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MINERAÇÃO E APROPRIAÇÃO DA TERRA EM MOÇAMBIQUE:
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O PROCESSO DE EXPROPRIAÇÃO DAS
COMUNIDADES LOCAIS
Vanito Viriato Marcelino Frei
Doutorando em Geografia IESA/UFG1
Docente de Geografia na Universidade Pedagógica, Nampula-Moçambique
vanitofrei@yahoo.com.br
Eguimar Felício Chaveiro
Professor Associado IESA/UFG
eguimar@hotmail.com
Ernesto Jorge Macaringue
Doutorando em Geografia IESA/UFG
Docente na ESHT/UEM2, Inhambane-Moçambique
jorgitomapilele@gmail.com
RESUMO
Em Moçambique a atividade mineradora remonta ao período pré-colonial e desde então,
a economia do país foi sempre caracterizada pela exploração de elementos da base
natural transformados em recursos pela ação humana. Ao lado da agricultura, a
atividade mineradora foi decisiva para a fixação dos primeiros povos de origem Bantu
na região e, mais tarde, para o desenvolvimento comercial dos primeiros impérios e,
posteriormente, pela fixação dos portugueses e o início do processo de colonização.
Mais recentemente, a cobiça e o desejo dos megaprojetos de mineração em lapidar as
riquezas minerais do país são responsáveis pela entrada no território moçambicano do
capital multinacional, constituindo, desse modo, um fator importante de expropriação
das comunidades locais. Daí que, é nosso objetivo nesse trabalho analisar as formas e os
mecanismos de apropriação da terra em Moçambique, bem assim os processos de
expropriação das comunidades locais em resultado da entrada em funcionamento dos
megaprojetos de mineração. O trabalho é fruto de pesquisa bibliográfica e documental, e
seus resultados apontam que de fato em função da presença dos megaprojetos de
mineração em Moçambique, as comunidades locais estão perdendo a posse de suas
terras e com elas, a reprodução de seus modos de vida em favor da mais-valia que
norteia o modo capitalista de produção.
Palavras-chave: Megaprojetos de mineração. Apropriação e expropriação.
Comunidades locais/Moçambique.
1 Instituto de Estudos Socioambientais/Universidade Federal de Goiás. 2 Escola Superior de Hotelaria e Turismo/Universidade Eduardo Mondlane.
INTRODUÇÃO
O desenvolvimento da atividade mineradora não só em Moçambique como no
continente africano de modo geral, é desde muito um fator importante de disputas pelo
território. Considerados por Raffestin (1993) como um dos trunfos do poder, a posse e
controle de territórios com relativa riqueza em recursos minerais foi sempre
preocupação de algumas sociedades. No caso de Moçambique, a exploração e controle
dos recursos minerais constitui(u) desde sempre, uma lógica importante de acumulação
que no bojo do espelho, a imagem correspondente está associada a expropriação das
comunidades locais das suas terras por onde se perpetuam as linhagens3 e se sacralizam
as relações sociais.
Caracterizado por uma economia essencialmente extrativa conforme aponta
Castelo-Branco (2010) o país está determinado, por meio de concessões, em facilitar a
extração e exportação de suas riquezas naturais o mais rapidamente possível, supondo
que essa exploração irá contribuir positivamente para o crescimento econômico e
redução da pobreza no país. De fato, a riqueza mineral de Moçambique tem sido mais
recentemente explorada pelos megaprojetos de mineração e, em grande parte, como
matéria-prima para exportação.
A despeito disso, o processo de apropriação dos territórios de mineração em
Moçambique e consequente expropriação das comunidades locais se afigura enquanto
lógica da reestruturação produtiva e da reprodução ampliada do capital como duas faces
da mesma moeda. Por um lado, o capital (re)organiza os territórios locais para deles se
apropriar afim de alentarem às demandas do desenvolvimento capitalista. Por outro
lado, esse processo de apropriação enquanto condição fundamental para a obtenção da
mais-valia, para além de expropriar as comunidades, ao mesmo tempo, intensifica os
conflitos sobre posse e segurança de terra e demais recursos no meio rural
moçambicano, que para a maioria das populações significam a base de sua reprodução
social e (i)material. Portanto, é nosso objetivo com o presente estudo, analisar as formas
3 Designa-se por linhangem, um grupo de parentes que descendem de um antepassado comum através de
uma filiação materna ou paterna. Esta unidade completa-se com os parentes que entram por casamento e
que constituem elementos indispensáveis para a produção e reprodução biológica (DEPARTAMENTO
DE HISTÓRIA-UEM, 1988, p. 16).
e os mecanismos pelos quais se dá a apropriação da terra pelo capital multinacional em
Moçambique e consequentemente a expropriação das comunidades.
