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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP
Igor Gasparini
O corpo e o jornalismo cultural nos processos de mediação com o
espectador
Mestrado em Comunicação e Semiótica
São Paulo 2015
Igor Gasparini
O corpo e o jornalismo cultural nos processos de mediação com o
espectador
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do título de MESTRE
em Comunicação e Semiótica, sob a orientação da
Profa. Dra. Helena Katz.
Mestrado em Comunicação e Semiótica
São Paulo 2015
BANCA EXAMINADORA
DEDICATÓRIA
Helena Katz, minha orientadora, que tanto contribuiu para
que minhas reflexões se concretizassem nesta dissertação de
mestrado. Obrigado por toda a dedicação e pela orientação desde
2010, ano em que iniciei a pós-graduação latu senso, projeto este
que inspirou esta pesquisa de mestrado, a partir de 2013, e encerra
parte dela aqui.
Tania Ferreira, Isis Gasparini e Frank Tavantti, minha
família, que tanto me apoia neste percurso acadêmico e por me
inspirarem sempre.
Jéssica Alonso, pela amizade e pela revisão do texto.
Aos entrevistados: Sheila Ribeiro, idealizadora do 7x7;
Rodrigo Monteiro, coordenador do 7x7; João Andreazzi, diretor da
Cia Corpos Nômades; Elisabete Finger, idealizadora do
Discoreografia; Daniel Kairoz, diretor do Terreyro Coreográfico;
Marika Gidali, diretora do Ballet Stagium; Antônio Nóbrega, diretor
da Antônio Nóbrega Cia de Dança; Ana Francisca Ponzio, jornalista
do portal Conectedance, meus sinceros agradecimentos.
E também agradeço àqueles que contribuíram para a árdua
tarefa de buscar números de público em seus equipamentos
culturais: Do Centro Cultural São Paulo – Andrea Thomioka, curadora
de Dança, Hozana Ferreira, estagiária de dança; Agnaldo Pavoni,
administrador de salas; Luiz Carlos Vitiello, coordenador de Agenda;
e Walter Tadeu Hardt de Siqueira, assistente da Coordenação
Técnica de Projetos; do Teatro Sérgio Cardoso – Mônica Bammann,
programadora; e da Secretaria de Cultura de São Paulo (Galeria
Olido) – Fernando Dourado, programador.
RESUMO
O tema principal da pesquisa é a crise que atinge o jornalismo cultural,
homogeneizando cultura e entretenimento, com graves consequências para a
relação do espectador com a produção artística. O objetivo é investigar o
jornalismo cultural tradicional através de veículos de comunicação, sejam eles
analógicos ou digitais, em comparação às plataformas digitais emergentes
realizadasporartistas(Movimento7X7,Discoreografia,entreoutros).Ointuitoéo
de verificar se os espaços específicos dedicados à comunicação da dança são
capazesdeatrair/cultivar/mantero interessedopúblico,emtemposnosquaisa
segmentação impõe‐se como forma de convívio. Para investigar o encontro do
indivíduocomaobra,apesquisaapoia‐senaTeoriaCorpomídia(KATZeGREINER,
2012).Acomunicaçãoobra‐espectadoré trabalhadanaperspectivapropostapor
MARTÍN‐BARBERO(2009),dequeojornalismoculturaltornou‐seumamediação;
e o espectador é visto como um espectador emancipado, a partir de RANCIÈRE
(2010). Ainda fazem parte da fundamentação teórica os estudos de SCOTT
TIMBERG(2015)sobreaclasseartísticaeosdePASCALGIELEN(2013)sobrea
criatividade como uma espécie de fundamentalismo. A hipótese é a de que o
jornalismoculturalespecializadoemdançajáiniciouumprocessodereinvenção,
de modo a enfrentar o silenciamento crescente nas mídias tradicionais. A
metodologia concentrou‐se na revisão bibliográfica, na análise do corpus aqui
recortadoenarealizaçãodeentrevistascomalgunsdosagentesdessecontexto,a
saber,jornalistas,artistaseprogramadoresdeespaçospúblicos.
Palavras‐chave: jornalismo cultural de dança, comunicação obra‐espectador,
corpomídia,relaçãocultura‐entretenimento.
ABSTRACT
The main focus of this study is the cultural journalism crisis, that
homogenizescultureandentertainmentwithsevereconsequencestotherelation
between spectator andartisticproduction.Thegoal is to investigate the cultural
journalism in the analogical and digital medias, facing the emergent digital
platformsdevelopedbyartists (Movimento7x7,Discoreografia,andothers).The
aimistocheckifthespecificplacesdedicatedtothedancecommunicationareable
to attract/cultivate/maintain the public interests, in a moment in which the
segmentation is imposed as a form of coexistence. To investigate the relation
between the individual with the art piece, the research is based on the Teoria
Corpomídia (KATZ and GREINER, 2012). The communication piece‐spectator is
worked considering the perspective proposed by MARTÍN‐BARBERO (2009),
wherethecultural journalismbecomesamediation;andtheviewerisseenasan
emancipated spectator, according to RANCIÈRE (2010). The studies of SCOTT
TIMBERG(2015)abouttheartisticclass,andtheonesofPASCALGIELEN(2013)
about the creativity as a fundamentalism are also part of the theoretical
foundation.Thehypothesisisthattheculturaljournalismspecializedindancehas
already initiated a reinventionprocess, in order to face the increased silence on
traditional medias. The methodology was concentrated in literature review, the
analysis of a selected corpus and interviews with some of the agents of this
context,namely,journalists,artistsandcuratorsofpublicculturalplaces.
Key‐words: cultural journalism in dance, piece‐spectator, bodymedia, culture‐
entertainment.
Sumário
Introdução ......................................................................................................................... 7
Capítulo 1. A crise no jornalismo cultural ...................................................................... 14
1.1. A cultura-entretenimento ........................................................................................................ 18
1.2. Gêneros jornalísticos .................................................................................................................. 36
1.3. Arqueologia da crítica de dança ........................................................................................... 44
Capítulo 2. A comunicação obra-espectador ........................................................... 54
2.1 Apontamentos sobre a quantidade de público em São Paulo ............................................. 60
2.2 Ainda sobre a comunicação obra-espectador ............................................................................ 67
2.3 O problema ............................................................................................................................................... 73
2.4 A cadeia de produção do mercado artístico ............................................................................... 79
2.5 Comunicar a dança ................................................................................................................................ 93
Capítulo 3. O espectador como questão ................................................................. 95
3.1 Espectador-obra, a relação que não se esgota ....................................................................... 114
Bibliografia .......................................................................................................... 123
Anexo 1 – Entrevistas .......................................................................................... 128
7
INTRODUÇÃO
Existe uma lacuna no processo de comunicação da cultura hoje no Brasil. A
tarefa que se impõe é a de aliar a compreensão crítica da crise no jornalismo cultural
às diversas iniciativas emergentes no ambiente digital. Uma vez que a comunicação
ocorre permanentemente, mesmo quando se dá na forma da incomunicação, o
processo de comunicar é cada vez menos o de transmitir informação e cada vez mais o
de negociar e conviver (WOLTON, 2010). A partir disso, se faz necessário ultrapassar o
modelo unidimensional da comunicação no jornalismo cultural e nele incluir a
dimensão relacional. “Informar, expressar-se e transmitir não são mais suficientes para
criar uma comunicação.” (WOLTON, 2006, p.31).
A arte contemporânea, em suas variadas formas de manifestação, enfrenta
dificuldades para comunicar-se. Com uma abrangência enorme e reunindo as mais
variadas perspectivas, inspirações e técnicas, tende a tornar-se objeto de preconceito,
pois desenvolve pouca familiaridade com o público por não fazer parte das
informações presentes no seu cotidiano. E sem um convívio no qual possa educar a sua
sensibilidade com este tipo de produção artística, o público lida com ela buscando o
mesmo tipo de comunicação praticado na linguagem verbal, que é centrado no
significado. Procura identificar a intenção do artista criador e entender a mensagem
proposta pela obra para formular uma legenda explicativa para o que assiste.
O objetivo desta dissertação é investigar os agentes envolvidos na relação entre
obra e espectador, ampliando o conceito de mediação (MARTÍN-BARBERO, 2009) em
arte à luz da Teoria Corpomídia (KATZ e GREINER, 2012). E aqui se parte da proposta
de que isso ocorre em um contexto no qual o jornalismo cultural tem papel de
destaque, visto que pratica a substituição da arte pelo entretenimento.
Segundo Sérgio Luiz Gadini1, uma tendência cada vez mais crescente na
cobertura jornalística de cultura no Brasil contemporâneo é a gradual redução do
campo cultural para o que se denomina de entretenimento que, não por acaso,
significa diversão e passatempo.
1 Professor de Jornalismo e do mestrado em Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual de Ponta Grossa/UEPG, no Paraná.
8
“Um outro aspecto a ser considerado, nessa ‘conversão’, é o fato de que
a informação sobre o star system não se sustenta apenas no filme,
telenovela, seriado ou realities e talk shows, mas no mecanismo
identificador que geralmente está centrado na vida do ator/atriz dos
referidos programas e produtos. Aqui, o entretenimento se associa à
publicização da vida privada e ao personalismo” (GADINI, 2007, p. 1).
Gadini traz ainda mais um aspecto associado a este processo: a tradição do
colunismo social presente no jornalismo brasileiro, herdado principalmente das
revistas de variedades. E, ao que tudo indica, “o problema residiria, na maioria das
vezes, nas grandes corporações que operam na lógica comercial do consumo – seja
pela espetacularização ou pela lógica do entretenimento” (GADINI, 2007, p. 2). Herom
Vargas, professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade
Municipal de São Caetano do Sul – USCS, complementa:
“A questão é simples: como toda mercadoria dentro do sistema
capitalista, a notícia não escapa do valor de troca, do rótulo colorido e
prazeroso, da divulgação em públicos gerais ou específicos, do dever de
ser interessante, atual e de fácil entendimento, do baixo custo de
produção, da facilidade de acesso e, por fim, de sua função de gerar
lucros à estrutura industrial que a produz, seja ela pequena, média ou
grande. E, se isso acontece com qualquer produto consumido na
sociedade contemporânea, no jornalismo não é diferente” (VARGAS,
2004, p.2).
Nesta lógica capitalista, grande parte do espaço dos cadernos culturais é
destinado à publicidade e à divulgação dos espetáculos. Neste caso, são mídias
compradas pelos próprios projetos dos artistas com recursos das leis de incentivo, que
destinam em torno de 25% de seu orçamento para esta finalidade. Projetos maiores e
com mais verba destacam-se diante daqueles de menor orçamento. Com isso, a mídia
espontânea, a cobertura de assuntos de interesse coletivo, ou a crítica de dança,
9
consequentemente, possuem cada vez menos espaço no jornalismo impresso e na
televisão.
“A divulgação de eventos e dos produtos da Indústria Cultural se
apropria dos espaços da cobertura diária, o que, muitas vezes,
condiciona a liberdade criativa e impossibilita o desdobramento para
uma reflexão mais analítica, crítica e social sobre o conteúdo. Os
espaços destinados à cultura tornaram-se uma grande agenda, onde até
se paga para que matérias sejam publicadas”. (GONZALEZ, 2009, p. 3).
Para Marika Gidali, diretora do Ballet Stagium2, não houve diminuição de
espaço apenas para a dança nos veículos de comunicação, mas para qualquer
manifestação artística, o que implica precisar lidar com outras mídias,
“porque quem tem dinheiro, compra. Por exemplo, se você pega um
jornal com uma página inteira de qualquer global que seja, e você está
ali pequenininho do lado, é um desserviço até. Fica até feio. Então, não
vale nem a pena fazer. Nos Guias, dá para fazer uma coisinha melhor,
mas fora, é uma concorrência absolutamente visual mesmo. (...) Então,
tem que pensar muito bem em como gastar o dinheiro da divulgação
para que você não seja um ‘primo pobre’ daquela coisa toda, porque é
muito chato. Antigamente, nos anos 1980, por exemplo, se você
dançasse no bairro e pusesse um pequeno quadrado, um 10 cm x 10 cm
no jornal, você estava salvo. Você tinha público na certa. Então, era uma
mídia que valia a pena. Hoje, não. Não é por aí. Mudou. Então, tem que
ser rádio, que é muito bom, tem que ser Face, tem que ser Blog, tem
que ser por outros caminhos” (GIDALI, 2015, Anexo 1, p. 146).
2 O Ballet Stagium foi fundado em outubro 1971, na cidade de São Paulo, sob a direção de Marika Gidali
e Décio Otero. Contou com o apoio e influência da classe teatral local e ficou conhecido nacionalmente
por seu projeto de engajamento político. A Companhia inaugurou uma “maneira” de fazer dança no
Brasil.
10
Em que momento, porém, o jornalismo se mistura com o entretenimento? É
possível delimitar um e outro? Para Márcia Franz Amaral (2008), o jornalismo desloca-
se para o entretenimento em todos os movimentos cujo objetivo não seja ampliar o
horizonte e o conhecimento do leitor, o que pode ocorrer na seleção do fato, no seu
enquadramento ou na estrutura da notícia. Adiciona-se aqui a crescente diminuição da
intenção de informar e refletir, substituída pela de distrair, divertir e entreter.
“Uma notícia pode ficar circunscrita à diversão por motivos de ordem
empresarial (venda por sedução da capa, por exemplo) ou por falta de
competência do jornalista. (...) Se é verdade que o entretenimento
informa, também é correto afirmar que essa não é sua função precípua,
assim como ao discurso jornalístico não cabe divertir” (AMARAL, 2008,
p. 66).
O jornalismo mistura-se com o entretenimento não apenas na irrelevância ou
futilidade dos temas, mas, sobretudo, na abordagem das pautas. Isso acontece quando
se constrói a imagem de um leitor (ou espectador) desinteressado pelos temas
políticos, econômicos, sociais ou culturais em geral, ou, ainda, quando se subestima a
capacidade destes para compreender o contexto em que vivem. Assim, o
entretenimento não é apenas aquilo que diverte ou distrai, mas “também está
vinculado à sensação, à emoção e à fruição” (AMARAL, 2008, p. 66) e, por isso, muitas
vezes, estas fronteiras não se apresentam tão demarcadas.
Segundo pesquisa realizada por Amaral (2008), é nos processos de
segmentação dos veículos para as classes C, D e E que o entretenimento aparece com
mais força. “A segmentação do mercado explica a variação das pautas, dos enfoques e
da linguagem, mas não deveria explicar a variação da qualidade da informação”
(AMARAL, 2008, p. 67).
É importante destacar que aqui não se pretende oferecer um recorte
saudosista, que busque comparar a produção jornalística atual na área cultural com a
de décadas anteriores. O interesse é refletir sobre as mudanças em curso no
jornalismo cultural, investigar as iniciativas digitais emergentes e avaliar quais são as
possíveis relações com o público de arte. E a questão que se apresenta reside em
11
como entender o jornalismo cultural hoje, a partir dos seus modos de produção,
caracterizados pela coabitação de diferentes formatos de mídias analógicas e digitais.
“A crise do jornalismo converte-se em paradoxo inacreditável nessa
conjuntura de transição tecnológica, austeridade econômica e ceticismo
político. Sinais de estagnação e decadência são visíveis em páginas dos
jornais diários, enquanto os signos da renovação e da mudança
transparecem nitidamente nas telas dos computadores”. (MELO, 2009,
p. V).
Historicamente, o jornalismo cultural brasileiro já abrigava o entretenimento,
dada a presença das “revistas de humor, a comédia no teatro, o circo e algumas
produções cinematográficas da extinta Vera Cruz, as comédias da Atlântida” (GADINI,
2007, p. 3), entre outras iniciativas. Por outro lado, também havia a crítica literária (em
alguns casos, de cinema, teatro, música e também de dança, mas acoplada a um
destes segmentos artísticos), que se focava no público letrado que acompanhava a
produção destes segmentos e lia jornal impresso. Mas é
“com o fortalecimento da penetração televisiva no cotidiano brasileiro
que os cadernos de cultura acentuam a mudança de sua cobertura –
marcada por ensaios, textos mais longos e apreciação crítica dos
bens/serviços culturais – para notas, imagens e informações que
comentam ou apenas atualizam situações da programação televisiva”
(GADINI, 2007, p. 4).
Com a aproximação entre cultura e entretenimento, os cadernos culturais de
inúmeros veículos visam atingir aqueles interessados na indústria cultural. É preciso
saber que “são os diários mais ‘populares’ os que mais apostam numa abordagem de
cultura como entretenimento, com ênfase no meio televisivo (...), em uma lógica de
consumo fácil: filme para entreter, música para divertir e televisão para não pensar”
(GADINI, 2007, p. 7).
12
O tipo de cognição estimulado pelos produtos voltados ao entretenimento
contamina a forma como o público lida com a obra artística. Isso ocorre porque todo
corpo se constitui das trocas que faz com o ambiente3, e, quando ocorre uma
incidência maior de contato com o entretenimento, as suas características ganham
estabilidade pela repetição.
Compreendendo a importância das relações entre corpo e ambiente, consegue-
se identificar melhor a questão da comunicação com uma arte com a qual pouco se
entra em contato. E pode-se também compreender a importância do papel do
jornalismo quando não ajuda a promover o contato com as diferentes produções
culturais e artísticas. Lazer e divertimento são legítimos, mas a arte também, mesmo
quando deseja incomodar, distorcer, ampliar, produzir outro olhar, fazer pensar. A
intenção desta pesquisa é justamente a de identificar os processos de mediação do
jornalismo cultural, buscando desmistificar preconceitos para refletir sobre os
múltiplos agentes envolvidos na comunicação dança-espectador.
Para Gadini, é necessário compreender que,
“se por um lado, o entretenimento também integra a lógica noticiosa,
por outro, ao priorizá-lo – em detrimento de outras expressões de
sentido presentes numa determinada produção simbólica –, o
jornalismo cultural acaba por se tornar prioritariamente mecanismo de
espetacularização. O problema estaria na centralidade do
entretenimento, com simultâneo ‘apagamento’ dos demais aspectos de
uma determinada expressão cultural” (GADINI, 2007, p. 8).
Vargas (2004) concorda com este contexto, visto que a diminuição dos espaços
para a crítica, a superficialidade das pautas, a presença constante de esquemas de
divulgação de assessorias, a ampliação e variedade de temas tratados sob o guarda-
chuva da cultura e o crescimento e a segmentação do público podem levar à ideia de
que o jornalismo cultural sofre de uma lenta agonia. No entanto, “parece-nos muito
simplória a mera negação da produção atual acusando-a de redundante, superficial e
suscetível a modismos” (VARGAS, 2004, p. 9). 3 Trata-se do conceito Corpomídia (KATZ e GREINER, 2012), que será apresentado adiante.
13
Para Gadini, “buscar formas de abordar a cultura como campo de tensões,
conflitos e projeções dos modos de viver, pensar e agir dos grupos humanos constitui-
se, dessa maneira, em um dos principais desafios do jornalismo cultural brasileiro
contemporâneo” (GADINI, 2007, p. 8).
14
1. A CRISE NO JORNALISMO CULTURAL
O reconhecimento da existência de uma crise no jornalismo cultural desenha
um quadro preocupante porque gera consequências na comunicação da cultura e no
seu papel na sociedade brasileira. Basta reparar na recorrência da espetacularização e
nos processos de rodízio de celebridades que compõem os espaços midiáticos
dedicados à cultura. Vive-se na esteira do hiperconsumismo (LIPOVETSKY, 2007) e em
uma espécie de “ditadura” da publicidade e dos veículos de comunicação de massa,
como a televisão aberta, jornais e revistas, na promoção destes valores. Como
consequência,
“queremos objetos ‘para viver’, mais do que objetos para exibir;
compramos isto ou aquilo não tanto para ostentar, para evidenciar uma
posição social, mas para ir ao encontro de satisfações emocionais e
corporais, sensoriais e estéticas, relacionais e sanitárias, lúdicas e
recreativas” (LIPOVETSKY, 2007, p. 36).
O hiperconsumidor deixa de consumir apenas produtos e busca, sobretudo, a
multiplicação de experiências, “o prazer da experiência pela experiência, a embriaguez
das sensações e das emoções novas” (LIPOVETSKY, 2007, p. 54). Nesta direção, cabe ao
espectador estabelecer uma relação estética com a obra, o que ocorre a partir de sua
experiência individual. E, como esta experiência, para a maior parte da população
brasileira, não está recheada de contato com as diversas formas de arte, uma vez que
a arte está praticamente ausente dos meios de comunicação massivos, o que se chama
de “grande público” não desenvolve familiaridade com ela.
Há, inclusive, muitas pessoas que buscam a experiência de praticar a dança,
procurando pelas mais diversas modalidades, muitas vezes inspiradas por algum
programa de televisão, mas isso não se reflete em uma quantidade maior de público
para assistir a espetáculos e processos artísticos. O hiato entre a experiência prática de
dançar e a experiência sensorial, estética, perceptiva de assistir um trabalho se
mantém.
Tem-se reconhecido a época atual como a “era do vazio” (LIPOVETSKY, 2007):
15
“imediatismo do aqui e do agora como valor em si próprio;
individualismo hedonista, personalizado e narcísico; apatia; sedução
generalizada; legitimação de todos os modos de vida; banalização da
violência social; falsa coexistência de contrários; inversão dos ideais em
que a verdade é soterrada” (LISONDO, 2004, p.335).
Todas estas questões afetarão a comunicação da produção artística em dança4
com o espectador, sendo também necessário levar em conta a nova forma de pensar
os espaços de apresentação, uma vez que, muitas vezes, o próprio espaço já configura
outro papel para o espectador, engajando-o, de maneira ativa, a participar da obra.
Passa a ser necessária uma atitude diferente, pois ele transforma-se em parte
integrante das ações, sendo convocado a posicionar-se fora da passividade de um
consumidor que espera, sentado na sua poltrona, pela visão de mundo que ele já tem
e que a obra lhe reafirmará.
Trata-se do processo de percepção da obra e, para abordá-lo, cabe esclarecer
que partimos do entendimento do corpo como mídia de si mesmo pela Teoria
Corpomídia (KATZ e GREINER, 2012). O corpo não se caracteriza como uma interface
ou um veículo/meio/canal de transmissão, mas como a própria mídia em ação.
Segundo esta Teoria, cada corpo, humano ou não, reúne uma coleção de informações
que o torna único, e é nas múltiplas relações entre esses corpos, neste fluxo
inestancável de troca, que ocorre a comunicação.
É possível relacionar o conceito de corpomídia ao entendimento de que a
percepção humana não é algo que acontece no corpo, mas sim uma ação ativa desse
corpo (NÖE, 2005).
“O que nós percebemos é determinado por aquilo que fazemos (ou
aquilo que sabemos como fazer); é determinado por aquilo que
estamos preparados para fazer. Na medida em que tentamos definir,
4 Nesta dissertação, referimo-nos a produções que se apresentam como processo ou espetáculo de dança, geralmente realizados em teatros ou espaços alternativos.
16
decretamos nossa experiência de percepção, nós agimos sobre ela”
(NÖE, 2005, p. 1 – tradução nossa).
Tudo se modifica quando há ou não referência sobre o objeto com o qual se
entra em contato. No caso de um espetáculo, no encontro com a obra, qualquer forma
de conhecimento preliminar viabiliza um determinado tipo de comunicação a ele
relacionado. “Perceber é uma forma de agir. Perceber não é algo que ocorre conosco
ou em nós, mas algo que fazemos” (NÖE, 2005, p. 1, tradução nossa).
Para Nöe (2005), a percepção é tanto um tipo de ação quanto uma forma de
pensar o mundo, ampliando possibilidades, potencialidades e múltiplas interpretações
de um mesmo objeto observado. Quando não se difunde a informação cultural em um
mundo já hipertrofiado por uma enxurrada de informações que não cessa de ser
produzida e distribuída, cria-se oportunidade para estabilizar o que já está circulando,
em detrimento do que não entrou em circulação. Por isso, cabe uma reflexão sobre o
que fazer a respeito da atual situação do jornalismo cultural tradicional5 e a identificar
as iniciativas emergentes6 que apontam para uma nova direção.
A dissertação parte das seguintes hipóteses: I. A comunicação está sempre
acontecendo, mesmo quando se pensa que não está. O que parece não ser
comunicação ainda o é, mesmo diferenciando-se do que habitualmente consagra-se
como comunicação. E a incomunicação também traz consequências para o campo da
cultura. Todos os agentes do processo de comunicação da cultura estão nele
implicados e por ele devem ser responsabilizados; e II. A crise do jornalismo cultural
está atada à substituição da cultura pelo entretenimento, colocando o âmbito da
cultura que não segue este direcionamento, fora do interesse de grande parcela da
mídia que cobre as áreas culturais, situação que demanda reflexão.
Neste contexto, a arte contemporânea recebe pouco ou nenhum
acompanhamento das suas várias manifestações artísticas. Nos meios de comunicação
5 Nesta dissertação, entendemos “mídia tradicional” como aquela realizada por jornalistas em equipes numerosas e verticalizadas, em empresas de comunicação, como nos jornais impressos, televisivos ou radiofônicos. 6 Apontamos como “mídias emergentes” aquelas que se configuram, sobretudo, no ambiente digital, muitas vezes, não realizadas por jornalistas e, por vezes, de caráter individual como, por exemplo, as plataformas de comunicação desenvolvidas por artistas, que serão abordadas ao longo desta dissertação.
17
de massa (jornais impressos, televisão aberta, entre outros) o espaço é
prioritariamente destinado ao entretenimento e às celebridades. No entanto, a mídia
poderia cumprir outro papel e colocar seu potencial público em contato com as obras.
Referimo-nos aqui não no sentido de orientar este público para o consumo, como as
resenhas o fazem, mas à possibilidade de aprofundamento e reflexão a partir da obra
artística. Então, que espécie de mediação faz hoje o jornalismo cultural?
Os meios tornaram-se mediação e isso gera profundo impacto, pois a mediação
elegeu o discurso publicitário de celebrização, e a arte contemporânea que se mantém
distante desta tendência, independente de qual seja a linguagem artística em questão,
deixa de ser acompanhada pela mídia.
Cabe ressaltar que, ao deixar de difundir uma informação, ocorre não somente
o seu silenciamento, mas, sobretudo, a expansão de algo em seu lugar. E as escolhas
do que será publicado e/ou exibido relacionam-se com a tensão entre a indústria
cultural e a sociedade do espetáculo, emolduradas pela hipertrofiação das relações de
consumo descritas por Lipovetsky (2007, p. 42): “o consumo ‘para si’ suplantou o
consumo ‘para o outro’, em sintonia com o irresistível movimento de individualização
das expectativas, dos gostos e dos comportamentos”.
18
1.1 A CULTURA-ENTRETENIMENTO
Depois que a associação entre cultura e entretenimento se estabeleceu como
prática no jornalismo cultural, houve uma consequente diminuição de espaço para o
que não se encaixa nesta moldura. Assim, o que ganha visibilidade, continua a ampliar
seu espaço, e o que não está na mídia, aparece cada vez menos. Soma-se a isso o fato
de muitas reportagens apenas ecoarem o momento descartável do sucesso
momentâneo daquela obra/artista. E o que vale destacar são as consequências dessa
visível aporia, visto que contaminará também o tipo de produção realizada neste
momento.
Segundo Arbex Jr. (2001), para a atividade jornalística, e não apenas no
segmento cultural, a velocidade é cada vez mais importante:
“A notícia é, por sua própria natureza, uma mercadoria altamente
perecível, torna-se antiga no instante mesmo de sua divulgação,
especialmente em um mundo interconectado por satélites e
bombardeado, a cada segundo, por uma imensa montanha de novos
dados” (ARBEX JR., 2001, p. 88).
Não à toa, a análise aprofundada de um espetáculo, contextualizando-o e
tecendo relações, torna-se uma atividade cada vez mais rara. Basta recorrer ao que
Arbex Jr. (2001) propõe, quando afirma que o regime da velocidade fabricando o
descartável também produz uma “amnésia permanente”, que afasta qualquer reflexão
sobre determinado evento:
“Apenas e somente no processo de interlocução com o outro, no
exercício cada vez mais difícil de saber identificar e escutar outras vozes,
o crítico pode resgatar a memória dos fatos para além de sua
representação estereotipada e manipulada, encontrando as perguntas
certas para orientar seu trabalho de investigação e compreensão dos
fatos. (...) A memória tende a ser ‘encurtada’ – ou obliterada – pelo
ritmo frenético da vida condicionada pelo ‘mercado’, pelas imagens
19
televisivas mostradas em ritmo de vídeo-espaço público, com a
atomização do indivíduo que se retira para manter relação com as
máquinas” (ARBEX JR., 2001, p. 270).
Neste paradoxo entre velocidade e reflexão, arte e entretenimento, é
necessário desenvolver uma nova relação entre jornalismo e espetáculo de dança. Ao
jornalista cultural resta encontrar estratégias de comunicação que complementem e
contribuam para a continuidade do processo de aproximação entre obra e público,
fazendo com que mais pessoas interessem-se pela possibilidade de assistir uma obra
artística. No entanto, a crise é muito mais complexa e envolve não apenas os
jornalistas, mas também, diretores, coreógrafos, curadores e o próprio público. Neste
quadro, o jornalismo cultural tradicional ganha importância, dada a sua posição
estratégica para desencadear a comunicação obra-público. É importante ressaltar que
não defendemos a ideia do jornalismo cultural com a função de “propaganda” para
orientação do público (embora seja esta a realidade de muitos veículos midiáticos, e
seus espaços vendidos), mas apoiamos aquela na qual o jornalismo cultural
potencialize esta comunicação, tornando as pessoas mais engajadas e, com isso, mais
interessadas a entrar em contato com uma obra artística contemporânea. Assim,
ocupa um papel central neste contexto e, justamente por isso, a crise que o atinge
hoje pede por algum prognóstico.
“Até mesmo a velocidade do pensamento, da vida e do trânsito das
pessoas aumentou muito. Não exatamente a rapidez em si, mas o
crescimento do número de acontecimentos que ocorrem e são
noticiados em tempo cada vez menor. Tornamo-nos mais acelerados
para poder dar conta dos excessos, das atividades que precisam ser
cumpridas no mesmo espaço de tempo de antes. Tudo tende a se
tornar mais imediato, fugaz e rapidamente trocado” (VARGAS, 2004, p.
4).
Com o advento da internet, o jornalismo cultural passou a coabitar os
ambientes analógico e digital, porém, ainda é visível que muitos portais são apenas
20
réplicas de seus modelos impressos ou televisivos. Mesmo com a possibilidade do
hiperlink e da participação do público, seja ele leitor, espectador ou ouvinte, esta
participação resume-se aos comentários e, no máximo, ao compartilhamento das
notícias. Porém, o público pouco poderá interferir, ou tampouco produzir conteúdo e
informação. Alguns casos encontram espaço nas redes sociais, nos blogs ou em sites
específicos de determinados temas, e este parece ser o novo cenário que se delineia
para a realidade do jornalismo cultural atual.
Destas possibilidades surgidas com a internet, a informação sobre dança parece
encontrar outro lugar de propagação e crítica, povoado por artistas, e não por
jornalistas. Plataformas como o 7x7, idealizado por Sheila Ribeiro7 em colaboração
com outros artistas, ou ainda o Fanzine de Crítica de Dança, de Daniel Kairoz8, são
iniciativas que caminham na esteira do jornalismo cultural, mas com outra
configuração. Estes e outros exemplos serão aprofundados ao longo desta dissertação.
