lei de bases do sistema educativo: balanço e prospetiva ... · e dever de educar. o homem é da...
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Pareceres e Recomendaes Seminrios e Colquios
Volume II
LEI DE BASES DO SISTEMA EDUCATIVO Balano e Prospetiva
Conselho Nacional de Educao Rua Florbela Espanca 1700-195 Lisboa Portugal Tel.: (+351) 217 935 245 cnedu@cnedu.pt www.cnedu.pt
Pareceres e Recomendaes
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As opinies expressas nesta publicao so da responsabilidade dos autores e no
refletem necessariamente a opinio ou orientao do Conselho Nacional de Educao.
Ttulo: Lei de Bases do Sistema Educativo: balano e prospetiva Volume II
Autor/Editor: Conselho Nacional de Educao
Direo: Jos David Justino (Presidente do Conselho Nacional de Educao)
Coordenao: Manuel Miguns (Secretrio-Geral do Conselho Nacional de Educao)
Coleo: Seminrios e Colquios
Organizao e edio: Ana Canelas; Ana Rodrigues; Carmo Gregrio; Erclia Faria;
Filomena Ramos; Isabel Pires Rodrigues; Marina Peliz; Paula Flix; Rute Perdigo;
Slvia Ferreira; Teresa Casas-Novas
Composio e montagem: Paula Flix
Capa: Teresa Cardoso Bastos //DESIGN
1 Edio: julho de 2017
Tiragem: 200 exemplares
Impresso e acabamento: Tipografia Lousanense, Lda.
ISBN: 978-989-8841-17-9 Volume II
Depsito legal: 429430/17
CNE Conselho Nacional de Educao
Rua Florbela Espanca 1700-195 Lisboa
Telefone: 217 935 245
Endereo eletrnico: cnedu@cnedu.pt
Stio: www.cnedu.pt
mailto:cnedu@cnedu.pthttp://www.cnedu.pt/
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A liberdade de ensino simultaneamente uma liberdade de ensinar e de
aprender. O direito educao um direito que decorre da
responsabilidade de educar e ser educado, isto do dever de ensinar e de
aprender, que diz respeito tanto a quem ensina como a quem ensinado.
A liberdade de ensino compreende pois o direito de acesso educao. O
direito de aceder educao, como direito de todos, aponta para a
igualdade de oportunidades, tanto de educar como de ser educado. S h
liberdade onde existem condies de leal concorrncia e condies
paritrias de escolha da educao.
A liberdade conjuga-se, assim, com a igualdade, no direito educao.
1. O direito e o dever de educar pertencem, antes de mais e em primeiro
lugar, famlia e no ao Estado. So os pais, at maioridade dos filhos,
que tm o direito e o dever prioritrio de educar os filhos, e de escolher
para eles a educao e o ensino mais consentneos com esse desgnio.
H uma prioridade da famlia, em relao ao Estado, no que toca ao direito
e dever de educar. O homem da famlia, antes de ser do Estado. sobre
os pais e sobre as famlias que recai a obrigao primeira de sustentar e de
educar os prprios filhos.
A famlia tem uma prioridade de natureza e, portanto, uma prioridade de
direitos relativamente sociedade civil. famlia cabe a responsabilidade
primeira da orientao global do processo educativo. Por isso, se justifica
a consociao dos pais s escolas frequentadas pelos seus filhos. Por isso,
se exige que os pais no se demitam da responsabilidade orientadora da
educao dos filhos, na escola, perante os meios de comunicao social,
perante os ambientes sociais dos filhos.
1 Universidade Catlica Portuguesa
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O direito da famlia de educar os filhos anterior a qualquer direito da
sociedade civil e do Estado, e , por isso, inviolvel por parte de todo e
qualquer poder poltico. O poder dos pais sobre os filhos no pode ser
suprimido nem absorvido pelo Estado.
Aos pais compete, assim, o direito e o dever primeiro da educao dos
seus filhos, a que se segue o direito de escolher a educao e a escola para
os seus filhos, princpio amplamente reconhecido.
Proclamou-o, solenemente, a Declarao Universal dos Direitos do
Homem, no seu Artigo 26. (n. 3):
Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o gnero de educao a dar
aos filhos
Proclamou-o, igualmente, e por vrias vezes, a Igreja Catlica desde a
Divini Illius Magistri de Pio XI, de 31 de dezembro de 1929, quando os
totalitarismos, quer nacionalistas quer internacionalistas, ameaavam
monopolizar a educao, at recente Exortao Amoris Laetitia do Papa
Francisco
A educao consabidamente um processo de socializao, ou seja, de
progressiva integrao e recriao social. A primeira das instituies de
socializao a famlia. Por isso se lhe chama instituio de socializao
primria, no apenas por ser primeira, cronologicamente falando, mas,
sobretudo, por ser primeira, em termos de importncia social e em termos
ticos e jurdicos. A socializao primria englobante e integral,
constituda por relaes comunitrias, sendo por isso a mais marcante ao
longo da vida.
Tal primado da misso educativa da famlia no quer dizer que o direito
educativo dos pais seja absoluto. Primazia no quer dizer unicidade. A
famlia no tem a exclusividade da educao. O direito e o dever primeiro
dos pais de educar so partilhados com o Estado. Tambm o Estado tem
direitos e deveres na educao dos cidados.
2. No entanto, a funo do Estado na educao uma funo supletiva. Ao
Estado compete proteger e promover, e ainda suprir e completar, e no
absorver a famlia ou substituir-se a ela. dever do Estado proteger o
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direito anterior da famlia sobre a educao dos filhos. O Estado no se
substitui famlia, mas supre as deficincias, e providencia com os meios
apropriados. O Estado promove a educao da juventude, favorecendo e
ajudando a iniciativa das famlias, e completando esse esforo, quando
no baste, por meio de escolas e instituies prprias. O Estado deve
respeitar esses direitos anteriores. O Estado deve suprir as incapacidades
educativas da famlia, quando ela se verificar, ou completar a sua tarefa
quando a famlia e a sociedade, enfraquecidas, no estiverem em
condies de exercer as suas funes. O Estado deve ajudar a famlia a
cumprir os seus deveres educativos para com os filhos, sem substituir a
famlia e a sociedade nessa tarefa. O Estado deve intervir na educao
quando o esforo das famlias e da sociedade for insuficiente.
O dever e o direito de educar pertencem ao Estado em nome da
responsabilidade que detm de promover o bem comum. O direito que
assiste ao Estado de promover a educao apenas resultante deste fim,
devendo pois ater-se aos limites desta promoo do bem comum.
A educao , seguramente, um bem pblico, mas que no tem de ser
servido pelo Estado. O servio pblico de educao pode e deve ser
exercido pela sociedade, e s supletivamente pelo Estado.
Para alm de supletivo, o papel do Estado na educao deve, tambm, ser
subsidirio. No deve o Estado fazer aquilo que instncias inferiores
podem e sabem fazer mais e melhor.
Este princpio da subsidiariedade, lapidarmente formulado por Pio XI, na
Quadragesimo Anno, hoje princpio europeu, consignado no tratado de
Maastricht, onde foi introduzido por alguns lderes europeus,
designadamente o ento Presidente da Comisso Jacques Delors.
Ao Estado compete, em nome da prossecuo da justia, garantir a
educao para todos, sem para tanto absorver funes que pertencem
prioritariamente a outros.
Se no compete ao Estado substituir as famlias e a sociedade na tarefa
educativa, no aceitvel o chamado monoplio educativo do Estado,
tpico dos regimes totalitrios, pelo qual o Estado nega esse direito e esse
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dever a todas as demais instituies da sociedade. A Igreja e os Papas
denunciaram, por diversas vezes, como injusto e ilcito, o monoplio do
estado na educao que obrigue as famlias fsica ou moralmente, a
frequentar as escolas do Estado, contra as obrigaes da conscincia crist
ou mesmo contra as suas legtimas preferncias2
O monoplio de ensino disse o Conclio Vaticano II3 vai contra os
direitos inatos da pessoa humana, contra o progresso e a divulgao da
cultura, contra o convvio pacfico dos cidados, e contra o pluralismo em
vigor nas sociedades de hoje.
No compete, pois, ao Estado substituir escolas privadas por escolas
pblicas, nem criar escolas pblicas onde j existam escolas privadas,
inviabilizando-as com concorrncia desleal, nem estatizar escolas
privadas.
Como processo de socializao, a educao no visa apenas fins pessoais
como o da construo da personalidade mas tambm fins sociais,
como o de tornar o homem til sociedade
Deste ponto de vista ganha relevo a igualdade de oportunidades como
horizonte de justia. A democratizao da educao consiste precisamente
em dar a todos as mesmas oportunidades de acesso e de sucesso, o que s
se consegue num quadro de liberdade, de livre expresso de cada um e de
todos. A liberdade , assim, condio de justia social.
3. O Estado no deve nem pode orientar axiologicamente a educao,
educao que necessariamente um processo de inculcao de valores.
O processo educativo no axiologicamente neutro. A neutralidade
educativa uma falcia. No h educao sem orientao por valores e
para valores. Ora, o Estado, que se pretende neutro do ponto de vista
axiolgico, no pode, por isso, deixar de respeitar o pluralismo e a
diversidade social na educao.
2 Divini Illius Magistri, 48.
3 Declarao sobre a Educao Crist, 6.
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Ao Estado compete promover o pluralismo educativo, que tem que ser
necessariamente um pluralismo institucional. Uma sociedade pluralista,
que respeita democraticamente a variedade de orientaes axiolgicas,
tem que promover o pluralismo educativo atravs do pluralismo de
escolas. O pluralismo prprio ao Estado democrtico escreveu o Prof.
Jorge Miranda um pluralismo interno nas escolas pblicas e um
externo nas escolas no-pblicas; interno naquelas, por, na mesma escola,
coexistirem diferentes perspetivas doutrinais e confessionais dos
professores, externo nas segundas, porque a diversidade de orientaes de
escola para escola traduz o pluralismo geral do sistema. O pluralismo
democrtico, consagrado na constituio de 1976, requer o pluralismo das
escolas e dos projetos educativos, e este a liberdade de cada escola ter
como professores aqueles, e somente aqueles, que com esse projeto se
conformam. O direito de criao de escolas diferentes das estatais (artigo
43. 4) envolve esse direito e o correspondente dever de integrao dos
que nela so chamados a ensinar4.