ASPECTOS METODOLÓGICOS
O estudo utilizou-se das pesquisas bibliográfica e documental bem como o
recurso à observação, que foram importantes não só para a reflexão teórica do objeto de
pesquisa como também para a apreensão da realidade empírica dos sujeitos pesquisados.
A evidência dos resultados apresentados se baseia em depoimentos obtidos por meio de
entrevistas feitas no decurso do trabalho de campo em Moçambique entre 2014 e 2015
às comunidades reassentadas pelas empresas Kenmare Moma Mining em Topuito,
distrito de Larde, e pela Vale Moçambique no distrito de Nacala-a-Velha, província de
Nampula, respectivamente.
O embasamento teórico-metodológico construído considera o território na sua
dimensão de totalidade. Ou seja, privilegiou-se um exercício de reflexão teórica que
permitisse a análise histórico-dialética das relações sociais, mais especificamente das
relações de poder e de conflito que envolvem as estratégias geopolíticas de apropriação
dos territórios de mineração e consequente expropriação das comunidades em
Moçambique; a partir da compreensão de que o tempo está no território e este, por sua
vez, no tempo (SAQUET, 2007).
APROPRIAÇÃO E EXPROPRIAÇÃO: BREVE ENQUADRAMENTO
TEÓRICO
Embora seja um conceito central à geografia, o território e demais processos
territoriais (apropriação e expropriação entre outros) por terem haver com a
espacialidade humana, conforme refere Haesbaert (2004, p. 89) "têm certa tradição,
também, em outras áreas, cada uma com enfoque centrado em uma determinada
perspectiva"; resultando daí o caráter polissêmico que comumente se atribui ao território
quer como uma realidade efetivamente existente, de caráter ontológico, quer como um
instrumento de análise, no sentido epistemológico.
No quadro da análise geográfica, sobretudo dentro da geografia humana, embora
não exista um consenso teórico sobre o conceito de território, nos parece que a
perspectiva relacional da abordagem territorial é a que mais apoio encontra ao
considerar o conceito de território como envolvendo, ao mesmo tempo, a dimensão
espacial material das relações sociais e o conjunto das representações simbólico-
culturais sobre o espaço (HAESBAERT, 2009), mediadas, sobretudo pela construção de
relações social-históricas. Ou seja, o território enquanto fundamentalmente um espaço
definido e delimitado por e a partir de relações de poder (RAFFESTIN, 1993; SOUZA,
1995, 2013). Trata-se do espaço geográfico entendido como aquele espaço que é
apropriado e utilizado pelo homem, ou seja, do território usado (SANTOS, 2002).
Portanto, é a partir do exercício das relações de poder e a projeção dessas
relações no espaço que se desenvolvem os processos de apropriação e expropriação que,
por sua vez, vão dar lugar aos processos de territorialização e desterritorialização, ou
seja, a formação e perda de territórios. Assim, os processos territoriais se definem
conjugando processos mais concreto-funcionais ― em que predominam dinâmicas de
dominação, e simbólico-identitárias ― mais evidentes em processos ditos de
apropriação. A esse respeito, Claude Raffestin aponta que,
Ao se apropriar de um espaço, concreta ou abstratamente (por
exemplo, pela representação), o ator "territorializa o espaço". [...]
produzir uma representação do espaço já é uma apropriação, uma
empresa, um controle, portanto, mesmo que isso permaneça nos
limites de um conhecimento (RAFFESTIN, 1993, p. 143-144, grifos
do autor).
Desse modo, Raffestin entende que qualquer projeto no espaço que é expresso
por uma representação revela a imagem desejada de um território, de um local de
relações, sendo que todo projeto é sustentado por um conhecimento, uma prática, ou
seja, por ações e/ou comportamentos que supõem a posse de códigos, de sistemas
sêmicos que, por sua vez, correspondem às relações sociais, por meio das quais se
realizam as objetivações do espaço.
Em Lefebvre (2006) os processos de dominação e apropriação aparecem como o
resultado da mediatização do "espaço natural" por uma técnica e uma prática, ou então,
para utilizar os termos de Milton Santos pelo meio técnico-científico-informacional.