“A ideia do 7x7 surgiu em 2009. Foi uma coisa super espontânea,
baseada em um sentimento de escassez de vozes. Não uma escassez de
vozes escritas, porque tem muita coisa escrita sobre dança
contemporânea no Brasil, mas de um sentimento de reverberação
mesmo, um sentimento de vitalidade. Por exemplo, você apresenta
uma coisa e aquilo ficava ali, no máximo o que acontecia era as pessoas
conversarem no elevador, entre si, no restaurante, em mesas de bar,
enfim, conversas íntimas, mas não eram compartilhadas. Então, eu
pensei que essas conversas íntimas, de artistas, do público em geral, ou
de pessoas que são habituadas a ver dança, tem um saber, porque este
saber ficava na cultura oral, mas que não era compartilhado. E de certa
maneira era uma história contemporânea, que seria vital se pudesse ser
compartilhada” (RIBEIRO, 2005, Anexo 1, p. 132).
7 Sheila Ribeiro é artista da dança e desenvolve projetos caracterizados por trânsitos com a cultura digital, o mundo pop, a moda e a cidade. Criou o movimento artístico 7x7, que tem por objetivo realizar diálogos poéticos sobre dança entre artistas. 8 Daniel Kairóz é editor, coreógrafo, revisor e diagramador da Phármakon (editora que nasceu para publicar os escritos de poetas, abrindo espaço para o pensamento e para a poesia) em São Paulo. É também idealizador e coreógrafo do projeto Terreyro Coreográfico (Cia de Dança).
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Sheila conta que foi mobilizada por diversos fatores, e a primeira iniciativa do
Movimento 7x7 ocorreu após sua apresentação com Elielson Pacheco do trabalho
Legenda Diet, em 2009, no Festival Contemporâneo de Dança:
“Eu dancei e depois que terminou, terminou. E aí eu achei triste
terminar assim. Olhei para o lado e tinha o Bruno Freire, que eu não
conhecia ainda, e perguntei se ele tinha visto o meu trabalho. Ele
respondeu que sim, e aí eu perguntei se ele não queria escrever ou se
manifestar de algum jeito, escrevendo, com uma imagem, alguma
performance, enfim... Se ele não queria comentar publicamente o meu
trabalho. Ele aceitou e fez um texto que se chama Tudo o que você
precisa saber e este foi o primeiro texto do 7x7” (RIBEIRO, 2015, Anexo
1, p. 132).
7x7 – Arte: Caroline Moraes
Rodrigo Monteiro 9 , coordenador do 7x7, explica o porquê do nome,
informando que, naquela ocasião, havia sete pessoas para escrever sobre sete
trabalhos:
9 Rodrigo Monteiro é formado em Artes do Corpo pela PUC-SP e atua como artista, produtor e curador na região do ABC paulista. Assumiu a coordenação do 7x7 depois da saída de Sheila Ribeiro.
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“Só que depois aumentou o número de trabalhos ou até diminuiu, mas
aí já tinha uma espécie de ‘marca’. Em um primeiro momento, confesso,
ficou essa impressão para mim, que seria um evento, uma ação
específica para o Festival Contemporâneo de Dança, e só depois que fui
entendendo o que era e aos poucos foi se expandindo” (MONTEIRO,
2015, Anexo 1, p. 137).
Em entrevista realizada no SESC Consolação, em 21 de julho de 2015,
questionou-se: Tendo a sua presença ligada à cobertura de diversos Festivais de
Dança, qual a diferença, então, entre o 7x7 e uma cobertura jornalística tradicional?
Monteiro explica, exemplificando com a cobertura da Bienal Sesc de Dança de 2013:
“A gente estava até dividindo a sala, o nosso QG era junto com
jornalistas, jornalistas que, enfim, eram de mídias diferentes. Eu acho
é... que a nossa proposta... O 7x7 não é só aquilo que vai para o site
que, no caso, foi para o Blog da Bienal. Eu acho que ele é também algo
que não se materializa num formato texto, num formato vídeo, que
sobe para o site, por exemplo. Eu acho que as conversas que a gente
faz... Por exemplo, tem uma ação que a gente fez em 2013 que foi
divertida, por sinal. Todo mundo estava no mesmo hotel, todos estavam
trabalhando no evento e a gente, todos os dias, tomava café da manhã
juntos. E teve um artista, o André Masseno, que se apresentou na
Bienal e a gente estava conversando sobre o trabalho dele naquela
mesa de café da manhã. Então, eu acho que isso também é o 7x7. Acho
que ele também acontece neste lugar. Nestas conversas que não são
transcritas, traduzidas para um texto, mesmo que sejam textos, vídeos
ou imagens artísticas. Eles acontecem ali e se encerram ali, às vezes,
muitas vezes, inclusive” (MONTEIRO, 2015, Anexo 1, p. 138).
Sheila complementa e afirma que o 7x7 é mais que um blog ou um site, mas um
movimento, uma ação de comunicação, uma ação de conectividade que tem intenção
de rede e sofre influência da cultura digital, do prazer pelo compartilhamento. Ela
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considera que o movimento chegou a ganhar expressão na dança pela sua prática
artística associada aos estudos da cultura digital, sofrendo influência do Open Source
(software livre) e incentivando essa
“coisa do sharing, de criar vetores de voz, de intenção, de
autorrepresentação, de prossumerismo. Então, o 7x7 tem essa intenção
de hackeamento, de parasitagem, e de fomentar mesmo as divergências
e explicitar fofocas, pensamentos fragmentados, aleatórios,
pensamentos em real time, contribuindo de maneira digital para a
cultura.” (RIBEIRO, 2015, Anexo 1, p. 132).
Sheila contextualiza que o Creative Commons nasce no final dos anos 1990 e
início dos anos 2000. Neste período, a noção de compartilhamento começou a
difundir-se e, com ela, intensificaram-se as diferenças entre as mídias analógicas e
digitais. Ainda que haja peculiaridades específicas em cada ambiente, há muito da
mídia analógica no ambiente digital, como uma cópia, ou apenas uma transposição
daquilo que é feito no ambiente analógico, sendo que a grande mudança está no
âmbito do pensamento digital. Em muitos casos, aquilo que é realizado no jornal
impresso, por exemplo, foi apenas levado para o respectivo site daquele veículo de
comunicação na internet. Ao mesmo tempo, por outro lado, foram criadas outras
possibilidades de compartilhamento, de participação e de produção de conteúdo.
Na internet, estas possibilidades emergentes de produção de conteúdo, como é
o caso do 7x7, muito se diferenciam daquelas que são produzidas por jornalistas nas
grandes empresas de comunicação do país, com sua linha editorial sempre muito
delimitada. A internet permite maior pluralidade de vozes, gerando autonomia, visto
que qualquer pessoa hoje é capaz de produzir conteúdo e disseminá-lo nas redes
sociais. A qualidade desta informação, o nível de apuração e lapidação, tudo isso é
bastante relativo, mas o fato é que existem formas atuais de produção de conteúdo
em mídias digitais que, de alguma forma, pluralizam as vozes.
Sendo uma possibilidade emergente, o 7x7 coexiste com outros meios, como
os jornais impressos e as suas versões na internet. A diferença essencial reside no fato
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de que o 7x7 não ser realizado por jornalistas, mas tratar-se de um compartilhamento
artístico, idealizado e mantido por artistas.
“Por exemplo, no rádio você pode participar, mas não vai ser um
produtor de conhecimento. Você é um interlocutor, um público, uma
pessoa que observa, mas que não necessariamente participa da
construção comunicacional daquilo. Então, a mídia analógica, ela é mais
verticalizada do que a mídia digital, que trabalha com vetores de rede e
é, supostamente, horizontalizada (...) porque há uma pluralidade de
vozes que constrói a comunicação, seja conteúdo, seja expressão, seja
informação... E o que estamos vivendo agora é uma transição. E essa
transição não é cartesiana, antes era analógico e agora está todo o
mundo digital... (...) Há a coabitação entre modos de pensar analógicos
e modos de pensar digitais, às vezes, tratando o analógico com modo de
operar digital, às vezes, tratando o digital com modo de operar
analógico” (RIBEIRO, 2015, Anexo 1, p. 133).
Além da especificidade que podem ter por serem artistas e compartilharem
textos entre pessoas que se reconhecem neste “fazer artístico”, Monteiro também
destaca a possibilidade de poder arriscar, um diferencial do 7x7 em comparação com a
mídia tradicional:
“Por exemplo, como a própria Sheila fala, a intenção, quando ela criou
lá atrás, era que fosse um tipo de uma conversa de bar. Eu acho que é
se arriscar mais para ser mesmo uma conversa mesmo, de fato. E não
fiquemos preocupados com uma informalidade talvez...” (MONTEIRO,
2015, Anexo 1, p. 138).
Questionado se há uma linha editorial no 7x7 e se, de fato, existe total
liberdade para que qualquer pessoa faça suas publicações, Monteiro defende que, a
princípio, as únicas restrições são que o autor seja artista e escreva sobre dança. Sheila
argumenta que existe uma suposta apropriação por parte de quem participa, mas, na
25
verdade, gostaria que a plataforma fosse completamente aberta. Hoje, existe uma
interlocução entre a pessoa que escreve e a equipe do 7x7, com o intuito de duvidar,
brincar, criar polêmica, expandindo ainda mais o diálogo proposto. Sheila afirma que
não existe qualquer forma de seleção e reitera sua intenção de uma plataforma
totalmente aberta:
“Igual o Wikipedia. Você vai lá e põe e muda; muda a cara do site; muda
a cor, posta o que quiser... Eu queria muito que fosse extremamente
colaborativo, para mim, seria 100% colaborativo, mas as pessoas do
grupo do 7x7 nunca aceitaram, porque eles têm medo, e eu entendo,
que no primeiro dia já vai estar escrito ‘Sheila vaca’ ou palavrões, ou
Dilma, sabe, qualquer coisa...” (RIBEIRO, 2015, Anexo 1, p. 136).
Monteiro, que faz o papel de interlocutor no 7x7, poderia ser comparado a um
editor nos veículos de comunicação tradicionais, mas a diferença principal reside no
diálogo aberto entre ele e quem envia seu texto, havendo pouca interferência como
cortes e alterações no texto, ou decisões sobre ser ou não publicado.
“Vamos conversar sobre este texto? Vamos conversar sobre este
trabalho? Vamos conversar sobre como você traduziu este trabalho
artisticamente para este texto? Nesta conversa, chega um momento em
que a gente pode falar: ‘Acho que já se esgotou aquilo que a gente
poderia conversar’ e essas conversas interferiram de alguma forma no
texto. Você concorda? Então, vamos subir? Vamos. Pronto. Acho que é
mais neste lugar. Não é mais de enquadrar em determinado modelo”
(MONTEIRO, 2015, Anexo 1, p. 139).
Existem alguns colaboradores que não participam diretamente do núcleo do
7x7, mas escrevem sempre. E não há qualquer restrição quanto à quantidade de
publicações para cada pessoa. Embora ainda não seja uma plataforma aberta como
idealizada a princípio, Monteiro afirma que sua meta com o 7x7 é “exercitar e
desenvolver um entendimento deste compartilhamento da rede para a infiltração e
26
coabitação e que isso aconteça um dia ainda mais livre” (MONTEIRO, 2015, Anexo 1, p.
141).
Outros exemplos de propostas de diálogo entre artistas são: “Precisa-se de
público”10, de Cláudia Müller e Clarissa Sacchelli, e “Discoreografia”11 de Elisabete
Finger12. Novamente, são iniciativas com aspecto de jornalismo, mas realizadas por
artistas. Ambos são projetos artísticos de comunicação e exemplos de outras formas
de fazer jornalismo cultural.
“O Discoreografia surgiu, primeiro, de uma paixão que eu sempre tive
por essa mídia, pelo rádio. E, a princípio, eu nem estava pensando em
webrádio, foi no sentido muito analógico de rádio mesmo, que você
coloca em casa e escuta enquanto está fazendo outras coisas ou, então,
na época eu tinha carro e passava muito tempo no trânsito, escutando
rádio, e sempre a mesma rádio, e eu percebi o quanto você começa a
reconhecer as vozes, e a reconhecer como se fosse um outro universo
que te acompanha. E eu sempre achei uma mídia super criativa, que é o
10 As artistas Cláudia Müller e Clarissa Sacchelli compraram textos sobre os espetáculos da programação
Semanas de dança (julho de 2014), ocorrida no Centro Cultural São Paulo. Qualquer pessoa que assistia
aos espetáculos podia participar. A pessoa não precisava ser conhecedora de dança, bastava querer ser
um espectador. Qualquer observação ou reflexão valia como ponto de partida e cada um poderia
escrever quantos textos quisesse. Dez textos foram comprados pelo valor de R$100,00 cada e
publicados no livro Precisa-se de público, distribuído pelo Centro Cultural São Paulo.
11 O Discoreografia – Música, Dança e Blá, Blá, Blá é um programa de web-rádio no qual artistas falam
sobre suas obras e seus processos criativos através da música. Em cada programa, Elisabete Finger
recebe um convidado diferente para que ele apresente sua discografia pessoal costurada por histórias,
memórias e projetos. O objetivo do programa é ser um encontro, no antigo estilo do rádio, para escutar
música e falar sobre como ela embala criações coreográficas, performáticas, teatrais, visuais, literárias,
filosóficas, entre outras.
12 Elisabete Finger é performer e coreógrafa, idealizadora do Discoreografia. Desde 2010, mora e
trabalha entre Berlim (Alemanha) e Brasil, realizando projetos solo e em colaboração com outros
artistas. Foi cofundadora e integrante do Couve-Flor Minicomunidade Artística Mundial (2005-2012), e
ainda hoje mantém parcerias criativas com Michelle Moura e Neto Machado.
27
que você pode ouvir mas não pode ver. Então você completa de alguma
forma, você fabrica uma imagem” (FINGER, 2015, Anexo 1, p. 147).
A questão do espectador será ampliada na sequência desta dissertação, mas
vale destacar que Elisabete Finger percebeu que o público do rádio é um público ativo,
visto que o tempo todo constrói imagens a partir apenas de informações sonoras. O
fato de criar um programa nesta mídia abordando a dança, uma arte tão visual, foi o
que mais a motivou a desenvolver o Discoreografia. “Essa ausência de imagem te
convoca a participar com a criação das suas próprias imagens”, afirmou ela.
O Discoreografia surgiu a partir de uma proposta de Neto Machado, quando
Elisabete fez parte de uma “mini comunidade artística mundial”, o Couve-Flor, de criar
um circuito de entrevistas, tendo cada um a liberdade de escolher o formato das
conversas. Elisabete decidiu, então, iniciar seu projeto de rádio:
“Quero fazer um programa de rádio daqueles tradicionais: apresenta
música, fala sobre a música, apresenta outra música, fala sobre a outra
música. Então, assim, conversa, escuta a música, volta para a conversa.
E queria usar este formato para falar de arte e dessas artes do corpo,
Elisabete Finger – Foto: Gabriel Peixoto
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dança, teatro, enfim, que envolvam, qualquer forma de arte que
envolva a expressão do corpo” (FINGER, 2015, Anexo 1, p. 148).
Elisabete realizou, então, o projeto-piloto entrevistando Cris Bouger, uma das
artistas integrantes do coletivo, e, após apresentar o programa para o Itaú Cultural, o
Discoreografia concretizou-se.
“Ela (Cris Bouger) tem um website, e no site dela, tem um ícone que
chama Behind the Bio. Eu, curiosa, fui lá e cliquei, e eram só capas de
discos, aí eu falei: Poxa! Legal, você contar a sua biografia através dos
discos. E tinha lá desde Menudos, Balão Mágico, Patti Simith, coisas
super contemporâneas, umas coisas de Nova York, umas coisas do
Brasil, dá para você traçar mais ou menos o perfil de uma pessoa por ali.
E a ideia foi essa: como é que eu poderia traçar o perfil de um artista,
ou de uma obra, ou de um conjunto de obras, pelas músicas que ele
escuta, mais do que as músicas que ele usa nas peças, as músicas que
ele escuta. Então, foi uma junção desta ideia com essa paixão pela mídia
de rádio” (FINGER, 2015, Anexo 1, p. 149).
Alternando entre conversas sobre a biografia do artista e sua obra, a principal
intenção do Discoreografia é a de discutir processos criativos em arte contemporânea
– em artes do corpo – por meio das músicas que são sugeridas e debatidas
previamente entre artista e a apresentadora. Uma iniciativa muito semelhante aos
programas tradicionais de rádio, porém, realizado por artistas, o que torna a conversa
mais específica e propõe outra forma de mediação com a obra:
“Você coloca a pessoa para pensar dança de outra forma, mais ativa
mesmo, para imaginar essa coreografia, esse trabalho do qual a gente
está falando. Então, eu também queria instigar esse público a pensar: se
eu conheço esse artista, e eu estou ouvindo isso que ele está falando
sobre essa obra, eu quero ver, agora eu quero ver. Aí vai lá, procura, e
vai ver o que ele está fazendo. (...) E o Discoreografia também tinha
29
essa ideia de atingir pessoas que talvez não conhecessem os artistas,
mas conhecem as músicas, então, tem uma outra porta de entrada”
(FINGER, 2015, Anexo 1, p. 149).
Respondendo sobre congruências e singularidades entre a artista que se coloca
na posição de entrevistadora e o jornalismo cultural tradicional, Elisabete diz:
“Primeiro de tudo, eu olho para essas pessoas e elaboro as perguntas a
partir de um lugar do artista, de quem faz. E eu acho que isso muda
muito o ponto de partida das perguntas. E eu procuro olhar para as
pessoas com essa minha experiência. Até quando eu passo muito tempo
sem trabalhar na prática, eu acho que eu preciso voltar para a prática
para eu poder continuar fazendo o Discoreografia. Mas eu acho que
tem um lugar assim de ‘perguntadora’, de curiosa, mas que é uma
curiosidade que vem porque eu pratico, porque estou envolvida com a
feitura, com os processos criativos. Eu não tenho uma preocupação com
a ‘verdade’ ou esgotar uma informação... Não. Eu acho que pelo
contrário, é uma informação muito parcial” (FINGER, 2015, Anexo 1, p.
150).
Segundo Elisabete, o fato de a conversa acontecer entre duas pessoas que
dominam o fazer artístico já torna o programa criativo. Além disso, ela destaca que
não tem a preocupação do programa ser apenas informativo. “Acho ainda que a
principal diferença está na forma como as perguntas são feitas e na forma como as
respostas são dadas. A forma como o artista se apropria da coisa toda é também
criativa” (FINGER, 2015, Anexo 1, p. 151). E continua:
“A gente pensa em um título, que eu acho maravilhoso a gente pensar
em um titulo, porque é uma obra, a gente está criando... É uma coisa
criativa. A gente pensa em uma foto de capa, pensando em um álbum,
como se tivesse gravando um disco mesmo, a ordem em que as músicas
aparecem, o quanto de conversa tem entre uma música e outra, e tem
30
sempre uma dedicatória, que eu gosto muito de propor isso, porque
sempre puxa um lado muito emotivo nas pessoas, que eu também acho
que leva para longe, um pouco, desse discurso... Ah, cheio de verbetes,
que a gente usa na dança contemporânea, então, leva para esse lugar
de: Eu quero agradecer, quero oferecer, quero pensar isso no futuro, ou
isso é para esse trabalho que está nascendo...” (FINGER, 2015, Anexo 1,
p. 156).
Neste debate sobre processos criativos em dança, Elisabete busca encontrar
caminhos que são permeados pela música, seja aquela que o artista escuta apenas em
sua vida particular, seja aquela que lhe inspira a dançar. Com isso, ela defende que o
diálogo mantenha-se entre pessoas que estão ligadas ao fazer, que estão envolvidas
aos processos criativos em dança.
“Essa informação música, na verdade qualquer informação, ela
atravessa o processo criativo de um jeito que nem sempre é linear, nem
sempre é uma flecha que vai para um lugar e o resultado é um
espetáculo. Às vezes, ela esbarra aqui, estilhaça ali, chuta para lá e
quando você vai ver, ela está lá no final, de algum jeito ela está
presente, ou ela está presente só no pensamento desse artista, mas ela
informou um momento desse trabalho. O Discoreografia também tem
esse lugar do fazer artístico e, por isso, sempre que eu convido alguém,
a minha principal linha de ‘curadoria’, são pessoas que estão fazendo.
(...) Importante a pessoa estar nesta prática, de elaborar a obra,
confrontar com o público, girar, fazer turnê, voltar, fazer outras... Este
fazer e esse confronto com o público eu acho que é uma coisa super
específica e eu acho mesmo que as pessoas merecem saber mais sobre
isso. E que seria muito bom para fazer crescer esse púbico, que elas
saibam mais sobre o fazer artístico” (FINGER, 2015, Anexo 1, p. 157).
Sobre o questionamento se o papel de mediação do Discoreografia seria o de
ampliar a discussão a respeito do fazer artístico e, como consequência, aproximar o
31
público da obra, ela afirma: “isso é uma preocupação minha imensa, eu acho que se a
gente não se preocupar com o nosso público, a gente vai morrer! Em pouco tempo”
(FINGER, 2015, Anexo 1, p. 157).
Mais um exemplo de proposta de comunicação idealizado por artistas é o
Fanzine de Crítica de Dança, proposto por Daniel Kairoz. Segundo ele, sua motivação
surgiu da quase inexistência de vozes que ampliassem a discussão sobre espetáculos
de dança:
“Algumas pessoas começaram a escrever na Folha [de S. Paulo], mas foi
algo que não ganhou força e que rapidamente não rolou mais, não
conseguiu criar um espaço, como a Helena criou, por estar também há
tanto tempo. Então, eu acho que isso é muito prejudicial para a dança:
ficar com um único ponto de vista e com uma crítica, como se ela
tivesse que dar conta de tudo também” (KAIROZ, 2015, Anexo 1, p.
166).
Kairoz propôs, então, que os próprios artistas analisassem o lugar do crítico
como aquele que concede o aval da obra ou orienta para um pensamento do que deve
ou não deve ser levado em consideração nas artes. Com isso, os artistas começaram a
escrever sobre os trabalhos de seus pares em formatos diversos, não apenas com olhar
crítico, mas também artístico:
“De não ter esse pretenso distanciamento. Essa lente objetiva para
olhar para o trabalho não existe, porque querer objetivar um trabalho
de arte é bem delicado. (...) Hoje em dia, são pouquíssimos os artistas
que escrevem sobre seus próprios trabalhos, reflexivamente, a não ser
os artistas que o levam para a Academia, fazem mestrado e doutorado,
e daí é um momento em que eles se debruçam para refletir sobre a
prática. O lance do Fanzine, que eu achava interessante, era escolher
um trabalho e chamar diferentes pessoas para escrever sobre ele. É um
pouco um deflagrar essa perspectiva única que está operando há tanto
tempo. Então, chamar diferentes pessoas, com diferentes modos de
32
pensar e de escrever, para olhar para o mesmo trabalho e produzir
materiais diferentes sobre aquilo (KAIROZ, 2015, Anexo 1, p. 167).
Segundo Kairoz, o Fanzine não conseguiu gerar uma autonomia a ponto de não
depender dele para existir e, por este motivo, em pouco mais de um ano e meio,
realizaram-se apenas três edições. Relata que sempre precisou chamar as pessoas para
escreverem os textos, bem como cobrá-las pela entrega, organizar as edições,
estimular a troca entre os artistas, finalizar o “produto”, entre outras ações que
fizeram com que a ideia do Fanzine se mantenha viva até hoje, mas, na prática, o
projeto esteja interrompido no momento:
“Uma das propostas do Fanzine era que cada pessoa que escrevesse,
olhasse os outros textos também e desse feedbacks, não para equalizar
os textos, mas para ser um ambiente também de produção de
pensamento. Não ser simplesmente: Ah... Eu vou lá e escrevo meu
texto, e pronto, já cumpri ele [sic] ali no negócio. Não. Porque tem
textos que são, às vezes, um pouco mais frágeis, que eu acho legal
problematizar, colocar em questão também, porque muitas vezes, são
pessoas que não têm tanto a prática da escrita. (...) Mas de talvez ter
um ponto aqui, talvez se levar o texto mais por esse caminho... Coisas
que quando tem um grupo, eu acho que é muito gostoso de fazer.
Todas as vezes que rolou, foi muito legal. Mas é isso. É um pouco
trabalhoso para manter isso, porque eu também faço muitas coisas,
então, começou a ficar na dependência demais minha e eu queria que a
coisa ganhasse uma outra... Que outras pessoas... De repente, uma tal
pessoa dissesse: Ah! Quero escrever de tal trabalho, ela chamasse as
pessoas e trabalhasse mais enquanto um programa para um Fanzine de
crítica, do que eu sendo a pessoa que conduz, que faz aquilo acontecer”
(KAIROZ, 2015, Anexo 1, p. 168).
Daniel Kairoz ainda relata que a experiência com o Fanzine o estimulou a abrir
sua editora, a Phármakon, pois sentia vontade de publicar textos e trabalhos sobre
33
dança, muitas vezes de pessoas que tinham este material, mas ainda não haviam
publicado. Kairoz passou então a organizar e editar estes textos pela Phármakon. Ele
explica também o porquê do nome Fanzine:
“Fanzine vem da palavra fã e é uma publicação de pessoas que têm um
amor por algo. Você gosta muito de uma coisa e você produz ali uma
publicação independente com aquilo que você ama, daquilo que você
admira, daquilo que você tem tesão... Eu achei muito legal de pensar a
crítica de dança enquanto algo com prazer. Essa relação entre a crítica e
o prazer, que é algo que normalmente é dissociado e tem no prefácio
do Anticrítico, do Augusto de Campos, e eu acho muito bonito isso
assim, que ele fala também dessa relação com o prazer” (KAIROZ, 2015,
Anexo 1, p. 168).
O Fanzine de Crítica de Dança era impresso, e Kairoz destaca a importância
deste material não ser apenas algo que circulasse pelas redes sociais, pois sente que
muitas pessoas ficam sabendo, mas poucas leem aquilo que está apenas na internet.
Além disso, ele buscava trazer o olhar artístico também para a materialização do
Fanzine, procurando dialogar com a obra criticada:
“Eu acho que isso da pessoa ter ali a materialidade para ler, instiga mais
a leitura, eu acho gostoso isso, e também porque eu estava começando
a me interessar muito por essa performance do texto, a publicação
enquanto uma performance do texto. Então, o próprio texto ser [uma
performance], mas o próprio formato também. De não assumir um
formato padrão, de revista, ou de o Fanzine ser uma folha e tal, mas a
cada edição pensar um formato que dialogasse também com o trabalho
que estava em jogo. No primeiro, que era o da Michelle Moura, que é
um trabalho em que ela tem vários pedaços grandes de papel, e forma
um grande chão de papel, e as pessoas dançam por baixo e forma um
pouco essa topografia neste papel... O formato era uma folha grandona,
tipo um A1, todo amassado. Você comprava uma bolinha de papel
34
amassada, e daí você tinha que... [sic] Então, esse gesto do ato de
leitura, de você ter que desembrulhar essa bolinha de papel toda
amassada... Tanto que várias pessoas perderam porque compraram, daí
a moça que trabalha na casa viu, achou que fosse lixo e jogou fora, a
mãe jogou fora... Então, essa performance do texto me interessava”
(KAIROZ, 2015, Anexo 1, p. 169).
Fanzine de Crítica de Dança (no1) – de Daniel Kairoz e colaboradores
Dessa forma, o Fanzine é um exemplo diferente dos casos anteriores (7x7 e
Discoreografia), que são iniciativas que acontecem essencialmente no ambiente
digital. Embora, enquanto existiu, houvesse a materialidade, é possível perceber um
pensamento digital, ainda que em meio analógico, visto que o Fanzine traz vários
textos de artistas que dialogam entre si, que compartilham ideias ora distintas, ora
análogas, sobre uma mesma obra artística.
Kairoz pondera que, embora utilize bastante as redes sociais, duvida o quanto
ela realmente amplia a visibilidade dos trabalhos. Ele acredita na internet como uma
importante fonte de divulgação, pois as pessoas tendem a ficar sabendo do que está
acontecendo, mas reflete sobre o quanto de fato essas pessoas movem-se para assistir
os trabalhos sobre os quais tomaram conhecimento:
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“Porque nas redes sociais, na internet, muita gente diz que vai, muita
gente curte, muita gente acha legal, mas são poucos os que vão mesmo.
De fato. E vão lá assistir o trabalho. Que vão lá presenciar tal coisa.
Então, eu acho que tem algo aí que eu ainda não sei direito do quanto
realmente é eficiente, mas ao mesmo tempo, eu acho que é um
ambiente muito rico, assim, para veiculação. Você poder associar
imagens, com vídeos, com texto... E eu acho que é um lugar muito legal
para se trabalhar texto” (KAIROZ, 2015, Anexo 1, p. 170).
36
1.2 GÊNEROS JORNALÍSTICOS
O Jornalismo cultural agrega diversos gêneros jornalísticos, que variam desde a
informação sobre um espetáculo – como ocorre nos Guias Culturais na forma de um
serviço prestado ao leitor para uma consulta mais ligeira, com suas avaliações por
estrelas, bolinhas, etc. – passando pelas resenhas e chegando aos textos mais densos
como as críticas.
A resenha corresponde, segundo José Marques de Melo (1985), a uma
apreciação das obras-de-arte ou dos produtos culturais, com a finalidade de orientar a
ação dos fruidores ou consumidores. Neste caso, a resenha tem por objetivo indicar
qual espetáculo escolher, dentre tantas opções de uma grande metrópole. Esta
característica é a principal diferença em relação à crítica, que busca uma apreciação
completa do autor/obra.
Para Daniel Piza (2007), a boa resenha será aquela que, em pouco espaço,
busca uma combinação de atributos como sinceridade, objetividade, preocupação com
o autor e o tema. “Deve ser em si uma ‘peça cultural’, um texto que traga novidade e
reflexão para o leitor, que seja prazeroso ler por sua argúcia, humor e/ou beleza”
(PIZA, 2007, p. 71 e 72).
A crítica, por sua vez, faz uma apreciação de outra natureza do autor e da obra.
Ela apresenta o contexto histórico e uma reflexão que necessita de tempo e
conhecimento do objeto para ser elaborada. Não à toa, a resenha enquadra-se mais no
jornalismo praticado atualmente.
Por outro lado, “a crítica exige diferentes métodos e critérios que tornam o seu
resultado incompatível com o exercício periódico e regular em jornal, e mais
incompatível com o próprio espírito do jornalismo, que é informação, ocasional e
leve”, afirma Melo em A opinião no jornalismo brasileiro (1985, p. 99). Os críticos
tentam manter seu espaço, oferecer julgamento estético, aprofundar uma análise,
entrar na abordagem do bem cultural, porém, o espaço para este tipo de texto
diminuiu progressivamente na mídia brasileira. Nos cadernos culturais, a figura do
crítico profissional de algumas linguagens artísticas (dança, teatro, ópera, música
erudita, artes visuais) continua se transformando.
37
“Mas o que deve ser um bom texto crítico? Primeiro, todas as
características de um bom texto jornalístico: clareza, coerência,
agilidade. Segundo, deve informar ao leitor o que é a obra ou o tema em
debate, resumindo a história, suas linhas gerais, quem é o autor, etc.
Terceiro, deve analisar a obra de modo sintético mas sutil, esclarecendo
o peso relativo de qualidades e defeitos, evitando o tom de ‘balanço
contábil’ ou a mera atribuição de adjetivos. Até aqui, tem-se uma boa
resenha. Mas há um quarto requisito, mais comum nos grandes críticos,
que é a capacidade de ir além do objeto analisado, de usá-lo para uma
leitura de algum aspecto da realidade, de ser ele mesmo, o crítico, um
autor, um intérprete do mundo” (PIZA, 2007, p. 70).
Fala-se sobre o quanto uma crítica publicada pode influenciar a ida do público a
um espetáculo de dança, mas a aferição deste efeito é imprecisa em termos
metodológicos. Refere-se, de modo geral, a impressões. No caso da dança, deve-se
ponderar algo bastante relevante, e que relativiza tal curiosidade, por conta da breve
duração das suas temporadas (uma média de três dias), o que faz com que raramente
a crítica consiga ser publicada com o espetáculo ainda em cena.