Ao Estado compete garantir as liberdades fundamentais, entre elas a
liberdade de ensino, entendida como liberdade de instituio de escolas,
de acordo com o pluralismo educativo, e como liberdade de escolha
dessas escolas. O direito que assiste aos pais de escolher a educao para
os filhos , por conseguinte, um direito a escolher tambm as escolas que
melhor satisfazem o projeto educativo que acalentam para os seus filhos.
A liberdade pressupe pluralismo de escolhas, no condicionadas por
mecanismos destorcedores de concorrncia. As famlias devem poder
escolher livremente a escola para os seus filhos, sem serem condicionadas
por razes de carcter econmico.
O que significa que o Estado, se decide financiar o ensino, tornando-o
gratuito, no o pode fazer inviabilizando esta liberdade de escolha,
financiando apenas os estabelecimentos oficiais e obrigando quem opta
pelos estabelecimentos particulares ou cooperativos a pagar propinas. O
4 Parecer de 28 de Dezembro de 2009, citado por Manuel Braga da Cruz, Os dias da
Universidade e outras intervenes, Lisboa, UC Editora, 2012, pp.98-99
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dinheiro pblico dinheiro de todos os contribuintes e para todos, e no
apenas para as escolas oficiais e para os seus alunos e professores. A
igualdade de oportunidades obriga a que o Estado no discrimine os
cidados, penalizando-os pela sua legtima opo de escola.
Essa discriminao inaceitvel obriga alguns cidados, precisamente os
que, em nome da liberdade de ensino que lhes assiste, exercitam o seu
direito de opo, a pagar duas vezes a educao dos seus filhos, atravs
dos impostos com que o estado financia a educao dos cidados, e
atravs das propinas. Tal situao configura uma flagrante injustia social.
A liberdade de ensino, reduzida a mera liberdade de instituio de
estabelecimentos, no passa de mera tolerncia. A liberdade de ensino,
como liberdade de escolha da escola e do projeto educativo para os filhos,
obriga a uma igualdade de oportunidades, que se deve traduzir, no caso do
financiamento pblico da educao, num financiamento a todos os
estudantes ou a todas as famlias.
4. O processo educativo um processo de avaliao e de classificao,
no apenas de quem aprende mas tambm de quem ensina. um processo
atravessado por isso por uma dinmica de competio. Ao Estado compete
salvaguardar as regras em que essa competio se desenrola.
A primeira regra da competio educativa a da equidade, ou igualdade
de condies, o que implica a no-discriminao de instituies e de
alunos no acesso educao que desejam.
Se o Estado define, de acordo com a recomendao da Declarao
Universal dos Direitos do Homem, a gratuitidade da educao obrigatria
A educao deve ser gratuita, pelo menos a correspondente ao ensino
elementar fundamental. O ensino elementar obrigatrio (artigo 26, n1)
-, no pode confinar essa gratuitidade apenas a algumas instituies ou a
alguns alunos.
Para que a emulao pela qualidade educativa seja equitativa o Estado no
pode reservar para seu financiamento apenas as suas escolas, mas deve
abranger com ele todas as escolas. essa a realidade j em vrios pases
da Europa. Esse financiamento tanto pode ser feito s instituies, como
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aos alunos e suas famlias, que pagam com esse financiamento (ou
cheque-ensino) a educao das escolas.
5. Infelizmente a nossa Constituio de 1976, fortemente influenciada
pelos princpios do coletivismo socialista, atribua em 1976 esse dever e
esse direito ao Estado, no n75.
Ao Estado competia criar, dizia o n 1 desse artigo, uma rede de
estabelecimentos oficiais de ensino que cubra as necessidades de toda a
populao. Era o monoplio tendencial da educao em Portugal. O
Estado admitia transitoriamente, e supletivamente, o ensino particular.
Dizia o n2 do mesmo artigo: O Estado fiscaliza o ensino particular
supletivo do ensino pblico.
Na reviso constitucional de 1982 foi felizmente abandonada esta
afirmao do primado do Estado e o carcter supletivo da iniciativa
privada na educao, substituindo-se, no primeiro desses dois artigos, a
designao estabelecimentos oficiais pela designao estabelecimentos
pblicos, admitindo assim que a educao pblica possa ser prestada por
estabelecimentos no oficiais, e introduzindo nela o direito de criao por
todos de escolas particulares e cooperativas (artigo 43, n 4), e banindo,
por conseguinte, da Constituio a conceo supletiva do ensino particular
em relao ao Estado.
A reviso Constitucional abriu, assim, o sistema de ensino portugus a
uma parceria entre a sociedade e o estado, entre a iniciativa do Estado e a
iniciativa da sociedade, mas sem ainda afirmar claramente o primado
democrtico da famlia e da sociedade na educao bem como o caracter
supletivo do Estado.
Como sublinha Guilherme dOliveira Martins5, a Constituio, revista em
1982, ao reconhecer no apenas o direito de ensinar e de aprender, por um
lado, mas tambm o direito fundao de escolas particulares e
cooperativas, por outro, consagra a liberdade de ensino como um direito
5 Guilherme dOliveira Martins, Liberdade de aprender e de ensinar, in Liberdade e
Compromisso. Estudos dedicados ao Prof. Mrio Pinto, vol. I, Lisboa, UC Editora, 2008, p.164
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pessoal de todos aplicvel universalmente em toda a rede de educao e
formao, que assim se constitui em rede de servio pblico de
educao, servio pblico esse que no se confunde com servio
estatal.
Entender a obrigao constitucional de o Estado criar uma rede pblica de
estabelecimentos que cubra todas as necessidades educativas da
populao como sendo composta apenas por escolas do Estado, equivale a
negar a existncia, a prazo, de escolas privadas, cuja criao por todos o
artigo 43, 2 permite, e a recusar liminarmente a liberdade de ensino
consignada no artigo 43 da Constituio.
Sendo o ensino obrigatrio gratuito, o Estado tem assim a obrigao de
subsidiar a educao, tanto ministrada nas escolas oficiais do Estado,
como nas escolas particulares, mormente as que ministram o ensino
obrigatrio. No o fazer, limitando-se a subsidiar as escolas estatais, para
alm de expressamente ilegal, como o recorda Mrio Pinto6, desrespeita a
liberdade de criao de escolas, a liberdade de funcionamento do sistema,
acabando por apenas tolerar a iniciativa particular na educao.
Para alm disso, tolerar o ensino privado apenas para quem tem
possibilidade de pagar propinas, e obrigar quem no as pode pagar a
frequentar o ensino estatal, constitui uma inaceitvel discriminao
socioeconmica, indigna de um Estado democrtico, e configura uma
grave injustia social.
5. Apesar de a liberdade de ensino, como liberdade de instituio de
escolas e como liberdade de escolha de escolas, ser um direito consagrado
pela constituio a todos os portugueses, estamos, no entanto,
confrontados em Portugal com a ausncia de plena liberdade de ensino, j
que esta liberdade no apenas liberdade de criao de estabelecimentos,
mas tambm liberdade de competio entre eles, s possvel em condies
de igualdade, e liberdade de escolha por parte das famlias.
6 In Observador de XI.2015
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Ora esta liberdade est longe de estar conseguida em Portugal. As famlias
no so livres de escolher a escola para os seus filhos, pois esto
condicionadas pela desigualdade de custos da frequncia do ensino estatal
e do ensino no estatal, que lesa essa liberdade de opo. Enquanto o
primeiro gratuito, ou quase gratuito no superior, o segundo obrigado a
cobrar as despesas reais. Desse modo, as escolas no concorrem
livremente ente si, sendo assim lesada a liberdade e a lealdade da
competio.
Esta ausncia de liberdade e de concorrncia leal tambm um problema
de justia social, como sublinhmos, porque discrimina com base no
exerccio de um direito legitimamente exercido. Esta disparidade de
condies, alm de injusta, tambm insustentvel pois poder provocar a
prazo a impossibilidade de sobrevivncia da iniciativa privada e social no
domnio da educao.
6. Assistimos, infelizmente, a uma forte tendncia para a estatizao do
ensino em Portugal, que contraria a liberdade de ensino consagrada na
Constituio, e que pretende repor a supletividade do ensino privado em
relao ao ensino estatal, como se assiste no atual debate sobre a supresso
e reduo de contratos de associao.
Demonstrao dessa tendncia o facto de o Estado ter vindo a colocar
escolas e ofertas educativas desnecessariamente, onde anteriormente
existiam iniciativas congneres privadas, esbanjando recursos nacionais,
ou para as eliminar ou estabelecendo com elas uma concorrncia desleal
pela desigualdade de propinas praticadas, e obrigando desse modo ao seu
desaparecimento. E f-lo, por vezes, com a confessada inteno de vir a
assumir sozinho a funo educativa.
Noutros casos, o Estado prodigaliza exclusivamente s suas escolas apoios
financeiros de tal grandeza, que recusa s demais escolas, inviabilizando a
livre competio entre instituies, e proporcionando a instalao de um
protecionismo monopolizador, que em nada favorece a preparao das
instituies escolares portuguesas para a competio no espao europeu e
internacional.
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Este progressivo estrangulamento da iniciativa privada e social, numa rea
de tamanha importncia econmica, social, e cultural, contraria, quer o
esprito europeu, que fez seu o princpio de subsidiariedade, quer as
orientaes da Unio Europeia, quer a doutrina social da Igreja.
Alm disso, assistimos hoje a tentativas de reduo dos j poucos
contratos de associao do Estado com escolas privadas, reduzindo, desse
modo, a j pouca liberdade de escolha dos poucos que ainda a tinham,
precisamente dos mais desfavorecidos, em vez de se avanar para a plena
instaurao da liberdade de ensino.
Tais contratos de associao, em lugar de serem entendidos como
parcerias, como expresso, embora limitada, da liberdade de escolha, so
encarados como expresso da supletividade do ensino privado em relao
ao ensino pblico, banida da Constituio, e no como parte integrante
dele.
7. Portugal fez progressos assinalveis no campo da educao nas ltimas
dcadas, com um enorme aumento das taxas de escolarizao. No entanto,
estamos longe ainda de igualar as taxas dos pases mais desenvolvidos.
As atuais necessidades de promoo da educao e de prossecuo de
metas mais ambiciosas para educao em Portugal tornam urgente, entre
ns, uma grande parceria entre a sociedade e o Estado.