Assim, Lefebvre entende que a dominação se torna completamente dominante pela
tecnicidade, aumentando com o papel do Estado e do poder político. Contudo, conforme
aponta o autor, o conceito de dominação só encontra seu sentido quando o mesmo se
apõe dialeticamente ao conceito de apropriação.
Dentro da lógica capitalista de produção do espaço, o território enquanto relação
de dominação e apropriação do híbrido sociedade-espaço possui uma associação que vai
desde a dominação político-econômica mais concreta e funcional à apropriação mais
subjetiva e/ou cultural-simbólica (HAESBAERT, 2010). As motivações que levam à
intenção de territorializar o espaço estão, portanto, de algum modo, associadas aos usos
do substrato espacial material (o território enquanto realidade efetivamente existente) e
aos significados simbólicos das formas espaciais existentes.
Sobre a expropriação, provavelmente Marx tenha sido o primeiro grande teórico
que deu uma ênfase clara à fundamentação econômica desse processo associado ao
desenvolvimento global do capitalismo. Entendendo-o como o processo que deu origem
a acumulação primitiva e do capital separando produtor e meios de produção (MARX,
2000), a expropriação se refere atualmente a uma dinâmica de exclusão social e de
grupos subordinados ou precariamente incluídos na dinâmica globalizadora ou da lógica
de acumulação flexível para usar os termos de David Harvey. Esse processo se dá
conforme aponta o próprio Harvey (2004, 2008) pela acumulação por espoliação
materializada pela apropriação da terra bem como pela concentração fundiária e os
processos de privatização, resultando, na outra face da moeda, os processos de
expropriação de terras em posse das comunidades e seu consequente despojamento.
MINERAÇÃO, APROPRIAÇÃO E EXPROPRIAÇÃO DA TERRA EM
MOÇAMBIQUE: OS TRAUMAS DE UM PROCESSO
Moçambique foi um dos primeiros territórios a ser colonizado por um país
europeu, no caso Portugal e um dos últimos a ganhar sua independência política em
1975. Considera-se que a exploração de minérios no país (ouro, pedras preciosas entre
outros) remonta ao período pré-colonial. Ao lado da agricultura, a atividade mineira em
Moçambique foi decisiva para a fixação dos primeiros povos de origem Bantu4 na
4 A palavra Bantu tem uma conotação exclusivamente linguística e surgiu para assinalar o grande
parentesco de cerca de 300 línguas, as quais utilizam esse vocábulo para designar os homens. Não existe,
pois, uma “raça Bantu”.
região e, mais tarde, para a prosperidade comercial dos primeiros impérios e,
posteriormente, pela fixação dos portugueses e o início do processo de colonização. De
fato, a história da formação das primeiras sociedades em África e em território
moçambicano foi assim particularmente influenciada pela riqueza mineral, que constitui
um dos principais fatores de atração que o continente e o país sempre exerceram sobre
os povos conquistadores.
Provavelmente o evento mais importante da história pré-colonial de
Moçambique terá sido a fixação nesta região entre 200/300 d.C dos povos Bantu que
não só eram guerreiros e agricultores, como também introduziram a metalurgia do ferro
no território, entre os séculos I a IV (DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA-UEM, 1988;
GOVERNO DE MOÇAMBIQUE, 2015). Estes povos, pela primeira vez, na história
pré-colonial de Moçambique forçaram a fuga dos povos primitivos para as regiões
longínquas e de difícil acesso da região, pobres em recursos e ao mesmo tempo
impróprias para a prática da agricultura. As novas sociedades assim criadas povoaram
gradualmente as bacias fluviais costeiras e, quase ao mesmo tempo, as costas e os
planaltos do interior.
Posteriormente, o estabelecimento de relações comerciais entre os povos árabes e
os povos africanos entre os séculos IX e XIII constituiu, também, um marco importante
do período pré-colonial de Moçambique. É, assim, que o território moçambicano foi,
durante muito tempo, frequentado por vários povos, provenientes da região do Golfo
Pérsico, que procurando o sucesso comercial acabaram por aí se estabelecer
definitivamente, primeiro como mercadores de ouro, depois de marfim e mais tarde de
escravos. A presença destes povos em território moçambicano propiciou, não só o
desenvolvimento da atividade comercial na região, como também a prosperidade
econômica de reinos e impérios então existentes. Do mesmo modo, o nascimento em
Moçambique das primeiras aglomerações humanas com características urbanas bem
como a introdução e expansão do islã estão de certo modo, associadas à presença árabo-
swahili na região.