“Saber se uma ‘infração’ é intencional ou não, e, no caso de ser
intencional, se há razões suficientes para justificá-la, talvez seja a
principal tarefa a que um crítico deve se dedicar – com tudo o que
envolve intuição, com tudo o que exige de experiência, e de raciocínio
também” (COELHO, 2006, p. 36).
O jornalista Marcelo Coelho (2006) desenvolve sua argumentação com
exemplos do cinema para questionar decisões dos diretores em relação a desrespeitar
o que ele chama de “princípios básicos” da linguagem cinematográfica. Refere-se,
assim, a desobedecer a estes princípios de maneira intencional ou não e chama a
atenção para o fato de o crítico precisar estar sensível a isso.
Para ele, o crítico está formulando de modo mais ou menos persuasivo
determinadas asserções a respeito do que “agora vale” e do que “não vale mais” no
38
jogo artístico. Assim, “em qualquer texto sobre arte, a dosagem entre explicação e
juízo de valor, entre raciocínio dedutivo e ato político, sempre varia” (COELHO, 2006,
p. 268) e, com isso, a força do crítico, seu poder imaginativo e discursivo, aumenta.
Entretanto, evidentemente, ele refere-se a um tempo passado que não mais
corresponde à realidade atual, quando são pouquíssimos os críticos deste contexto.
Existem ainda, além da crítica e da resenha, outros textos jornalísticos com
objetivos distintos. Na coluna de opinião, as características são semelhantes, mas o
autor assume seu posicionamento em tom pessoal; a reportagem tem objetivo
investigativo, por vezes relacionada com fatos do dia a dia; e os perfis e entrevistas
relatam a vida e a carreira de personagens de destaque nacional ou internacional.
Dentro destes gêneros há duas situações distintas: o texto direcionado àquela
pessoa que vai ao teatro (ou a outro espaço artístico), e o texto destinado a todos,
inclusive aos que não frequentam o teatro. Esta diferenciação envolve o
direcionamento dos textos jornalísticos, distinguindo o papel do jornalismo crítico e do
jornalismo de divulgação.
Para Nicolas Bourriaud (2009), “a atividade artística constitui não uma essência
imutável, mas um jogo, cujas formas, modalidades e funções evoluem conforme as
épocas e os contextos sociais. A tarefa do crítico consiste em estudá-la no presente”
(BOURRIAUD, 2009, p. 15). Todavia, apresentar as relações entre contexto histórico e
atualidade é uma atividade que demanda tempo de pesquisa, realização de
entrevistas, vivência no acompanhamento da produção daquele campo artístico - o
que não combina com o atual formato reduzido das redações, que exige que o
jornalista trafegue por diferentes campos e produza com muita velocidade – condição
que explica o sucesso das assessorias de imprensa e os releases13 que produzem. Como
observou Piza, “o jornalismo cultural brasileiro já não é como antes” (2007, p. 7),
comparando os textos dos autores do passado com os poucos equivalentes do
presente. O autor ainda defende que
13 Dadas as condições de produção, o conjunto de informações que o jornalista recebe na forma de um
press release tende a ser um “guia” que substitui a investigação.
39
“há muito o que fazer pelo jornalismo cultural no gênero da
reportagem, inclusive no chamado ‘hard news’ (as notícias mais
quentes, inadiáveis), mas isso não pode ser feito à custa da análise, da
crítica, do debate de ideias – vocações características do jornalismo
cultural e carências fortes do leitor contemporâneo” (PIZA, 2007, p. 8).
Ele lista as muitas polarizações que contaminam o jornalismo cultural
diariamente: entretenimento versus erudição; nacional versus internacional; regional
versus central; jornalista versus acadêmico; reportagem versus crítica. Dentre outros,
estes são alguns exemplos do que tece a produção deste segmento jornalístico, mas
permanecem obscuros para os próprios jornalistas, sem tempo de discuti-los no
cotidiano.
Piza (2007) destaca que há muitas pessoas que associam “cultura” a algo
inatingível, “exclusivo dos que leem muitos livros e acumularam muitas informações,
algo sério, complicado, sem a leveza de um filme-passatempo” (PIZA, 2007, p. 46).
Dessa forma, tanto jornalistas quanto veículos tendem a traçar caminhos exclusivos,
que enfoquem apenas um lado ou um grupo específico de pessoas. Resenhar o último
filme hollywoodiano ou o cinquentenário de algum clássico do cinema? Há espaço
para ambos no mesmo veículo? Para ele,
“jornalismo é dosagem. Temas ditos eruditos podem ser tratados com
leveza, sem populismo; e temas ditos de entretenimento podem ser
tratados com sutileza, sem elitismo. Suplementos semanais podem
ganhar vibração jornalística, mantendo a densidade crítica; cadernos
diários, o inverso. Não há propriamente um método” (PIZA, 2007, p. 58).
Ainda segundo o autor, “cada publicação da imprensa tem um público-alvo e
deve se concentrar em falar com ele, sem abrir mão de tentar contribuir com sua
formação, com a melhoria do seu repertório” (PIZA, 2007, p. 47). Qual seria, então, o
público-leitor de um texto de dança, seja resenha ou crítica? Para quem se fala? Quem
são essas pessoas denominadas “leitores”?
40
“O fundamental no jornalista cultural é que saiba ao mesmo tempo
convidar e provocar o leitor, notando ainda que essas duas ações não
raro se tornam a mesma: o leitor que se sente provocado por uma
opinião diferente (no conteúdo ou mesmo na formulação) está também
sendo convidado a conhecer um repertório novo, a ganhar informação e
reflexão sobre um assunto que tendia a encarar de outra forma” (PIZA,
2007, p. 68).
Seria este, então, um caminho para fazer com que as pessoas sentissem-se
“provocadas” a assistir dança? E, com o tempo, o resultado poderia ser um público
maior e mais diversificado neste segmento artístico? Antes de responder a estas
perguntas, cabe lembrar que o jornalismo cultural, ao qual Piza se referia em 2007,
não é o que hoje existe, dada a crise que se adensa nos meios de comunicação e os
exemplos emergentes aqui explicitados. Vivemos outra situação, que produz novas
inquietações.
Consideramos que, mais do que anunciar ou tecer comentários sobre uma
obra, é papel do jornalista cultural refletir sobre o comportamento, indicar tendências,
contextualizar historicamente para ser um “aproximador” entre obra e público,
complementando a comunicação inerentemente presente na relação entre eles. Além
de tentar direcionar, de alguma forma, a reflexão deste público para algo diferente do
que salta aos olhos, do óbvio, fazendo-o pensar inclusive sobre a cultura da qual ele
próprio é parte integrante. Lembremo-nos de Octavio Paz14, quando defende que “ser
culto é pertencer a todos os tempos e lugares sem deixar de pertencer a seu tempo e
lugar” (PAZ apud PIZA, 2007, p. 62).
O que mais difere entre o que acontece agora e o tempo ao qual Piza referia-se
está no alcance e na disseminação da comunicação sem os protagonistas que
historicamente formaram e conduziram o campo. Com o barateamento e a expansão
dos computadores e do acesso à internet por banda larga, as informações que não
alcançam os meios tradicionais de comunicação (jornais, revistas, televisão) não mais
deixam de circular, pois podem estar no Facebook, em grupos de WhatsApp, no
Twitter, no Instagram, entre outros. A utilização destes recursos tecnológicos como 14 Poeta, ensaísta, tradutor e diplomata mexicano, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1990.
41
instrumentos de comunicação modifica a crise que se instalou no jornalismo. Ainda
assim, estes novos caminhos comunicativos ainda não são bem explorados em termos
estratégicos para a conquista de novos leitores ou para sua transformação em público
de espetáculos cênicos.
Algumas companhias de dança têm encontrado nas redes sociais a
possibilidade de contato com seu público e parte delas inclusive utiliza o ambiente
digital em seus processos de criação, como ocorreu no projeto O barulho indiscreto da
chuva (2008), da Cia Corpos Nômades:
“O Blogspot que a gente teve desde 2006 funcionou para uma
construção poética de 2006 a 2008. Existia sem ter a objetividade de ser
jornalístico, mas tinha a subjetividade de ser jornalístico dentro da
poesia que se criou e da difusão que essa poesia propagou. Então, vira
jornalístico, porque divulga e propaga alguma ideia. (...) A gente criou o
Blogspot para ressaltar e colher informações de lembranças indiscretas
das pessoas. Provocava-se a construção de uma possibilidade
dramatúrgica para daí surgir uma criação. Então, em 2006 começamos
com isso com o elenco da época, isso era divulgado, as pessoas foram se
agregando até 2008, quando surge O barulho indiscreto da chuva”
(ANDREAZZI, 2015, Anexo 1, p. 131).
João Andreazzi, diretor da Cia Corpos Nômades, lembra que estava sem local
para ensaios e que ocupava, em esquema de revezamento com outros grupos, um
espaço cedido pelo Centro Cultural São Paulo. Na ocasião, ainda não tinha conseguido
alugar um espaço para ser a sede da companhia, pois O Lugar ainda não existia. A
iniciativa de criar o blog funcionou como uma sala virtual de ensaio, porque permitiu
seguir construindo a poética do espetáculo. Mesmo com a estreia, o processo criativo
continuou durante toda a temporada de O barulho indiscreto da chuva:
“a gente colhia lembranças indiscretas em uma penteadeira, que ficava
na entrada, as pessoas escreviam as lembranças indiscretas e depois
elas acessavam o blog para falar das sensações do espetáculo, e isso
42
entrava na dramaturgia do espetáculo. Então, toda a dramaturgia era
muito interessante porque era curiosa, era viva, era nômade, mudava
com as sensações de quem vinha, e a gente também continuava com
nossas impressões no Blogspot. Depois, ele ainda continuou com uma
função de continuar propagando as coisas que a gente fazia aqui e ainda
o fomos utilizando, postando sensações de outros trabalhos. Mas hoje
eu acho que o Blogspot perdeu um pouco essa característica que tinha,
são poucos os que continuam” (ANDREAZZI, 2015, Anexo 1, p. 131).
Antônio Nóbrega, músico e diretor da Cia Antônio Nóbrega de Dança, relata
que hoje não há mais a dependência unicamente da mídia impressa, como ocorria
antigamente:
“Houve um tempo em que era absolutamente vital você ter um crítico,
por exemplo, de um dos grandes jornais, ter uma reportagem... Eu, 15
anos atrás, não lançava um espetáculo sem um dia antes dedicar para a
Band, para a Globo, para que todas as televisões fossem lá e para sair
nos noticiários. Hoje eu nem me preocupo, aliás, prefiro até que não
vão, porque muitas vezes atrapalha o ensaio... Então, com a
experiência, a gente já manda um teaser, um filme ou um vídeo que a
gente manda para lá, dá uma entrevista e tal... Então, as coisas, neste
sentido, se tornaram mais ágeis e, então, tem todas essas possibilidades
Cia Corpos Nômades - Foto: Henk Nieman
43
que a gente tem... A gente tem uma companhia de seis pessoas, então,
eu tenho seis replicadores. Eu tenho um blog em que eu posso escrever,
então há muitos expedientes. É claro que a mídia impressa ainda é um
expediente poderoso, a Folha de S. Paulo, a Globo, a Veja, a Carta
Capital, estão ainda no topo da comunicação. Mas você pode também
tranquilamente já dispensá-los completamente e não se preocupar
tanto em estar presente neles” (NÓBREGA, 2015, Anexo 1, p. 164).
Nóbrega reconhece que os espaços para a dança diminuíram nas mídias
tradicionais, mas não demonstra pessimismo com relação a isso, embora afirme que
raramente vê críticos regulares nos jornais impressos. Ainda assim, é taxativo: “Hoje os
cadernos de cultura são praticamente cadernos de variedades, eles não são mais
lugares para se discutir ideias, prioritariamente, há certa perfumaria da arte e do
entretenimento, que se sobrepõe à discussão, à crítica mais gorda...” (NÓBREGA, 2015,
Anexo 1, p. 164).
Cia Antônio Nóbrega de Dança – Foto: Silvia Machado
44
1.3 ARQUEOLOGIA DA CRÍTICA DE DANÇA
Para adensar a reflexão sobre a crise do jornalismo cultural, vale rascunhar um
breve histórico da crítica de dança nos principais veículos de comunicação do país.
Como um exercício que atesta a importância deste mapeamento, aqui serão trazidas
informações sobre o que passou pelo eixo Rio-São Paulo a partir do século XX.
É natural que os veículos de comunicação acompanhem a vida cultural e
artística local. Assim, com a inauguração do Theatro Municipal no Rio de Janeiro, em
1909, criou-se um ambiente bastante promissor para que textos de dança fossem
escritos, dada a sua importância em apresentar trabalhos nacionais e internacionais,
localizado no principal ambiente urbano do Brasil do início do século XX. Somam-se a
isso a criação da primeira escola de bailados oficial, em 1927, e do Corpo de Baile do
Theatro Municipal, em 1936, ambos pela russa Maria Olenewa (1896-1965), auxiliando
na formação da dança da cidade e do público para estes espetáculos. Assim, o
ambiente tornou-se propício para que a crítica crescesse no entorno desta cultura da
dança criada na cidade do Rio de Janeiro e apresentasse reflexão a respeito de todo
um contexto cultural, econômico, social, político e artístico da época.
Para Beatriz Cerbino, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF),
toda crítica sempre colocará em evidência um determinado ponto de vista, uma forma
de pensamento que, mesmo com a intenção de ir além do gosto pessoal, não deixará
de ser um julgamento. Isso porque toda crítica estará articulando aspectos estéticos e
políticos vigentes do período em que foram veiculados. Ela pondera que
“tão importante quanto um espetáculo é a discussão que ele pode
gerar, as diferentes maneiras de percebê-lo e de se apropriar das ideias
que ele coloca em movimento. O crítico é fundamental neste processo,
pois pode conversar com a obra e com seu criador, assim como
estabelecer um diálogo entre a coreografia e o espectador,
aproximando ou, muitas vezes, afastando esses dois” (CERBINO, B. apud
NORA, S., 2010, p. 19).
45
Beatriz Cerbino volta à origem da palavra crítica para elucidar questões que
envolvem diretamente a crítica especializada em dança realizada essencialmente a
partir do século XX no Brasil.
“A palavra crítica, do grego kritiké, feminino de kritikós, segundo
definição encontrada em dicionário, é a arte ou a faculdade de
examinar e/ou julgar as obras do espírito, em particular as de caráter
literário ou artístico. É possível, então, estabelecer dois conceitos: um
positivo, como juízo crítico, com o sentido de discernimento, critério,
discussão dos fatos históricos e apreciação minuciosa; e outro negativo,
ligado ao ato de criticar, censurar, condenar ou avaliar
desfavoravelmente. Ou seja, o juízo que acompanha a experiência
estética é reflexivo, pois analisa e estabelece significados para o
acontecimento artístico. Essa significação não é pré-determinada, mas
criada no processo de elaboração acerca da obra” (CERBINO, B. apud
NORA, S., 2010, p. 20).
No início do século XX, frequentemente as críticas não eram assinadas ou
apenas eram acompanhadas por iniciais ou pseudônimos, na clara tentativa de manter
o anonimato da figura do crítico. Na coluna Palcos e Salões, do Jornal do Brasil, as
críticas só passaram a ser assinadas a partir de 1920. No histórico da crítica de dança
no Brasil, é possível considerar Jaques Corseuil (1913-2000) como primeiro crítico
especializado em dança:
“Antes dele, a prática era que críticos de teatro, como Mário Nunes; de
música, como Ayres de Andrade; ou de artes plásticas, como Ruben
Navarra, no Rio de Janeiro, e Nicanor Miranda, em São Paulo,
exercessem uma dupla função, escrevendo também sobre espetáculos
de dança. Por vezes, cabia a um único crítico escrever sobre artes
plásticas, música, ópera e dança. Foi o caso de Antonio Bento (1902-
1988), que manteve uma coluna sobre artes no Diário Carioca por vinte
anos, de 1945 a 1965” (CERBINO, B. apud NORA, S., 2010, p. 24).
46
Segundo a pesquisadora, o mesmo ocorreu em outros veículos, como na revista
Fon Fon, e é apenas no final da década de 1970 que o nome das colunas é alterado,
ganhando identidade própria, caracterizadas como “dança” ou “crítica de dança” em
diários como Jornal do Brasil, O Globo, Jornal da Tarde e O Estado de S. Paulo. Como
resultado, os críticos de dança tornam-se pessoas específicas da área como Suzana
Braga, Casimiro Xavier de Mendonça, João Cândido, Antonio José Faro, Luis Sorel e
Helena Katz, a única que se mantém desde então, tendo começado a carreira em 1977,
no Jornal da Tarde e, escrevendo para O Estado de S. Paulo desde 1986.
“A primeira crítica de dança publicada no jornal carioca Correio da
Manhã, em 18 de outubro de 1913, é assinada por P. e trata da estreia
da companhia Ballets Russes de Diaghilev. (...) O crítico tenta não só
educar o gosto e o olhar do público, assumindo a função de formação
intelectual da plateia, como também explicar como e por que a dança
deveria ser valorizada como expressão cultural e artística” (CERBINO, B.
apud NORA, S., 2010, p. 26 e 27).
Ao longo do tempo, outros caminhos foram tomados como, por exemplo, a
contextualização histórica e estética de uma obra. Para Sally Banes, crítica e
historiadora de dança, esta seria apenas uma das quatro operações que a crítica de
dança poderia ter. Para além da contextualização histórica e estética, a crítica também
pode concentrar-se na descrição do espetáculo e do que foi realizado em cena; na
interpretação, em que o crítico buscará compreender e produzir sentido a partir da
obra; ou ainda na avaliação, baseado no julgamento da obra. E, segundo Banes (citada
por CERBINO, B. apud NORA, S., 2010, p. 31), estas operações não são excludentes e
podem ser encontradas em um mesmo texto crítico:
”Se nas décadas de 1940 e 1950 havia uma grande quantidade de
críticos que acompanhava as temporadas de dança na cidade do Rio de
Janeiro, cerca de vinte, a partir dos anos 1960 houve uma mudança
47
significativa: uma queda desse número para menos da metade”
(CERBINO, B. apud NORA, S., 2010, p. 34).
Este dado importa bastante, pois continuamos observando, ao longo das
décadas posteriores, a diminuição constante do espaço da crítica. Entretanto, como já
propusemos anteriormente neste texto, não buscamos trazer um olhar saudosista ou
pessimista diante destes fatos, mas apresentá-los junto às possibilidades que emergem
com a internet. O fato de São Paulo hoje contar apenas com uma crítica regular
especializada em dança (Helena Katz), apesar de a cidade ser um dos polos culturais
mais efervescentes do mundo, aponta para uma situação sobre a qual a classe artística
necessita posicionar-se.
Se a diminuição de espaço na imprensa tradicional é considerada prejudicial
para a produção, é necessário que a classe encontre meios de reivindicar novamente a
sua presença em tais espaços. Na internet, parece que as diversas inciativas buscam
atender às demandas, enquanto que nos bastidores, impera a sensação de descaso
com a dança em relação às outras linguagens, mesmo que se pondere a diferença
existente entre as linguagens ligadas à escala industrial, como a música ou o cinema.
Nani Rubin (apud NORA, 2010), então editora-assistente do Segundo Caderno
do jornal O Globo, comprova essa disparidade com dados de uma pesquisa realizada
em 2008 pela editoria na qual trabalhava neste veículo: a seção de cultura dedicou
apenas quatro capas para a dança contra 64 para a música, 76 para o cinema, 39 para
as artes plásticas, 14 para a música clássica e 34 para o teatro. A discrepância é imensa
e repete-se também em outros meios de comunicação, como na Folha de S. Paulo e no
O Estado de S. Paulo, que, segundo pesquisa realizada pela J. Leiva – consultoria
especializada em políticas culturais – tiveram apenas 1,1% de suas capas dedicadas à
dança no ano de 2007, o que corresponde ao número de três e quatro capas da
Ilustrada e Caderno 2, respectivamente.
Ainda que apresente tais dados, Rubin (apud NORA, 2010) considera que o
jornal não pode ser responsabilizado, como muitas vezes o é, pela formação de
público, nem pelo sucesso ou fracasso de bilheteria de determinado espetáculo. Para
ela,
48
“o que cria plateia é a educação, uma política pública de promoção da
arte que leve os espetáculos aonde houver gente que esteja faminta por
eles, embora possa até não ter consciência disso, ou que faça com que
as pessoas frequentem os espaços onde eles estão sendo apresentados.
O jornal não produz a notícia; ele identifica o que é notícia e a divulga,
em suas páginas, sob uma perspectiva que considere interessante a
seus leitores, funcionando como um amplificador da informação”
(RUBIN, N. apud NORA, S., 2010, p. 43).
Trazendo para o contexto de São Paulo, a jornalista Ana Francisca Ponzio15, por
outro lado, não tem uma visão tão otimista, como temos chamado a atenção aqui, em
relação ao poder das redes sociais. Ela considera que, na verdade, o ideal seria que a
internet fosse um complemento da mídia tradicional e contou sua trajetória
profissional, desde o final da década de 1980, quando começou sua carreira no Jornal
da Tarde, para justificar tal pensamento. Destacou momentos importantes deste
histórico até chegar aos dias de hoje, não mais inserida na imprensa tradicional, mas
coordenando e escrevendo para o seu portal Conectedance.
Ana viveu muito perto e sentiu na pele as mudanças do jornalismo cultural dos
últimos 30 anos. Para ela, no passado a situação era muito melhor, e relatou que,
embora tenha praticado dança, sua intenção sempre foi a de escrever, podendo levar
para a redação essa vivência e afinidade:
“Quando eu cheguei ao jornal, para mim ainda havia essa possibilidade
legal de você escrever. Nesta época, havia o que passou a se chamar
cobertura especializada em dança, então, tinha pessoas que escreviam,
a Helena é uma delas, Rui Fontana Lopez, o próprio Sábato Magaldi,
eram referências. E eu fui aquela que foi trabalhar na redação”
(PONZIO, 2015, Anexo 1, p. 176).
15 Ana Francisca Ponzio é jornalista, crítica, curadora e produtora de eventos na área de dança. Criadora do Portal Conectedance, responde pela direção e edição deste website.
49
Ana relata que nunca teve a intenção de ser uma crítica de dança, e acredita
que esta seja uma consequência natural do trabalho do jornalista:
“Faz parte, mas sempre o grande tesão para mim foi fazer o que a gente
chama de ‘boa reportagem’, porque para mim, envolve pesquisa, você
correr atrás, apurar a informação, escrever aquilo legal com começo,
meio e fim... E até certo momento, foi possível, porque eu peguei um
momento privilegiado na imprensa” (PONZIO, 2015, Anexo 1, p. 177).
Ana destaca que já na década de 1990 iniciaram-se as demissões, e ela teve
que encontrar formas para galgar espaços. “Naquele tempo, a gente podia fazer
qualquer reportagem, tentar esgotar um assunto, e isso para mim foi um grande
aprendizado” (PONZIO, 2015, Anexo 1, p. 178). A jornalista refere-se às experiências
obtidas pela Revista Elle; quando foi editora na Revista Bravo; quando escreveu para a
Ilustrada, da Folha de S. Paulo, ou ainda para o Caderno 2, do Estado de S. Paulo. “Foi
um desgosto quando eu vi o que, para mim, era uma profissão, entrar em derrocada.
Entrou e agora você tem que reinventar” (PONZIO, 2015, Anexo 1, p. 177).
Ana também percebeu na Folha de S. Paulo algo semelhante ao que Rubin
(apud NORA, 2010) verificou a respeito da diminuição de capas dedicadas à dança no
jornal O Globo no Rio de Janeiro. “Eu fazia capas, e capas, e capas sobre dança. Então,
a dança estava presente”, afirmou ela, que começou a trabalhar na Ilustrada em 1994
e por lá permaneceu por 16 anos, período que lhe permitiu vivenciar todo o processo
de alterações no jornalismo cultural brasileiro.
“E para mim vinha assim de uma coisa purista também, porque naquela
época não tinha também essa coisa da receita publicitária
determinante. Eu não sei o que eles faziam que viabilizasse aquilo e, de
repente, me vi um dia fazendo trabalhos bacanas, elogiados, e, de
repente, alguém fala lá: ‘dança não tem importância’, e eu me dei conta
que o critério, o que estava valendo era: não dá receita publicitária,
audiência, essa mensuração começou a ser muito mais efetiva e
importante” (PONZIO, 2015, Anexo 1, p. 178).
50
Ela relata também sobre as diversas mudanças percebidas e vivenciadas
inclusive nas formas de contratação: viu muitos funcionários demitidos, carteiras de
trabalho não eram mais assinadas, resultando na transferência do funcionário para a
figura de colaborador:
“A gente passou a ser microempresa, essas coisas assim terceirizadas,
nossa, tudo isso eu vivi. E daí criaram essa fachada do colaborador,
então, para não ter custos trabalhistas, você fica em casa trabalhando,
com sua estrutura, então, não tem obrigações... Ai, Deus me livre!”
(PONZIO, 2015, Anexo 1, p. 179).
Ana pondera que criar o Portal Conectedance foi uma alternativa que serviu
como possibilidade para manter seu trabalho sobre dança ativo e conta que, desde o
início, foi bastante idealista quanto aos propósitos do site. Ela concebeu o
Conectedance em 2009 e, desde então, contribui com reportagens, serviços, críticas e
vídeos sobre dança, tudo veiculado apenas na internet.
“Finalmente eu tenho espaço onde eu vou poder fazer todas as
matérias que eu amo fazer. Planejei como uma publicação completa, eu
não queria um blogzinho, eu sempre pensei em desenvolver coisas para
a dança que dessem a ela o seu status, não fosse rabeira, não fosse
mambembe, não fosse o secundário. (...) Quando eu fiz o
Conectedance, fui percebendo a importância do meio digital, e eu,
assim como outros, sempre tivemos aquele sonho de ter uma revista
para a dança, mas sempre esbarrava em como viabilizar isso, porque a
impressão é cara, distribuição é complicada, e a internet resolveu isso.
Eu acho que a gente ainda está em um momento de muita
transformação, revolução, nós todos vamos nos adequando, mas ainda
tem muita coisa que a gente nem tem noção, do quanto isso vai
interferindo e vai trazendo mudanças”. (PONZIO, 2015, Anexo 1, p.
180).
51
Ana destaca o poder de divulgação que as redes sociais proporcionaram às
Companhias, mas avalia-o como um complemento:
“[O poder da internet] não pode ser único, faz parte de um conjunto.
Porque, ao mesmo tempo, é superficial, é descartável, ele não fixa, tem
essa coisa do consumo, da novidade a todo o momento, então, eu acho
que é uma ferramenta importante, mas ele tem que estar agregado a
outras coisas, e eu acho que é esse equilíbrio que a gente tem que
buscar em diversos canais. (...) Percebo que hoje tem algumas outras
publicações, eu diria até que são todas complementares, porque cada
uma tem o seu perfil, a sua proposta editorial” (PONZIO, 2015, Anexo 1,
p. 183).
Sobre a questão de não contar com toda a infraestrutura e com a equipe com a
qual estava acostumada a trabalhar nas empresas jornalísticas, Ana relata como
enfrenta as várias dificuldades para manter o material sempre atualizado. Ainda assim,
percebe que
“a proposta é essa, você difundir a informação, e eu mesma sei que
uma informação consistente, ela te desperta, ela te leva, te conduz a,
usando positivamente o termo, a consumir cultura, a você descobrir, ter
aberturas para a arte contemporânea, tudo isso. Então, é acreditando
nisso que a gente se dispõe a fazer” (PONZIO, 2015, Anexo 1, p. 185).
E encerra com uma posição que reafirma seu saudosismo por uma época que
não existe mais: “É por isso que eu acho que os impressos estão afundando, porque a
internet se antecipa na informação em si, e os impressos, que tinham a função de
aprofundar, não estão aprofundando. A tal reportagem, que eu acho o máximo, não
tem mais” (PONZIO, 2015, Anexo 1, p. 185).
Para além deste olhar jornalístico proposto por Ana Francisca Ponzio, também
há, por outro lado, o sentimento dos artistas em relação a estas alterações ocorridas
no jornalismo cultural nas últimas décadas.
52
Há uma nova relação entre os artistas e o material publicado nas mídias, graças
à valorização deste material midiático nas disputas pelos editais apoiados nas Leis de
Incentivo à Cultura. Os artistas passaram a buscar espaço na mídia como uma forma de
legitimação a ser exposta nos portfólios produzidos em busca de financiamento – o
que não necessariamente está relacionado à preocupação com o aumento de público.
Rubin (apud NORA, 2010) ainda reflete sobre a hipótese de a dança
contemporânea ter se afastado de um potencial público de dança, devido à
aproximação de um espectador ávido por novas experiências sensoriais, alegando que
não se trata de fenômeno exclusivamente brasileiro e pode ser notado, inclusive, em
países europeus. É importante destacar também que a explosão da dança
contemporânea no Brasil aconteceu a partir dos anos 1980, e “o público talvez ainda
demore um pouco para assimilar a transformação, num mundo em que tudo está
mudando tão rápido” (RUBIN, N. apud NORA, S., 2010, p. 45).
Para a jornalista, algumas ações podem
“ajudar a plateia a não se frustrar a se ver diante de um espetáculo em
que há de tudo um pouco, e muito pouco de dança, no sentido original
do termo. E, de certa forma, a ir mais preparada, mais ‘aberta’, a uma
nova experiência de dança ou seja lá o que for apresentado sob essa
rubrica. (...) O fato é que um e outro, somados à dificuldade do público
para compreender espetáculos tão híbridos, determinam, sim, que haja
menos reportagens de dança do que de cinema, teatro, música, etc.”
(RUBIN, N. apud NORA, S., 2010, p. 45).
Nani ainda pondera que o jornalismo está mudando, assim como o público
tende a mudar. E que, possivelmente, haverá um momento em que nenhum artista
reclamará de não ter saído no jornal, neste como se conhece ainda hoje, “porque
haverá sempre ‘jornais’ nos quais divulgar seu trabalho, que saberão falar para
diferentes públicos, sobre diferentes assuntos – inclusive de dança como dança e da
dança como uma arte multidisciplinar” (RUBIN, N. apud NORA, S., 2010, p. 55).
Ainda que este tempo seja apenas um exercício de futurologia, diversas
iniciativas de comunicação estão sendo testadas, como aquelas aqui exemplificadas
53
(7x7, Fanzine de Crítica de Dança e Discoreografia) e parecem encontrar outro
caminho, mais artístico e menos jornalístico, para se falar sobre dança. Um cenário
diferente daquele apontado por Cerbino (apud NORA, 2010), ao sublinhar a existência
de críticos especializados nos jornais brasileiros: ”Importa agora perceber que essa
escrita transformou-se, e a dança pode contar, para além de impressões e descrições,
com reflexões de quem se dedica a estudar seus processos e procedimentos artísticos”
(CERBINO, B. apud NORA, S., 2010, p. 38).
54
CAPÍTULO 2. A COMUNICAÇÃO OBRA-ESPECTADOR
Todo espetáculo comunica algo. Nem sempre está na forma de uma mensagem
clara, mas há sempre algo sendo comunicado ao público. Seja verbal ou não verbal,
esta comunicação inicia-se antes mesmo de o espectador chegar ao teatro, pois, ao
sentar-se na plateia, geralmente já conhece algo sobre o autor (o que cria certa
expectativa), sabe o nome do espetáculo, possivelmente leu o texto do programa (caso
ele exista), viu alguma foto e/ou ouviu algum comentário sobre o que vai assistir. A
comunicação continua ocorrendo por outros elementos que aparentemente estão fora
da cena, como o próprio local da apresentação, quem comentou sobre o espetáculo, o
tipo de visibilidade/reconhecimento de quem apresenta a obra, entre outros. E a
comunicação continua na cena: a movimentação de quem apresenta o trabalho, as
imagens coreográficas criadas, os gestos e as posturas adotadas e, além disso, o
figurino, a maquiagem, os adereços cênicos, a iluminação, a música, a dramaturgia,
caso existam. O processo também continua após a apresentação, pois é muito
provável que haverá conversas e comentários sobre o espetáculo, a leitura de textos,
entre outras iniciativas.
