inserção nos espaços sociais do branco
como a congregação religiosa da Irmandade do Carmo, do imigrante europeu como o Clube
Cravo Vermelho que homenageia a Mestra, ao registrar seu nome na sua secretaria deste
espaço social; predicativos que estão ocultos na materialidade das placas que penduram seu
nome, assim como a placa de endereçamento e a placa em homenagem ao centenário da
abolição, mas que se conservam vívidos nas lembranças de quem conheceu dona Ritinha,
compartilhou da construção de sua memória e transmitiu-a para outros sujeitos e gerações que
hoje, corroboram nesta pesquisa ajudando a tecer os fios soltos de sua história pessoal e
profissional.
Por meio da Placa foi possível suscitar as lembranças de sujeitos e gerações, com suas
marcas e utopias. Nesse movimento, foi possível apreender diferentes memórias construídas e
representadas sobre a Mestra. Na tessitura da história de Ritinha contada pelas memórias de
seus conterrâneos e alinhavada aos documentos amarelados pelo tempo, as qualidades
presentes na memória oficial e na memória social concorrem para a produção da professora
ideal e de um modelo de docência no ensino primário. Trata-se de representações sobre a
Mestra enquanto membro do corpo docente e diretora do primeiro Grupo Escolar da cidade de
Sabará e o terceiro do Estado, a partir da reforma Francisco Campos e o que era esperado da
professora primária naquele início do século XX.
Para além da memória dos mortos, das marcas de alguém que já viveu uma época, o que
entrevimos nesta pesquisa e que como num jogo caleidoscópico aparece uma face enquanto
oculta outra, mais que o destaque ao nome da Mestra é a necessidade de não deixar cair no
esquecimento alguns dos elementos e das representações que simbolicamente marcaram a
108
docência. Assim, a lembrança da Mestra Ritinha pendurada numa placa de rua produzida e
preservada pela memória oficial e presente na memória social do seu grupo de pertencimento
social guarda as representações do modelo idealizado da professora primária produzido pela
sociedade do início do século XX. Uma memória apartada no tempo e materializada num
lugar de memória.
Os elementos coletados nesta pesquisa mostraram que a memória social sofre um
deslocamento dos sujeitos para os objetos. A memória aflora de diferentes formas e à mercê
da subjetividade de cada individuo. Nas memórias recolhidas sobre a Mestra e nas
rememorações das mulheres dessa pesquisa, todas ex-professoras, percebemos a força dos
elementos representativos da mulher professora primária. Os anciãos, por exemplo,
convidados a evocar lembranças sobre a velha conhecida Ritinha se prendiam ao casarão em
que ela residiu, ao forro que ficava sobre a mesa da sala de sua casa, ao anel de formatura que
ela usava no dedo indicador, às suas vestimentas de Cahsmire, as aspectos físicos da escola
em que ela lecionou, se fez Mestra e professora e em tantos outros detalhes.
As análises dessas entrevistadas possibilitou a identificação das representações da
docência primária feminina e das diferentes formas de elaboração e de manifestação da
memória. Os resultados obtidos indiciam formas diferenciadas de elaboração da memória
social, como tais memórias produzem uma hierarquização de valores e idéias sobre a
docência. Os discursos produzidos sobre a memória de Mestra Ritinha apontam para uma
legitimação da fala através de diferentes posições sociais, valores e imaginário da sociedade.
Creio que por sua competência profissional e qualidades pessoais o nome da Mestra
Ritinha foi registrado numa placa de endereçamento da histórica Sabará, para ser resguardada
da invisibilidade, do esquecimento e para referenciar condutas das sabarenses que tendo sua
trajetória profissional prescrita para o magistério primário ou, que seja pela via da predileção
possam minimamente lembrar-se de como ser uma boa professora. Será que a Mestra ainda
referencia a professora nos seus modos de ser e de exercer o magistério primário? O que, em
tempos atuais significa ser professora modelo? Quais são as exigências para o exercício da
docência primária? O magistério continua a ser prescrito ou preterido? O que dessas
representações produzidas perdura e o que foi transformado? Como a imagem feminina da
professora primária tem sido ressignificada na atualidade? Enfim, o que significa ser
professora nos tempos atuais?
109
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115
APÊNDICES
Roteiro Dirigido –
Dados de identificação: (nome, idade, religião, pertencimento étnico-racial, profissão...)
Informações sobre a Pesquisa:
O objetivo da investigação é compreender as características da docência no ensino primário,
em Sabará, nas primeiras décadas do século XX. Para tanto, buscamos conhecer e analisar a
memória produzida sobre Mestra Ritinha, professora que ganhou destaque na sociedade
sabarense e que tem seu nome destacado numa das ruas dessa cidade.
1. A senhora produziu um importante e único estudo sobre as Ruas de Sabará. Por meio
desse trabalho acessou informações sobre Mestra Ritinha. O que motivou a senhora a
escrever sobre as Ruas de Sabará?