Ora existem entraves ao crescimento das taxas de escolarizao. Entre elas
est, em primeiro lugar, a falta de crdito da educao junto das famlias e
pais, que no sentem a necessidade de dar continuidade educao escolar
dos filhos, preferindo a sua mais rpida e precoce entrada no mercado de
trabalho. A deficiente articulao entre o sistema de ensino e o mercado de
trabalho, com a consequente deficiente empregabilidade da escolaridade,
bem demonstrada pelo particularmente elevado desemprego intelectual,
repercute-se na procura escolar e explica em parte as, ainda baixas, taxas
de escolarizao entre ns.
fundamental aproximar a escola da sociedade, do mundo profissional e
do mundo empresarial, de molde a garantir a melhor profissionalizao,
formao para o emprego, empregabilidade das formaes. E isso pede
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uma maior articulao com a sociedade, que a estadualizao do ensino
no s no favorece como desincentiva.
A crescente assuno de responsabilidades por parte do Estado na
educao desresponsabilizou a sociedade das tarefas da educao. Nos
pases de mais forte sociedade civil so frequentes as iniciativas sociais
em prol do financiamento da educao, como a criao de fundaes
destinadas a recolher e a oferecer bolsas de estudo e prmios escolares,
para estudantes mais carenciados e de maior mrito. A sociedade tem um
amplo papel a desempenhar na promoo do ensino e do mrito escolar. A
sociedade precisa de ser chamada a exercer as suas responsabilidades,
quer em termos de protagonismo quer em termos de financiamento.
O modelo estatista na educao nasceu quando o Estado era o grande
consumidor e beneficirio dos resultados da expanso educativa. Hoje, os
alunos que se formam no se destinam nem exclusivamente nem
sobretudo funo pblica, mas antes ao mundo do trabalho e das
empresas, que devem por isso assumir tambm as responsabilidades da
formao dos seus quadros e funcionrios.
Impe-se, por conseguinte, uma parceria com a sociedade para a
educao, que procure elevar as metas da educao em Portugal, tanto em
termos quantitativos, como qualitativos. A batalha por melhores resultados
no acesso escolarizao e no sucesso da escolaridade, requer uma
especial mobilizao da sociedade e das famlias, de que exemplo a
apontar, entre ns, a associao EPIS.
E, com o incentivo da responsabilidade da sociedade, importa valorizar
uma cultura de mecenato de educao em Portugal. A pouca que havia foi
destruda pela crescente intromisso do Estado.
urgente mobilizar a sociedade para a educao: pais e famlias tm
estado demasiado afastados da educao. As famlias alheiam-se da
educao. Muitos pretendem mesmo que a escola substitua a famlia na
educao, o que mais contribui ainda para uma desvalorizao social da
educao em muitos sectores da sociedade.
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Para essa reorientao da escola para a sociedade, fundamental voltar a
colocar no centro da escola o aluno, e fomentar a sua identidade
comunitria.
Temos vindo a assistir, com a crescente sindicalizao da escola,
colocao do professor no centro da escola pblica. O prprio Ministrio
da Educao se tem tornado numa imensa entidade patronal, absorvida
primordialmente com negociaes com os professores. O recentrar da
escola no aluno, mobilizar os professores para a formao de
comunidades educativas, com cultura e projeto pedaggico prprios,
reforando as identidades e a capacidade competitiva das escolas. E
favorecer, seguramente, a emergncia de uma cultura de iniciativa e de
inovao, o que s uma escola autnoma, aberta inovao e iniciativa
da sociedade pode garantir cabalmente.
Portugal precisa de uma escola livre e competitiva, para ter um sistema
educativo aberto e internacionalmente competitivo, que contribua de
forma decisiva para o seu desenvolvimento e para a sua afirmao
internacional.
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Cest tout ce domaine de limplicite que la philosophie de lducation a pour
fonction dexpliciter, en dgageant les significations caches, le non-dit ou le non-
peru qui environnent laction quotidienne. En dautres termes, si sa fonction
pistmologique est dvaluer la validit des savoirs acquis sur lducation, sa
fonction lucidatrice est didentifier les valeurs qui la promeuvent, de tirer au clair
la vision de lHomme qui lanime et den apprcier la pertinence.2
Da liberdade de ensinar, pode-se dizer, com um exagero menor do que se
poderia supor, o que Agostinho de Hipona enuncia sobre o tempo: se
ningum mo pergunta, sei o que ; mas se quero explic-lo, no sei3. Esta
situao paradoxal revela tratar-se de uma expresso-umbela, de cariz
filosfico, sem prejuzo da sua traduo jurdica, que comporta uma
pluralidade de sentidos e de referentes, eventualmente, antinmicos, posta
a funcionar de modo dialtico. Esse perfil, no menos do que a viabilidade
da sua efetuao, requer o exerccio sistemtico da hermenutica e da
crtica, com o objetivo de lidar com uma tal complexidade, bem como a
sua permanente discusso, destinada a determinar as modalidades da sua
operacionalizao em cada configurao contextual. Por sua vez, s
perplexidades tericas, suscitadas pela anlise do conceito, associa-se um
argumentrio epocal que lhe atribui significaes predominantes, como
seja a atual confuso com a chamada liberdade de escolha, e lhe confere
um aparato justificativo peculiar, de cariz liberal e naturalista.
Este artigo pretende, por conseguinte, constituir um pequeno contributo
para esse trabalho de desconstruo terica. A partir das trs perguntas
1 Universidade Nova de Lisboa
2 Guy Avanzini; Alain Mougniotte, Penser la philosophie de lducation Pourquoi ? Pour quoi?,
Lyon, Chronique Sociale, 2012, p. 59.
3 Santo Agostinho, Confisses, XI, XIV, 17, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000, p.
567.
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indicadas no ttulo, as quais, pelo seu carcter direto, so de molde a
facultar o acesso a algumas perplexidades fundamentais sobre o objeto da
educao, o estatuto conferido aos intervenientes no processo educativo,
as razes que justificam a ideia de uma variedade potencial de tipos de
ensino e de aprendizagem, procuraremos suscitar uma reflexo sobre os
limites conceptuais do princpio em causa, que, assim o esperamos, sirva
sobretudo de mote para o debate em curso. Dado que se trata de uma
liberdade determinada, isto , referida a um determinado tipo de ao, o
ensino, realizada num contexto institucional particular, o sistema
educativo, que se conjuga ou conflitua com outras liberdades, outros
princpios e outros valores (liberdade de aprender, justia, formao, etc.),
parece-nos adequado seguir a metodologia avanada por John Rawls,
ainda que no nos sintamos, por isso, obrigados a perfilhar o conjunto das
suas teses: A descrio geral de uma liberdade assume, pois, a seguinte
forma: algum, uma ou mais pessoas, est livre (ou no) de uma restrio
(ou conjunto de restries) de fazer (ou no fazer) alguma coisa. ()
Deste ponto de vista, a liberdade uma determinada estrutura
institucional, um sistema de regras pblicas que definem direitos e
deveres.4
Esta forma de equacionar a liberdade de ensino torna patente que,
independentemente de outras relaes, ela se enquadra no mbito geral de
uma teoria da justia, como equidade, cujo princpio afirma que algum
tem a obrigao de fazer aquilo que lhe cabe, consoante o especificado
pelas regras de uma instituio, sempre que tenha aceite voluntariamente
benefcios da mesma [].5 No entanto, como salienta o autor, no se
pode esquecer que o princpio de equidade tem duas partes, uma que
indica como que contramos obrigaes, praticando voluntariamente
certos atos, e outra que estabelece a condio de que a instituio em
causa deve ser justa, seno de modo perfeito, pelo menos to justa quanto
4 John Rawls, Uma Teoria da Justia, Lisboa, Presena, 2001, p. 168.
5 Ibidem, pp. 267-268.
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razovel esperar face a circunstncias concretas.6 Tal significa que,
mesmo uma compreenso incipiente, no pode deixar de ter em conta esse
duplo conjunto de condies, respeitantes tanto s aes dos indivduos
que detm o atributo dessa liberdade (no caso vertente, aqueles a quem
cabe ensinar, sejam eles pessoas ou instituies escolares), quanto
funcionalidade do sistema educativo, as quais indiciam o grau de
efetividade e de justeza do conceito de liberdade de ensino dentro de um
contexto especfico, que o de uma educao democrtica.
Como se poder depreender, uma boa parte da complexidade do conceito
advm deste jogo necessrio entre planos, mais ou menos particulares,
mais ou menos institucionais, mais ou menos subjetivos, mais ou menos
normativos, na medida em que a elucidao do seu contedo no saberia
prescindir daqueles fatores que constituem a problemtica geral da
educao. Esta implicao decorre de se tratar de uma liberdade
especfica, a liberdade de ensino. Mas, essa especificidade acarreta,
igualmente, dois outros aspetos que reforam a sua dificuldade.
Por um lado, o sistema educativo detm um lugar especial no conjunto dos
sistemas sociais, pois, no s forma os futuros cidados que iro interagir,
consolidando ou transformando esse campo institucional, como constitui a
base dos outros sistemas, ao assegurar a transmisso dos conhecimentos e
das normas de que o respetivo funcionamento depende, bem como ao
veicular interpretaes dos mesmos, que assumem o duplo papel de
valorizadoras de determinados bens, relativamente a outros que acabam
desvalorizados, e de antecipadoras do agir futuro, de acordo com a sua
dinmica injuntiva. Mas, sobretudo, por outro lado, nas sociedades
modernas, de modo ao mesmo tempo constitutivo e estratgico, ao sistema
educativo cabe a funo de possibilitar a alterao pacfica, isto , nem
blica, nem revolucionria, do esquema das desigualdades vigentes, por
via da mediao da educao tida pelo bem dos bens da modernidade, ou
seja, de realizar, precoce e simbolicamente, um desgnio corretivo e
compensatrio de justia social. Neste sentido, o sistema educativo no
6 Ibidem, p. 268.
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est adstrito apenas ao aspeto normativo da justia (honrar uma promessa,
um estatuto, etc.), mas totalidade do que cabe nessa categoria,
nomeadamente, ao aspeto interventivo da justia e a uma espcie de
funo totalizadora que lhe confere o papel de mobilizadora da eticidade
coletiva, em suma, lgal et le legal [] un principe de rpartition [],
une forme de vie thique.7
Consequentemente, e ao arrepio do que um certo liberalismo pretende, o
sistema educativo no est comprometido apenas com a transmisso eficaz
de um conhecimento utilitrio, em funo de um padro de eficcia,
mensurvel por uma hipottica relao entre as aptides adquiridas e a sua
aplicao na esfera laboral, mas encontra-se constitutivamente vinculado a
um desgnio social e poltico de solidariedade, pelo qual o que tido por
eficaz e o que se corresponde consensualmente ao justo se encontram
conjugados. Essa a legitimao efetiva para a existncia de um sistema
de ensino pblico e massificado. A transmisso do saber e do saber-fazer,
enquanto tais, pode ser levada a cabo por outras vias, como ocorreu ao
longo da histria, por exemplo, com o ensino familiar, religioso ou
corporativo.