Quando se trata de arte, a comunicação constitui um tema de complexidade
específica, especialmente quando se pretende identificar a ação dos múltiplos agentes
que trabalham na construção da relação obra artística-espectador.
Tendo como moldura a mudança que atinge o jornalismo tradicional, buscou-se
aqui identificar a troca da arte pelo entretenimento e o surgimento de novos meios de
comunicação no contexto digital. Torna-se relevante identificar iniciativas contra-
hegemônicas, tanto no que diz respeito àqueles que as produzem, como também ao
modo como lidam com o espectador. A partir do conceito de corpomídia (KATZ e
GREINER, 2012), explicitamos que o fluxo de trocas entre corpos e ambientes é
constante e inestancável, e que, no caso da relação obra-espectador, os fluxos
ocorrem da mesma forma.
Quando se emprega o conceito de corpomídia, modifica-se um pouco o
entendimento da premissa de que toda obra artística comunica algo ao público,
entendendo-o como receptor de uma mensagem. O espectador deixa de ser um
agente passivo neste processo, apenas recebendo a informação, e entende-se que o
55
espectador também atua com a sua percepção, recortando e editando o que vê. Esta é
uma perspectiva diferentes daquela que se tornou hegemônica, uma vez que postula
um fluxo de co-dependência entre corpo e ambiente. O conceito de corpomídia
responsabiliza cada um naquilo de que toma parte, seja assistindo a um espetáculo,
escrevendo sobre ele, falando dele ou atuando na obra. Fazendo uma leitura do
contexto da produção jornalística à luz da Teoria Corpomídia, torna-se possível
compreender que, apesar de ter um papel de destaque, o jornalismo cultural não é
solista nos processos de comunicação com o espectador, pois faz parte de um fluxo
maior, no qual se percebe atualmente a aproximação entre cultura e entretenimento.
Dentre as teorias que se propuseram a estudar o que tece o processo de
comunicação, trabalhamos com a Teoria Corpomídia (KATZ & GREINER, 2012), uma vez
que nela o corpo ganha uma relevância distinta da que se dá em outras propostas
teóricas, consagradas na área da comunicação como, por exemplo, a Teoria da
Informação, elaborada por Shannon e Weaver16 (1948).
Com o conceito de corpomídia, entende-se que o corpo está sempre
comunicando quais informações o constituem em cada momento. O corpo
“não é um veículo ou um canal ou um meio pelo qual alguns conteúdos
internos, de vez em quando, podem ser expressos. O corpo é sempre
mídia de si mesmo e não um corpo que depende de uma ação
voluntária para expressar-se. Por isso, todo corpo é um corpomídia”
(KATZ, 2010, p. 19).
Para Martín-Barbero, o corpo é a fonte de toda a percepção, nosso principal
modo de habitar o mundo, o lugar a partir de onde realizamos sua apropriação. “Pois
perceber é descobrir-se enredado nas coisas, participar nelas por uma familiaridade
anterior a toda consciência explícita” (MARTÍN-BARBERO, 2014, p.36).
Em um espetáculo de dança, o corpo é a mediação, algo mais complexo que o
meio, ainda que nesta pesquisa, meio seja tratado conforme o conceito de Marshall
16 “Consiste em uma sistematização do processo comunicativo a partir de uma perspectiva puramente técnica, com ênfase nos aspectos técnicos”. (HOHLFELDT ET. AL., 2001, p. 121). Por esta corrente, haveria: Fonte de informação, Transmissor, Canal e Receptor/Destino.
56
McLuhan (2007), no qual não apenas o meio faz parte da comunicação, como também
determina o próprio conteúdo comunicado. Diferente de outros entendimentos do
conceito de meio como sendo incapaz de produzir os conteúdos comunicativos que
veicula, McLuhan propõe que diferentes veículos (diferentes meios de comunicação)
desencadeiam diferentes mecanismos de compreensão, adquirindo novos contornos
e, consequentemente, distintos significados. Por isso, afirma que “o meio é a
mensagem”.
“Isso apenas significa que as consequências sociais e pessoais de
qualquer meio – ou seja, de qualquer uma das extensões de nós
mesmos – constituem o resultado do novo estalão introduzido em
nossas vidas por uma nova tecnologia ou extensão de nós mesmos”
(MCLUHAN, 2007, p. 21).
McLuhan explica ainda que “toda extensão é uma amplificação de um órgão, de
um sentido ou de uma função que inspira no sistema nervoso central um gesto
autoprotetor de entorpecimento da área prolongada – pelo menos no que se refere a
uma inspeção e a um conhecimento diretos”. (MCLUHAN, 2007, p. 197). E completa
exemplificando que o artista sério seria a única pessoa capaz de enfrentar,
impunemente, a tecnologia, justamente por ser um perito nas mudanças da
percepção.
“O exame da origem e do desenvolvimento das extensões individuais do
homem deve ser precedido de um lance de olhos sobre alguns aspectos
gerais dos meios e veículos – extensões do homem – a começar pelo
jamais explicado entorpecimento que cada uma das extensões acarreta
no indivíduo e na sociedade” (MCLUHAN, 2007, p. 20).
Antes de seguir, cabe uma observação importante: a Teoria Corpomídia detém-
se no conceito de extensão de McLuhan e o atualiza em consonância com os
conhecimentos sobre o corpo produzidos pela perspectiva evolucionista e pelos
estudos das ciências cognitivas. Assim, propõe que tudo aquilo a que McLuhan referia-
57
se como extensão seja lido como distensão. A razão é forte: como o corpo nunca se
apronta, não é possível trabalhar com o entendimento de que algo seja a sua
extensão. A proposta é pensar que o corpo vai se distendendo ao longo do tempo, de
acordo com as experiências que vivencia nos ambientes.
É importante demarcar também que, segundo Katz e Greiner (2012), esse
conceito refere-se a tudo o que puder ser identificado como corpo, humano ou não,
ou seja, tudo o que puder ser identificado como uma coleção circunscrita de
informações e que não para de se transformar. “Meio e corpo se ajustam
permanentemente num fluxo inestancável de transformações e mudanças” (KATZ e
GREINER, 1998, p. 91). A comunicação, portanto, é tecida por este ajuste contínuo de
alterações, sejam elas reconhecidas por nós ou não.
Sendo cada corpo mídia de si mesmo, isto é, do conjunto circunstancial de
informações que o torna corpo e que nunca se completa porque o fluxo de trocas com
o ambiente jamais estanca, é possível afirmar que os processos de comunicação são
permanentes. Como se sabe, toda informação busca a sua sobrevivência através da
adaptação e da reprodução. E, se assim é, vale lembrar que o jornalismo cultural,
quando não informa algo, diminui a chance daquela informação adaptar-se e poder
reproduzir-se. Quando um meio de comunicação publica/divulga algo, permite que a
informação contamine pessoas. E sempre que uma informação pula de um cérebro
para outro, ganha chance de sobreviver. Esta lógica tem feito das redes sociais uma
importante estratégia de propagação e difusão dos trabalhos de dança, e esta
dissertação traz alguns exemplos.
Segundo o pesquisador Richard Dawkins17 (1976), a comunicação é viral e
propaga-se em analogia ao contágio. É preciso que as pessoas sejam contaminadas, ou
seja, é preciso encontrar com a informação, condição indispensável para que possa ser
gerado algum interesse pelo que ela veicula. Uma vez infectado por este contágio, o
sujeito torna-se apto a infectar outra pessoa ao comentar com ela a informação que
encontrou. E, quanto mais pessoas são contaminadas, maior a propagação destas
17 O Gene Egoísta (The selfish gene), publicado em 1976, pelo biólogo Richard Dawkins, traz o conceito de meme para explicar a transmissão cultural, dizendo que se trata de uma informação que se propaga de cérebro a cérebro.
58
informações no mundo. Dependendo da qualidade dos memes18, a informação poderá
fortalecer-se ou enfraquecer a obra. E, por este motivo, é importante que a dança
esteja em pauta, em discussão não somente entre os próprios artistas, mas também
na mídia e nas redes sociais, pois quanto mais informação for gerada, maior a
quantidade de memes e, consequentemente, mais pessoas infectadas, propagando-a.
O grande interesse de Dawkins está justamente em buscar entender como são
transmitidas as informações culturais:
“A comunicação acontece quando uma mente ao agir sobre seu meio
ambiente influencia outra mente e, nesta outra mente, ocorre uma
experiência que é semelhante à experiência na primeira mente que é
causada, em parte, por aquela”. (DAWKINS, 1976, p. 177).
Seguindo o entendimento do contágio, consegue-se compreender que, ao
encontrar-se com um tipo de informação muito distante daquelas com as quais se tem
o hábito de conviver, é natural não reconhecê-la e não saber avaliar a sua importância.
Mas, como o corpo não recusa a informação com a qual entra em contato, se ele
continuar encontrando-a, o desconforto inicial se transformará. Como, em geral, as
pessoas são educadas a buscar um significado para as obras de arte, mantém-se esse
padrão no contato com os espetáculos de dança e, quando não se consegue encontrá-
lo, tende-se a desmerecer a obra, sem lembrar-se de tudo o que está envolvido neste
processo de percepção.
Como tudo o que estará em cena será comunicado, sabendo ou não o seu
significado, pode-se dizer que o contato com as escolhas presentes em qualquer obra
agem de alguma forma sobre o público e modificam a coleção de informações que o
constituem. Desse modo, os criadores precisam refletir sobre sua responsabilidade
nesta potente relação, na qual atuam como propositores de valores que contaminarão
todos com os quais entrarão em contato. As formas do movimento não são apenas
formas do movimento, mas ideias sobre o mundo que tomam a forma de gestos ou
passos e contaminam quem as assiste. Trata-se de um processo no qual todos estão
18 Unidade de informação que se multiplica de cérebro em cérebro. Conceito desenvolvido pelo biólogo Richard Dawkins.
59
implicados: quem cria, quem coloca em cena e quem assiste, pois refere-se a escolhas
feitas que produzem consequências no mundo.
Quando alguém não gosta daquilo que assiste, ele contaminará outras pessoas,
e assim, sucessivamente. É sempre importante refletir sobre o que está sendo
proposto, sobretudo quando muitos começam a apontar uma crescente diminuição de
público.
60
2.1 APONTAMENTOS SOBRE A QUANTIDADE DE PÚBLICO EM SÃO PAULO
Artistas da dança contemporânea comentam que, em geral, há uma sensível
diminuição de público nos espetáculos apresentados. Independentemente dessa
possível redução quantitativa, é importante ponderar sobre os muitos agentes que
participam desta cena ao longo do tempo.
Como afirma Scott Timberg19 (2015), a classe artística reúne, além dos artistas,
um número maior de agentes:
“O que é isso chamado de classe artística? Richard Florida, um teórico
urbano que tem se dedicado a descrever isso, define este grupo,
efetivamente, como qualquer indivíduo que trabalhe com sua mente
em alto nível – então, cientistas, pesquisadores, médicos, software
designers, assim como trompetistas de jazz e poetas líricos. Isso faz
sentido em alguns contextos, mas há um significado mais competente
de que a classe criativa incluiria qualquer um que ajude a criar ou
disseminar a cultura. Assim como escultores e arquitetos, eu acrescento
deejays, balconistas de livrarias, cenógrafos, pessoas que editam livros
nas editoras, entre outros” (TIMBERG, 2015, p. 10 – tradução nossa).
E, com relação à cadeia mais diretamente relacionada a quem produz arte,
Timberg (2015) também destaca o papel dos agentes diretos como artistas, curadores,
programadores e jornalistas culturais.
Não se pode ignorar a mudança proposta pelas artes contemporâneas, que
requisitam do espectador uma postura que vai além daquela com a qual se habituou: a
de ser um mero observador e contemplar uma obra. Abandona-se a postura de quem
espera (especta) e necessita ser “atendido”, associando o papel do espectador ao de
consumidor. Ao invés disso, o espectador precisa assumir uma postura ativa, isto é,
19 Escritor norte-americano, autor de Culture Crash: the killing of creative class (2015). Scott Timberg escreveu para The New York Times, Salon e Los Angeles Magazine, além de ter trabalhado por seis anos no LA Times.
61
deve aceitar que a obra convoca-o a construir um pensamento e com ela compartilhar
uma experiência artística.
Também cabe lembrar que outros fatores precisam ser levados em
consideração como, por exemplo, as reformas dos equipamentos culturais, como
ocorreu no Centro Cultural São Paulo em 2012 e no Teatro Sérgio Cardoso em parte
dos anos de 2010 e 2011; ou ainda as crises financeiras, como a de 2015, que reduziu
as contratações e as verbas destinadas à cultura em geral.
Para Agnaldo Pavoni, administrador de salas do Centro Cultural São Paulo, em
conversa realizada em 29 de julho de 2015, no próprio CCSP, ocasião em que se
solicitaram formalmente os dados de público dos últimos 10 anos, “houve muitos altos
e baixos ao longo desta última década”. E, segundo ele, os motivos para diminuição
dos números de público foram os mais diversos, dentre eles: os anos em que o CCSP
fechou para reforma; a Sala Paulo Emilio Salles Gomes, que era multidisciplinar e
abrigava a dança, tornou-se uma sala exclusiva de cinema; o projeto de existir um
Núcleo Cênico que não foi realizado por falta de verba e mudança de gestão.
Pavoni destacou, por outro lado, a permanência do Semanas de Dança (desde a
década de 1990, mas com novo formato em 2010) e dos O Masculino e O Feminino na
Dança (desde 1992), como programações responsáveis por impulsionar a quantidade
de público de dança no CCSP. Ele afirma que isso sempre dependeu dos profissionais
que estavam na Curadoria de Dança, citando Marcos Bragato20 como o responsável
pelo aumento de popularidade para esta linguagem no Centro Cultural:
“Ele brigou muito por este espaço e que depois foi diminuindo. Com ele,
havia do processo mais vanguarda até uma gala de ballet clássico; tinha
dança indiana e entrou com o hip hop. Havia essa diversidade, mas não
sei ao certo o quanto isso reverbera na quantidade de público”
(PAVONI, 2015).
20 Mestre e Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, atualmente, Marcos Bragato é professor adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Foi curador do Centro Cultural São Paulo de 1985 a 2009.
62
Para ele, o Centro Cultural São Paulo tem seu próprio público, sendo que 15 a
20% da lotação já estão garantidos, “mas houve uma diminuição, embora pareça que
agora esteja voltando a crescer”. Além dos fatos já elencados como os principais
responsáveis pela redução de público, ele lembra também a ocorrência de uma
diminuição geral dos orçamentos, mas aponta que a criação de espaços alternativos
para outros projetos como o Dança em Diálogo, Partilha do Sensível e Jam de Dança
Urbana, todos ativos neste ano de 2015, apresenta uma nova perspectiva para o CCSP.
Segundo o “Relatório da Gestão de 2001 a 2004”, publicação da Secretaria
Municipal de Cultura, acessado em 25 de agosto de 2015 na biblioteca do próprio
Centro Cultural São Paulo, é notável a diminuição de público, em número absoluto,
entre 2001 e 2004:
Se compararmos, dez anos depois, ao período de 2011 a 2014, pelos números
concedidos por e-mail pela curadoria atual de dança do Centro Cultural São Paulo,
também é notável um número menor de público para a dança:
CENTRO CULTURAL SÃO PAULO 2011 2012 2013 2014
Total de público de dança 15.726 1.389 7.781 3.307
Andrea Thomioka, Curadora de Dança do Centro Cultural São Paulo, na mesma
conversa realizada em 29 de julho de 2015, sente que “os próprios artistas da ‘classe
da dança’ se afastaram do público, com uma acomodação dos dois lados”. E sinaliza
que, como a produção em dança aumentou muito, assim como os espaços destinados
a esse segmento artístico, também houve uma “pulverização” do público.
A diminuição de público também se fez presente nas apresentações dos anos
de 2005 a 2007 do Balé da Cidade de São Paulo, companhia de dança oficial do
CENTRO CULTURAL SÃO PAULO 2001 2002 2003 2004
Total de público de dança 15.130 12.560 9.609 9.401
Tabela 1: Quantidade de público no Centro Cultural São Paulo (2001 a 2004)
Tabela 2: Quantidade de público no Centro Cultural São Paulo (2011 a 2014)
63
município, ocorrendo redução tanto nos números absolutos quanto na média de
público por espetáculo, conforme apontam os dados do relatório de Gestão da
Secretaria Municipal de Cultura:
O Teatro Sérgio Cardoso, administrado pela Associação Paulista dos Amigos da
Arte (APAA), da Secretaria de Estado da Cultura, enviou, via e-mail de sua
programadora, Mônica Bammann, em agosto de 2015, os dados que seguem:
Analisando os números (Tabela 4), neste caso, não é possível afirmar que houve
diminuição de público entre 2006 e 2015. Tanto os números absolutos quanto a média
de público por espetáculo é bastante variável de um ano para outro.
Segundo Bammann, no registro dos borderôs de 2006 e 2007, além da dança,
somou-se aos números as apresentações de teatro musical, o que pode explicar um
número maior de público nestes anos, se comparados ao ano seguinte, 2008, por
exemplo. E, quanto a 2009, ela afirma não possuir o número de público separado por
linguagem. Ainda assim, são números bastante expressivos se pensarmos que o Teatro
Sérgio Cardoso possui duas salas de espetáculos, sendo que a dança geralmente é
programada na Sala Paschoal Carlos Magno, com 144 lugares, enquanto a Sala Sergio
Cardoso possui 835 lugares.
Tabela 3: Quantidade de público do Balé da Cidade de São Paulo (2005 a 2007)
Tabela 4: Quantidade de público no Teatro Sérgio Cardoso (2006 a 2015)
Ano 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 até julho/2015 total
Quantidade de apresentações 71 67 59 X 34 35 104 116 97 54 637
Total de público 21.727 20.012 14.278 X 18.987 7.491 14.233 25.554 29.906 21.490 173.678
Média público/espetáculo 306,0 298,7 242,0 0,0 558,4 214,0 136,9 220,3 308,3 398,0 272,6
Ano 2005 2006 2007
BALÉ DA CIDADE DE SÃO PAULO
Quantidade de apresentações 95 102 93
Total de público 73.250 70.250 63.985
Média público/espetáculo 771,1 688,7 688,0
64
Mônica também destaca que, durante os anos de 2010 e 2011, o Teatro Sérgio
Cardoso esteve fechado para reforma durante um período, o que impactou na
quantidade de espetáculos. No entanto, se observarmos a média de público por
apresentação, os números não são muito diferentes dos demais anos, com destaque
apenas para o ano de 2010, que foi o ano com maior média de público por espetáculo,
com o expressivo número de aproximadamente 558 pessoas por apresentação. Ainda,
levando-se em consideração que a Sala Paschoal Carlos Magno possui apenas 144
lugares, é possível que, também neste ano, estejam misturados os dados dos
espetáculos de teatro musical.
Fernando Dourado, programador de dança da Secretaria de Cultura da cidade
de São Paulo, enviou por e-mail em setembro de 2015 as planilhas contendo toda a
programação de dança da Galeria Olido, com os respectivos números de público e
quantidade de apresentações por companhia. Ele enviou os dados referentes aos anos
de 2013, 2014 e 2015, tendo esta última planilha já considerado as apresentações que
ocorridas até setembro deste ano.
Para a somatória destes números foram consideradas apenas as atividades
artísticas como espetáculos, processos e mostras, sem levar em conta os números de
pessoas que realizaram oficinas ou estiveram presentes nas jams de dança.
Em 2013 estiveram presentes nos espetáculos de dança da Galeria Olido 14.155
pessoas, divididas em 184 apresentações, o que resulta em uma média de público de
quase 77 pessoas por espetáculo (Tabela 5). Olhando mais especificamente para os
dados, o espetáculo Terreiro Urbano do Treme Terra, companhia de dança negra
contemporânea, foi o trabalho com maior média de público por apresentação, tendo
um número de 173,75 pessoas/espetáculo. Na sequência, muito próximo, com 171,50,
Tabela 5: Quantidade de público na Galeria Olido (2013 a 2015)
Ano 2013 2014 2015 (até Set)
Galeria Olido
Quantidade de apresentações 184 162 123
Total de público 14.155 12.663 12.583
Média público/espetáculo 76,93 78,17 102,30
65
o Raça Cia de Dança, com Fidelity, e Caminho da Seda. E ainda a estreia de Oroboro,
do Projeto mov_Ola, de Alex Soares, teve uma média de 154 pessoas por espetáculo.
Por outro lado, alguns trabalhos tiveram médias muito baixas, com menos de
20 pessoas por apresentação. Isso mostra que, dada a diversidade da programação de
dança da Galeria Olido, a quantidade de público pode variar de menos de 20 a mais de
170 pessoas, dependendo do que é programado. Trata-se de uma variação bastante
expressiva, visto que se trata de um mesmo local, considerado referência para a dança
da cidade de São Paulo.
Já em 2014, estiveram presentes 12.663 pessoas, divididas em 162
apresentações, o que resultou em uma média de público de cerca de 78 pessoas por
espetáculo. Se compararmos com o ano anterior, o número absoluto diminuiu de
14.155 para 12.663, algo em torno de 1.500 pessoas. Porém, também houve um
menor número de espetáculos programados no período e a média de público se
manteve praticamente estável. Se em 2013 a média foi de 77 pessoas/apresentação,
em 2014 o número foi de aproximadamente 78 pessoas/apresentação. A planilha
apresenta um número menor de espetáculos em decorrência da Copa do Mundo de
Futebol que impediu, durante várias semanas, que a programação de dança na Galeria
Olido ocorresse.
O trabalho Lampioa, de João Zambom, teve a melhor média de público: 250
pessoas em uma única apresentação. Esta intervenção artística ocorreu nos corredores
da Galeria Olido e aponta para o potencial das intervenções artísticas que são
realizadas fora do teatro, no espaço público. Caso ocorresse na Sala Paissandu, sala
cênica onde a dança é geralmente programada, a média de público seria menor, uma
vez que sua capacidade é de 136 lugares. É comum a produção disponibilizar cadeiras
extras, mas ainda assim, este número não aumentaria tanto. Em algumas poucas
exceções, espetáculos de dança são programados na Sala Olido, mais utilizada para
peças de teatro, com capacidade para 293 pessoas.
Novamente a companhia Treme Terra, com seu espetáculo Terreiro Urbano,
junto com Dançopraphismus, do Balé da Cidade de São Paulo, foram os espetáculos
com melhor média: 139 pessoas/apresentação cada. Os trabalhos com menor número
de público obtiveram uma média de 40 pessoas.
66
Por fim, até setembro de 2015, quando a planilha foi enviada por e-mail,
12.583 pessoas haviam assistido a 123 apresentações de dança na Galeria Olido, o que
resulta em uma média de público de cerca de 102 pessoas por espetáculo. Embora o
ano ainda não tenha encerrado sua programação, os números mostram que, muito
provavelmente, o público da Galeria Olido tenha aumentado neste ano, em
comparação aos anos de 2013 e 2014.
Até então, o espetáculo Saudade de Mim, uma estreia da Focus Cia de Dança,
do Rio de Janeiro, teve a expressiva média de 333,5 pessoas/apresentação (segundo
Fernando Dourado, foram colocadas cadeiras extras em suas apresentações, que
aconteceram na Sala Olido, não na Sala Paissandu). Na sequência, o #Passinho, dirigido
por Lavinia Bizzotto e Rodrigo Vieira, um trabalho desenvolvido no Rio de Janeiro, mas
concluído em São Paulo, teve uma média de 184 pessoas/apresentação. E por fim,
Dançographismos II, do Balé da Cidade de São Paulo, teve média de 181,3 pessoas por
apresentação.
Além do Teatro Sérgio Cardoso, do Centro Cultural São Paulo e da Galeria
Olido, destaco que solicitamos os dados de público também para o SESC-SP que, por
meio de seu curador de dança, Juliano Azevedo, pediu uma carta registrada em nome
do diretor regional do SESC, Danilo Santos de Miranda, documento enviado em 4 de
agosto de 2015. Eles confirmaram o recebimento e se dispuseram a auxiliar, porém,
até o fechamento deste texto, não enviaram os dados. Também entramos em contato
com o Teatro Alfa, sem obter qualquer resposta.
67
2.2 AINDA SOBRE A COMUNICAÇÃO OBRA-ESPECTADOR
No jornalismo cultural especializado em dança, é com o verbal que se lida com
o movimento. Mas o verbal não precisa ser sempre entendido como explicação do
movimento ou como a apresentação de um significado ou de uma legenda para o que
se comenta. Estas não são as únicas possibilidades de trabalhar com o verbal no
jornalismo cultural. Para escapar destas práticas, é importante reconhecer que o
movimento de dança comunica ideias, ainda quando não usa palavras. E que estas
ideias pedem por outras ideias para que haja uma conversa produtiva com os leitores.
Lakoff e Johnson (1999) ajudam-nos a compreender como o movimento conta
sobre os entendimentos de mundo que o gestam. Para os autores, o que
habitualmente chamamos de formulações abstratas estabelece-se a partir de vivências
sensório-motoras, ou seja, as ideias nascem das experiências do corpo:
“A razão não é ‘desatada do corpo’ (disembodied), como a tradição tem
mantido, mas surge da natureza de nossos cérebros, corpos e
experiências de corpo. Isso não é apenas uma inócua e óbvia pretensão
que necessita de um corpo para haver a razão; preferencialmente, é
uma impressionante reivindicação que a própria estrutura da razão
surge dos detalhes do ‘modo como se torna corpo’ (embodiment). Os
mesmos mecanismos neurológicos e cognitivos que nos permitem
perceber e nos mover também criam nosso sistema conceitual e
modelos de razão. Assim, para entender a razão, nós precisamos
entender os detalhes do nosso sistema visual, nosso sistema motor, e os
mecanismos gerais de conexão neural. Resumindo, razão não é, de
nenhuma forma, uma transcendente característica do universo ou da
mente ‘desatada do corpo’ (disembodied). Pelo contrário, ela é formada
crucialmente pelas peculiaridades do nosso corpo humano, pelos
extraordinários detalhes da estrutura neural de nossos cérebros e pela
especificidade de seu funcionamento no mundo”. (LAKOFF e JOHNSON,
1999, p. 4, tradução nossa).
68
Os indivíduos vivenciam experiências desde o nascimento, o que faz com que
entendam o mundo a partir delas. “O ambiente não é ‘o outro’ para nós. Ele não é
uma coleção de coisas que nos encontram. Ele é parte do nosso ser. Ele é o lugar da
nossa existência e identidade. Nós não podemos e não existimos fora dele”. (LAKOFF e
JOHNSON, 1999, p. 566).
O que é segurança? Parece apenas algo abstrato, mas ter uma noção da
definição de segurança implica em ter tido uma experiência que passa pela relação
com o braço da mãe que segura o filho, encostando-o a seu corpo, transmitindo-lhe
calor, aconchego e, ao mesmo tempo, uma sustentação firme e terna, produzindo uma
sensação de acolhimento e completude. Esta sensação, que não sabemos ainda
nomear quando bebês, é sentida no colo que aninha e vai acompanhá-lo pela vida.
Bem mais adiante, quando conhecer o conceito de segurança, serão estas experiências
sensório-motoras que permitirão associar segurança, por exemplo, com confiança –
ambos abstratos, mas fundados neste tipo de vivência.
Tais formulações não serão aqui aprofundadas, mas ajudam-nos a entender
que as ideias abstratas possuem relação com experiências vivenciadas no passado e
cotidianamente. Esse fato não deve ser esquecido ao se trabalhar com dança, porque
nos ajuda a explicar que o movimento que o corpo faz tem a ver com o processo de
conhecer o mundo.
Quando se trata de corpo, o movimento não pode ser ignorado e nem o modo
“como o movimento se especializa a ponto de se transformar em representação
teatral, gesto musical, dança, acrobacia, performance, música, ou seja, suas ações no
mundo em forma de arte” (KATZ e GREINER, 1998, p. 94).
Quando o movimento especializa-se como dança, nem sempre é evidente que a
comunicação está acontecendo a todo momento, sobretudo porque se confunde
comunicação com entendimento de um significado, tal como tratado no campo da
comunicação verbal: sinônimo de um conteúdo-mensagem a ser verbalizado em uma
legenda explicativa. Todavia, reconhecer a dificuldade em compreender algo já revela
que a informação tocou o indivíduo de alguma maneira. Lembremos que, de acordo
com a Teoria Corpomídia, o corpo não recusa a informação com a qual entra em
contato, e este contato transforma ambos, corpo e informação. Alguma mudança,
perceptível ou não, consciente ou não, sempre resulta desse encontro. E, quando
69
corpo e informação não se encontram, o desconhecimento também promove algo. Um
dos interesses aqui é o de distinguir comunicação de entendimento, para que este
deixe de ser tratado como um regulador da comunicação.
“As informações do meio se instalam no corpo; o corpo, alterado por
elas, continua a se relacionar com o meio, mas agora de outra maneira,
o que leva a propor novas formas de troca. Meio e corpo se ajustam
permanentemente num fluxo inestancável de transformações e
mudanças”. (KATZ e GREINER, 2001, p. 68).
No que tange à comunicação entre obra e espectador, ela é viva e segue
desenvolvendo-se depois do primeiro contato. “Vê-se instalada no corpo a própria
condição de estar vivo e ela se apoia basicamente no sucesso da transferência
permanente de informação” (KATZ e GREINER, 1998, p. 95).
O encontro com a informação promove uma experiência cognitiva que modifica
o corpo e o ambiente, passando a fazer parte de ambos. Modificado pelo encontro
com a informação, o corpo continua a trocar com o ambiente, alterando-o e
transformando-se. Como o ambiente tem papel fundamental na comunicação, no caso
da relação obra-espectador, o tipo de atuação do jornalismo cultural como
facilitador/dificultador de um ambiente mais ou menos favorável para a comunicação
de informações sobre dança faz diferença:
“(...) o signo estético produz no espectador ressonâncias corporais e
estados afetivos, mobilizando nele a dimensão do saber sensível, esse
saber próprio de nossa corporeidade. A arte revive em nós, ainda que de
modo simbólico, sentimentos e vivências que se baseiam em nossa
história pregressa, em nossas experiências de vida. Um signo poético
(artístico), ao ser percebido, é decodificado por um equilíbrio entre o
inteligível e o sensível que nos habita, possibilitando que o captemos, de
maneira integrada, com nossa existência plena.” (DUARTE JR., 2010,
p.41).
70
Um bom exemplo da força da disseminação de uma informação pode ser
encontrado em um livro sobre balé clássico que abalou “verdades oficiais”. Em 2010
Jennifer Homans lançou Apollo’s Angel, pela editora Random House, livro que se
tornou polêmico porque nele profetizou a extinção do balé, dadas as circunstâncias
atuais de sua produção. Para ela, a comunicação do balé com o seu público enfrenta
um risco tão sério que ameaça a sua permanência – o que deixa claro que nenhuma
forma de comunicação fica assegurada para sempre, nem o balé, sempre apresentado
na dança como uma referência perene.
“É também uma história que pode ter chegado ao fim. Duma maneira
geral, o ballet hoje é visto como antiquado e fora de moda: parece não
ter lugar no nosso mundo acelerado e desordenado. Para os que, como
eu, estiveram presentes no final da última grande época e
testemunharam o seu vigor e declínio, a mudança tem sido tremenda.