2. O que a senhora sabe a respeito da história dessa professora?
3. Por que a Mestra foi homenageada numa placa de endereçamento dessa cidade?
4. Como e qual situação a senhora tomou conhecimento da memória dessa professora?
5. Ao escrever sobre as Ruas de Sabará, que informações a senhora conseguiu levantar
sobre a Rua Mestra Ritinha? À quais fontes a senhora recorreu?
6. O que a senhora conseguiu extrair dessas fontes para nos informar sobre a trajetória da
Mestra Ritinha, nos seguintes aspectos:
Conduta profissional;
Características físicas;
Composição familiar;
Formação cultural;
Atuação no campo docente.
7. Em sua opinião, por que em meio á tantas professoras, somente Mestra Ritinha foi
lembrada?
8. Por que razão a Mestra se destacou na comunidade docente de sua época?
9. Ao escrever seu livro, a senhora encontrou referências a outras mestras sabarenses?
10. A senhora tem conhecimentos de outras homenagens prestadas à Mestra, além da Rua
que destaca o nome dela?
11. Em que espaços e situações a senhora ouviu falar sobre a Mestra?
12. Em que época a Rua Mestra Ritinha ganhou essa denominação? Quem foi o
responsável por essa iniciativa?
13. Na sua visão como Mestra Ritinha é representada na cidade?
14. Sinta-se à vontade caso queira acrescentar outras informações que julgar necessárias,
sobre a Mestra e as representações da professora primária e do magistério, em Sabará.
Pode ser informações pessoais ou lembranças de outros sujeitos e situações
relacionadas à docência sabarense.
116
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Pró-Reitoria de Pesquisa e de Pós-graduação
Comitê de Ética em Pesquisa - CEP Av. Dom José Gaspar, 500 - Fone: 3319-4517 - Fax: 3319-4517
CEP 30535.610 - Belo Horizonte - Minas Gerais - Brasil
E-mail: cep.proppg@pucminas.br
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Pesquisa: Do concreto ao invisível: a memória de Mestra Ritinha (1907-1934)
Pesquisador responsável: Janaína Aparecida Guerra (mestranda)
janaina.guerra@ig.com.br
(31)3674-1699 – 97021699
Orientadora da pesquisa: Profª. Drª. Maria do Carmo Xavier
Este estudo intenta compreender a docência primária, em Sabará, no início do século
XX, a partir das representações sociais construídas sobre a memória de Mestra Ritinha. A
identificação e a análise de fontes documentais, iconográficas e orais serão de suma
importância para a construção dessa memória. Portanto, recordações, lugares, pessoas,
objetos, documentos, fotos e outros elementos pertinentes às fontes citadas, irão compor o
mosaico histórico dessa pesquisa de memória docente.
Por isso, você está sendo convidado (a) para participar desse estudo, voluntariamente,
colaborando com as recordações oriundas do seu contato direto com a Mestra Ritinha ou
indireto, obtido do conhecimento do que as pessoas diziam dela. Suas recordações serão
gravadas em áudio e vídeo, por meio de uma entrevista, a qual será previamente marcada e
realizada em dia e local de encontro à sua disponibilidade. Você não terá nenhum ônus,
tampouco, receberá qualquer pagamento, se decidir participar e colaborar nessa pesquisa. Se
você tiver dúvidas ou questionamentos, deverá externá-los, para que possam ser esclarecidos.
Caso não queira ser identificado (a), sua identidade será preservada e mantida em sigilo,
utilizando-se um codinome; do contrário, estará autorizando sua identificação em publicações
científicas e acadêmicas, na medida em que este estudo for publicado.
117
Se desejar participar desse estudo, favor assinar este documento, em duas vias, sendo
uma delas para você e outra para o pesquisador responsável. Em caso de recusa, não haverá
qualquer penalidade; dúvidas, você poderá procurar o Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da
Pucminas, pelo telefone e endereço citados, no cabeçalho desta página. O CEP/Pucminas é
um órgão da Universidade responsável pela revisão ética inicial e continuada, co-responsável
pela realização dessa pesquisa, guarda e proteção dos seus direitos.
Todo material coletado será utilizado para fins científicos. As entrevistas serão gravadas
em áudio, transcritas em CD-ROM e posteriormente, encaminhadas ao Programa de Mestrado
em Educação da Pucminas para serem arquivadas e se constituir em fontes para futuras
pesquisas.
Profª. Drª. Maria do Carmo Xavier
Orientadora da pesquisa
Janaína Aparecida Guerra
Pesquisadora responsável
Entrevistado (a)
Eu, _______________________________________ opto pelo sigilo de minha identidade.
Eu, _______________________________________autorizo a revelação de minha identidade.
Belo Horizonte, de de 2010.
118
Eu, declaro lido e
esclarecido este documento e confirmo minha participação nesta pesquisa, para a qual fui
convidado (a) a dar minha contribuição. Confirmo também, o recebimento de uma cópia deste
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Portanto, dou meu consentimento atestando minha livre e espontânea participação neste
estudo.
Participante convidado (a) – (nome legível)
(assinatura do participante)
Data
Eu, enquanto
pesquisadora responsável por esse estudo e por essa entrevista, agradeço sua colaboração e
a confiança a mim dedicados.
Nome e assinatura do pesquisador (a)
Data
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