Porm, importa no cair na tentao oposta, de um certo pragmatismo
pedagogista, que o reconduzisse organizao de um processo direto de
solidariedade, de acordo com o qual a dimenso da objetividade
epistmica viesse to s a constituir um pretexto instrumental para a
prtica de relaes intersubjetivas de mtuo reconhecimento. Pelo
contrrio, das muitas funes atribuveis ao sistema educativo, uma tem de
manter-se em todas as combinatrias, aquela que consiste em promover
um determinado processo de aprendizagem. Ora, esta condicionante
acarreta a consequncia de que a afirmao das vrias liberdades, e a luta
pelo seu reconhecimento, no seio do sistema educativo, tem como tipo a
relao de ensino e de aprendizagem. Sem prejuzo da relevncia que as
expectativas legtimas de reconhecimento individual e coletivo detm no
quadro de uma sociedade democrtica, o sistema educativo oferece-se
7 Patrice Canivez, Quest-ce que laction politique ?, Paris, Vrin, 2013, p. 42.
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como uma espcie de prisma, que as analisa e reorienta, a partir de
critrios oriundos de uma racionalidade vocacionada para as objetivar e
universalizar, retirando-lhes deliberadamente o aspeto paroquial e
agonstico que apresentam partida. Por se tratar de uma arena
qualificada, precisamente como educativa, apesar de conectada com todas
as outras (o que cria a iluso de totalidade, na base da atribuio abusiva
de uma nova srie de deveres que contradizem o preceito segundo o qual
qualquer dever implica um poder,8o que alimenta a perceo disseminada
de uma progressiva ineficcia e de uma crescente injustia do sistema
educativo), no s aplica um princpio de aceitabilidade, como este resulta
reconduzido, liminarmente e in fine, s condies prprias da prtica
educativa. Podemos definir um tal princpio do seguinte modo: so
aceitveis todas as expectativas de reconhecimento que se possam
justificar nos termos da racionalidade educativa. Por conseguinte, mesmo
que se seja tentado a concordar que if we could ever be moved solely by
the desire of solidarity, setting aside the desire for objectivity altogether,
then we should think of human progress as making it possible for human
beings to do more interesting things and be more interesting people,9
impe-se clarificar que essa verso do mundo no aquela que subjaz,
alimenta e autoriza um sistema educativo que assume a figura de um
sistema de ensino. Uma vez mais, a histria revela alternativas, sistemas
iniciticos, de treino, de doutrinao, etc., pelo que se torna fundamental
no perder de vista essa especificidade decorrente da ensinabilidade.
O sistema de ensino constitui uma parte do conjunto dos processos
educativos, que se caracteriza por levar a cabo, no seio de um quadro
institucional especfico, designado globalmente como Escola, o desgnio
de solidariedade por via da mediao da ordem disciplinar, na dupla
aceo epistemolgica e tica, oriunda da modernidade. Por isso, ao
sistema de ensino das sociedades modernas no cabe transmitir toda e
qualquer viso da realidade, mas uma certa maneira de conhecer e de ser,
8 John Rawls, op. cit., p. 193.
9 Richard Rorty, Solidarity or Objectivity?, Michael Krauz (ed.), Relativism: Interpretation and
Confrontation, Notre Dame, University of Notre Dame Press, 1989, p. 174.
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que concomitante de uma leitura cientfica do mundo, a par da axiologia
que atravessa o projeto inacabado da modernidade, como lhe chamou
Habermas, na qual pontuam os valores concomitantes da liberdade,
autonomia, pluralismo, tolerncia, dignidade, cidadania, cosmopolitismo,
secularidade, etc.. Longe de lhe corresponder uma mera funo
instrumental, o sistema de ensino inclui e veicula, uma filosofia poltica da
educao, 10 que dobra a sua realidade emprica com consideraes
deontolgicas, sobre o que legtimo e o que ilegtimo, o que
desejvel e o que se afigura indesejvel. Esta filosofia pressupe, assim,
uma dialtica de fundo, entre objetividade e solidariedade, entre
transmisso e ao, entre saber e justia, que pode obter a seguinte
formulao: merece ser ensinado (conhecimentos, atitudes, hbitos,
valores, regras) o que permite, ao mesmo tempo, legitimar a solidariedade,
por via de critrios associados ideia da objetividade, e autorizar o
conhecimento, pelo entremeio do efeito esperado em termos de
solidariedade.
Deste modo, se cabe reconhecer que um sistema de ensino pblico e
universal encontra a sua verdadeira legitimidade num desgnio coletivo de
solidariedade, no deixa igualmente de ser adequado reconhecer que essa
finalidade se encontra regulada por exigncias racionais, plasmadas no
tipo de conhecimento veiculado. Tal deve-se ao facto de que a
solidariedade, por mais genrica ou universal que se proponha ser, como
o caso da sua traduo em direitos, se dirige sempre a situaes
particulares e a exigncias especficas, diferenciadas, ainda quando o
objetivo seja igualitrio, logo, sempre marcadas por uma validade
circunscrita, enquanto o conhecimento objetivo (experiencial, filosfico,
cientfico, literrio, o campo no importa desde que o tipo de
racionalidade esteja em ao) julgado comum, partilhvel,
universalizvel, falsificvel, transponvel para uma multiplicidade de
situaes, desse modo igualador, apesar de diferenciado.
10 Cf. Marie-Claude Blais et al., Pour une philosophie politique de lducation, Paris,
Fayard/Pluriel, 2013.
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No obstante, seria inadequado considerar que os dois elementos, nesta
equao, esto a par, como se o sistema de ensino cumprisse duas funes,
numa complementaridade relativa, mas no convergente. Pelo contrrio,
se a transmisso que prevalece na prtica, na medida em que a equidade
pensada como dependente do sucesso dessa comunicao, a
solidariedade que est constantemente a ser visada, uma vez que o que
est em causa a construo do humano, no uma solidariedade orientada
para a consagrao da matriz cultural comunitria de base (etnocentrismo
que, segundo Rorty, seria apangio do pragmatist, dominated by the
desire for solidarity11) ou da organizao socio-laboral dominante (tese
dos liberais), mas para a promoo da emergncia de uma humanidade
menos carenciada, menos insatisfeita, menos sujeita aos efeitos da
injustia, numa palavra, menos limitada na tentativa de dar um sentido
sua existncia, seja por via do trabalho, do exerccio da cidadania, do lazer
ou de outro modo de realizao pessoal. Como sugere Fernando Savater,
o destino de cada ser humano no a cultura, nem sequer a sociedade,
em sentido restrito, enquanto instituio, mas os seus semelhantes. E
precisamente a lio fundamental da educao apenas pode corroborar
este ponto bsico e deve partir dele para transmitir os saberes
humanamente relevantes.12
Assim, por mais que queira estabelecer um vnculo dominante a um grupo
particular, qualquer sistema de ensino induz um exerccio de distanciao
que equivale a um princpio de libertao desse elo, razo pela qual, por
exemplo, se gera, no seio das ditaduras mais ferozes, um nmero crescente
de contestatrios. Do mesmo modo, a convico de que o ensino visa a
satisfao das exigncias do mercado de trabalho ignora quer a
incomensurabilidade entre o percurso formativo e o que deste
aproveitado pela organizao laboral, indicador claro de que o sistema
educativo prev uma srie de outras aplicaes, quer, sobretudo, que o
trabalho s se justifica pelo homem e para o homem, enquanto a
11 Richard Rorty, art. cit., p. 177.
12 Fernando Savater, O Valor de Educao, Lisboa, Presena, 1997, p. 29.
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transformao da natureza fsica ou social tem na mira melhorar
significativamente a vida.
Longe de uma relao puramente instrumental, unvoca, dos requisitos do
mercado para a oferta curricular, a ligao entre o sistema de ensino e a
esfera laboral consigna o entrosamento exposto da objetividade e da
solidariedade, uma vez que a gesto dos contedos partilhados, mesmo
quando no se afigura percetvel, combina as competncias tcnicas e
investigativas, destinadas eficcia, com uma interpretao tico-
antropolgica do modo de exerc-las, em conformidade com um
complexo de valores humanistas que visam viabilizar um incremento
sustentado dos nveis de justia. Bem compreendida, a leitura cientfica da
realidade, e, consequentemente, o tipo de conhecimento a que conduz,
obtm o seu sucesso, menos dos fatores negativos que passaram a ser
lugares-comuns da crtica da razo objetiva reificao, mecanizao,
utilitarismo cego -, do que das possibilidades que encerra de integrar
teoria e produo num projeto poltico de uma humanidade dotada das
condies necessrias mesmo que no suficientes, como se tem
sucessivamente tornado evidente para realizar a satisfao das
expectativas legtimas de uma coexistncia equitativa.
O sistema de finalidades, que esta forma de equidade, projetada, mais do
que respeitosa, criativa, mais do que estatutria, institui, desloca, por
conseguinte, o foco da liberdade de ensino da afirmao do que, nela,
respeita liberdade, para a zona do que cabe ao ensino, gerando uma
esfera de necessidade que se impe prpria liberdade. Em consequncia,
as condies do exerccio dessa liberdade no se esgotam no cumprimento
das obrigaes legais ou estatutrias, qualquer que seja o agente
educativo, sem prejuzo, obviamente, de haver correlaes diferenciadas
em funo do tipo de detentores dessa prerrogativa (instituies, grupos de
docncia, funcionrios), mas dependem das peculiaridades da atividade
educativa, enquanto tal, em particular, do que nela envolve a conciliao
das duas dimenses evidenciadas, quer na procura, por parte das geraes
antecedentes, de obter liberdades semelhantes para os seus
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descendentes,13 quer, sobretudo, na generosidade para partilhar modos de
construir mundos, na suposio de que as geraes seguintes tero, assim,
acesso a liberdades superiores e a padres de justia mais elevados do que
aqueles que couberam aos educadores.