(...) Existem ainda pequenos grupos de pessoas que se interessam pela
dança e lugares onde ela tem alguma importância. O Ballet poderá ainda
voltar para a vanguarda cultural no futuro, mas não há dúvida de que
nas últimas três décadas entrou num profundo declínio, em toda parte”
(HOMANS, 2010, p. 25).
Este dado importa bastante quando se leva em conta a tendência de atribuir
dificuldade de comunicação somente para as linguagens artísticas da arte
contemporânea. Parece mais complicado lidar com a produção contemporânea
porque nela ocorre uma grande liberdade de criação, que produz uma diversidade
enorme de propostas convivendo nas suas diferentes abordagens. Mesmo variando
muito, todas ficam reunidas sob uma mesma denominação – no caso da dança, a de
dança contemporânea. O que importa salientar aqui é que existe uma pluralidade de
manifestações distintas reunidas sob o mesmo nome, o que já constitui um aspecto da
dificuldade da sua comunicação.
O crítico e curador francês Nicolas Bourriaud (2009) defende a obra de arte
como interstício social em Estética relacional. Ele buscou refletir sobre as práticas
artísticas mais dirigidas às relações que o artista instituía com o observador, por meio
71
da obra, do que o próprio objeto artístico. O engajamento artístico passou a
proporcionar novas práticas interativas entre obra e observador, desenvolvendo outra
forma de relação:
“A possibilidade de uma arte relacional (uma arte que toma como
horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social
mais do que a afirmação de um espaço simbólico autônomo e privado)
atesta uma versão radical dos objetivos estéticos, culturais e políticos
postulados pela arte moderna.” (BOURRIAUD, 2009, p. 19 e 20).
Bourriaud defende que a arte sempre foi relacional em diferentes graus, ou
seja, fator de sociabilidade e fundadora de diálogo. Isso porque propicia o “estar
juntos”, um encontro entre a obra artística e a elaboração coletiva do sentido, mais
uma vez ratificando a existência de comunicação entre arte e espectador, espetáculo e
público. É através da arte que o artista inicia o diálogo, e a prática artística residiria na
abertura de relações entre sujeitos. “Cada obra de arte particular seria a proposta de
habitar um mundo em comum, enquanto o trabalho de cada artista comporia um feixe
de relações com o mundo, que geraria outras relações, e assim por diante, até o
infinito.” (BOURRIAUD, 2009, p. 31). O autor ainda cita Michel Maffesoli, concordando
que a arte, além da comunicação, cria empatia e compartilhamento, gerando vínculo.
Além disso, toda arte pressupõe uma dimensão política, visto que permite ao
observador certo tempo de experiência e reflexão, transformando percepções pré-
estabelecidas e possibilitando novas formas de relação com o mundo. Diferente da
experiência da televisão que, segundo Martín-Barbero, chega a produzir “um real mais
verdadeiro que o real” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 94), gerando passividade e
indiferença política, tendo o silêncio como modo de atividade das massas. Por outro
lado, a arte reafirma seu posicionamento político, dando voz e contrapondo o
“silenciamento” da mídia hegemônica e do senso comum.
Para Bourriaud, uma obra de arte possui uma qualidade que a diferencia dos
outros produtos das atividades humanas: a sua relativa transparência social.
72
“Ela abre espaço para o diálogo; à discussão, a essa forma de
negociação inter-humana que Marcel Duchamp chamava de ‘o
coeficiente de arte’ e que é um processo temporal, que se dá aqui e
agora. (...) A obra de arte como produto do trabalho humano: de fato
ela mostra (ou sugere) seu processo de fabricação e produção, sua
posição no jogo das trocas, o lugar – ou a função – que atribui ao
espectador, e, por fim, o comportamento criador do artista.”
(BOURRIAUD, 2009, p. 57).
Dessa forma, a obra de arte e, no contexto aqui trazido, o espetáculo ou
processo em dança, ao serem apresentados publicamente, no teatro ou em espaços
alternativos, desenvolverão sempre a relação com o outro, em uma coexistência de
convívio de trocas constantes, ao mesmo tempo em que constitui sua relação com o
mundo.
73
2.3 O PROBLEMA
Para o senso comum, a comunicação obra-espectador ocorre: 1) quando se
consegue aplicar uma legenda explicativa que traduz o que ela “quer dizer”; ou 2)
quando se é tocado emocionalmente por ela, prescindindo dessa legenda para sentir-
se muito próximo a ela. Todavia, a comunicação não ocorre somente nestas molduras
estreitas, pois se configura como um processo permanente de transformações que
implica na impossibilidade de se restringir a estes ou outros modelos. Ou seja,
“a comunicação se tornou para nós questão de mediações mais que de
meios, questão de cultura e, portanto, não só de conhecimentos, mas
de reconhecimento” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 28).
Em outras palavras, a mediação tornou-se os próprios meios. E o jornalismo
cultural, sob o disfarce de ser apenas um meio, na verdade desempenha papel de
mediação, com consequente comprometimento político e de interesses econômicos
que não estão diretamente relacionados aos fatos jornalísticos. Não é mais uma
questão só de meios, mas pensar a produção e a recepção é pensar a comunicação sob
os olhos das mediações e é reconhecer que entre elas há um lugar em que a cultura se
estabelece. O conceito compreende as intersecções entre cultura, política e
comunicação, e refere-se às apropriações e ressignificações por parte de todos os
atuantes no processo de comunicação da cultura. Para Martín-Barbero, a grande
mudança foi reconhecer que “a comunicação estava mediando todos os lados e as
formas de vida cultural e social dos povos. Portanto, o olhar não se invertia no sentido
de ir das mediações aos meios, senão da cultura à comunicação” (MARTÍN-BARBERO,
2009b, p. 153).
Múltiplas relações entre obra e espectador são possíveis para que a
comunicação aconteça, sobretudo, para o que parece não ser comunicação. A
globalização e o avanço da tecnologia permitiram um número cada vez maior de
informações trocadas, porém a comunicação na sociedade é muito mais ampla do que
permitem os meios. Para Martín-Barbero (2009b, p. 153), a mediação sempre possuiu
74
mais relação com as dimensões simbólicas da construção do coletivo, envolvendo não
apenas a cultura, mas também a sociedade e a política.
“A comunicação e a cultura constituem hoje um campo primordial de
batalha política: o estratégico cenário que exige que a política recupere
sua dimensão simbólica – sua capacidade de representar o vínculo entre
os cidadãos, o sentimento de pertencer a uma comunidade – para
enfrentar a erosão de ordem coletiva” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 15).
Este dado importa bastante quando se leva em conta a tendência de atribuir
dificuldade de comunicação somente para as linguagens artísticas, sobretudo as da
arte contemporânea. Podemos levantar as seguintes questões: Como uma obra se faz
entender? De que forma comunica? Qual é a natureza da comunicação que a
linguagem corporal, que se utiliza de movimentos, tem capacidade de promover? É
possível escapar da tirania do entendimento de que toda e qualquer comunicação
precisa produzir significado no modelo da linguagem verbal? O jornalismo cultural
pode/deve mediar obra e público?
No texto “Isto não é um cachimbo” (1973), Michel Foucault faz múltiplas
reflexões a partir da obra homônima de René Magritte (1926). Dentre elas, discute o
papel do caligrama em compensar o alfabeto; repetir sem o recurso da retórica; e
prender as coisas na armadilha da dupla grafia, desenvolvendo uma tautologia:
“O caligrama pretende apagar ludicamente as mais velhas oposições de
nossa civilização alfabética: mostrar e nomear; figurar e dizer;
reproduzir e articular; imitar e significar; olhar e ler” (FOUCAULT, 2004,
p. 7).
Ao que parece, esta tradição alfabética pode ser vista também na relação obra-
espectador que anseia desvendar os significados da obra. Assim, quanto mais
autoexplicativa, “melhor”. Enquanto artista, é comum ser questionado pelo público:
“mas o que você quis dizer?” No caso da arte contemporânea, porém, na maioria das
vezes não se pretende dizer algo dessa maneira assemelhada ao dizer do verbal, mas
75
deseja-se compartilhar uma reflexão, mudando completamente a relação obra-
espectador.
“Dizer que os elementos de indeterminação estimulam a realização do
espectador não significa que esta se dê de maneira aleatória ou
arbitrária, o que configuraria a inexistência de qualquer interação entre
proposição e participante. Os atos de apreensão são provocados pelas
estruturas da proposta artística, mas não completamente controlados
por ela”. (DESGRANGES, 2012, p. 31).
O diretor de teatro Flávio Desgranges ainda complementa afirmando que o ato
criativo do espectador, para efetivar-se, precisa ser ao menos respeitado, ou mesmo
provocado. Este ato não se opera, como supõe o senso comum, espontaneamente.
Pelo contrário, “a atividade do espectador passa a ser compreendida não como uma
determinação natural, mas como um (des)condicionamento ou conquista cultural”
(DESGRANGES, 2012, p.112). Os espectadores são considerados parte da obra e
necessitam compartilhar do fato artístico, visto que a produção é organizada para fazê-
lo participar. O espetáculo de dança não chega pronto à cena, em busca de um
desvendamento, pois, como toda obra ao vivo, só se completa no contato com o
espectador, a quem cabe dialogar.
Voltando, então, à premissa de que todo espetáculo comunica algo (mesmo
que seja o interesse egoico de seu criador) e que esse algo está sempre chegando ao
público de alguma forma – sendo esta a razão que sustenta a necessidade de o criador
manter uma atenção sobre a forma de comunicar as suas propostas artísticas – vale
lembrar que há muitas instâncias participando da comunicação entre obra e
espectador e que o jornalismo cultural trata-se de uma delas.
As artes enfrentam hoje uma dificuldade suplementar, que é a de conseguir
fazer com que um possível interessado naquilo que cada uma delas propõe consiga
abrir espaço e tempo em sua vida, pois vive no mundo da aceleração constante e do
deletar tudo o que desagrada ou não capta a atenção instantaneamente. Um
espetáculo solicita a instauração de outra lógica temporal que interrompe o ritmo
cotidiano, fomentando um espaço para a indispensável participação do espectador. A
76
plateia dos espetáculos de dança21 atualmente é formada por aqueles que vivem esta
realidade; daí a necessidade de levar em conta esta característica ao se pensar no
público.
“O ato artístico solicita, pois, uma disponibilidade distinta do
espectador. Disponibilidade essa que não parece evidente, e que não
pode ser compreendida como um talento natural, mas sim como uma
conquista cultural”. (DESGRANGES, 2012, p. 21).
Desgranges questiona como a produção, a recepção e a mediação da obra
artística podem ser pensadas para provocar essa inversão de sentidos que contraria a
lógica do tempo cotidiano. Diante do turbilhão de acontecimentos e compromissos de
uma grande cidade, o maior desafio é reconhecer e permitir-se viver experiências
como a do contato e a consequente reflexão de uma obra artística.
“Além disso, a urbanização desordenada torna pouco convidativos o
deslocamento e a convivência no interior das grandes metrópoles;
exposto a perigos multiformes, o ser humano faz valer uma atitude
atenta e defensiva, colocando a psique em estado de alerta
permanente, pronta para reagir a qualquer ameaça. A razão
instrumental, que prevê os riscos, calcula as possibilidades e cataloga os
fatos, está sempre pronta para a defesa ante qualquer situação física ou
emocional inesperada. Esse modo operativo da psique, que funciona em
um padrão superficial de consciência, pronta para absorver os choques
da vida diária, inviabiliza a realização de experiências sensíveis e indica
o empobrecimento da linguagem”. (DESGRANGES, 2012, p. 125).
21 Não é possível falar de plateia de dança hoje sem citar as ações das Leis de Incentivo, uma vez que estas iniciativas, em sua maioria, não contam com a venda de ingressos, criando um hábito que pede uma revisão do entendimento do que é, de fato, “público”. Como se sabe, sendo sempre gratuitos, os ingressos comunicam para a plateia que aquele trabalho não tem preço – um risco sério no mundo capitalista, com risco de desvalorização da própria obra artística. Defendemos que deva haver subsídios do governo para que os ingressos tenham preços populares, mas não gratuitos, de forma que o público possa entender que aquela obra também tem o seu “valor” e, com isso, apresentar os profissionais como trabalhadores que vivem deste trabalho.
77
E, tendo em vista que o encontro com a informação modifica o indivíduo, não é
possível ficar imune aos vários estímulos a que são bombardeados os corpos. Segundo
o filósofo Daniel Dennett, em sua obra The Evolution of Culture (2001), toda
informação a que o corpo tem contato modificará em diferentes intensidades o
indivíduo, e isso, por si só, já atesta que há comunicação. Desde que seja algo
perceptível pelo ser humano, esta informação é reconhecida e modificada. Ele afirma
que “a gente é, em grande parte, aquilo que a cultura nos fez ser”; logo, a
comunicação é inevitável e a cultura liga-se diretamente à formação fenotípica deste
indivíduo.
Também se deve levar em consideração que as muitas horas dedicadas ao
ambiente digital, nos mais diversos dispositivos, desencadeiam mudanças significativas
no corpo e promovem alterações cognitivas substanciais no homem contemporâneo.
Tornou-se natural realizar muitas coisas ao mesmo tempo, bem como manter abertos,
em uma tela de computador, várias janelas e hiperlinks. O corpo adaptou-se a uma
nova realidade, alterando nossa capacidade de atenção. Como consequência, pessoas
cada vez mais intolerantes, visto que qualquer momento de pausa, qualquer situação
que lhe faça parar por alguns minutos, como assistir quieto a um espetáculo de dança,
tornou-se sinônimo de “perda de tempo”.
Uma situação como esta é apenas um exemplo de como a vida off-line é hoje
um reflexo do que ocorre on-line (se é que ainda podemos separar), pois uma está
contaminada pela outra. Ao assistir a um filme sem muita ação, por exemplo, o corpo
estranha a lentidão. Sente incômodo e desconforto físico, visto que faltam ao corpo os
excessos, as múltiplas imagens e o barulho intermitente já adaptados em nossas vidas
urbanas. Perde-se a paciência muito rapidamente, e isso gera mais intolerância nas
relações sociais.
Segundo o filósofo Roberto Esposito (2004), essa realidade gera um
“comportamento imunizado”, fazendo com que os indivíduos estejam “blindados”
para viver em sociedade. É tudo muito rápido e não se pode perder tempo, então,
experimenta-se do mal para, ao encontrá-lo, não ter novas consequências. Em termos
culturais, todos estão sempre prevenidos, mas, ao mesmo tempo, cada vez mais
impacientes. Para ele as pessoas estão imunizadas da possibilidade de estarem juntas,
não sendo mais possível viver em comunidade.
78
“Isto que vai imunizada, em suma, é a comunidade mesma em uma
forma que juntamente a conserva e a nega – ou melhor, a conserva
através da negação de seu originário horizonte de sentido. Deste ponto
de vista se poderia chegar a dizer que a imunização, mais que um
aparato defensivo sobreposto à comunidade, está em sua engrenagem
interna. [...] Para sobreviver, a comunidade, cada comunidade, é
constrangida a introjetar a modalidade negativa do próprio oposto;
ainda que tal oposto permaneça um modo de ser, na verdade privativo
e contrastante, da comunidade mesma” (ESPOSITO, 2004, p. 48-49).
O “eu” ganha força, e o “ser em sociedade” torna-se cada vez mais raro, uma
vez que os hábitos cognitivos são insuflados apenas pelo “eu”, pelos desejos
individuais, pelos interesses egoicos, passando a não existir vida compartilhada. É
possível perceber esta “imunização” na atuação de muitos coreógrafos de dança.
Preocupados apenas com a própria criação (“eu”), desconsideram o papel e a
responsabilidade social que a arte possui ao entrar com comunicação com o público.
E se os estímulos midiáticos resumem-se apenas ao entretenimento, são deles
que a sociedade se alimentará. Lembremos que o que vai prevalecer não é a melhor
informação, ou a informação artisticamente mais rica, mas aquela mais adaptada. E o
processo de adaptação depende de acordos com o ambiente. É nesta perspectiva que
se inscreve a reflexão sobre o jornalismo cultural na construção de uma mediação
eficiente entre espectadores e dança contemporânea.
79
2.4 A CADEIA DE PRODUÇÃO DO MERCADO ARTÍSTICO
Além do jornalismo cultural, há de considerar-se o que regula a possibilidade
de produção de dança no nosso país, lembrando que, desde 1986 22, os artistas
tornaram-se reféns das Leis de Incentivo à Cultura e da política de editais que regula a
distribuição de recursos para o financiamento das suas produções. Desde então, as
políticas públicas para a cultura passaram a organizar-se em torno dos editais, que se
tornaram mecanismos de poder condicionantes da produção artística. No Brasil, estas
leis passaram a regular de forma muito particular a produção cultural, suas relações
com o mercado e o que a Escola de Frankfurt23 chamou de indústria cultural.
“A arte se incorpora ao mercado como um bem cultural, mas
adequando-se inteiramente à necessidade. O que de arte estará aí não
será mais do que sua casca: o estilo, quer dizer, a coerência puramente
estética que se esgota na imitação. E essa será a ‘forma’ da arte
produzida pela indústria cultural: identificação com a fórmula, repetição
da fórmula. Reduzida à cultura, a arte se fará ‘acessível ao povo como
os parques’, oferecida ao desfrute de todos, introduzida na vida como
um objeto a mais, dessublimado”. (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 76).
Vale ressaltar que a produção artística de hoje, em especial aquela
caracterizada como pertencente à indústria cultural, visa satisfazer alguma dimensão
sensorial do público, sem priorizar um tipo de experiência sensível que produza
reflexão do espectador, reforçando a separação corpo-mente. Como se as atividades
22 Ano de promulgação da primeira lei de incentivo à cultura (Lei no 7.505), conhecida como Lei Sarney, logo no início do processo de redemocratização do país e da posse de José Sarney como presidente. 23 Nasce em contraposição às perspectivas positivistas e pragmáticas norte-americanas, com uma forte crítica à mercantilização da cultura e à manipulação ideológica realizada pelos meios de comunicação de massa. Reuniu um conjunto de pensadores e cientistas sociais alemães são responsáveis pelo conceito de indústria cultural, entre eles, Theodor Adorno (1903 a 1969), Max Horkheimer (1895 a 1973), Erich Fromm (1900 a 1980) e Hebert Marcuse (1898 a 1979). Walter Benjamin (1892 a 1940) e Siegfried Kracauer (1889 a 1966), não menos importantes, junto com os demais, são responsáveis pela criação da pesquisa crítica em comunicação. E Jürgen Hebermas (1929), segunda geração da Escola, também deve ser lembrado pelo seu esforço em criar uma teoria geral da ação comunicativa. (RÜDIGER, 2004).
80
mais diretamente ligadas ao corpo dissessem respeito apenas às sensações, sem
relação com as identificadas com a mente, que são associadas ao conhecimento -
ignorando o que aqui já se esclareceu, via Lakoff e Johnson (1999), sobre o papel do
sensório-motor na construção do conhecimento (ver p. 67).
“Testemunhamos um resultado imediato: o crescente desinteresse pela
dança contemporânea, encarada como arte hermética, panorama de
tintas reforçadas pelo aumento de criações labelizadas mediante o selo
do ‘intelectual’, como se a dança também não fosse per si, e
inexoravelmente, uma atividade também intelectual” (NAVAS, 2006, p.
4).
Associando-se à situação do jornalismo cultural, a separação corpo -
sensível/mente - intelectual produz consequências na cadeia produtiva regulada pela
lógica das Leis de Incentivo à Cultura e seus editais que, ao longo dos últimos 29 anos,
transformaram-se na maneira hegemônica de produzir cultura no país. O ritmo
pautado pela necessidade de viver inventando projetos para concorrer aos editais
acabou regulando a produção artística de dança, dificultando a continuidade e o
aprofundamento de suas pesquisas. Sem poder qualificar cada vez mais o seu trabalho,
artistas da dança precisam enfrentar o entretenimento, que encontra mais espaço no
jornalismo cultural e parece levar mais público aos teatros. Com isso, estes espetáculos
conseguem atrair cada vez mais o interesse de financiadores, que utilizam o dinheiro
advindo da renúncia fiscal. As produções dos musicais são bons exemplos: atraem
elevado número de público em temporadas que se estendem, muitas vezes, por um
ano ou mais. Com a sua permanência, estão abrindo e consolidando um mercado
próprio, com ingressos de preço elevado. Nele, obras com outras características, que
não as associam aos musicais, têm cada vez menos chance de estabelecer-se, por sua
incapacidade em captar recursos e não serem atrativas o suficiente para possíveis
financiadores.
Neste tipo de indústria cultural do entretenimento, o espectador é mantido no
papel do consumidor que recebe o que “espera” para ficar sempre satisfeito e manter
81
a engrenagem funcionando. Vale destacar como a cultura de massa trata o seu
público: não como um interlocutor, mas como objeto.
“Basta lembrar o que ocorre até hoje nos seriados cômicos americanos:
a cada frase espirituosa de um personagem, segue-se a gravação de
risadas de um público artificial. Assistindo a um programa dentro de
casa, o espectador nem mesmo precisa rir: o programa ri em seu lugar”
(COELHO, 2006, p. 164).
Para o jornalista Marcelo Coelho, é nesta submissão do detalhe à mensagem do
todo, numa relação que não é dialética nem possui mediações, mas é impositiva, que
ocorre um fenômeno de espelhamento: “é a própria relação de subordinação do
público diante da obra que se repete na relação entre os detalhes do conjunto”
(COELHO, 2006, p. 209). A indústria cultural trata, assim, de substituir as várias
possibilidades de construção de uma relação do espectador com a obra, ou seja, de
propor uma relação ativa do espectador com a obra, para manter uma única via de
pensamento que se torna cada vez mais hegemônica, na qual o espectador consome
passivamente tais produtos culturais.
São muitos os artistas da dança que buscam fugir da realidade imposta pela
indústria cultural. João Andreazzi, por exemplo, que batizou a sua companhia de
Corpos Nômades em referência à obra de Deleuze e Guatarri, defende que a
realidade, hoje, melhorou bastante neste outro contexto: distante da indústria
cultural.
“Na década de 1980, a gente pagava, literalmente, para ter acesso a
alguma coisa. Todas as produções se calcavam muito no empenho e, de
fato, por amar aquilo, fazer acontecer. Em 1989, preciso falar que já
existia o SESC, aqui em São Paulo, e ele era bem importante, pelo
menos era crucial no meu trabalho e no da Cia Corpos Nômades. Na
década de 1990, havia alguns prêmios que o Governo do Estado
lançava, mas a verba era bem curta, como na Prefeitura, ou mesmo em
nível federal. Mas era bem pouquinho. Daí, com a maneira que os
82
artistas foram entendendo de pedir, de agregar e de reivindicar junto às
Câmaras, onde formulam e distribuem a verba pública, alicerçou-se
uma maneira de dar certa continuidade à utilização da verba para que
esta houvesse sempre, mesmo que pequena, se comparada às outras
áreas, para a arte” (ANDREAZZI, 2015, Anexo 1, p. 129).
Em entrevista realizada no espaço O Lugar em 15 de julho de 2015, Andreazzi
lembra que o teatro foi precursor das lutas recentes pela cultura em São Paulo ao
realizar o movimento Arte contra a Barbárie24, mas a dança contemporânea organizou-
se antes, por iniciativa de alguns bailarinos, nas décadas de 1970 e 1980, época do
Teatro Galpão. A partir da década de 1990, surge o MTD-90 (Movimento Teatro-Dança
90), que reuniu intérpretes-criadores, dentre os quais ele próprio, e que culminou, na
sequência, na Cooperativa Paulista de Bailarinos Coreógrafos, atual Cooperativa
Paulista de Dança, responsável, ao lado do Movimento Mobilização Dança, por
conquistas como a Lei de Fomento à Dança.
“Então, foi uma grande universidade e um grande aprendizado antes
desses últimos 10 anos que tem a Lei de Fomento, que surge em 2006.
Antes, teve toda uma gênese que se alicerça um pouco na produção
independente de dança contemporânea da cidade de São Paulo e que
se respalda sim no movimento da Arte contra a Barbárie que é a
maneira como surgiu o Fomento ao Teatro. E depois surgiu o da dança
nos mesmos moldes” (ANDREAZZI, 2015, Anexo 1, p. 129).
Andreazzi (2015) contextualizou historicamente as conquistas em relação aos
incentivos para a cultura, mais especificamente pela Lei de Fomento à Dança para a
cidade de São Paulo, para reafirmar o valor destas iniciativas na realização de muitos
projetos que só tornaram-se possíveis graças a estas verbas públicas, além da
importância “na troca de relação com o público e na experiência de verdade”.
24 Movimento social organizado por atores e grupos teatrais da cidade de São Paulo que teve sua primeira manifestação em 1999, após intensas discussões sobre os rumos da cultura na cidade e no país.
83
“O Fomento à Dança, para a Cia Corpos Nômades, além da criação
artística, proporciona o desenvolvimento da pesquisa desse corpo
nômade que vai além da fronteira da própria Companhia, porque
aproxima também outras ideias. Então, nós tivemos alguns
‘Fomentos’... Não estamos com o Fomento agora, e faz uma falta
absurda!” (ANDREAZZI, 2015, Anexo 1, p. 129).
A Companhia conta com o financiamento do Petrobras Cultural desde 2013,
mas Andreazzi afirma não ser suficiente, visto que o custo de vida na cidade aumentou
e justifica que necessita de um aporte financeiro ainda maior para continuar
desenvolvendo os vários projetos realizados no espaço O Lugar, como a Mostra Lugar
Corpo Nômade e o Lugarização.
Marika Gidali, diretora do Ballet Stagium, em entrevista realizada na sede da
companhia em 22 de julho de 2015, concorda que as iniciativas, embora tenham
aumentado, não são suficientes, e destaca que os últimos dez anos estão muito
complicados para a companhia.
“A gente tinha patrocínio da Petrobras e Camargo Correia e aí
acabamos perdendo os dois; estamos em uma luta insana para manter
uma companhia de pé, trabalhando, e mantendo seu ritmo de
produção, estreias e espetáculos. Nós estamos vivendo do nosso
próprio trabalho. Tem editais que a gente consegue e ajuda bastante, e
temos parcerias com o SESI, com os CEUs, e o SESC, que ajuda muito e
que, aliás, é o grande salvador da pátria quando resolve comprar as
coisas. E tem o Boticário que está há 2 anos já nos apoiando. Então,
estamos vivendo de oportunidades, mas não de uma segurança que
você possa ter uma folha de pagamento garantida no final do mês para
pagar tudo o que é necessário pagar. Então, é uma luta insana, para
dizer a verdade” (GIDALI, 2015, Anexo 1, p. 143).
Marika atribui esta realidade dificultada à grande diversificação que ocorreu na
dança na última década. Ela afirma que o dinheiro está espalhado, nem sempre sendo
84
bem aplicado e atenta para o fato das companhias oficiais receberem verbas
milionárias, seja no Estado ou no Município, enquanto os demais trabalhos artísticos
devem lutar por aprovações constantes nos diversos editais. “É muita coisa. Tinha que
peneirar um pouco essa conta aí. E também acho que deveria ter prateleiras, cada
macaco no seu galho ganhando o seu dinheiro necessário e aplicado onde realmente o
dinheiro tem que ser aplicado”, afirma ela.
Ballet Stagium – Foto: Naava Bassi
Antônio Nóbrega chegou a São Paulo em 1983 e, desde então, realiza na cidade
trabalhos em teatro, música e dança. Ele também afirma que todos os seus trabalhos
são subsidiados por editais ou ligados às Leis de Incentivo Fiscal, relatando como
percebe a situação da Companhia inserida neste contexto hoje:
“São esses editais que fazem com que a Companhia exista e inexista.
Tem aquela curva sinuosa de trabalhos e de, às vezes, poucos trabalhos.
Então, esse é o fundo com o qual eu venho trabalhando... Como eu não
sou uma pessoa tempo integral da dança, isso, para mim, até faz parte
do meu jogo, porque eu, concomitantemente que tenho um espetáculo
de dança, eu tenho 3 ou 4 outros que navegam por diferentes áreas,
aulas-espetáculos, palestrante, espetáculo de música, principalmente.
85
(...) Eu acho que eles aumentaram. Os editais vêm se acumulando, por
exemplo, nós temos o edital Boticário que é inteiramente dedicado à
dança. O da Petrobras, acho que foi a única entidade que subsidiou
alguns grupos de dança, é o caso do Corpo, Deborah Colker, etc.
Quando eu ganhei o Petrobras, ganhei para um período de dois anos
(...) E eu sei que as dotações dedicadas àqueles que já estavam também
diminuíram. Então, a Petrobras que foi a minha incentivadora máster,
me parece agora que também... está vivendo momentos difíceis, em
crise, e há dois anos não lançam edital. Então, a crise realmente está
imperando (NÓBREGA, 2015, Anexo 1, p. 160).
Em meio à crise, Marika ainda critica a lógica de contemplados do Fomento à
Dança, edital da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, considerando-o nada
democrático:
“Eu nem sei o que é esse Fomento! A única coisa que eu sei é que tem
uma ‘panelaça’ lá dentro ganhando há não sei quantos anos, com
sempre os mesmos grupos, alguns grupos a mais para despistar um
pouco a situação, mas está super na cara que aquilo não é nada
democrático. A gente está fora da visão do Fomento... Não dá para te
explicar isso. E também nem está me interessando muito. Mas que é
uma coisa errada, é. Se existe um dinheiro para a dança, a gente está
presente. Estamos demonstrando que estamos aí trabalhando,
pesquisando, a vida inteira, desde bem antes de o Fomento existir, a
gente já pesquisava... E não taxamos a nossa dança como algo... Temos
nossa identidade, e isso tem um preço alto... Mas taxar... Aliás, qual é a
visão do fomento, meu Deus? Dança Contemporânea? Mas o que é
Dança Contemporânea, gente? É desserviço cultural total” (GIDALI,
2015, Anexo 1, p. 144).
Assim, neste caminho tortuoso entre o aumento dos incentivos para a dança,
mas, ao mesmo tempo, com o crescimento ainda maior do número de companhias na
86
cidade, há uma conta que não fecha e todos parecem apontar para a grande
dificuldade em manter uma companhia de dança em São Paulo. Nóbrega também tem
suas questões referentes ao Fomento à Dança, mas já tenta, por outro lado, ponderar
maneiras de potencializar o que existe.
“Poderia ser melhor? Provavelmente. Mas há, sem dúvida, um ganho. E
há sem dúvida também, hoje a massa de pessoas que se dedicam à
dança, grupos, exponencialmente, se multiplicaram. Muitos dançarinos
hoje, que faziam parte de companhias, hoje, formaram suas próprias
companhias. E muitos, até uma coisa da época, as necessidades
pessoais terminam se sobrepondo às necessidades coletivas e, com isso,
há então uma proliferação muito grande de grupos” (NÓBREGA, 2015,
Anexo 1, p. 161).
Ele afirma que tem conseguido desenvolver seu trabalho independentemente
do Fomento, embora assuma ter submetido um projeto a esta última edição – 19ª
Edição do Programa Municipal de Fomento à Dança, segundo semestre de 2015 –
mesmo depois de algum tempo sem enviar.
“A última vez que submeti foi aquela (refere-se a uma das edições do
ano de 2013, quando um grupo de artistas, entre eles eu, Igor Gasparini,
o próprio Antônio Nóbrega, Ana Catarina Vieira, Diogo Granato, entre
outros, iniciaram uma discussão a respeito dos critérios de avaliação da
banca do Fomento), na ocasião não fui contemplado, então... Tive
algumas... Me posicionei. Estávamos juntos lá nesta ocasião. E...