Entre os séculos XV e XVI as explorações de minerais, com valor comercial em
território moçambicano, passaram a ser realizadas pelo Império de Monomutapa que
comercializava o ouro com comerciantes europeus e árabes em troca de armamento e
especiarias, a partir de minas localizadas principalmente nas províncias de Manica e
Tete, na região centro do país (FREI, CHAVEIRO, 2015). Entretanto, para a maioria da
população o trabalho nas minas aparecia muita das vezes, como uma imposição do
“exterior” (da aristocracia dominante ou dos comerciantes estrangeiros), sendo
integrado geralmente como atividade sazonal na atividade produtiva normal (HEDGES,
1999). Em algumas regiões do Império, o trabalho de mineração ocupava, apenas, uma
pequena parte do ano. Porém, com o correr do tempo, a penetração árabo-swahili e
portuguesa trouxe novas necessidades (nomeadamente em bens de prestígio), que
voluntária ou coercivamente, levavam as populações das comunidades a praticarem a
mineração do ouro em escala considerável, bem como a sua comercialização. Cada uma
das comunidades aldeãs tinha a obrigação de prestar ao Império de Monomutapa sete
dias de trabalho mensais. Era ao nível desta renda em trabalho que se exercia a
exploração das comunidades, para além do pagamento de tributo.
A partir de meados do século XV, precisamente por volta de 1453 registra-se em
Moçambique, o início da penetração mercantil portuguesa (FERRÃO, 2002), motivada
inicialmente pela demanda de ouro destinado à aquisição das especiarias asiáticas e,
mais tarde pelo crescimento econômico da metrópole (Portugal). Esse período da
penetração mercantil portuguesa em Moçambique representou no quadro da divisão
internacional do trabalho e do comércio mundial, o início do processo de acumulação
primitiva do capital em território moçambicano e consequentemente o prelúdio dos
processos violentos de expropriação de terras das comunidades nativas. A atividade
produtiva nas minas a qual, antes da penetração portuguesa se fazia normalmente nas
épocas mortas, fora do plantio e das colheitas agrícolas, passou a efetuar-se, também,
nos períodos produtivos agrícolas. Este fato, aliado ao regime de trabalho compulsório e
de pagamento de impostos obrigatórios, provocou a fuga de comunidades inteiras,
particularmente nas áreas mineradoras mais trabalhadas, e a transformação forçada da
economia rural camponesa em economia virada para o mercado.
Com a independência do país em 1975, o partido Frelimo (Frente de Libertação de
Moçambique) que há mais de 40 anos governa os destinos dos moçambicanos, definiu
como preocupação fundamental para o desenvolvimento de Moçambique a planificação
socialista da economia tendo se transformado num governo de orientação marxista-
leninista. Com essa nova forma de organização e gestão do território que culminou com
o processo de nacionalização da terra, os camponeses tinham expectativas de ocupar as
terras não utilizadas pelas grandes explorações agrícolas e mineradoras capitalistas dos
colonos, mas estas foram transformadas em empresas estatais alargando a semi-
ploretarização e a debilidade das condições de produção e de vida das famílias
camponesas. Na história de Moçambique, efetivava-se, assim, a terceira fase de
expropriação das comunidades, desta vez, engendrada por um novo ator: o Estado
recém constituído. Lembrando que a primeira corresponde à fase pré-colonial, a
segunda a da acumulação primitiva do capital durante o período colonial.
EXPROPRIAÇÃO NO CONTEXTO DA TERRITORIALIZAÇÃO E
ACUMULAÇÃO DO CAPITAL EM MOÇAMBIQUE
Volvido o processo de colonização e conquistada a independência política, e
antes mesmo que os moçambicanos consolidassem as conquistas e a euforia da
libertação da pátria, o país foi abalado pela guerra civil entre 1976 a 1992, ao mesmo
tempo em que foi assolado por fenômenos naturais extremos (secas, cheias e ciclones).
Combinados com a guerra civil, estes fenômenos foram gradativamente fragilizando as
instituições do Estado e os programas de desenvolvimento que já tinham sido
planificados para o país.
No encalço desse processo, a solução à crise proposta veio por meio da adoção
de programas de ajustamento estrutural que significou a consolidação do chamado
Consenso de Washington, com forte influência do Fundo Monetário Internacional e do
Banco Mundial (CHAVAGNE, 2006). Para conceder "ajuda" à Moçambique, essas
instituições exigiram a necessidade urgente de um processo de transformação do país da
economia planificada para uma economia de mercado e com ela a entrada do
investimento direto estrangeiro. Desse modo, foram introduzidas reformas políticas,
econômicas e sociais que tornaram possível e viável a transição do país para o
neoliberalismo, abrindo espaço para a entrada de empresas multinacionais, com
destaque para o setor da indústria extrativa de mineração.