Ora, por um lado, este tipo de intencionalidade, faz, claramente, parte de
uma prtica de promessa, como forma de assuno livre de uma
obrigao, 14 que, como decorre do exposto, ainda que realizada por
indivduos, institucional e coletiva, o que leva a que haja um esquema de
mtuas restries da liberdade de ensino, determinado, em maior ou
menor grau, por uma orientao funcional, relativa coeso do sistema
educativo e s finalidades para as quais se encontra institudo. Dessa feita,
ainda que o que se compreende por liberdade de ensino, as diferentes
verses do que aceitvel, como justo, e do que no o pode ser, como
injusto, no que respeita ao seu exerccio e s respetivas restries, sejam,
em parte, como tudo o que humano, historicamente transitivas, variando
segundo os contextos, em funo das possibilidades que estes viabilizam
de negociao dos interesses e dos significados, de supor a existncia de
um conjunto de condies limite, s parcialmente transitivo, que, no s
condiciona todo o processo, como subverte a possibilidade de uma
aplicao literal da regra rawlsiana da prioridade, segundo a qual os
princpios da justia devem ser hierarquizados em ordem lexical, e
portanto, a liberdade s pode ser restringida se tal for para o bem da
prpria liberdade,15 no que respeita liberdade de ensino.
Tal implica, por um lado, que a explicitao do conceito de liberdade de
ensino deve comear por responder pergunta relativa s circunstncias
em que a liberdade se encontra favorecida ou restringida, para poder dar
uma resposta satisfatria pergunta sobre quem detm ou merece deter
uma tal liberdade. D-se, assim, uma espcie de sobredeterminao do que
cabe compreender por liberdade de ensino pelas condies fundamentais
13 John Rawls, op. cit., p. 172.
14 John Rawls, op. cit., p. 271.
15 John Rawls, op. cit., p. 203.
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de um sistema pblico de ensino. Consequentemente, o que se afigura
decisivo o que se conseguir apurar sobre os limites da liberdade de
ensino, definidos a partir da conceo de ensino em conformidade com
uma sociedade democrtica, que, h que relev-lo, no s confere um
contedo a essa liberdade, como, e antes de mais, a converte num seu
requisito fundamental, ao invs de outras conjunturas histricas nas quais
passa por secundria, seno mesmo despicienda.
Este complexo de condies transcendentais, com as quais nos propomos
analisar a noo de liberdade de ensino, no resulta, portanto, de uma
qualquer considerao apriorstica sobre a natureza humana ou sobre o
sentido metafsico da axiologia educacional ou mesmo sobre uma
teleologia progressiva ou conservadora, com a qual a educao estivesse
comprometida, mas decorre da prpria ideia moderna, e logo intra-
histrica, de um sistema educativo moderno, democrtico e universal,
aquele no seio do qual faz verdadeiramente sentido pensar em tal
liberdade. Ora, como vimos, estas condies esto balizadas por trs
categorias fundamentais, conhecimento, justia e democraticidade, que
devero ser conjugadas de diferentes pontos de vista, mas que no
podero, sem prejuzo de coerncia e, logo, de significao, estar ausentes
de uma adequada discusso de qualquer questo relativa ao sistema de
ensino. So estas categorias que devem ser correlacionadas com a da
liberdade tendo em vista o esclarecimento dos paradoxos associados
expresso liberdade de ensino.
Impe-se insistir, nesta etapa, que estamos a apontar uma forma de
interao mutuamente constitutiva, no a descrever um estado de coisas tal
como este se apresenta na concreo emprica, inevitavelmente mais ou
menos prxima dessa transcendentalidade, hoje, ao que tudo indica, por
uma espcie de irreflexo generalizada, facilmente disposta a ignorar este
equilbrio. Mas um dos interesses terico-prticos, a nosso ver, no
despiciendo, dum tal desenho ideal, para alm da anlise do conceito de
liberdade de ensino que admite, reside no modo como nos d a ver o limite
at ao qual a ideia moderna de um sistema de ensino universal mantm o
seu horizonte de sentido intacto e aquele a partir do qual acaba por perd-
-
lo, de forma a compor um critrio decisivo, de cariz dialtico, em funo
do cruzamento dos trs termos - cumprimento, objetividade e
solidariedade -, cada um com exigncias especficas, do que cabe em tal
projeto e do que se oferece como uma sua eventual negao. Pela
articulao dos dois tipos ideais, relativos aos dois termos, o de uma
liberdade como ausncia total de restries e/ou atributo absoluto de um
sujeito, o de uma ao educativa, responsabilizada pelo objetivo de
ensinar, como condio, universo e sentido dessa liberdade, dever ocorrer
uma espcie de mtuo esclarecimento sobre as razes que justificam que a
liberdade seja uma condio constitutiva do ensino, pertencendo-lhe to
intimamente que nele encontra o verdadeiro sistema de restries que a
tornam operativa na concreo do agir.
Por sua vez, deslocado o centro da explicao da liberdade da questo da
sua posse, por parte de determinados agentes que, dessa feita, adquiririam,
liminarmente, o atributo da emancipao discricionria, para a zona do
que cabe fazer com uma tal autonomia e das restries que o dever de
ensinar insinua, torna-se vivel enfrentar a diferena entre a liberdade
como atributo genrico daqueles que tm a tarefa de ensinar, sem a qual
no poderiam exercer essa atividade de modo efetivo, definida
positivamente, e a liberdade como compromisso com as finalidades do
ensino, definida negativamente, a partir daquelas marcas fronteirias, para
l das quais a autonomia deixa de poder ser atribuda, no em virtude de
qualquer desgnio transcendente ou deliberao plenipotenciria, mas to-
s porque uma liberdade de ensinar que obsta ao ensino perde a
autorizao inaugural por improcedncia.
Este questionamento, a nosso ver decisivo, em torno do arco que se
desenha entre a liberdade de partida, a sua sujeio ao crivo dos valores
que norteiam o sistema educativo, e os consequentes processos de
justificao, legitimao e autorizao do exerccio de uma autonomia
intrinsecamente condicionada pela intencionalidade do agir a que est
adstrita, requer que as trs perguntas, implcitas no mtodo de elucidao
do conceito de liberdade, proposto por Rawls (quem? de qu? at que
ponto?) sejam conjugadas com outras trs, relativas sua mtua
-
implicao com o ensino: liberdade de ensinar o qu, a quem, porqu?
Uma breve advertncia metodolgica: estas perguntas no so de resposta
direta ou unvoca. Pelo contrrio, destinam-se a operar como indutoras de
uma perspetiva dialtica que esteie as opes de fundo sobre o que cabe
entender por liberdade, ensino, aprendizagem, igualdade, equidade,
justia, democracia, num exerccio crtico, pelo qual as teses propaladas
no assumam o aspeto doutrinrio to frequente em matrias de poltica da
educao.
A expresso liberdade de ensino pode referir-se a diferentes situaes,
atribuir-se a diferentes agentes e corresponder a diferentes entendimentos
do conceito de liberdade. Esta diversidade deve ser tida em conta, mesmo
numa compreenso que esteja focada num s dos sentidos, como tende a
ser o caso na reconduo atual da liberdade de ensino liberdade de
escolha do sector, pblico ou privado, ao qual pertencem os
estabelecimentos de ensino, pois essas diferentes acees esto
interligadas, levando, assim, a um mtuo esclarecimento. Essa variedade
pode ser alinhada em duas orientaes principais, consoante se trate da
liberdade de levar a cabo uma atividade de ensino ou da liberdade como
condio para o exerccio dessa atividade.
A primeira esfera de significaes assenta na educabilidade do humano.
No sentido mais fundamental, ainda que mais genrico, a liberdade de
ensino resulta da necessidade antropolgica de que o homem seja educado
pelos outros homens, como to bem formalizou Kant, o que converte
todos em potenciais ou efetivos educadores, num processo infinito de
educao recproca. Nesta perspetiva, a liberdade de ensino traduz a
evidncia de que, se todos educamos, tal equivalente, in extremis, a uma
espcie de liberdade absoluta medida dessa responsabilidade, tambm
ela absoluta, e, por conseguinte, que todos temos de possuir uma certa
margem de operao para cumprirmos esse desgnio inevitvel. Por
estabelecer uma liberdade universal, ainda que abstrata e indeterminada, a
qual requer, ao mesmo tempo, a sua concretizao, na medida em que
educar nunca um termo neutro, mas resulta sempre qualificado (educar
-
desta ou daquela maneira, para este ou aquele fim, de modo a formar este
ou aquele homem), constitui o verdadeiro princpio das formas mais
especificadas, pelas quais se tem reconhecido, ao longo da histria, a
admissibilidade de ofertas educativas institucionalmente diferenciadas. ,
antes de mais, por se reconhecer que a educao, abarcando uma
pluralidade de processos, se pode realizar de diferentes maneiras, por
diferentes indivduos e instituies, sem prejuzo a priori para a
construo do humano, que se justifica a liberdade de propor e seguir
caminhos diversificados.
Nesta admisso de uma liberdade fundamental de educar, da qual a
liberdade de ensino constitui uma feio, pesa, igualmente, a percepo de
que, como lembram Avanzini e Mougniotte, il sagit toujours dune
activit alatoire car la pertinence de linvention nest jamais garantie ni
dfinitivement tablie.16 No que respeita especificamente liberdade de
ensino, por se tratar de um processo educativo mais formalizado, este
princpio de incerteza no se esvai, sendo mesmo de admitir que se
agudiza, em funo da equao que se estabelece entre o que projetado,
as condies nas quais esse planeamento se pode realizar e o que se
concretiza. Porquanto a ideia de ensino supe condies de um tipo
particular para a sua efetuao, as quais, em parte, resultam do que
tacitamente se julga ser conveniente em matria educativa, em parte,
advm da relao pedaggica, nomeadamente da margem de
subjetividade, de imprevisibilidade e de autonomia que esta requer; em
parte, resultam da sua inscrio na dinmica de reproduo social, dado
que o ensino constitui um dos principais processos de transmisso de um
estado de coisas tido por desejvel; em parte, ocorrem como efeitos da
retroao inerente a uma atividade que no se limita a reproduzir
cegamente padres institudos, mas tem o poder de produzir realidade; em
parte, espelham a dimenso utpica que atravessa qualquer projeto
educativo; em parte, brotam da margem de falibilidade que se impe em
matria de metodologias de ensino e de aprendizagem; em parte,
16 Guy Avanzini; Alain Mougniotte, op. cit., p.73.
-
dependem da orientao do ensino para a construo de alteridades,
torna-se evidente que nenhuma frmula pode aspirar ao estatuto de
exclusividade.