Algumas razões me foram dadas, bem... Eu resolvi colocar dentro de
uma determinada prateleira a discussão em relação ao Fomento. E,
estou submetendo essa vez (19ª edição, que teve inscrições encerradas
no dia 3 de agosto de 2015) para, a partir desta outra vez, eu arrazoar
melhor. Acho que eu teria aí condições melhores de refletir, ganhando
ou não ganhando, sendo ou não contemplado. (...) Em tese, eu acho
que ele trouxe benefícios para a população de dança em São Paulo,
87
sabe, porque há verba destinada às pessoas que exercitam a dança.
Provavelmente, pode ser que haja lugares para serem mexidos, para
serem repensados, mas eu... por ora, gostaria de ficar fora desta
discussão” (NÓBREGA, 2015, Anexo 1, p. 162).
Como diretor do T.F.Style Cia de Dança, posso afirmar também que é possível
manter-se atuante na cidade de São Paulo, mesmo sem o incentivo do Fomento, mas
em condições de trabalho que não são as ideais. Em 2014 a Companhia realizou 60
apresentações de espetáculos de seu repertório, um número bastante elevado se
comparado até mesmo com os grupos fomentados. Estas apresentações circularam em
diversos cenários da dança da cidade e do estado de São Paulo, seja pelas unidades do
SESC-SP; pelo Circuito Municipal de Cultura e Circuito Cultural Paulista; por execução
de projetos contemplados, como ocorreu pelo VAI-2, com apresentações nos CEUs da
cidade de São Paulo; ou ainda, por contratações pontuais das Secretarias de Cultura do
Município ou do Estado, como as Viradas Culturais, por exemplo. Mas o que parece
positivo, por ser um cenário promissor para uma companhia de dança urbana
contemporânea independente, não abandona a lógica de cachês por apresentação. Ou
seja, a instabilidade deste modo de existir não configura uma forma profissional de
sobrevivência, obrigando todos a buscar formas complementares que garantam o seu
sustento.
T.F.Style Cia de Dança – Foto: Helon Hori
88
Daniel Kairoz, idealizador do Terreyro Coreográfico, também reflete sobre as
possibilidades de existência na cidade de São Paulo:
“Eu vejo que tem um tanto de incentivo e de dinheiro que circula por
aqui, que é algo que em pouquíssimos outros lugares circula. Eu não sei
o quanto isso é... Porque eu acho que isso gera contradições bem
malucas, de ter muito dinheiro para produzir os trabalhos, e terem
muitos trabalhos sendo produzidos e irem para o mundo, mas são
pouquíssimos os que têm uma força artística mesmo, a ponto de
chacoalhar, de mexer, com o que se entende por dança, com a
linguagem, com o meio da dança, com os modos de produção em
dança. Então, são trabalhos que normalmente estão muito formatados
dentro dos editais. E tem toda essa problemática também que muita
gente fala e comenta que o quanto que um edital vai conformando e vai
formatando os modos de produção da arte” (KAIROZ, 2015, Anexo 1, p.
171).
Ainda que pese a formatação imposta pelos editais nos processos criativos e na
própria criatividade25 dos artistas, Kairoz afirma ser possível driblar essa realidade:
“É possível reverter isso. Trabalhar com isso... Sacando qual o modo de
operação de determinado edital, você propor algo que te abra uma
possibilidade que não seja simplesmente cumprir o edital. Porque eu
vejo que muitos trabalhos ficam correndo atrás do próprio projeto. E
isso eu acho bem prejudicial para a criação de um trabalho artístico.
Quando você tem que ficar cumprindo coisas e correndo atrás de um
projeto. E eu acho que um projeto é muito rico no sentido de te lançar
para um desconhecido. E eu acho que vários projetos que eu tinha
escrito para o Fomento especificamente, eles tinham formatos um
pouco mais careta, assim, de apresentar um trabalho que eu já tinha,
25 Como defende Pascal Gielen, e será apresentado na sequência, a criatividade como uma espécie de fundamentalismo.
89
fazer temporada dele, e criar alguns grupos de estudo para também dar
continuidade às pesquisas minhas coreográficas e tal, que até envolvia o
grupo de crítica e outras ações. E daí, o trabalho mais maluco que eu
escrevi, que era um projeto que falava basicamente de pessoas que se
aproximaram de mim, de um cruzamento entre áreas: arquitetura,
programação e coreografia, sem dizer exatamente o que iria ser feito ou
não... foi o que rolou. E isso foi maravilhoso porque deu uma liberdade
para a gente fazer o projeto incrível, de a gente fazer muito mais do que
dissemos que iríamos fazer no projeto, e muito mais do que se a gente
tivesse falado cada coisa que a gente iria fazer, porque aí a gente teria
que fazer exatamente aquilo que a gente falou e a gente ia se ferrar,
porque é isso, você começa a trabalhar e vai mudando tudo. E se você
não tem essa liberdade para deixar mudar, você está ferrado, porque
daí você não vai conseguir fazer uma criação artística... Dar um olé... E a
gente é artista, então, eu acho que é um lugar criativo também escrever
um projeto” (KAIROZ, 2015, Anexo 1, p. 171).
É importante conhecer as formas de financiamento da produção artística, pois
seus resultados, que é o produto que entra em contato com o espectador, são
impactados por ela. No momento em que a produção está regulada pela necessidade
de escrever projetos para os editais, os tempos da pesquisa ficam ameaçados e são
substituídos pelos tempos das “boas ideias”. O tempo da pesquisa é mais dilatado
porque implica em processo de criação, enquanto as “boas ideias” têm o tempo da
criatividade.
Refletindo sobre a criatividade, Pascal Gielen26 (2013) traz à reflexão a arte não
apenas enquanto um segmento da produção cultural, mas chamando a atenção para o
modo como ela passou a ser uma “necessidade” de gerentes, gestores, da própria
economia, de como a criatividade instalou-se como uma condição de existência no
mundo atual. Tudo precisa ser criativo. “Hoje, criatividade é essencialmente uma
moralidade positiva. E não podemos esperar nada de bom disso” (GIELEN, 2013, p. 9,
26 Sociólogo e professor da University of Groningen (Holanda), diretor do grupo de pesquisa “Arts in Society”.
90
tradução nossa). Ele questiona: de onde vem essa fome pela criatividade. Não seria um
sinal da insidiosa perda da verdadeira criatividade? E nos leva a compreender que,
com tanto apelo à criatividade, o que se perde é a criação.
Gielen afirma que a criatividade tornou-se mais um fundamentalismo, visto que
a obsessão da criatividade pela própria criatividade suprime os parâmetros ideológicos
aí envolvidos. O autor atribui ao neoliberalismo uma criatividade supostamente
apolítica e pondera que, no neo-nacionalismo e no comunismo, a criticidade também
se tornou uma ideologia.
Não apenas o neoliberalismo, mas a globalização também afeta diretamente as
instituições culturais, que passam a direcionar a produção artística e o trabalho de
criação. É uma lógica de cima para baixo, na qual, a criatividade é a última instância
deste processo. Como inverter esta lógica? É possível pensar a partir da criação e não
desta criatividade que agora nos tiraniza? Como alterar o pensamento sobre
criatividade que se tornou hegemônico?
“E é aqui onde a efervescente indústria da criatividade atua,
concedendo aos consumidores a impressão de que podem escolher
sobre tudo a partir de seus próprios desejos, enquanto, na verdade,
proporciona produtos padronizados em série, ou paradoxalmente,
produtos individualizados em série.” (GIELEN, 2013, p. 65, tradução
nossa).
Haveria, então, uma produção de espetáculos (produtos individualizados) em
série? Esta questão leva à observação de que existem “direcionamentos” artísticos
feitos por programadores e curadores, uma vez que suas escolhas representam
sinalizações do que conquista sobrevivência (ser escolhido = poder viver do trabalho
feito). Contudo, não se pode esquecer que estes profissionais também são
pressionados pelos números que serão apresentados em seus relatórios e levados em
consideração na avaliação de seu desempenho como gestores das instituições que os
empregam. Não à toa, muitos deles buscam “o novo”, sob a alegação de que a
produção inédita atrai mais público, em tempos nos quais os sujeitos são impacientes
e cada vez mais habituados a uma enxurrada permanente de estímulos.
91
A dificuldade está em conseguir reconhecer algo “novo” em um processo de
pesquisa continuada, mais lenta no seu desenvolvimento e, portanto, incapacitada a
atender o desejo mercadológico da “novidade”. Juntando estas condições à pressão
dos editais não é difícil entender o aparecimento dos “produtos individualizados em
série” (GIELEN, 2013), como uma mímica precária do esquema Toyotista27 que passou
a regular as fábricas no século XX, com a produção acontecendo em função da
demanda de mercado.
Gielen (2013) afirma que práticas artísticas que esperam quebrar formatos
também podem ser formatadas da maneira que desejam combater, praticando o que
desejam evitar. O momento da dança no Brasil ilustra esta situação, e o espectador,
educado pelo que assiste, torna-se público dos tipos de informação artística
encontrados. Os artistas, por sua vez, tornam-se empresários da criatividade,
necessária para continuar a fazer parte do sistema estabelecido, no qual atuam como
gerentes. Neste processo, Gielen salienta que o público busca garantias, daí o “valor
da obra” ligado à mensuração da sua criatividade, reafirmada pelos os meios de
comunicação.
Como se vê, é denso e complexo o quadro no qual o jornalismo cultural
especializado em dança inscreve-se como um dos agentes da construção da relação
obra-público. E nele cabe destacar um novo papel para o artista, que agora assume a
tarefa de tornar pública a sua voz em iniciativas digitais de formato jornalístico. Que
espécie de mediação faz, então, o jornalismo cultural hoje?
“O problema não é a quantidade da cobertura da imprensa, mas a
qualidade. Artigos e notícias sobre expressões criativas têm se tornado
incrivelmente raros e, mais a fundo, programas sobre arte continuam
perdendo espaço no rádio e na televisão. (...) A mudança é que a crítica
tem perdido seu poder de criticidade. Não somente estão
desaparecendo as críticas de arte, mas gradualmente, também as
críticas sociais e o jornalismo em geral. Mais precisamente, a crítica do
27 Toyotismo é o modelo japonês de produção por demanda, criado por Taiichi Ohno e implantado nas fábricas de automóveis Toyota, após o fim da Segunda Guerra Mundial. Nesta época, o novo modelo era ideal para o cenário japonês, ou seja, um mercado menor, bem diferente dos mercados americano e europeu, que utilizavam os modelos de produção Fordista e Taylorista.
92
sistema tem cedido espaço para a crítica sobre as pessoas.” (GIELEN,
2013, p.71, tradução e grifo nossos).
Muitas obras de arte, e na dança não é diferente, só existem pelo seu poder de
criticidade. Muitas criações, desde a modernidade, dependem exatamente da
possibilidade de uma postura crítica diante da própria cultura e da sociedade. Para
Gielen, “nos meios de comunicação de massa, a crítica de arte está sendo reduzida ao
nível infantil de uma discussão de boteco” (GIELEN, 2013, p. 73 – tradução nossa).
“É preciso demolir o conceito de ‘prazer artístico’, proclama Adorno,
pois, tal e como o entende a consciência comum – a cultura popular,
diríamos nós –, o prazer é só um extravio, uma fonte de confusão: quem
tem prazer com a experiência é só o homem trivial”, resultando em
“uma arte para consumistas”. (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 77).
Como defende Martín-Barbero (2009), trata-se além da arte ou da técnica, mas
do modo como se produzem as transformações na experiência, não só na estética. E,
como os meios tornaram-se mediação, isso gera profundo impacto no jornalismo
cultural. A mediação tornou-se discurso publicitário, de celebrização, e a arte tornou-
se refém desta realidade, o que tem reposicionado o jornalismo cultural como
jornalismo do entretenimento, independente da linguagem artística sobre a qual trata.
Esse panorama vai em direção diferente dos novos empreendimentos que surgem no
ambiente digital (alguns deles abordados nesta pesquisa) e no potencial (ainda não
explorado satisfatoriamente) das redes sociais no cenário atual de comunicação entre
artistas e público.
93
2.5 COMUNICAR A DANÇA
Não se deve perder de vista a ideia de que “comunicar significa estabelecer ou
ter coisa em comum” (SFEZ, 1994, p. 38) e, consequentemente, não se pode esquecer
que coreógrafos comunicam-se, devendo levar esta circunstância em consideração. A
comunicação manifesta-se na ação de cada um que entre em contato com a obra, pelo
que nela reconheceu ou não reconheceu, fazendo parte de um fluxo de diferentes
leituras que será permanentemente alimentado pela sua continuidade.
Os diversos elementos comunicados serão percebidos diferentemente pelo
público, e esta percepção, como defende Adolfo Sánchez Vázquez, em sua obra
Convite à estética (1999), é um ato particular que não se reduz a uma atividade
sensorial, mas estabelece uma experiência psíquica mais complexa. O autor afirma ser
um processo que combina recordações, elabora imagens e desperta reações afetivas.
Perceber é, assim, um processo complexo, no qual também se pensa, sente-se,
recorda-se. Apesar de individual, a percepção é um ato intrínseco à qualidade social
por estar contextualizada na sociedade (com todos os elementos culturais envolvidos)
em que o indivíduo está inserido. Volto ao conceito de Alva Nöe (2005), segundo o
qual a percepção humana não é algo que acontece ao corpo, mas sim uma ação ativa
deste corpo:
“Percepção não é um processo no cérebro, mas uma forma de
habilidade ativa. Todas as percepções são intrinsecamente cheias de
pensamentos e a consciência desta percepção são formas ativas de
conhecimento”. (NÖE, 2005, p. 3, tradução nossa).
Visto que a comunicação é um fluxo constante de troca de informações, aqui
não praticamos o entendimento da relação emissor-canal ou veículo-receptor como
regulador da comunicação. A realidade não é objetiva no sentido de estar fora do
sujeito que a observa, mas, ao contrário, faz parte do próprio sujeito e, portanto, das
formas como percebe o mundo. Por esta ótica, bailarino, espetáculo e espectador
estão em uma mesma cadeia de fluxo, um valendo-se, interferindo e transformando o
outro, construindo, assim, a comunicação.
94
Ao tratar do contexto do espetáculo de dança, o mais habitual é encontrar a
proposta de que se faz necessária uma linguagem compartilhada entre artista e
espectador para garantir a comunicação. Entretanto, tal entendimento, apesar de ter
se transformado em uma “verdade oficial”, não se sustenta epistemologicamente. Em
arte não cabe tomar o conceito de linguagem emprestado, sem refletir sobre o que
nisto está posto, uma vez que as semânticas e as gramaticalidades são distintas e têm
outro tipo de especificidade. Exatamente por isso, na arte não sucede o mesmo tipo de
comunicação a que se está acostumado no contexto verbal. “A linguagem não é uma
mera convenção, mas sim, um produto da prática social, que surge e se desenvolve
historicamente no contexto da práxis vital de uma comunidade”, afirma Rüdiger (2004,
p. 83). Ou seja, naturezas distintas de linguagem implicam em comunicação de
natureza distinta. Na relação entre obra e público, algo é comunicado, mas o
entendimento não é da mesma ordem que se espera da linguagem verbal. Em arte, um
mesmo objeto pode suscitar possibilidades distintas de entendimento.
Para Marcel Duchamp (1965), o ato criador não é executado pelo artista
sozinho. “O público estabelece o contato entre a obra de arte e o mundo exterior,
decifrando e interpretando suas qualidades intrínsecas e, desta forma, acrescenta sua
contribuição ao ato criador”. (DUCHAMP, 1965, p. 2). Logo, é no fluxo que a
comunicação se estabelece. E a abordagem da comunicação, aqui trazida via Teoria
Corpomídia, tem como propósito priorizar a comunicação como troca de informações
constantes entre corpo e ambiente e não como mensagem a ser transmitida de um
emissor a um receptor. O senso comum, assim como está estabelecido pela mídia, é
refém da busca pelo “entendimento” da obra artística, muitas vezes, no sentido da
linguagem verbal, combinando com esta outra visão de comunicação e diferindo do
que propomos nesta pesquisa.
95
CAPÍTULO 3. O ESPECTADOR COMO QUESTÃO
Jacques Rancière28, na obra O Espectador Emancipado (2010), afirma que não
existe teatro sem espectadores, mesmo que seja apenas um, único e escondido. Ele
defende que
a condição do espectador é uma coisa ruim. Ser um espectador significa
olhar para um espetáculo. E olhar é uma coisa ruim, por duas razões.
Primeiro, olhar é considerado o oposto de conhecer. Olhar significa
estar diante de uma aparência sem conhecer as condições que
produziram aquela aparência ou a realidade que está por trás dela.
Segundo, olhar é considerado o oposto de agir. Aquele que olha para o
espetáculo permanece imóvel na sua cadeira, desprovido de qualquer
poder de intervenção. Ser um espectador significa ser passivo. O
espectador está separado da capacidade de conhecer, assim como ele
está separado da possibilidade de agir. (RANCÈRE, 201029).
Se o espectador está separado da capacidade de conhecer e agir porque
apenas “olha” passivamente, existe outra possibilidade para lidar com o que assiste?
Para Rancière existe, e trata-se de tornar-se um espectador emancipado30. E é isto que
significa o termo emancipação: o rompimento da fronteira entre aqueles que agem e
aqueles que observam, entre indivíduos e membros de um corpo coletivo.
O autor defende que existe a necessidade de um novo teatro, sem a “condição
de espectador”; pois esse espectador emancipado estaria subordinado à outra relação,
28 Jacques Rancière (1940) é professor de filosofia na European Graduate School em Saas-Fee, Suíça, onde leciona seminários intensivos. É também professor emérito na Université de Paris (St. Denis). Seus livros abordam pedagogia, história, filosofia, estética, cinema e arte contemporânea. Sua crítica o coloca em posição de destaque como filósofo, crítico literário e teórico sobre arte e marxismo. 29 Disponível em: <http://www.antropofagia-interculturalismo.blogspot.com.br/2010/03/o-espectador-emancipado-artigo-de_12.html> Acesso em: 31 de julho de 2011. 30 No seu texto “O espectador emancipado” (2010), Rancière trata desta questão. O artigo, publicado na internet, tornou-se referência neste tema: <http://www.antropofagia-interculturalismo.blogspot.com.br/2010/03/o-espectador-emancipado-artigo-de_12.html>
96
implícita no termo drama, que significa, por sua vez, ação. Estes indivíduos irão
“aprender coisas em vez de ser capturados por imagens, onde vão se tornar
participantes ativos numa ação coletiva em vez de continuarem como observadores
passivos” (RANCÈRE, 201029). Dessa forma, ele ainda defende que o espectador deve
ser liberado da passividade de observador, fascinado pela aparência à sua frente e
identificando-se com as personagens no palco, para ser confrontado com o espetáculo
que cause estranhamento; para lidar com um enigma e com a demanda de investigar
este estranhamento. Por fim, o espectador emancipado será impelido a abandonar seu
antigo papel para assumir o de cientista que observa fenômenos e procura suas
causas. Rancière solicita aos espectadores que
“atuem como intérpretes ativos, que elaborem sua própria tradução
para se apropriar da ‘história’ e conceber a sua própria história. Uma
comunidade emancipada é uma comunidade de contadores e
tradutores” (RANCIÈRE, 201029).
O artista deve, então, questionar-se sobre os caminhos a trilhar na direção
destes “intérpretes ativos”, lembrando que a comunicação não deve ser tratada como
uma responsabilidade unidirecional, do artista para o público. O que o espetáculo
propõe não pode ser interpretado de “forma correta” pelos espectadores, pois, como
toda forma de comunicação, ela se faz do fluxo das suas continuidades. Como diz
Rancière,
“os espectadores veem, sentem e entendem algo na medida em que
fazem os seus poemas como o poeta o fez, como os atores, dançarinos
ou performers o fizeram. O dramaturgo gostaria que eles vissem esta
coisa, sentissem este sentimento, entendessem esta lição a partir do
que eles veem, e que partam para esta ação em consequência do que
viram, sentiram ou entenderam” (RANCIÈRE, 201029).
Ainda no mesmo livro, o autor defende que há uma distância entre o ator e o
espectador. Mas há também a distância inerente à própria performance, visto que ela
97
é um "espetáculo" mediático, que se encontra entre a ideia do artista e a leitura do
espectador. O espetáculo é um terceiro termo, a que os outros dois podem se referir,
mas que impede qualquer forma de transmissão "igual" ou "não distorcida".
Independentemente desta distância, a comunicação entre espectador e obra se faz
presente.
“Talvez seja importante concebermos o espectador dessa cena
divergente como um terceiro, dito e compreendido como o espectador,
um outro, aquele que não sabe, alguém de quem estamos cuidando,
protegendo os interesses e necessidades; porém, quem sabe,
pensarmos a partir da nossa participação em acontecimentos artísticos,
a partir de desejos e vontades próprios, como algo que de fato nos diga
respeito, tratando a emancipação de cada um de nós como espectador
(...) na situação de quem age, conhece, questiona, investiga e relaciona
todo instante o que estamos vendo com aquilo que vimos, dissemos,
fizemos, sonhamos.” (DESGRANGES, 2012, p. 190).
É necessário que o espectador entenda que o seu papel vai além de buscar
entender a obra para chegar a uma relação experiencial com ela, pois o espetáculo não
ocorre independente da relação com cada um que o assiste, sendo o resultado daquilo
que é produzido nesta relação. O fato de apresentar o resultado de um processo de
criação não encerra o processo, mas, ao contrário, propõe a sua continuidade, agora
na presença dos espectadores. Se lembrarmos com Nöe (2005) que toda percepção é
uma ação, compreenderemos que o corpo está sempre agindo.
Rancière (2010) ainda defende a ideia de que o teatro deva ser sinônimo para
“comunidade de corpo vivo”, em oposição à ilusão da mimesis31, o que significa ter
múltiplos agentes no fazer teatral, incluindo o espectador emancipado, participativo e
atuante na obra. Dessa forma, o autor critica o “espetáculo” pela sua externalidade,
fundamento da proposta de Guy Debord, pois o espetáculo estaria totalmente
relacionado à visão, e esta significa externalidade. “Quanto mais um homem
31 Representação, imitação.
98
contempla, menos ele é” (DEBORD apud RANCIÈRE, 201029) e esta parece ser a lógica
da arte do entretenimento, com suas grandes produções “espetaculares”.
Conversando com o que propõe Rancière, Brecht (1898-1956)32 já defendia que
o público precisa manter-se ativo na recepção de um espetáculo e não apenas assisti-
lo passivamente, participando deste processo ativa e politicamente. Ele afirma que
para se chegar à fruição artística nunca basta querer consumir confortavelmente e sem
muito trabalho o resultado da produção artística, pois é necessário assumir parte da
própria produção, estar num certo grau produtivo, “permitir certo dispêndio de
imaginação”, associar sua experiência pessoal à do artista ou opor-se a ela. “O efeito
de uma performance artística sobre o espectador não é independente do efeito do
espectador sobre o artista. No teatro, o público regula a representação” (BRECHT apud
BORNHEIM, 1992, p. 265).
“A mediação teatral torna a plateia atenta à situação social em que o
próprio teatro se encontra, dando a deixa para a plateia agir
consequentemente. Ou, de acordo com o esquema artaudiano, faz com
que eles abandonem a condição de espectador: eles não estão mais
sentados diante do espetáculo, estão cercados pela cena, arrastados
pelo círculo da ação, o que devolve a eles sua energia coletiva”
(RANCIÈRE, 201029).
Para Brecht é necessário retirar a fascinação do espectador pela aparência,
tirando-o da passividade e forçando-o a refletir sobre o que é apresentado em uma
obra, assumindo uma postura crítica. O espectador deve, assim, abdicar da empatia ao
espetáculo e distanciar-se da obra, debatendo os seus interesses, ampliando o
conhecimento crítico de sua situação, desencadeando o desejo de agir, de
transformar, ao invés de ficar passível apenas aos sentimentos que a obra suscita. Esse
distanciamento gerará a consciência crítica:
“Distanciar um acontecimento ou um caráter significa antes de tudo
retirar do acontecimento ou do caráter aquilo que parece óbvio, o 32 Dramaturgo, romancista e poeta alemão, referência pelo Teatro Épico.
99
conhecido, o natural, e lançar o espanto e a curiosidade. A finalidade
dessa técnica do efeito de distanciamento consistia em emprestar ao
espectador uma atitude crítica, de investigação relativamente aos
acontecimentos que deveriam ser apresentados” (BRECHT apud
BORNHEIM, 1992, p. 243).
A estratégia de Brecht para afugentar a passividade do espectador atua como
uma forma de mediação. Mas há outro entendimento de mediação espalhado nas
artes cênicas que perde a sua especificidade por ser tratado como sinônimo de
“formação de público”. Em geral, quando objetivam a relação do espectador com a
obra, as mediações buscam conduzir as suas formas de relacionamento, enquanto
que, na maioria das vezes, as ações que apontam para o público, enquanto coletivo,
procuram aumentar quantitativamente o número de fruidores.
Tais programas são entendidos, de modo geral, como uma ação de apresentar
obras a quem não tem acesso a elas – a esse “público” que precisa ser “formado”. Não
à toa, o efeito desejado não é obtido e, pensando na realidade de exclusão social a que
muitos estão inseridos, cabe repensá-los.
Ao refletir sobre a relação espetáculo-público, devemos evitar o conceito de
público no sentido de um agente coletivo inespecífico, uma massa “inexpressiva”
diante de um espetáculo, e, talvez, optar pelo conceito de espectador, que considera o
indivíduo como ser único e singular, com suas vivências e experiências também únicas
e singulares. O entendimento de público como um conjunto de seres indiferenciados
continua sendo usado e pode ser identificado, por exemplo, nos programas de
“formação de público”.
Antes de aplicá-los indistintamente, como tem acontecido, valeria recorrer a
Antonio Negri, que defende que “somos uma multiplicidade de formas singulares de
vida e, ao mesmo tempo, compartilhamos de uma existência comum” (NEGRI &
HARDT, 2005, p. 172), e é no comum que existe a humanidade.
Outro tipo de iniciativa com objetivo semelhante ao de “formação de público”
tem tornado-se recorrente no cenário da dança: são as intervenções urbanas.
Atualmente, muitos buscam desenvolver trabalhos de ocupação do espaço público,
enquanto outros adaptam seus trabalhos neste contexto. Sob a alegação de ser uma
100
iniciativa mais democrática, os programadores estão utilizando desta possibilidade
para conseguir levar a dança a um público que não frequenta teatros, cativá-lo no local
que frequenta, apostando que ele possa tornar-se um espectador de dança e, em uma
próxima oportunidade, adentrar ao teatro.
“É uma palavra que eu gosto muito: público. Porque ela tem essa
confusão um pouco que diz tanto às pessoas que vão assistir algo que se
chama de público, e também tudo o que diz respeito a todos, que é
comum a todos, que é o que é público: o espaço público, o poder
público, que já cria um problema porque o poder público é o poder
oficial e não o povo. Acho uma palavra que é bem interessante que, por
estar em muitos lugares próximos, tem sempre... Se você colocar todos
esses lugares em que ela aparece em relação, começa a criar problemas
bons para... [discussão] É difícil falar assim genericamente de público,
porque é isso, falar de espaço público é algo específico, e aí falar de
público, dessa figura que vai assistir e que é algo que tem me
interessado muito, que acho que mais pontualmente o público, essa
entidade que assiste a trabalhos de arte...” (KAIROZ, 2015, Anexo 1, p.
173).
Kairoz relata sua experiência junto ao Teatro Oficina33 afirmando que o diretor
Zé Celso trabalha com a ideia de “corógrafo”, ao invés de coreógrafo, pois busca uma
coreografia de coros. E explica:
“Isso para mim foi ficando muito forte: de cada vez mais pensar o
público enquanto um coro. Enquanto coro no sentido de um espaço de
ressonância da obra, porque, neste sentido tem a ver com a crítica
também, que é até um dos textos que eu escrevo, em uma das edições
do Fanzine é isso: que o crítico é quase que uma caixa de ressonância,
33 O Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona, ou apenas Teatro Oficina, é uma companhia de teatro que marcou a história cultural da cidade de São Paulo. Fundada em 1958 por Amir Haddad, José Celso Martinez Correa (Zé Celso) e Carlos Queiroz Telles, estrutura-se ao redor da figura de Zé Celso, um dos principais diretores, atores, dramaturgos e encenadores do teatro brasileiro.
101
uma figura que vai fazer aquela obra ressoar no mundo, dando uma
continuidade de vida para o trabalho. Um pouco do que o Benjamim
fala do tradutor, na tarefa do tradutor. Ele fala que o tradutor dá uma
sobrevida à obra e eu acho que o crítico também tem esse papel e o
público também, talvez mais do que todos. Porque o público é essa
figura que é multiforme e que é composta por muitos indivíduos. Eles
saíram da sala de espetáculos, do teatro, assim, já foi... Foi para o
mundo... São 100 pessoas que estão levando isso para outros lugares,
então, é muito poderoso...” (KAIROZ, 2015, Anexo 1, p. 174).
Para ele, pensar essa figura do público enquanto coro é muito rica, porque traz
uma implicação para essas pessoas, convergindo para o que foi aqui abordado
enquanto espectador emancipado (RANCIÈRE, 2010). Para Kairoz, o público não está
presente apenas na figura de quem vai assistir, avaliar, apreciar ou consumir aquele
produto artístico, e ele sente a importância do completo envolvimento com a obra.
“Sei lá, para mim é muito forte ver as plateias dos Festivais de Música e
ver o grau de envolvimento deles, de vaiar, de aplaudir, de não deixar
cantar, e eu adoraria ter isso em dança, das pessoas ensandecidas com
o trabalho, puta que merda, que louco que aquilo está acontecendo...
Um pouco da história da Sagração da Primavera, da estreia, assim, de
um trabalho, porque não é nem uma coisa do trabalho causar essa
comoção: Ah, trabalhos incríveis! Mas é do público sentir-se à vontade
enquanto coro, porque se ele se sente como coro, responsável por
aquilo que está acontecendo, ele não vai poder ficar quieto. Porque eu
acho muito louco, que é uma coisa que eu tenho pensado muito,
ultimamente, que é o quanto que nos trabalhos de dança o público não
pode se mover. O quanto que as pessoas se movem o mínimo possível.
É uma coisa que quando eu vejo um trabalho de dança que me toca, dá
vontade de dançar junto. E não preciso entrar lá para dançar, mas eu
fico na minha cadeira meio louco ali com aquilo, completamente
envolvido cineticamente. E por que a gente não pode se mover em um
102
trabalho de dança? Por que que a gente tem que assumir uma postura
de observador? É muito frágil, muito falso, muito besta” (KAIROZ, 2015,
Anexo 1, p. 174).
De alguma forma, o Terreyro Coreográfico acaba possibilitando essa liberdade
para que o público participe, visto que os trabalhos que acontecem ali, embaixo do
viaduto Jaceguai, já colocam o espectador em outra relação com o espaço público.
Com a inexistência de poltronas confortáveis ou do silêncio costumeiro de uma sala de
espetáculos, o corpo passa a ser requisitado de outra forma. Além disso, o próprio
público das ações artísticas é bastante diversificado, alternando entre artistas e
transeuntes que frequentam (ou “moram”) nas redondezas.
“É muito foda, porque te coloca neste lugar de coreografar todo esse
lugar do público, desse coro, coreografar as pessoas que vão ali.
Também não dá para simplesmente deixar solto, porque também tem
uma tendência, então, vamos questionar o lugar do público, então, você
tira o público do lugar dele e solta em outro contexto. E depois você
fica: Ah, mas por que as pessoas ficam sentadas e não ficam andando
pelo trabalho? Porque é isso: se você está tirando eles de uma situação
coreografada, que eles sabem muito bem como agir, você precisa
propor outra coisa. E você pode propor uma coisa que não seja
determinante, para não cair no mesmo lugar, mas você pode criar
caminhos. E isso é muito legal, de conseguir trabalhar coreografia em
outras escalas, e não só essa já mais habituada do contexto teatral, do
contexto de espetáculo, mas de pegar esse pensamento coreográfico e
de levar ele para outras escalas, outras dimensões” (KAIROZ, 2015,
Anexo 1, p. 175).