De fato, um conjunto de empresas, como a brasileira Vale Moçambique, a
irlandesa Kenmare Moma Mining, a sul-africana SASOL, a norte-americana Anadarko
só para citar alguns exemplos, têm adquirido o direito de exploração minero-energética
no território moçambicano. Contudo, essa recente inserção de Moçambique no contexto
da produção capitalista de mercadorias está relacionada a estratégias geopolíticas de
apropriação das riquezas naturais e, por conseguinte, dos territórios de mineração do
país, fortemente influenciada por discursos positivistas de desenvolvimento e de bem-
estar social difundidos pelo Estado moçambicano.
Catsossa (2015) considera que esses discursos não passam de uma farsa, pois
ocultam o verdadeiro caráter controverso do modo de produção capitalista na medida
em que as relações que se estabelecem entre as políticas públicas e as legislações
aprovadas e em vigor no país, sempre atenderam interesses alheios às comunidades.
Protegidos pelo poder do Estado, os megaprojetos de mineração no país, contam o apoio
incondicional do governo que se articula em três níveis (nacional, provincial e
distrital/local) fundamentais para garantir o processo de despojamento das comunidades
de seus territórios. Para facilitar a deslocação involuntária das comunidades, conforme
apontam Matos e Medeiros (2013) os megaprojetos fazem várias promessas sem
destino, quase sempre, num ato deliberado de persuasão das comunidades, mas que no
final essas promessas desmanchavam-se no ar.
A materialização desses processos em Moçambique, os quais estão associados à
mundialização do capital e à crescente demanda por commodities (minerais e agrícolas),
tem significado para a maioria dos moçambicanos vivendo no campo, a expropriação
compulsória de suas terras e, com ela, a precarização de suas condições de vida e de
trabalho, suas ambições, seus sonhos. A cada dia, as comunidades são compelidas a
adotar novas formas de reinvenção em resultado das significativas mudanças que os
processos de territorialização e acumulação do capital em Moçambique têm engendrado
nos padrões de uso, posse e controle das terras comunitárias e demais recursos.
Portanto, a inserção contraditória de Moçambique nos fluxos nacionais e
internacionais de acumulação do capital enquanto imposição do Estado e da economia
internacional, conforme aponta Mendonça (2004) não transforma apenas as riquezas
naturais do país, mas também o trabalho, a cultura e os modos de vida das comunidades
onde os megaprojetos se encontram implantados. Aliás, visando garantir a reprodução
da mais-valia, uma das estratégias usadas pelos megaprojetos de mineração consiste por
um lado, na eliminação dos "sujeitos indesejados" e, por outro, na produção de enormes
"contingentes de excluídos" (BATA, 2015).
Matos e Medeiros (2013) consideram que a territorialização dos megaprojetos de
mineração e demais processos de reprodução do capital em Moçambique que se
efetivam pela acumulação por espoliação transformam os territórios em espaços
homogêneos e produtores de lucratividade. No cerne dessa lógica, as comunidades
locais são "expulsas" de suas terras e obrigadas a reconstruírem uma nova história,
cultura e identidade, por meio de processos de reassentamento compulsório em que as
comunidades são compelidas a residir em áreas outrora estranhas a sua condição de
vida, mas que agora forçosamente precisam aprender a conviver com vizinhos que não
eram, com casas que não são, com parentes que nunca foram e, acima de tudo com
velhos e novos problemas em resultado da vida em reassentamento.
De fato, os processos de reassentamento levados a cabo pelos megaprojetos de
mineração em Moçambique têm, de certo modo, piorado a qualidade de vida das
comunidades locais. Problemas envolvendo aspectos de compensações das benfeitorias
nas antigas terras, as enormes distâncias a percorrer entre os bairros de reassentamento e
as novas machambas5, as novas formas de tratamento do sagrado, o subemprego, falta
de água potável, fraca cobertura da rede hospitalar e escolar, deficiente saneamento
básico do meio, são alguns dos aspectos que caracterizam os processos de apropriação e
expropriação engendrados pelo capital multinacional em Moçambique. Diante do
exposto, podemos mesmo, sem receio, dizer que na história de Moçambique vive-se a
quarta fase de expropriação, de precarização das condições de produção, de vida e de
trabalho das comunidades, escamoteadas no âmago do capitalismo selvagem.
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