Na consagrao da liberdade de ensinos est, assim, contemplada a
liberdade de experimentao, num campo em que, no s diferentes
solues parecem viveis, como no se pode atribuir a nenhuma uma
legitimidade total. O modo como se valoriza e se estende a liberdade de
ensinos, entendida como oferta de diferentes modelos para o mesmo tipo
de ensino (essa variedade existe sempre em funo dos nveis, dos
objetivos, dos mbitos, etc.), depende, por conseguinte, do grau de
conscincia dessa espcie de falibilidade constitutiva, do maior ou menor
consenso sobre o impacto do ensino na educao e da margem conferida
iniciativa individual na gesto de uma tal circunstncia (razo pela qual se
afigura mais consentnea com regimes democrticos e contextos de crise).
Por sua vez, na medida em que o sistema de ensino constitui uma forma de
solidariedade, quer por via de uma distribuio justa, isto , igualmente
acessvel a todos, desse bem tido como indispensvel coexistncia digna
numa sociedade do conhecimento e do poder simblico que confere, quer
mediante uma sua distribuio equitativa, atenta aos casos excecionais,
que requerem o exerccio de uma justia compensatria, e, muito
particularmente, s desigualdades que, a contra sensu, so produzidas no
seu interior, como efeito tanto do pendor para a reproduo das
desigualdades de partida, quanto da propenso para potenci-las com a
sobrevalorizao do esquema de seleo e progresso meritocrtico, a
liberdade de ensinos encontra nesse desgnio o seu outro fundamento.
Dessa feita, torna-se aceitvel, seno mesmo desejvel, uma certa
diferenciao da oferta curricular, uma variedade de instituies, uma
pluralidade de percursos e perfis de escolaridade, em funo dessa
supletividade.
Duas condies se impem imediatamente para o exerccio dessa
liberdade de oferta. Por um lado, ela no deve alhear-se do propsito de
redistribuio do poder simblico por via da transmisso de certos
conhecimentos, prticas, atitudes, hbitos, que constituem o objeto de
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ensino, fosse por alienar essa dimenso at ao ponto em que ela perdesse
toda a efetividade, fosse por pretender, liminar e institucionalmente,
desvincular o ensino do carcter de ensinabilidade, a favor, por exemplo,
de uma mera funo adestradora, doutrinria, ou ldica. Por outro lado, ela
no pode ser invocada para extremar desigualdades ou obstar
igualizao visada, transformando o que h de solidrio nas polticas de
discriminao positiva numa gesto lenitiva das assimetrias, dessa feita,
consideradas naturais e insuperveis. A liberdade de ensinos no pode
servir nem para negar o ensino queles que algum cr estarem
desprovidos de capacitao ou de interesse suficiente para seguirem o
processo, nem para ensinar apenas aqueles aos quais se atribui a priori
uma dotao para a aprendizagem ou uma condio social indutora de
sucesso futuro.
Em suma, a liberdade de ensinos encontra a sua razo no modo como
contribui para responder a alguns impasses inerentes ao prprio ensino,
ensinabilidade, na dupla aceo do direito ao ensino e da qualidade do
processo de ensino e de aprendizagem, ao equilbrio entre meritocracia,
igualdade e equidade. Outros fatores podem servir conjunturalmente para
justific-la, mas so sempre extrnsecos prpria ideia de liberdade de
ensino, o que significa que no constituem razo suficiente, nem
explicao verdadeiramente satisfatria para o facto de haver uma
liberdade e um poder de propor ensinos curricularmente diferenciados
e/ou ajustados a algumas particularidades (necessidades especiais,
desigualdades impeditivas do acesso ao mesmo patrimnio cultural, nas
mesmas condies pedaggicas, convices ideolgicas, pedaggicas,
religiosas, etc.). A lgica da justificao vai, assim, do sistema educativo,
enquanto sistema de ensino, para as outras ordens de legitimao. O
problema equacionado na perspetiva inversa no s implica a sujeio do
sistema de ensino a questes que o ultrapassam, como acaba por
esvazi-lo do seu propsito e do papel que lhe cabe nas sociedades
modernas, como sucede quando se olha para a Escola como um lugar para
tudo e para nada, porque sujeita a todo o tipo de exigncias e de
expectativas menos a de ensinar e, consequentemente, de levar a aprender.
-
Desde logo, fundamental que no se confunda o que cabe ao sistema
educativo como desgnio e o que lhe compete como ao, pois, sem
prejuzo da sua extraordinria relevncia, no pode ser tido como o lugar
exclusivo da educao, da igualizao e da equidade, nem cabe julgar que
a liberdade de ensinos constitui uma nova panaceia. Se o sistema
educativo, como qualquer sistema institucional, est obrigado a prticas
que sejam percecionadas como justas pelos seus atores e pela sociedade
em geral, relativamente sua esfera de atuao, o sistema educativo
escolarizado, perante estes trs processos, no s tem uma funo
preparatria, como, para que a leve a cabo, dever manter-se ao abrigo de
uma sobre responsabilizao, por parte de uma sociedade que, nas outras
arenas, aceita, cada vez mais, uma ideologia da concorrncia pela
concorrncia e da luta de todos contra todos pela obteno dos bens
mercantis e das posies socialmente mais valorizadas. Sobretudo, a
liberdade de ensinos, no pode servir de pretexto para a criao ideolgica
de uma zona onde a aprendizagem e a justia tm de ocorrer de forma
direta e imediata, para que, depois ou noutras instncias, no se tenha de
lidar com ela. Ensino, aprendizagem, igualizao, equidade so processos
globais e coletivos que importa ver cada vez mais concretizados, em todos
os mbitos da vida comum, mas que s podem ser entendidos como
realizveis mecanicamente se forem alvo de um emagrecimento extremo
dos fatores que os compem. A Escola dever-se- nortear por princpios e
prticas de justia na medida em que constitui o laboratrio de uma
sociedade mais justa, por via do desenvolvimento da dimenso simblica,
em detrimento, portanto, da violncia do estado de natureza. Mas essa
aposta s pode assumir o carcter de um ensaio, no qual se vai testando
uma forma de igualizao por via do que Connell designou como a justia
curricular,17 cujo tipo s pode ser a mtua aproximao que ocorre pela
relao de ensino e de aprendizagem, a qual no anula propriamente as
diferenas, mas sobreleva-as em proporo do modo como cada um se
posiciona perante o terceiro termo que o conhecimento. A
17 Apud Carlos Estvo, Polticas e Valores em Educao, Vila Nova de Famalico, Hmus, 2012,
p. 278.
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responsabilidade do ensino est em garantir que um tal tipo
compreendido como tal.
Neste sentido, a liberdade de ensinos encontra a sua legitimao na
maneira como enriquece esse projeto comum, pela instaurao de
processos pedaggicos destinados a melhor concretizar essas que so
ideias reguladoras do sistema educativo, desejadas e desejveis por uma
poltica educativa racional, nunca numa qualquer forma de gerar a iluso
de que tais ideias j se encontram realizadas, desde que esteja instalada
uma certa verso da liberdade de ensinos. que, por mais que uma tal
liberdade de oferta contribusse para aumentar o nvel de justia, haveria
ainda que acautelar duas situaes. Por um lado, no cabe ignorar a
afirmao de Aristteles de que s pode haver justia plena entre iguais, a
qual poder ser lida, no tanto como a expresso de um elitismo, quanto
como a indicao de que at se atingir a igualdade h sempre uma certa
injustia. Transposto para o sistema educativo, porquanto nele a justia
est em processo de formao, seria contraditrio esperar que fosse nele
que ela se estabelecesse de uma vez por toda. Por outro lado, esta aparente
fragilidade , contudo, a sua maior fora, mormente do ponto de vista da
autonomia requerida por uma sociedade democrtica, uma vez que se
oferece como impeditiva da imposio doutrinria de uma certa viso da
realidade como um bem definitivo identificado justia que acabasse por
coartar a liberdade dos aprendizes de projetarem as suas verses do que
deve entrar no conceito de uma vida justa. O mesmo vale, alis, para a
transmisso do conhecimento, pois o que relevante no que se ensine
tudo o que h para aprender, mas que se garanta a possibilidade de uma
aprendizagem sucessiva e consequente. A liberdade de ensinos s pode ir
buscar a sua autorizao necessidade de garantir a liberdade de
aprendizagens, incluindo a da justia, mas uma tal liberdade dever ser
tida por fortemente processual e fracamente substantiva, para que a
substancialidade no impea a construo da autonomia alheia.
Do mesmo modo, torna-se percetvel que a liberdade de ensinos no
coincide com a distino entre pblico e privado, mesmo quando tal corte
entre dois sectores de interveno, o do Estado e o da sociedade civil,
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entre os quais se atribu uma espcie de relao agonstica, se possa
afigurar contextualmente relevante ou seja incentivado pelas teorias de
cariz liberal. Com efeito, no s possvel conceber diferentes ofertas
num mesmo sector, pblico ou privado, como, sobretudo, o bem que cabe
compartilhar comum e, logo, transversal a tal diferenciao. Se uma
igualizao formal e uniformizadora no permite repor devidamente uma
distribuio equitativa, uma diferenciao excessiva e autorizada de modo
tautolgico s pode levar a uma progressiva acentuao das
desigualdades, transformando o sistema educativo num mero sancionador
do statu quo, tomando como inevitveis as fontes de injustia que tem
como uma das suas finalidades contribuir para reparar. A alternativa no
corresponderia a uma gesto da liberdade de ensino por via da sua
especificao numa liberdade de oferta de ensinos, mas a um
seccionamento dessa oferta em modos privativos. Assim, o que se afigura
filosoficamente decisivo no escolher, em primeira instncia, entre
estatismo e privatismo, mas como que se consegue organizar da melhor
forma a partilha dessa coisa comum que a educao, sem prejuzo da
evidncia de que o Estado, se entendido e vivido como a organizao
poltica da sociedade, possu condies privilegiadas para promover uma
gesto sensata da liberdade de ensinos, ou que a educao um bem
demasiado precioso para ser entregue a uma improvvel regulao dos
mercados.