Considerando o caso do Terreyro Coreográfico, no qual é o próprio espaço
público que está em discussão, perguntamos para Kairoz como tornar de fato público o
espaço público. Sua resposta foi a seguinte:
103
“Foi também o foco lá no Arte Palácio, de um aparelho público, um
cinema antigo, que a Secretaria desapropriou, então era uma
propriedade pública, só que ninguém podia entrar porque tinha grade,
e tinham medo que rolasse alguma ocupação. Só que você mantém o
negócio vazio, aí sim é motivo de especulação, porque ao invés de usar
e manter vivo o espaço, não, você fecha. É que nem aqui, tudo murado,
tudo fechado, então, todo esse trabalho de coreografar essa
arquitetura, coreografar os muros, onde abrir, onde não abrir, como
abrir, o quanto abrir, tudo isso pensando no espaço público é muito rico
para tornar o espaço público público, publicizar o espaço público”
(KAIROZ, 2015, Anexo 1, p. 175).
Por outro lado, Andreazzi explica que, no caso da Cia Corpos Nômades, é algo
que vem antes do espaço público:
“Deleuze e Guatarri colocam em discussão o capitalismo esquizofrenia:
então, o que seria público no sistema capitalista, com governantes que
querem apenas tirar vantagem, gerando uma distorção muito grande do
que seria um lugar público? Na real, a questão dos corpos nômades é
mais uma questão do lugar público do corpo em si; o que esse trabalho
do intérprete, de uma companhia de dança contemporânea ou de arte
cênicas, faz hoje com a exposição do corpo dele para o público. Isso tira
um pouco esse viés de espaço público” (ANDREAZZI, 2015, Anexo 1, p.
128).
Para ele, a relação do corpo nômade encontra-se mais na filosofia que existe
neste corpo, em descobertas e modificações no decorrer de um percurso, e no
desenvolvimento de uma linguagem cênica que aborde um pouco as diferentes formas
de produzir um espetáculo, seja de teatro, de dança, utilizando vídeo ou literatura:
“Então, mescla muito esses aspectos da soltura e da errância que você
pode ter, envolvendo um tipo de pesquisa que pegue o teatro
104
contemporâneo, a dança contemporânea, a imagem da performance e
as outras culturas” (ANDREAZZI, 2015, Anexo 1, p. 128).
Andreazzi ainda pondera que consegue perceber uma crise forte com relação
ao público de dança hoje e responsabiliza a educação por não proporcionar o hábito
de ir ao teatro ou à dança:
“A educação é ruim. Não passa pela formação das pessoas o hábito de ir
ao teatro ver dança, e ir ver a dança contemporânea. (...) Eu acho que
diminuiu bastante a questão do público! E na dança contemporânea
ainda é outro aspecto. Na nossa dança contemporânea aqui, que se
respalda e se alimenta do teatro, é mais múltipla, eu percebo que
quando tem uma verba maior para investir com mais ênfase na
divulgação, o público acaba vindo. A nossa lotação máxima é de 60
lugares e raramente estoura. Algumas vezes sim, mas não é sempre. A
média é de 30 a 40 pessoas e a gente tem que se sentir feliz”
(ANDREAZZI, 2015, Anexo 1, p. 130).
Andreazzi relatou uma experiência de alguns anos com a Escola Estadual
Caetano de Campos como uma importante ação de formação de público, além de
experiências recebendo o Vocacional Dança e Teatro34:
“A educação para difusão e formação de público é crucial! Mas sempre
há um desgaste para a manutenção dessas ações. (...) Mas eu acho que
a saída para esse fortalecimento do público é a integração da educação
com a cultura e com relação também com o bem-estar social. (...) De
repente, vem público e, de repente, não vem, mas eu acho que, por
34 Programa da Divisão de Formação da Secretaria Municipal de Cultura. É composto pelos projetos em artes visuais, artes integradas, música, teatro, dança e literatura, desenvolvendo processos artísticos com pessoas a partir de 14 anos. Os “encontros” (não são chamados de aulas ou oficinas de acordo com o material norteador do Programa) são realizados em espaços públicos da cidade, em equipamentos da Secretaria Municipal de Cultura (teatros distritais, casas de cultura e centros culturais) e da Secretaria Municipal de Educação (CEUs).
105
estarmos aqui há oito anos, deveria ter mais!” (ANDREAZZI, 2015,
Anexo 1, p. 130).
Semelhante a esta iniciativa relatada por Andreazzi, Marika, diretora do Ballet
Stagium, conta que a companhia realiza ações em parceria com a educação desde
1971, buscando sempre uma comunicação direta na formação e na base.
“Não adianta a gente ficar dançando aqui no palco e o público lá, foi
embora e até logo. Então, nós temos um trabalho bastante grande, em
várias áreas, em vários setores... A gente sai fora do teatro já desde o
começo. Já nos anos 1970, a gente estava fora do teatro, fazendo teatro
também. E hoje em dia (...) estamos trabalhando dentro das escolas. E é
onde você pode falar da formação de público, porque é uma juventude
que nem teria chance de ver isso aí, e é um blá blá blá meio furado, mas
é verdadeiro. Você chega em uma escola e vê aquela ‘criançadinha’... E
não é ir lá e só fazer o espetáculo. Tem que ter um pouco mais que isso.
A gente explica, a gente fala, conversa sobre nosso trabalho. Então, tem
toda uma conquista que também estamos fazendo em espetáculos
normais, que não são dentro das escolas...” (GIDALI, 2015, Anexo 1, pp.
144 e 145).
Marika relata que desde a década de 1990 a companhia, além de ir às escolas,
também leva os alunos para o teatro com o Projeto Escola. Ela destaca a importância
desta via de mão dupla, “mas só isso é pouco. Tem que ser isso e mais um pouco.
Entrar um pouco mais na cabeça dessa criançada, conversar com os professores
também... Aí eu acho que vale a pena”, afirma ela. Também destaca que muito desta
iniciativa de formação de público acontece pelos próprios esforços da Companhia, com
alguma logística auxiliada pelo FDE (Fundo para o Desenvolvimento da Educação), da
Secretaria de Estado da Educação, mas quem sustenta mesmo é o próprio Ballet
Stagium.
O T.F.Style Cia de Dança também realiza atividades semelhantes com o FDE.
Em 2015, houve grande diminuição dos incentivos, mas a companhia vinha sendo
106
contratada para atuar em unidades distintas da Rede SESC-SP e para realizar
espetáculos de dança para alunos de escolas públicas. Após as apresentações, sempre
havia uma conversa para que os adolescentes levantassem questões sobre a obra ou o
trabalho na companhia, e as respostas eram concedidas mais como provocações do
que como explicações da obra, por mais que houvesse o anseio em descobrir o que “se
queria dizer” com o espetáculo, algumas vezes, inclusive, partindo até de professores
que acompanhavam os alunos.
A intenção sempre foi a de estreitar as relações com a dança. E isso vai além da
busca pelo mero entendimento, mas transita entre a reflexão e a apreciação de uma
obra de arte contemporânea que, por si só, se reinventa e abre possibilidades para
endereçar questões que vão além do deleite gerado por um movimento, mas
buscando algo na linha tênue entre a obviedade e a obra hermética.
Antônio Nóbrega, músico e diretor da Companhia de Dança que leva seu nome,
pondera que, dentre as linguagens artísticas, a dança possui o menor público. No seu
caso, não realiza ações específicas de formação de público, mas destaca o papel da
ONG Instituto Brincante neste cenário:
“A gente não faz não. Mas nós temos aqui o Instituto [Brincante] que
faz um pouco, às vezes, disso. Pessoas que estudam aqui, além de
saberem, elas também são replicadoras disso. E são pessoas de áreas
diferentes de São Paulo, muitas delas inclusive da periferia, de regiões
mais afastadas, então, talvez a gente tenha um pouco isso, mas de
modo não oficial” (NÓBREGA, 2015, Anexo 1, p. 165).
Marina Guzzo e Simone Avancini em “A dança em ação no SESC SP”, capítulo de
Temas para a Dança Brasileira, defendem que o papel da crítica, o recorte da
curadoria, das instituições emissoras (como o SESC SP), do programa e da divulgação
também estão incluídos nessas estratégias de formação de público:
“Fundamental é, então, que se assuma e reconheça essa assimetria
dialógica, para que nela resida o poder de transformação da arte da
dança e para que a dança contemporânea não seja um monólogo ou um
107
diálogo entre seus próprios pares” (GUZZO e AVANCINI apud NORA,
2010, p. 332).
Pensando ainda nesta suposta “formação de público”, além do acesso aos
espetáculos e às conversas entre artistas e espectadores, ou ações como aulas e
palestras gratuitas realizadas no Instituto Brincante, existe também o papel do
jornalismo cultural neste contexto. Para Monteiro, esta formação, esta orientação do
público, acontece também no contato das pessoas com os textos publicados. Não
necessariamente de forma direta, como em uma resenha jornalística orientando para
o consumo, mas porque, a partir do contato com o texto, ocorrem diferentes formas
de aproximação com a obra artística.
“Nos primeiros textos, no primeiro parágrafo, sempre falava sobre o
trabalho, mas de forma localizada, que foi apresentado no SESC tal, no
dia tal, no Festival tal... Mas a gente parou de fazer um pouco isso. Não
sei. Não foi nada acordado entre nós. Eu entendo que essa formação de
público, ela se dá a partir deste contato que os públicos, na verdade,
venham a ter com as informações que o 7x7 vai publicando. Então, eu
acho que o cuidado ou o exercício que o 7x7 pode fazer para aproximar,
formar o público, [é] insistindo com essas informações” (MONTEIRO,
2015, Anexo 1, p. 140).
Além disso, Monteiro destaca que o seu papel está distante do transmissor de
informações, pois ele não está mais neste lugar de trazer no primeiro parágrafo as
principais respostas do quem, quando, onde e por que, como no lead jornalístico:
“Porque quando você escreve com determinado formato, já com esses
indicadores, claro que você vai estar formando esse público para
sempre pedir por esse tipo de informação. Agora, quando você
desestabiliza um pouco isso e coloca algo completamente diferente, e
por isso chamamos de artístico, porque está criando, no momento em
que está compondo aquele texto, criando outras conexões,
108
desestabilizando alguns modelos, algumas estruturas já
convencionadas, você permite que o público comece a se habituar, e
comece a se interessar por aquele tipo de formato também. Então, eu
acho que é um pouco o lugar da formação de público como eu entendo
também” (MONTEIRO, 2015, Anexo 1, p. 142).
Elisabete Finger destaca que as conversas entre artistas estão cada vez mais
complexas, herméticas, o que inevitavelmente afastará o público comum. Ao criar um
programa de rádio que propusesse um diálogo descomplicado entre artistas, seu
objetivo foi poder auxiliar na mediação com a obra. Sem simplificar o conceito de
Martín-Barbero (2009) já abordado anteriormente nesta dissertação, se pensarmos na
própria etimologia da palavra mediação, temos como possibilidades de mediar: agir
por, agir entre, colocar-se entre. E este parece ser o objetivo central de Elisabete:
“É uma vontade desde o início que elas usassem a música para a
entrada de um canal mais afetivo, pessoal, mais descomplicado, do que
esse discurso tão... Algumas vezes acadêmico, algumas vezes mais
conceitual, algumas vezes mais intelectualizado, que a gente está
aprendendo a ter. Durante muito tempo, eu acho que as pessoas da
dança não falavam tanto, mas hoje a gente fala muito. E acaba-se
criando uma linguagem super complexa, super hermética... Você vai
conversar com uma pessoa, sei lá, público normal, e aí você fala desse
jeito sobre uma peça, a pessoa sai correndo... Ela não vai voltar para
ver, sabe... (...) Então, eu queria chegar a uma conversa sobre dança
que acessasse em nós, em mim, no artista que está conversando
comigo, um lugar que é mais pessoa comum. (...) Dar esse salto,
apresentar esses saltos criativos que a gente tem em um processo
criativo de outra forma, de uma forma que as pessoas possam
entender. Claro, esta é a primeira hipótese. Depois você vai ver os
programas e vai ver que cada artista acaba conduzindo de uma forma
muito pessoal” (FINGER, 2015, Anexo 1, p. 150).
109
A mesma crise que parece atingir os espetáculos de dança, que contam com
um público menor se comparados às outras artes como o cinema, a música ou o
teatro, parece influenciar também iniciativas como o Discoreografia. É claro que é
preciso levar em consideração o fato de haver uma indústria cinematográfica ou da
música por trás da quantidade de público, mas a confusão arte versus entretenimento
parece esbarrar também na audiência dos programas:
“A primeira vez que a gente mediu foi um choque: bem poucos. Depois,
a coisa foi crescendo, e cresceu muito, e o que é mais legal é que a cada
programa novo, aumenta a audiência dos anteriores, e isso também é
ótimo na web né, os programas estão disponíveis no arquivo. (...) Pouco
era, por exemplo, no começo, a gente tinha assim 45 plays para um
programa, é muito pouco. Hoje a gente tem... Então, hoje, eu não tenho
esses números, mas hoje, sei lá, na casa de uns 500, 700, para alguns
programas e o Passinho está com 10.000” (FINGER, 2015, Anexo 1, p.
152).
Tais números atestam o poder midiático. Enquanto programas com artistas
consagrados da dança possuem cerca de 500 visualizações, um programa que envolve
algo altamente exposto pela mídia em geral tem 20 vezes mais visualizações.
“Primeiro, o que eu acho maravilhoso do Passinho é dizer: gente, as
pessoas estão fazendo dança! E eles são muito bons nisso! Eles estão
pensando coreografia com os instrumentos deles, com as propostas que
eles fizeram, com o jeito de falar deles, com a estética deles, estão
super ligados ao showbiss sim, super ligados à Globo e à Coca-cola e
tudo isso. Mas eles estão fazendo dança e eles têm um pensamento
sobre isso. E daí a ideia é puxar isso pra cá e falar: vamos conversar? E
outra: gente, se vocês gostam disso, talvez, vocês gostem disso
também... Então, na época do Passinho, que a gente lançou o programa
e ficou o mês passado todo, o público do Facebook do Discoreografia
cresceu em quase 1.000 pessoas. E isso para a gente é incrível. Você vai
110
ver nesses sites de arte ou mesmo no canal do Itaú Cultural do YouTube,
você vai ver o número de views dos vídeos, é assim... 500... 600... E
quando você tem o Passinho, que é um vídeo de dança, faz 10.000, você
fala poxa, as pessoas gostam de dança!” (FINGER, 2015, Anexo 1, p.
153).
A questão que se impõe é: quando se fala “gostam de dança”, de qual dança se
fala? E daí, voltamos a Adorno e à indústria cultural, pois talvez o interesse não seja
especificamente pela arte da dança e a grande quantidade de público seja uma
consequência da midiatização. E voltamos também à preocupação de perguntar como
fazer para ampliar o diálogo da dança para além de seus pares:
“Alguém que está navegando na internet, para ele chegar no
Discoreografia, só se ele esbarrar no Itaú Cultural, no Idança ou em
algum site de algum artista ou no Facebook de alguém que está falando
sobre isso. Então eu acho que ainda é esse público que são artistas ou
pessoas ligadas aos artistas. Agora, a gente também teve um braço do
Discoreografia, que é esse que está crescendo, recebendo vários
convites para isso, que é nos Festivais de Dança. E é um pouco isso de
encontrar uma outra forma de encontrar o público, do artista encontrar
o público no Festival. (...) Você, interessados ou desavisados, que estão
passando por ali e vão acabar no Discoreografia. Mas está muito perto
dessas pessoas que já estão envolvidas com arte” (FINGER, 2015, Anexo
1, p. 153).
Elisabete destaca que uma das questões debatidas exaustivamente com
pessoas da comunicação foi com relação à duração dos programas. Isso porque a longa
duração também afetaria o público disposto a manter-se em contato com aquela obra.
Ainda assim, ela mantém o Discoreografia com cerca de 50 minutos, justificando que,
se tivesse apenas duas ou três músicas, não seria uma playlist e tampouco conseguiria
traçar o perfil do artista em diálogo. Entretanto, é algo que, em geral, contraria a lógica
da internet e, por ser um programa de webrádio, deve ser refletido.
111
“Isso eu escuto muito do Murilo [marido de Finger] porque ele fala:
ninguém curte o seu programa, só os artistas, porque ninguém se dá
esse tempo em São Paulo ou em uma vida louca que a gente leva,
ninguém vai tirar 50 minutos para escutar a dança contemporânea. Aí
eu já fiz uma campanha que era assim: Discoreografia, não pare para
ouvir! Vai limpando a casa e vai escutando as pessoas falarem... E eu
acho super possível, a rádio tem isso” (FINGER, 2015, Anexo 1, p. 155).
Parece haver grande interesse por obras artísticas mais comerciais, conforme
abordado ao longo desta dissertação, mas a forma de aumentar a quantidade de
público para a dança contemporânea parece ser o grande desafio. Talvez iniciativas
como o Discoreografia, que pretende debater o fazer artístico por meio de um
programa de rádio, possa ser uma das alternativas para aproximar o público em geral,
ampliando a sua fruição. Entretanto, as próprias iniciativas, assim como ocorre com o
7x7, esbarram em diálogos que se concentram, sobretudo, entre seus pares:
“Exatamente o teu exemplo, os musicais estão cheios, quer dizer, tem
gente querendo assistir dança, você pergunta para as pessoas se elas
gostam, se elas se interessam... Sim... Gostam e se interessam... Mas
por que elas não chegam à dança contemporânea? Eu acho que tem
alguma comunicação acontecendo atravessada aí, que não está
chegando... E eu acho que a gente é muito responsável por este lugar,
desde o release do espetáculo que eu escrevo, até a foto dele que eu
apresento, até o post que eu faço no Facebook, sabe? Então, esse
cuidado de como eu comunico o meu trabalho, até isso, pensar projetos
em que eu posso falar sobre comunicação e dança, como é o
Discoreografia, eu acho que é o meu papel como artista” (FINGER,
2015, Anexo 1, p. 157).
Elisabete destaca ainda a importância de gerar um contexto que envolva a
obra, aproximando o público do artista, do coreógrafo, do pensamento artístico que
112
aquela companhia tem. Este seria o papel das iniciativas de comunicação como o
Discoreografia:
“Eu acho que a arte contemporânea e a dança contemporânea podem
ser super experimentais, ter um pensamento super estilhaçado,
fragmentado, levar isso para a cena, quebrar tudo, desconstruir e ‘ual’!
Mas o que acontece? Se você pega uma pessoa que nunca viu arte, e a
primeira coisa dela é justamente essa, ela pode... Essa pessoa que vem
educada, justamente, pela novela das 8h, pelo estádio de futebol, pelas
grandes mídias, esse ritmo de informações ao qual ela está submetida
desde a infância, se esta pessoa chega e vai ver esta arte, ela pode ficar
traumatizada e [pensar]: não só não gosto dessa peça, como nunca mais
quero ver dança na vida. Então, eu acho que a dança contemporânea e
a arte contemporânea precisam de um certo contexto para ela existir.
Para a gente não gerar esse tipo de trauma (FINGER, 2015, Anexo 1, p.
158).
Nóbrega concorda com o pensamento de Elisabete e enfatiza:
“a dança, principalmente a dança pós moderna, ou a dança que vem
depois do moderno, ela vem se tornando excessivamente cerebral, para
usar de um conceito mais simplista. Ela vem perdendo certo caráter de
ludicidade, de lúdico, de ‘atacabilidade’ emocional e sensorial que faz
com que a dança se legitime. Um espetáculo de dança que eu vou para
ler intelectualmente, eu acho que ele me furta alguma coisa específica
da linguagem da dança, isso porque essa realidade de entender
intelectualmente um produto, um artefato artístico, posso conseguir a
partir de um livro, posso conseguir a partir de outra instância, de outro
tipo de concentração. Eu tenho para mim que a dança tem que envolver
quem assiste não só intelectualmente e, com isso, não quer dizer que a
dança não tenha também um conteúdo intelectual, uma reflexão, um
113
tema, mas eu acho que, na melhor das hipóteses, ela tem que trabalhar
em bitolas semelhantes” (NÓBREGA, 2015, Anexo 1, p. 163).
Elisabete finaliza afirmando que muito será responsabilidade dos próprios
artistas, “para a gente não ficar tão à mercê de Festivais que façam isso, de
programadores ou de uma instituição que tem dinheiro e vai chamar alguém para
escrever sobre a coisa e que daí sim vai fazer a coisa girar...” (FINGER, 2015, Anexo 1,
p. 158). Além disso, complementa:
“Eu acho que a gente pode fazer mais. E a gente sabe muito bem como
falar do nosso trabalho... Acho que a gente tem muito a aprender, mas
tem coisas do nosso processo de criação que só a gente sabe, que nem
um jornalista vai poder lhe perguntar, porque ele não sabe que existe.
Você tem que falar. Agora, é esse como... Como falar? Como falar para
as pessoas que eu acho que é um trabalho que a gente precisa dar um
pouco mais de atenção. Falo [isto] por mim mesma” (FINGER, 2015,
Anexo 1, p. 158).
114
3.1 ESPECTADOR-OBRA, A RELAÇÃO QUE NÃO SE ESGOTA
A arte contemporânea deslocou o entendimento do que se chama de público
porque rejeita o papel do espectador como aquele que se relaciona com a obra como
consumidor, esperando ter os seus desejos atendidos. Ela retira-o da posição de quem
quer receber, desfrutar, assistir a um espetáculo, que é tomado como sinônimo de
obra a ser contemplada. Faz isso ao convocar o espectador a se perguntar do que a
obra trata, a admitir que haja algo a ser nela desvendado, porque não está evidente, o
que implica em tentar descobrir a visão de mundo que está sendo proposta. Ou seja,
ao invés de apenas esperar receber o que deseja, o espectador é retirado do seu
conforto passivo e convocado a agir, a desvendar as perguntas que a obra faz, a
investigar que leitura de mundo ela propõe, precisando assumir uma postura diferente
de apenas sentar-se e esperar ser agradado pelo que assiste.
O filósofo Frédéric Pouillaude (2012), professor da Universidade de Paris-
Sorbonne, parafraseia Michel Foucault e afirma que “a dança é a ausência da obra”. E
explica que a
“ausência de obra designa igualmente a experiência da dança (ou antes,
do dançar) tal qual descrito pelos filósofos [refere-se a Nietzsche, Paul
Valéry, Erwin Straus e Alain Badiou]. Pois, não é precisamente a dança –
como conjunto de ritmos, de figuras ou de passos determinados – que
os filósofos descrevem, mas o ‘dançar’ como experiência íntima do
sujeito: é isso que é o dançar para aquele ou aquela que dança. E essa
experiência íntima deverá ela mesma compreender-se como
experiência do não-produzir, a qual será denominada ora ‘gozo’ (com
Valéry), ora ‘êxtase’ (com Straus)” (POUILLAUDE, 2012, p. 114 e 115).
Dessa forma, como rompe um hábito estabelecido e consagrado de
entendimento de obra, para que a nova postura se instaure o contato com a arte
contemporânea precisa acontecer com certa frequência. A distinta relação obra-
público proposta necessita transformar-se em um novo hábito, dada a natureza dos
trabalhos de dança:
115
“Uma dificuldade inerente à arte coreográfica. Pois a ausência de obra
não é apenas um aspecto do discurso. Ela diz respeito à coisa em si. Ela
é o que fragiliza por dentro a obra coreográfica como tal.
Compreendemos mais facilmente essa fragilidade da obra coreográfica
se a compararmos com as obras teatrais ou musicais. A obra teatral ou
musical, uma vez colocada em forma de texto ou de partitura, pode
sobreviver independentemente de suas atualizações ou interpretações
sucessivas. (...) Em larga medida, a dança escapa a um tal status
alográfico. Suas práticas e suas obras não podem nunca ser transmitidas
de outra forma, a não ser de um corpo a outro corpo, de uma presença
a outra presença e dificilmente sobrevivem às rupturas de transmissão”
(POUILLAUDE, 2012, p. 115 e 116).
Além disso, há ainda que se considerar um abandono da obra enquanto
produto, visto que, como já abordado nesta dissertação, na dança contemporânea,
muito do que é levado à cena apresenta-se enquanto processo de construção de algo
que ainda não se aprontou – o que, de alguma maneira, também reposiciona o
público, mesmo sendo em perspectiva diferente da apontada por Pouillaude, por não
oferecer o produto final da obra.
Em linhas gerais, reflexos desta questão vão desaguar na diminuição da
quantidade de público para as artes contemporâneas. Educados por uma mídia que
elege diariamente o entretenimento, muitos continuam preferindo praticar o modelo
anterior de espectador. Afinal, o entendimento de “obra” (relacionado a uma postura
passiva de quem entra em contato com ela) está enraizado há cerca de vinte séculos.
Para mudá-lo, é imprescindível construir e consolidar um novo hábito de relação com a
arte, que implica na necessidade de leitura distinta, para a qual será necessário
“alfabetizar-se”, o que pedirá uma continuidade de encontros para que possa ocorrer
de fato. E, com isso, uma questão se apresenta: como convocar o público para algo
que ele não desfruta da maneira esperada?
Todas as iniciativas aqui apresentadas são exemplos que buscam outras
estratégias para a sensibilização de um público para a dança contemporânea. Para
116
citar uma delas, vale voltar ao Discoreografia, que busca encontrar uma forma de
comunicação com o artista e sua obra capaz de fazer um ouvinte de programa de rádio
desejar ir ao seu encontro no teatro ou em outro espaço no qual esteja apresentando-
se.
A dificuldade de uma comunicação não imediata com o público precisa ser
enfrentada, e a repetição de oportunidades de encontro com as produções artísticas
contemporâneas tem papel importante na necessidade de criar-se um novo hábito. A
responsabilidade pela dificuldade de comunicação não pode ser imputada apenas aos
criadores, uma vez que é um conjunto de condições, como esta dissertação busca
demonstrar, que tece as condições do encontro entre público e dança contemporânea.
Enquanto essa “língua” da arte contemporânea for pouco falada e pouco
compartilhada, o público para as outras produções continuará a aumentar e se
fortalecer.
“O primeiro momento, o grande apelo é de uma companhia muito
conhecida. Vem o Baryshnikov para cá e todo mundo quer ver, e paga
qualquer coisa, mas a proposta é que o hábito cultural esteja presente
no dia-a-dia das pessoas” (PONZIO, 2015, Anexo 1, p. 186).
A jornalista Ana Francisca Ponzio ainda pondera que
“Isso tudo é educação, e eu acho que se a gente tivesse uma coisa de
educação mais evoluída, se a criança tem acesso a uma informação, a
uma formação mesmo desde criança, ela pode nem gostar de arte
contemporânea quando adulta, mas não será estranho para ela, ela vai
ver e não vai achar um bicho de 7 cabeças, nem vai se sentir intimidada”
(PONZIO, 2015, Anexo 1, p. 187).
Também acredito na função que a educação poderia desempenhar, desde a
infância, caso trabalhasse de forma consistente e continuada os diversos fazeres da
arte, incluindo as manifestações contemporâneas. Ao não fazer deste modo, impede-
se o desenvolvimento de uma familiaridade com a produção artística. Juntando-se a
117
omissão da educação com o tipo de tratamento das manifestações artísticas praticado
nas diversas mídias, não há encontros com essa outra maneira de pensar presente na
arte contemporânea. Assim, dificilmente ela se tornará mais popular. Não sendo
mediada constantemente por nenhuma forma de jornalismo – seja impresso,
televisivo ou radiofônico – a dança contemporânea fica condenada a não se comunicar
mais amplamente.
Dessa forma, iniciativas como o 7x7 ou o Discoreografia, que tentam
justamente ampliar as possibilidades de mediação para, de alguma forma, atingir mais
pessoas, devem ser saudadas e apoiadas. Caso apareçam mais nas diferentes mídias e
nas redes sociais, aos poucos elas se firmarão como uma forma de resistência, capaz
de mexer com o que está posto.
Essa dificuldade de aceitação da arte contemporânea, ou mesmo a falta de
hábito do grande público, passa por aquilo que Theodor Adorno já havia questionado,
na indústria cultural, referente ao processo de “desartificação da arte”. Trata-se de
uma questão filosófica oriunda do século XX, que permanece até hoje, com a arte
deixando de ser arte porque perde aquilo que a distingue. Ele destaca a perda de
evidência da arte no mundo contemporâneo, afirmando que ela reage não apenas com
a transformação de seus procedimentos, mas também questionando seu próprio
conceito. E como a indústria cultural seria a responsável por barateá-la, popularizá-la,
torná-la mais acessível, transforma-a em um produto cultural, algo que, para ele,
deixaria de ser arte.
“As razões que levaram Adorno a identificar a ‘desartificação’ no
cenário contemporâneo (...) dizem respeito, por um lado, à
incapacidade crescente do grande público para compreender em
profundidade os fenômenos estéticos complexos, inclusive aqueles mais
tradicionais” (DUARTE apud IANNINI, GARCIA, FREITAS, 2015, p. 70).
Rodrigo Duarte, em capítulo publicado no livro Artefilosofia: antologia de
textos estéticos (2015), traz o conceito de desartificação da arte de Adorno para
118
relacionar com o de artificação proposto pelo filósofo Arthur Danto35. Duarte afirma
que, para Adorno, a desartificação é um produto da abordagem que o público
adestrado pela cultura de massas faz da arte que ainda poderia ser considerada
autêntica. Ele cita o próprio filósofo:
“Aqueles que são tapeados pela indústria cultural e sedentos por suas
mercadorias se encontram aquém da arte: por isso, eles percebem sua
inadequação ao processo social vital contemporâneo – não sua própria
inverdade – menos veladamente do que aqueles que ainda se lembram
do que era uma obra de arte. Eles forçam a desartificação da arte. A
paixão pelo toque, por não deixar que qualquer obra seja o que ela é e
por orientar cada uma no sentido de diminuir a distância do observador
é um inequívoco sintoma daquela tendência” (ADORNO apud DUARTE
in IANNINI, GARCIA, FREITAS, 2015, p. 72).
Trata-se de uma incompreensão coletiva da arte contemporânea, levando ao
tratamento das obras como bens de consumo e tendo em vista uma significativa
diminuição da distância entre arte e vida. Esta aproximação pode ser pensada também
pelos expostos de Danto, que atribui aos tempos pós-modernos a transformação do
cotidiano em arte, com todas as consequências que esta ação pode gerar. Quando um
urinol é colocado em exposição no museu (“Fountain”, 1917, de Marcel Duchamp), o
que se sucede é a transformação de um objeto do dia a dia em arte, pela artificação do
cotidiano.
A análise de Danto parte principalmente da Pop Art de Andy Wahrol,
questionando a transformação de objetos comuns, ou de suas imagens, em arte. Para
ele, citado por Rodrigo Duarte:
“Não importa que a caixa de Brillo possa não ser boa – menos ainda
grande arte. O que chama a atenção é que ela seja arte de algum modo.
35 Arthur Coleman Danto (1924-2013) foi um filósofo e crítico de arte norte-americano. Professor de filosofia da Universidade de Columbia (Nova York) desde 1951, também foi crítico de arte da revista The Nation.
119
Mas, se ela é, por que não o são as indiscerníveis caixas de Brillo que
estão no depósito? Ou toda distinção entre arte e realidade caiu por
terra? (...) O que, afinal de contas, faz a diferença entre uma caixa de
Brillo e uma obra de arte consistente de uma caixa de Brillo é certa
teoria da arte. É a teoria que a recebe no mundo da arte e a impede de
recair na condição do objeto real que ela é” (DANTO apud DUARTE in
IANNINI, GARCIA, FREITAS, 2015, p. 80).