Na verdade, seja mais do foro do Estado ou da competncia duma rede
escolar privada, sempre de servio pblico que se trata. Charles Taylor
aponta a existncia de dois eixos semnticos principais, segundo os quais
se utiliza o termo pblico. O primeiro associa pblico quilo que afeta a
comunidade inteira (assuntos pblicos) ou a gesto deles (autoridade
pblica). O segundo faz da publicidade uma questo de acesso (este
parque est aberto ao pblico) ou de aparecimento (as notcias
tornaram-se pblicas). 18 Ora, ambos os sentidos esto diretamente
relacionados com a educao moderna universal e democrtica, que, por
18 Charles Taylor, Imaginrios Sociais Modernos, Lisboa, Edies Texto & Grafia, 2010, p. 105.
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isso, passe o aparente paradoxo, mesmo quando levada a cabo por
instituies privadas, do ponto de vista jurdico, sempre pblica, ficando,
assim, sob a alada quer do direito pblico, quer da autoridade poltica e
do controle administrativo do Estado. Enquanto a educao, levada a cabo
por um sistema educativo tal como o descrevemos neste artigo, for
percecionada como um bem comum, ela s poder ser pblica. A
responsabilidade que compete ao Estado, enquanto curador da res pblica
e definidor do que seja servio pblico, ainda que se viesse a traduzir na
escolha da entrega do ensino a instituies privadas, no saberia, portanto,
ser contestada, salvo se se enveredasse por argumentos elitistas, sectrios,
parciais, resultando, inevitavelmente, num Estado mais autoritrio, porque
menos democrtico, ou num sociedade mais injusta, violenta e sediciosa,
por negar o acesso equitativo de todos a um tal direito.
Importa, neste caso, ter presente que, em matria de ensino, se pode
esperar que o Estado tenha uma atuao mais racional e, eventualmente,
menos intrusiva no que os particulares consigam realizar de motu proprio,
como se tende a pensar na atualidade, mas essa orientao no pode
significar nem a demisso do Estado, nem a substituio do servio
pblico, por uma prestao de servios privados. Para alm do mais, a
razo para que se pondere uma reduo do papel do Estado na esfera
educativa s pode ser a de que o sector privado assuma algumas das suas
prerrogativas, tomando, assim, a seu cargo algumas funes associadas ao
servio pblico. Passe, mais uma vez, o paradoxo, se se pretender pugnar
pela partilha do sistema de ensino entre Estado e privados, a frmula no
pode ser menos Estado, mais iniciativa privada, mas menos
privativismo, mais servio pblico, no que respeita a instituies do foro
privado. Consequentemente, se Taylor tem fundamento para considerar
que, porquanto na idade democrtica, identificamo-nos como agentes
livres [] pode, pois, surgir, uma questo relativa ao Estado moderno,
para a qual no existe analogia na maioria das formas pr-modernas: para
que/quem o Estado? Para a liberdade de quem? Para a expresso de
-
quem?19, o mesmo leque de questes passa a ter cabimento, dirigido
iniciativa privada, em virtude da relao intrnseca do sistema de ensino
com o servio pblico.
Em suma, ao determinar o tipo de procedimento que congrega instituies
estatais e privadas, vocacionadas para o ensino, o conceito de servio
pblico articula-se com aqueles que temos vindo a apresentar como
constituintes de uma efetiva legitimao da liberdade de ensinos,
estabelecendo, outrossim, um critrio decisivo para enquadrar, delimitar e
concretizar, de modo pleno, que no arbitrrio ou indiscriminado, o
exerccio dessa liberdade.
O mesmo j no acontece com aquela que avanada, por muitos, como a
razo principal para a liberdade de ensinos: a liberdade de escolha. Esta,
ainda que fundamental, mormente por constituir a base da prpria
representatividade democrtica, j que na base da eleio est um ato de
escolha, afigura-se, desde logo, demasiado genrica para servir de
justificao a uma liberdade to qualificada e delimitada como a liberdade
de ensino. Com efeito, tambm a ela se aplica o jogo entre possibilidade e
poder, eventualmente, com maior peso, na medida em que, para evitar a
manifesta tautologia resultante da associao do ato de escolher e da
possibilidade de escolher, se impe sujeit-la a um conjunto de perguntas:
quem escolhe, em que condies escolhe, como escolhe, por que motivos
escolhe, em nome de quem, o que cabe escolher, etc.? Consequentemente,
ao invs do que algumas posies de cariz liberal supem, no h uma
relao direta entre a possibilidade de escolher e o poder de escolher,
salvo se a expresso for entendida como um pleonasmo, o que equivale a
no enunciar uma certa liberdade, mas apenas a afirmar a importncia da
liberdade, no que concerne ao humano. Tambm no se d uma correlao
imediata entre a existncia de diferentes ofertas e o poder de escolha, seja
este equivalente capacidade pessoal de escolher ou existncia das
condies necessrias e/ou suficientes para levar a cabo a escolha.
19 Charles Taylor, Op. cit., p. 183.
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No que respeita relao entre a liberdade de escolha e a liberdade de
ensino o esquema de correspondncias oferece-se muito complexo,
porquanto no se trata nem de uma diversidade de oferta, em geral, mas,
como temos discutido, de uma oferta de ensinos, no seio de um sistema
moderno, universal, democrtico e secular de ensino, nem de uma escolha,
em geral, mas de uma escolha do tipo mais adequado de formao, na
sequncia de um exerccio de discusso e ponderao coletiva. Ora, em
tais circunstncias, mesmo que exista uma variedade de ofertas educativas,
o que, como expusemos, no pode ser confundido com a existncia de
vrios tipos de estabelecimento escolar, a liberdade de escolha encontra-se
facilmente reduzida ou mistificada, em funo do modo como se articulam
os contedos correspondentes s vrias perguntas acima formuladas. Sem
dvida que a existncia das condies para a possibilidade de escolher
consagra o princpio de pluralidade que contribui para uma verso mais
equitativa da coexistncia democrtica, mas o seu mrito s se materializa
se a escolha estiver esteada num exerccio efetivo de discusso e
ponderao das alternativas, em termos de ensino, ficando assaz
obnubilado quando funciona como mero pretexto para reproduzir posies
e privilgios convencionados ou idealizados, que provm de motivaes
heterogneas racionalidade educativa, a qual, como temos insistido, deve
ser o fator determinante das escolhas.
Nesta mesma linha, importa evidenciar o equvoco que consiste em supor,
como se vem tornando frequente, que a liberdade de escolha funda um
direito discricionrio dos pais de decidirem sobre a educao dos filhos, o
qual, dada a diversidade de crenas e convices (sociais, polticas,
religiosas, etc.) que concorrem nas sociedades modernas, a qual requer a
liberdade de ensinos, para se concretizar. Ora, se as duas premissas, menor
e conclusiva, so vlidas, desde que no se reduza a liberdade de ensinos
oposio entre pblico e privado, ou se converta os princpios de
pluralidade, tolerncia e secularidade, numa espcie de autorizao para o
doutrinamento de perspetivas contraditrias, seno mesmo lesivas de tais
princpios, j a primeira enferma de uma srie de problemas.
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Desde logo, por esquecer que nas democracias modernas, o sujeito de
direitos e deveres o indivduo, de tal forma que a formao deste que
tem de estar em causa aquando de qualquer deciso familiar sobre os
moldes em que dever ocorrer a sua educao, sendo a famlia uma
instituio, decerto, privilegiada na tomada de deciso, mas no em
regime de exclusividade ou de soberania. Mas, igualmente, por parecer
ignorar que, no caso dos pais, a liberdade de escolha no d lugar a um
direito absoluto de escolha, mas a uma responsabilidade acrescida, por se
poder escolher. O direito absoluto em causa, cabe ao indivduo e o de ser
educado e, em particular, de s-lo de modo a coexistir num mundo
democrtico e justo. que os pais, como os restantes educadores, so
chamados a escolher em nome da criana, no em nome prprio, menos
ainda, em nome da reproduo das suas prprias convices.
Ter, eventualmente, razo Hannah Arendt, ao considerar que face aos
jovens, os educadores fazem sempre figura de representantes de um
mundo do qual, embora no tenha sido construdo por eles, devem assumir
a responsabilidade, mesmo quando, secreta ou abertamente, o desejam
diferente do que .20Torna-se, porm, decisivo que no se identifique essa
responsabilidade pela transmisso conservadora do mundo com um direito
de impor uma sua conceo to substancial, determinstica e territorial que
obste liberdade de aprendizagem. O argumento concomitante de que a
liberdade de oferta encontra a sua justificao no interesse em que certas
mundividncias particulares, perfilhadas pelos pais, passem para os filhos
como uma espcie de continuidade hereditria no tem, por conseguinte,
peso suficiente, face ao desgnio de autonomizao que norteia um sistema
de ensino universal e democrtico. Pelo contrrio, a existncia de
diferentes ofertas, alternando vises mais particulares e outras de pendor
mais universalista, legitima-se pelo modo como possa vir a contribuir para
uma sociedade mais plural, na qual a autonomia judicativa de cada
indivduo signifique um incremento da sua participao ativa e tolerante
nessa pluralizao.
20 Hannah Arendt, A Crise na Educao, Olga Pombo (ed.), Quatro Textos Excntricos, Lisboa,
Relgio Dgua, 2000, p. 43.
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A liberdade de ensinos dever, assim, favorecer uma racionalidade
educativa modesta, para aplicar a noo que, de acordo com Habermas,
melhor se combina com o pensamento ps-metafsico, destinada a
promover um ensino de processos e de esquemas generativos de
conhecimento que permitam dar contedo construo da autonomia do
aprendente. Nesta linha, longe de poder visar a consagrao do direito de
transmitir um mundo fechado e pr-definido, assim concebido pelos
educadores, a liberdade de ensinos encontra a sua razo profunda na
evidncia de que la transformation fondamentale que lcole a connue au
cours du dernier demi-sicle a consist dans la substitution dun systme
culturel centr sur la transmission un systme culturel centr sur lacte
dapprendre.21A verdadeira justificao para a liberdade de ensinos h
que busc-la, portanto, no modo como favorece a liberdade de
aprendizagens e no na maneira como possibilita uma educao sectria
ou doutrinadora, a partir da defesa de um princpio de linhagem.
Tomando a esfera das convices religiosas como exemplo, impe-se
reconhecer, com Charles Taylor, que a modernidade secular, no no
sentido frequente, mas um pouco vago da palavra, em que ele designa a
ausncia de religio, mas antes no facto de que a religio ocupa um lugar
diferente, compatvel com a aceo de que toda a ao social tem lugar no
tempo profano. 22 Ora, assim sendo, h que concluir que a eventual
escolha de um ensino de orientao religiosa no se pode fundar
devidamente no argumento de um direito familiar a condicionar
privativamente as convices religiosas da criana, em funo daquelas
que so seguidas pelos pais, mas to s naquele segundo o qual a
frequncia de uma tal matriz de ensino possa contribuir para reforar a
liberdade de escolha sobre os diferentes credos que coexistem nas
sociedades modernas, incluindo o de no crer.
Esta reflexo permite assentar uma diferena crucial entre os princpios
paternalistas, como enformadores das escolhas em matria de educao
21 Marie Claude Blais et al., Transmettre, apprendre, Paris, Fayard/Pluriel, 2016, p. 7.
22 Charles Taylor, Op. cit., p. 185.
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das novas geraes, e o que se veio a designar como a parentocracia. Por
um lado, como lembra Rawls, aqueles implicam que devemos estar em
posio de defender que, com o desenvolvimento ou a recuperao dos
seus poderes racionais, o sujeito em questo aceitar a deciso por ns
tomada em seu nome e estar de acordo quanto ao facto de que fizemos o
que era melhor para ele,23 enquanto a viso parentocrtica toma como
garantido que o statu quo axiolgico parental est dotado de um valor
intrnseco, incontestado e incontestvel. Por outro lado, ainda na senda de
Rawls, cabe supor que as escolhas, feitas em nome de outrem, se norteiem
pelo primeiro princpio de justia (cada pessoa deve ter um direito
igual ao mais vasto sistema total de liberdades bsicas iguais que seja
compatvel com um sistema semelhante de liberdade para todos24), o que
significa que os decisores devero visar o sistema de liberdades, atravs da
transmisso de uma certa verso substantiva do mundo, ao contrrio da
sujeio das liberdades a uma determinada conceo do mundo, validada
enquanto mero conjunto de crenas, que decorre da posio
parentocrtica. Por sua vez, importa, ainda, ter presente a diferena entre
um paternalismo forte que consiste en ce que le srieux du bon chef
(de Famille, dtat, dglise) et la care de la bonne mre protegent
toujours les personnes delles-mmes, 25 a sustentar o discurso
parentocrtico, dum paternalismo fraco, em que pais e professores se
instituem como garantes du droit des enfants la maturation, 26
entendida como uma progressiva emancipao da menoridade de partida,
para se reconhecer que s esta verso tem a capacidade de constituir la
base du discours protectionniste moderne.27
23 John Rawls, Op. cit., p. 202.
24 Ibidem, p. 203.
25 Pierre Billouet, Le minimalisme ducatif, Anne-Marie Drouin-Hans (ed.), Relativisme et
ducation, Paris, LHarmattan, 2008, p. 53.
26 Ibidem, p. 54.
27 Ibidem, p. 54.
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Desta feita, impe-se concluir que a liberdade de ensinos est no s
comprometida com a liberdade de aprendizagens, mas, tambm, com as
aprendizagens da liberdade, no triplo sentido, daquelas que libertam,
daquelas que abrem para a liberdade dos outros e daquelas que liberalizam
a prtica da justia, em sentido lato.
Uma segunda esfera de significaes diz respeito s condies
fundamentais do exerccio da atividade docente, nomeadamente, ao modo
como na liberdade de ensino se encontram necessariamente conjugadas as
liberdades pessoais e, em particular, se indica a proteo devida
liberdade de conscincia e de pensamento. Estas liberdades que formam,
segundo Rawls, a base constituinte, 28 que assegura a passagem dos
princpios morais de autonomia e de objetividade, aceites na posio
original, para um quadro legislativo justo,29 tm, obviamente, um carcter
universal, aplicando-se, de jure, a toda e qualquer pessoa, e, de facto, aos
cidados de uma sociedade democrtica. Mas, no caso do ensino, em
funo das finalidades preconizadas, da relevncia que o conhecimento
nele adquire, da segurana que deve acompanhar a transmisso, bem como
do grau de autonomia que a relao pedaggica supe, quer ao nvel da
organizao didtica dos saberes, quer no que respeita inventividade e
imponderabilidade das interaes pessoais e profissionais, estas duas
liberdades, de conscincia e de convico surgem diretamente associadas
liberdade de ensino, no de modo genrico, mas como a condio sine
qua non da ensinabilidade.
Podemos considerar, portanto, que, nesta aceo da liberdade de ensino, se
cruzam as trs esferas analisadas por Habermas: a da verdade, associada a
uma pretenso objetividade, a da adequao, ligada a uma pretenso
normatividade nas interaes interpessoais, e a da veracidade, referente a
uma pretenso autenticidade da expresso de cada interlocutor30. Com
efeito, haveria uma profunda contradio, por isso mesmo indesejvel, se
28 John Rawls, Op. cit., p. 166.
29 John Rawls, Op. cit., p. 390-393.
30 Jrgen Habermas, Racionalidade e Comunicao, Lisboa, Ed. 70, 2002, p. 88.
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algum que tivesse a tarefa de ensinar, a qual, se oferece como um modelo
de interao intersubjetiva de tipo comunicativo, claramente, orientada
para o mtuo entendimento, o fizesse relativamente a contedos,
perspetivas, regras, etc., opostas ao seu sistema de convices, incluindo
nesta categoria o conjunto de conhecimentos que, no s possu, por t-lo
adquirido utilitariamente, mas que detm por neles acreditar. Este
princpio supe, obviamente, a contrapartida de que, em caso de coliso
entre as convices individuais e os requisitos estatutrios, os sujeitos
tenham o dever de abdicar do seu vnculo contratual. A liberdade de
ensino corresponde, por conseguinte, margem de autonomia requerida
para que se possa ensinar e para que esse ensino seja profcuo. Cabe,
ento, distinguir dois sentidos principais envoltos nessa prerrogativa que
especificam esta segunda esfera de significao da expresso liberdade
de ensino.
Em primeiro lugar, trata-se do que nos parece dever designar-se como a
liberdade ao ensinar, ou seja, a liberdade de levar a cabo o processo de
ensino e de aprendizagem, com uma margem suficiente de autonomia, no
s para permitir o cumprimento das exigncias profissionais, ou para a
construo de um ambiente de confiana recproca, sem o qual a relao
pedaggica deriva em sucedneos autoritrios e de desrespeito mtuo,
entre docentes e alunos, mas, sobretudo, para possibilitar a plasticidade
inventiva,31 inerente didatizao prpria de qualquer processo de ensino,
que constitui um outro exerccio de equidade, menos bvio, ainda que
mais persistente. Se tivemos em conta a afirmao de Aristteles de que
a natureza da equidade , ento, ser retificadora do defeito da lei, defeito
que resulta da sua natureza universal,32 torna-se percetvel que o ensino
se constitui como esse permanente trabalho de adaptao do universal das
leis, dos regulamentos, dos programas curriculares, da totalidade do
conhecimento passvel de transmisso, da generalidade dos mtodos
31 Lus Manuel A. V. Bernardo, Plasticidade e Traduo: Algumas Reflexes sobre a Textualidade
Formativa, Itinerrios de Filosofia da Educao, n 3/1 Semestre de 2006, Porto, Afrontamento,
pp. 267-292.
32 Aristteles, tica a Nicmaco, V, X, 1137b1-25, Lisboa, Quetzal, 2004, p. 130.
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pedaggicos, singularidade da turma, do aluno, do ambiente escolar, do
tempo, etc., o qual, do ponto de vista da ensinabilidade, equivalente a
uma retificao consecutiva da justia legal. Assim, na medida em que,
como lembra Aristteles, a regra do que indefinido tambm ela
prpria indefinida, 33 esta necessidade intrnseca atuao educativa
requer um tipo de autonomia, ao mesmo tempo, negativa e positiva, uma
vez que mista de no ingerncia e de responsabilidade, de real poder de
deliberao e deciso, de indeterminao liminar e de inventividade
constante, graas qual o ensino se oriente efetivamente para a
prossecuo da aprendizagem, quer pela pertinncia do que transmitido,
quer pela adequao do modo como se efetua a transmisso, quer pela
justeza da adaptao do transmitido s circunstncias particulares.
Esta autonomia admite graus, em funo da relao dos sujeitos com o
saber e das finalidades prprias de cada nvel de ensino e de
aprendizagem, razo pela qual mais ampla no Ensino Superior, onde, por
ser suposto a ocorrer a construo do conhecimento e a relao
pedaggica ser tendencialmente menos assimtrica, os docentes criam os
seus programas curriculares, do que no Ensino Bsico e Secundrio,
vinculado dupla meta de assegurar a formao geral do cidado e de
viabilizar a transio para o nvel seguinte, num regime de maior
assimetria relacional, com a consequente reduo da margem de criao
curricular, mas com um eventual acrscimo significativo da criatividade
didtica e pedaggica. Por ser fundamental relao pedaggica,
enquanto tal, importa preserv-la das interferncias heternomas ao
processo de ensino e de aprendizagem, mantendo a dinmica das suas
restries associada s finalidades do sistema educativo.
Consequentemente, qualquer que seja o campo de ao, por via da
exigncia de uma tal liberdade ao ensinar, resulta consagrada a dimenso
poitica da profisso docente, a qual no se reduz ao cumprimento de
instrues superiores, mas implica a participao ativa de quem ensina na
33 Ibidem.
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definio do que merece ser ensinvel, bem como na gesto das
modalidades da sua concretizao.
Num segundo sentido, esta orientao semntica da expresso liberdade
de ensino, trata da liberdade para ensinar, ou seja, da existncia de
condies sociais, polticas, jurdicas, deontolgicas, que no sejam
impeditivas da sua prossecuo
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