Duarte relaciona Adorno e Danto para refletir que, assim como a massa
embrutecida pela indústria cultural pode desartificar algo que foi produzido
especialmente para ser uma obra de arte, um público “especializado”, pertencente ao
“mundo da arte”, pode ajudar a artificar um objeto ou sua imagem. “Esse caso gerou
uma curiosa situação, na qual o mesmo filisteu que adquiria suas caixas de esponjas de
aço Brillo no supermercado se mostrou chocado ao reencontrá-las na galeria de arte”
(DUARTE apud IANNINI, GARCIA, FREITAS, 2015, p. 81). Esta ponderação ressoa no
comportamento de assistir dança contemporânea sem conseguir reconhecer porque
aquilo pode ser chamado de dança, uma vez que se aproxima do que se encontra fora
dos palcos, na vida cotidiana.
“E os artistas, liberados do fardo da história, seriam livres para fazer
arte de qualquer modo que desejarem, para que propósitos desejarem,
ou para nenhum propósito. Essa é a marca da arte contemporânea, em
contraste ao modernismo” (DANTO apud IANNINI, GARCIA, FREITAS,
2015, p. 83).
A dança contemporânea, nos últimos 50 ou 60 anos, tem feito isso: uma
constante artificação do gesto, do corpo que não é treinado, de uma dança que nem
sempre emprega o vocabulário conhecido, do corpo sem os padrões de beleza estética
consagrados, etc. O que está no cotidiano, quando transformado em arte, instaura
outra relação com o que se apresenta. O público se vê diante de uma proposição
diferente, sendo requisitado a algo diferente daquilo a que está acostumado. Assim, a
dança contemporânea vem artificando o corpo que anteriormente não subia ao palco,
120
transformando assuntos e temas do cotidiano em espetáculos, ocupando espaços que
não eram associados com a dança e, muitas vezes, apresentando processos, e não
espetáculos, ao público. Este agrupamento de ações produz situações que precisam
ganhar mais visibilidade para serem discutidas com propriedade.
Quem assiste à dança contemporânea hoje? Quem sabe onde ela está
acontecendo? Onde circula esta informação? Se o jornalismo cultural não informa,
restam apenas os próprios pares engajados em agir como artistas cada vez mais
conscientes do papel que possuem neste ambiente, tal como nos exemplos aqui
citados.
Somando-se a esta reflexão, Timberg (2015) preconiza que a classe artística
estaria condenada à morte, devido, sobretudo, à ocorrência de nossas práticas de
privatização da obra, uma consequência das sociedades capitalistas, reconhecível, por
exemplo, quando se atua no papel do espectador como consumidor da arte. Timberg
chama a atenção para o fato de se criar uma relação privada entre o sujeito –
espectador – e a obra de arte, e destaca que o ideal seria uma relação mais aberta.
Cada qual tende a se relacionar, no caso da dança, com o espetáculo que está
assistindo tal como em uma relação de consumidor a ser atendido por aquele produto.
Esquece que não é possível ter uma relação direta com a obra, visto que ela, por si só,
já está em relação com outras obras, tanto as daquele autor, como as demais de seu
tempo.
Desta forma, ele propõe quebrar uma estrutura que se sustenta há muito
tempo sobre o entendimento de obra-público formado por este sujeito,
individualmente isolado dos demais. Para Timberg (2015), a relação deveria ser
exatamente oposta, visto que hoje todos estão em relação em um mundo
interconectado pelas telas e pelas redes sociais.
Ao trazer a sua referência nesta dissertação, buscamos apontar para algumas
questões que não se esgotam na relação espectador-obra. Talvez seja o momento de
refletir que o sujeito, na individualidade da sua coleção circunscrita de informações,
que é única, faz parte de uma rede muito maior de conexões, havendo muita coisa
parecida em cada uma das coleções de informações que constituem cada um de nós.
Ao compreender esse nosso traço característico, conseguimos entender que o
espectador deixa de ser sozinho, tornando-se também parte de outros espectadores
121
semelhantes. E a obra, da mesma forma, passa a ser vista como parte de um fluxo de
obras.
Em um ambiente lido nesta perspectiva, torna-se mais claro que as iniciativas
emergentes de comunicação aqui comentadas podem ser tratadas como maneiras de
atuar na relação obra-público, na medida em que instigam reflexões sobre os lugares
apropriados para se falar sobre arte, apresentando potencial para propor outro olhar
aos sujeitos. O espectador mantém-se singular, atravessado, porém, pelas percepções
compartilhadas que o formam, e alerta para o fato de que a sua leitura da obra deixa
de ser apenas “sua”, não se caracterizando como “sua” no sentido de uma
propriedade privada, aquela estimulada pelo consumo no capitalismo.
Entretanto, Timberg (2015) destaca outro traço importante: no nosso caso, o
da produção artística que se faz por editais atrelados às Leis de Incentivo à Cultura, é
fundamental refletir sobre o alcance da situação que ele descreve:
“Existe um significado político também em que todos irão concordar:
um artista ou músico ou jornalista que confia no patrocínio corporativo
a despeito de seu real público, não é independente. (...) Muitos se
consideram verdadeiros porta-vozes da verdade, realizando seu
trabalho independentemente do mercado e do poder estatal. Outros
são um pouco mais modestos nesta auto-concepção. Mas, virtualmente,
todos buscam estabilidade bancada por algum emprego institucional
estável” (TIMBERG, 2015, p. 262, tradução nossa).
Timberg destaca a relação de consumo que se estabelece entre o indivíduo e o
ingresso, tratado como direito a receber uma obra que lhe agrade. No caso da dança,
com boa parte dos ingressos sendo gratuitos, a situação parece manter-se. Mas, como
se sabe, o contato com a arte contemporânea acontece em outras vias de relação.
Para ele, “muitas das mudanças do século XXI não serão resolvidas, visto que a
tecnologia e os mercados econômicos trabalham na contramão da classe criativa”
(TIMBERG, 2015, p. 266 – tradução nossa). E o ingresso parece materializar o direito do
consumidor a receber o produto que deseja.
122
A necessidade de compreender a complexidade do processo que envolve a
dança contemporânea e seu público pode ser avaliada no contexto da relação cultura-
sociedade, pois é nele que a arte se inscreve:
“A cultura não tende a deixar as pessoas melhores, algumas vezes sim,
outras não. Mas ela deixa a nossa sociedade melhor: mais alerta, mais
viva, com mais compaixão, mais conectada tanto com o passado quanto
com o presente. Uma disseminação ampla da arte e da cultura irá
beneficiar não somente a sociedade como um todo, mas ajudará, no
futuro, a classe criativa” (TIMBERG, 2015, p. 256 – tradução nossa).
123
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128
ANEXO 1 – ENTREVISTAS
a. João Andreazzi, diretor e coreógrafo da Companhia Corpos Nômades
- Entrevista realizada no Espaço O Lugar em 15 de julho de 2015.
Sobre a Companhia e a pesquisa da Corpos Nômades:
“Cia Corpos Nômades, com esse nome, surge em 2000, mas o trabalho já existia
como grupo desde 1995. Surge a partir de um projeto “Things, maloca, favelas, coisas”,
pesquisa sobre os corpos nômades com referência à obra de Deleuze e Guatarri”.
“É algo que vem antes do espaço público. Deleuze e Guatarri colocam em
discussão o capitalismo esquizofrenia: então, o que seria público neste sistema nosso
capitalista e desses governantes que querem apenas tirar vantagem, gerando uma
distorção muito grande do que seria um lugar público ou não? Então, na real, a
questão dos corpos nômades é mais uma questão do lugar público do corpo em si; o
que esse trabalho do intérprete, de uma companhia de dança contemporânea ou de
arte cênicas, hoje, faz com esse corpo em exposição dele para o público. Tirando um
pouco esse viés de espaço público. A relação do corpo nômade encontra-se mais na
parte da filosofia em si que existe no universo deste corpo, em descobertas e
modificações no decorrer de um percurso, e daí desenvolver uma linguagem cênica
que aborde um pouco as diferentes formas de produzir um espetáculo, seja de teatro,
dança, utilizando vídeo, a literatura... Então, mescla muito esses aspectos da soltura e
da errância que você pode ter, envolvendo um tipo de pesquisa que pegue o teatro
contemporâneo, a dança contemporânea, a imagem da performance em si, e as outras
culturas” – como, por exemplo, a pesquisa que desenvolvem junto às tribos Guaranis.
“Então, é extremamente experimental e contemporâneo o que a ideia do corpo
nômade representa para mim”.
Sobre mudanças nos Incentivos para a Dança:
“Na década de 80, a gente pagava, literalmente, para ter acesso a alguma coisa.
Todas as produções se calcavam muito no empenho e de fato amar aquilo e disso,
fazer acontecer. Em 1989, preciso falar que já existia o SESC, aqui em São Paulo. E era
bem importante, pelo menos era crucial no meu trabalho e no da Cia Corpos Nômades.
129
Na década de 90, havia alguns prêmios que o Governo do Estado lançava, mas a verba
era bem curta, ou prefeitura, ou mesmo federal. Mas era bem pouquinho. Daí, com a
maneira que os artistas foram entendendo de pedir, de agregar e de reivindicar junto
às Câmaras, onde formulam e distribuem a verba pública, alicerçou-se uma maneira de
dar uma certa continuidade à utilização da verba para que houvesse sempre, mesmo
que uma pequena se comparado às outras áreas, para a arte. O Teatro em São Paulo
foi precursor com a arte contra a barbárie. A dança contemporânea também surge
com uma organização um pouco com o Teatro Galpão, com alguns bailarinos de 1970 e
1980; e em 1990, que surgiu o MTD-90, que alguns artistas se reuniram, eu fiz parte
desse grupo que eram umas 10 pessoas... Aí depois veio a ideia de uma Cooperativa
Paulista de Bailarinos Coreógrafos, que é a atual Cooperativa Paulista de Dança, e a
Carmen Gomide continuou... Então, foi uma grande universidade e um grande
aprendizado antes desses últimos 10 anos que tem a Lei de Fomento, que surge em
2006. Antes, teve toda uma gênese que se alicerça um pouco na produção
independente de dança contemporânea da cidade de São Paulo e que se respalda sim
no movimento de arte contra a barbárie que é a maneira como surgiu o Fomento ao
Teatro. E depois surgiu o da dança nos mesmos moldes”.
“Aí com o primeiro Programa Municipal de Fomento à Dança a gente recebeu
cerca de R$ 159.000,00 líquido, no qual foi possível a criação de um espetáculo
inspirado em um texto de Manuel de Barros e a aquisição de um espaço para realizar
esses projetos todos: a Mostra Lugar Corpo Nômade, Lugarização, que foi ganhando
corpo no decorrer do período, mas com esse primeiro Fomento foi que a gente pegou
esse espaço, restaurou o lugar, montou o espetáculo e começou a acontecer as
produções aqui no Lugar, na Rua Augusta. Não é dos que mais ganhou, talvez uns 4 ou
5 até hoje. Não sei. E também é uma produção muito intensa e, de fato, é necessário
mesmo!” Contextualizou um pouco a realidade dos projetos que só conseguem
acontecer se houver o incentivo e ressaltou a importância dos mesmos “na troca de
relação com o público e na experiência de verdade. O Fomento a Dança, para a Cia
Corpos Nômades, além da criação artística, ele proporciona o desenvolvimento da
pesquisa desse corpo nômade que vai além da fronteira da própria Companhia, porque
aproxima também outras ideias. Então, nós tivemos alguns “Fomentos”... Não estamos
com o Fomento agora, e faz uma falta absurda!” E justifica contextualizando a
130
especulação imobiliária e os custos elevados de manutenção do local que é locado,
etc... Além do Fomento, eles estão com Petrobras Cultural desde 2013 e por mais um
ano. “Estamos só com o Petrobras e não é suficiente. O custo de vida aumentou... E a
gente precisa de mais aporte por conta da estrutura toda e de todos os projetos que
eu considero interessante manter (...) e só o Petrobras não está dando conta”.
Sobre relação com o Público:
“Eu acho que essa crise toda é super forte. No teatro mais convencional, com
os ‘ditos globais’, eles reclamam também. A formação de público, na realidade a
educação do povo brasileiro é colocada de uma forma, a cultura em si, o hábito de ir
ao teatro, à dança, é um hábito super escasso. A educação é ruim. Não passa pela
formação das pessoas o hábito de ir ao teatro ver dança, e ir ver a dança
contemporânea. (...) Eu acho que diminuiu bastante a questão do público! E na dança
contemporânea ainda é um outro aspecto. Na nossa dança contemporânea aqui que
se respalda e se alimenta do teatro, é mais múltipla, eu percebo que quando tem uma
verba maior para investir com mais ênfase na divulgação, o público acaba vindo. A
nossa lotação máxima é de 60 lugares e raramente estoura. Algumas vezes sim, mas
não é sempre. A média é de 30 a 40 pessoas e a gente tem que se sentir feliz. Às vezes
cai, porque quando você faz uma temporada, porque aí é um outro aspecto, já que a
dança fica geralmente em cartaz por 2 ou 3 dias, e aí a gente faz 1 mês ou 2 de
temporada, então o público às vezes intensifica quando estreia e acaba, mas o meio
necessita daquela manutenção que teria que ter continuidade”. Relatou uma
experiência com a Escola Caetano de Campos que durou algum tempo como uma
importante ação de formação de público. E também experiências recebendo o
Vocacional Dança e Teatro. “A educação para difusão e formação de público é crucial!
Mas sempre há um desgaste para manutenção dessas ações. (...) Mas eu acho que a
saída para esse fortalecimento do público é a integração da educação com a cultura e
com relação também com o bem-estar social. (...) De repente vem público e de
repente não vem, mas eu acho que, por estarmos aqui há 8 anos, deveria ter mais!”.
131
Experiência nas Redes:
“O Blogspot que a gente teve desde 2006, ele funcionou para uma construção
poética de 2006 a 2008, existia sem ter a objetividade de ser jornalístico, mas tem a
subjetividade de ser jornalístico dentro da poesia que se cria e da difusão que essa
poesia se propaga. Então, vira jornalístico, porque se divulga e se propaga alguma
ideia. Mais recentemente também pelo Facebook, o site da Cia e o mailing construído
ao longo dos anos. Então são esses os meios, embora agora o Blogspot hoje quase
inexista. Justifica um pouco essa propagação e formação de público que é pequena.
(...) O Blogspot foi interessantíssimo antes do Facebook. A gente criou o Blogspot para
ressaltar e colher informações de lembranças indiscretas das pessoas. Então,
provocava-se a construção de uma possibilidade dramatúrgica para daí surgir uma
criação. Então, em 2006 começamos com isso com o elenco da época, isso era
divulgado, as pessoas foram se agregando até 2008 quando surge O barulho indiscreto
da chuva. E também tem uma outra coisa interessante porque a gente não tinha aqui
ainda. Estávamos em uma crise de sala de ensaio e como estava apertado e o CCSP
começou a oferecer espaço para um monte de projeto, além da dança contemporânea
tradicional, sufocou um pouco e, na época a gente ensaiava na sala da minha casa, e
eu pensei nesta ideia de Sala Virtual de Ensaio, que era o Blogspot, para poder
continuar o ensaio, mesmo não estando em uma sala, onde foi se construindo a
poética.” Exemplificou um pouco. “Durante toda a temporada do espetáculo O barulho
indiscreto da chuva, a gente colhia lembranças indiscretas em uma penteadeira, que
ficava na entrada, as pessoas escreviam as lembranças indiscretas e depois elas
acessavam o blog para falar das sensações do espetáculo, e isso entrava na
dramaturgia do espetáculo. Então, toda a dramaturgia era muito interessante porque
era curiosa, era viva, era nômade, mudava com as sensações de quem vinha, e a gente
também continuava com nossas impressões no Blogspot. Depois, ele ainda continuou
com uma função de continuar propagando as coisas que a gente fazia aqui e fomos
ainda o utilizando postando sensações de outros trabalhos. Mas hoje eu acho que o
Blogspot perdeu um pouco essa característica que tinha, são poucos os que
continuam”. Seguiu contando sobre um grupo de discussão no Facebook – Surrealismo
Solúvel. Mas acredito que não cabe aqui.
132
b. Sheila Ribeiro, artista da dança, idealizadora do Movimento 7x7
- Entrevista realizada em áudio pelo WhatsApp nos dias 8 e 9 de julho de 2015.
Como surge o 7x7:
“A ideia do 7x7 surgiu em 2009, foi uma coisa super espontânea, baseada em
um sentimento de escassez de vozes. Não uma escassez de vozes escritas, porque tem
muita coisa escrita sobre dança contemporânea no Brasil, mas de um sentimento de
reverberação mesmo, um sentimento de vitalidade. Por exemplo, você apresenta uma
coisa e aquilo ficava ali, no máximo o que acontecia era as pessoas conversarem no
elevador, entre si, restaurante, mesas de bar, enfim, conversas íntimas, que não eram
compartilhadas. Então, eu pensei que essas conversas íntimas, de artistas, do público
em geral, ou de pessoas que são habituadas a ver dança, tem um saber, porque esse
saber ficava na cultura oral, mas que não era compartilhado. E de certa maneira era
uma história contemporânea, que seria vital se pudesse ser compartilhada. Eu
certamente sou influenciada por várias coisas e, a primeira delas é que na época de
2009 eu morava na China, e eu vim para o Brasil para dançar no Festival
Contemporâneo de Dança, uma peça que chamava Legenda Diet, eu e o Elielson
Pacheco, aí eu dancei e tal e depois que terminou, terminou. E aí eu achei triste
terminar assim. Olhei para o lado e tinha o Bruno Freire, que eu não conhecia ainda, e
perguntei se ele tinha visto o meu trabalho. Ele respondeu que sim e aí eu perguntei se
ele não queria escrever ou se manifestar de algum jeito, escrevendo, com uma
imagem, alguma performance, enfim... Se ele não queria comentar publicamente o
meu trabalho. Ele aceitou e fez um texto que se chama Tudo o que você precisa saber e
esse foi então o primeiro texto do 7x7”.
“O 7x7 não é um blog, não é um site, o 7x7 é um movimento, é uma ação de
comunicação, uma ação de conectividade que tem intenção de rede e um desejo de
Commons, que sofre influência da cultura digital, desse prazer pelo compartilhamento,
essa coisa do sharing, e de criar vetores de voz, de intenção, de auto-representação,
de prossumerismo. Então, o 7x7 tem essa intenção de hackeamento, de parasitagem, e
de fomentar mesmo as divergências... Explicitar fofocas... Pensamentos fragmentados,
aleatórios... Pensamentos em real time, em tempo real, contribuindo de maneira
digital para a cultura. Então, ele não é um blog ou um site, mas um movimento. E de
133
certa maneira é uma coisa que foi parar na dança, pela influência da minha prática e
nos meus estudos na cultura digital. (...) Então, claramente o 7x7 tem uma influência
muito grande do meu ativismo na cultura digital, na minha influência no open source,
que é o software livre, da autonomia do movimento e tal, então, de certa maneira,
talvez seja influenciado pelos italianos, que é muito forte essa coisa de cooperativismo
e de criar conectividade, rede, então, é mais ou menos isso”.
Sobre as Mídias Analógicas e Mídias Digitais:
Contextualiza que Creative Commons nasce no final dos anos 90 e início dos
anos 2000. Neste período é que a noção de compartilhamento começou a existir. E
“neste sentido, gosto muito mais de pensar na questão das mídias analógicas e mídias
digitais, do que a questão da mídia tradicional. Qual a diferença fundamental? São os
eixos de vetores. Por exemplo, no rádio você pode participar, mas não vai ser um
produtor de conhecimento. Você é um interlocutor, um público, uma pessoa que
observa, mas que não necessariamente participa da construção comunicacional
daquilo. Então, na mídia analógica ela é mais verticalizada do que a mídia digital que
trabalha com vetores de rede e é, supostamente, horizontalizada (...) porque há uma
pluralidade de vozes, que constrói a comunicação, quer seja conteúdo, quer seja
expressão, quer seja informação... E o que estamos vivemos agora é uma transição. E
essa transição não é cartesiana, antes era analógico e agora está todo mundo digital...
Quando você fala como é que isso influencia o público, eu acho que influencia como
influencia qualquer outra coisa da vida contemporânea que é coabitação entre modos
de pensar analógico e modos de pensar digital, às vezes tratando o analógico com
modo de operar digital, às vezes tratando o digital com modo de operar analógico,
porque é uma transição de modo de operar e de diferentes níveis de percepção desse
modo de operar, dessa transição”. E termina refletindo sobre o conceito do “novo” ou
da “inovação”, mas prefere o conceito de “emergente”.
“O 7x7 não vai na contramão da mídia tradicional (ou analógica), mas vai
achando buracos, coabitando, criando tensões, ficando em cima, transversal, do lado,
enfim, ele vai achando outras geometrias que não é só a geometria do contra, da
contracultura, ou do contra. Aliás, eu acho que muito pelo contrário, acho que é uma
cultura do pró, pró-mão, no sentido de que, por exemplo, é pró-pluralidade, pró-vozes,
134
e tal... E não contra. É uma coabitação de diferentes entre si e não diferentes de um
padrão normalizado, mas diferentes entre si, possibilidades, planetas, inclusive que
não se esbarram nunca. Tem gente que escreve no 7x7 que eu não sei nem quem é,
que eu nunca li, entende?”.
“As coisas não são as coisas... Um livro, não é porque ele é de papel, que ele é
analógico. Assim como não é porque você está na internet que você é digital. Tudo, na
contemporaneidade é digital, devido ao contexto macroeconômico, mas a aplicação
disso às vezes tem um modo de operar que é analógico. O formato não
necessariamente é o pensamento daquele modo de operar.”
O papel do site no cenário da Dança:
“Eu não sei como ele é visto. Isso é muito interessante porque eu não faço a
mínima ideia de como ele é visto. Eu acho que tem várias fantasias do que é o 7x7,
como por exemplo, tem gente que vê como um lugar bom para eu escrever, para eu
seu ouvido, para eu apresentar meu trabalho; outras pessoas tem um lado de ‘ah que
bom que escreveram sobre mim’; outras pessoas tem vontade de utilizar como um
lugar de pesquisa e utiliza textos dos artistas; tem artistas que utilizam do link do 7x7
em seus próprios sites para divulgarem seus trabalhos como ‘olha só, um par escreveu
sobre mim’, uma forma de legitimação; então tem muitos ângulos, tem um lado
também que o pessoal acha que é jornalismo, e eu necessariamente não vejo como
jornalismo, mas tem gente que vê; tem gente que vê como projeto artístico, um
projeto de dança contemporânea, uma coreografia de vários autores aleatórios; tem
gente que vê como puro narcisismo meu, que eu quero aparecer; tem gente que acha
que como eu fiz doutorado, então, eu estou mais na área teórica, então, eu não sou
mais coreógrafa, não sou mais artista, eu estou ficando velha e não posso mais dançar,
então, eu estou indo para o lado da escrita e vou virar professora... Também é visto
como um grande empreendimento deslocador, tanto que somos bastante respeitados,
tem várias parcerias, ganhou APCA... Então, assim... Como é visto? É uma mistura de
várias fantasias. Mas eu acho que é altamente legítimo no sentido de que tem uma
polêmica em torno de um evento, um evento móvel e que não é dominado de uma
pessoa só. Todas essas versões são legítimas e assim que eu acho que o site do 7x7 é
visto”. E passa a contar a experiência de, apesar da proposta do 7x7 ser um evento de
135
movimento, imaterial, de ação e fluxo, estamos tentando criar um livro do 7x7 e
justifica como uma grande contribuição para a história atual da dança contemporânea
da cidade de São Paulo. E será mais uma ação do 7x7. “Não há tabu com relação ao
analógico. A maneira como expressa o 7x7, qualquer maneira de explicitar, mesmo
sendo livro, vira um vetor de fazer o 7x7, um recorte, uma célula, mais um elemento
nesta rede”.
Alguns números, segundo a própria Sheila Ribeiro, de acordo com Google
Analytics:
Desde a criação do site (da plataforma em si), que foi criado em 2013, a
partir do financiamento público do Fomento. Em dois anos, nós tivemos
10.000 visualizações no site.
64% das pessoas novas e 36% são pessoas que voltam
102 países visitando: Brasil com 67% das visitas, na sequência, Uruguai
com 7%, e seguindo... França, Argentina, Portugal, Alemanha, México,
República Tcheca e Espanha.
Das cidades: 1ª é São Paulo, depois Montevidéu, Florianópolis, Rio de
Janeiro, Salvador, Buenos Aires, São Bernardo do Campo, Curitiba, Belo
Horizonte e Santos. Interessante notar que são os grandes centros que
é onde há concentração de dança contemporânea. E ao todo são 966
cidades que já acessaram o 7x7. As últimas, para se ter ideia dos confins
de onde se chega, são: Timbó, Toledo, Ubatuba, Uruacu, Vargem
Grande do Sul, Varginha, Votorantim, Vinhedo, Xaxim e São Pedro. “Fiz
questão de falar dessas cidades para verificar também a
descentralização. É óbvio que existe mais arte contemporânea em
grandes centros urbanos. Há arte contemporânea em ambientes rurais,
mas são algumas iniciativas. Mas o fluxo não é o mesmo”.
“No começo eu sempre quis o que o 7x7 fosse sempre bilíngue em inglês e
português, para ter essa noção transnacional, com a língua da globalização. Um pouco
funcionou e um pouco não porque, justamente, o 7x7 não é um projeto que eu sinta
que deu certo, pelo contrário, para mim, o 7x7 é um projeto que deu errado, apesar do
136
APCA, porque ele está muito aquém das minhas expectativas, não supre nem 20%
daquilo que eu gostaria que ele fosse. Além disso, eu acredito que ele funcione por
fluxos, quando tem algum evento, pois como eu não controlo o networking...”.
Linha Editorial do 7x7:
“A nossa linha editorial é uma linha editorial supostamente de apropriação. Na
verdade, eu queria que a plataforma do 7x7 fosse aberta. Então, seria o seguinte: uma
pessoa assistiu alguma coisa e quer propor um texto, ela vai lá e posta. Ela manda para
a gente, a gente faz uma interlocução, de duvidar, de comentar, de brincar, de criar
alguma polêmica, só para expandir um pouco mais ainda a vontade daquela pessoa e
aí, ninguém é negado, a pessoa sempre irá postar uma imagem, um filme, um
comentário, uma poesia, enfim... E qualquer coisa que reverbere, evidentemente, no
texto e que reverbere alguma coisa que a pessoa tenha visto, é altamente bem-vindo
no 7x7. Agora... Como eu estava dizendo, eu gostaria que a plataforma do 7x7 fosse
totalmente aberta. Igual o Wikipedia. Você vai lá e põe e muda; muda a cara do site;
muda a cor, posta o que quiser... Eu queria muito que fosse extremamente
colaborativo, para mim, seria 100% colaborativo, mas as pessoas do grupo do 7x7
nunca aceitaram, porque eles têm medo, e eu entendo, que no primeiro dia já vai
estar escrito ‘Sheila vaca’ ou palavrões, Dilma, sabe, qualquer coisa... Mas que não
tivesse esse ambiente de jogo e de construção colaborativa”.
“O 7x7 não é um site. O 7x7 tem um site. Não tem problema nenhum de
chamar de plataforma, de qualquer outra coisa. Claro que os termos são importantes,
mas como é justamente um projeto de movimento, de ação, é legal que me dá a
oportunidade de falar isso: eu, especificamente, não tenho nenhum problema se as
pessoas chamam o 7x7, o site do 7x7 de site, o link de link, de blog, de plataforma. Não
estou muito preocupada com termo. Mas estou sim preocupada em dizer que o 7x7
em si não é o site, mas uma ação artística, quem sabe até uma dança contemporânea
imaterial, uma coreografia online...”.
137
c. Rodrigo Monteiro, Coordenador do 7x7
- Entrevista realizada no SESC Consolação em 21 de julho de 2015.
Como surge o 7x7:
Repete um pouco as informações ditas por Sheila Ribeiro, mas traz novos
dados: “7x7 por quê? Porque naquela ocasião eram 7 trabalhos, 7 pessoas para
escrever sobre 7 trabalhos... Só que depois aumentou o número de trabalhos ou até
diminuiu, mas aí já tinha uma espécie de ‘marca’. Ela (Sheila) pediu indicação para
Helena Katz sobre alunos que gostavam de escrever, que se viam mais nesta função e a
Helena sugeriu alguns nomes e eu era uma dessas pessoas e estou até hoje”.
Sobre ser um veículo de “Cobertura de Festivais” de Dança:
“Em um primeiro momento, confesso que ficou essa impressão para mim, que
seria um evento, uma ação específica para o Festival Contemporâneo de Dança, e só
depois que fui entendendo o que era. Aos poucos foi se expandindo: o Arthur foi para
o Panorama, no Rio de Janeiro; eu tentei no FID, em BH que não rolou muito. Aí no
terceiro ano de tentativa de expandir para o FID, aí rolou. E foi aí que eu saquei que o
7x7 não necessariamente precisava ser algo específico para Festivais, para eventos
específicos concentrados. Logo mais, a gente vai participar da Bienal SESC de Dança,
agora em Campinas. É interessante porque mostra um traço, eu vejo, que mesmo a
intenção, o conceito, a proposta do 7x7 ela ser meio randômica, ela não ter
necessariamente a proposta de um Festival, de uma Mostra, com espaço-tempo
definido, é um traço que eu vejo que funciona mais assim ainda. Um exemplo é a
Bienal de 2013, que a gente participou, teve um boom muito interessante. Mas, foi
neste lugar, específico, do espaço-tempo.” – Mas essa característica é muito
semelhante à cobertura jornalística de um evento. Qual seria então a diferença de uma
cobertura jornalística daquela que vocês farão lá (Bienal) neste ano? “Em 2013, a
gente estava até dividindo a sala, o nosso QG era junto com jornalistas, jornalistas que,
enfim, eram de mídias diferentes. Eu acho é... que a nossa proposta... hum... O 7x7 não
é só aquilo que vai para o site que, no caso, foi para o Blog da Bienal. Eu acho que ele é
também algo que não se materializa num formato texto, num formato vídeo, que sobe
para o site, por exemplo. Eu acho que as conversas que a gente faz... Por exemplo, tem
138
uma ação que a gente fez em 2013 que foi divertida por sinal que, todo mundo estava
no mesmo hotel, todos estavam trabalhando no evento, a gente, enfim, artistas,
produção, pessoal do SESC e a gente todos os dias tomava café da manhã juntos. E
teve um artista o André Macedo que ele apresentou na Bienal e a gente estava
conversando sobre o trabalho dele naquela mesa de café da manhã. Então, eu acho
que isso também é o 7x7. Acho que ele também acontece neste lugar. Nestas
conversas que não são transcritas, traduzidas para um texto, mesmo que sejam textos,
vídeos ou imagens artísticas. Eles acontecem ali e se encerram ali às vezes, muitas
vezes inclusive”. – Eu complemento: Outra diferença é que vocês não são jornalistas,
vocês são artistas, certo? “Exatamente. Não tem essa preocupação. Claro. Claro que é
legal, reverberar a partir de textos que vão para ao Facebook. Claro. Bem bacana. Mas
é uma das formas, a gente não fica preso a isso”. – Qual o diferencial que vocês têm
enquanto artistas ao olhar para a obra de arte que os jornalistas, teoricamente, não
teriam? “Primeiro, eu acho que é um ponto de vista mais específico para aquilo,
porque, de certa forma, cada um na sua especificidade, atua também nisso. E eu acho
também que é uma forma de se arriscar. Por exemplo, como a própria Sheila fala, a
intenção quando ela criou lá atrás, a intenção era que fosse um tipo de uma conversa
de bar. Eu acho que é se arriscar mais para ser mesmo uma conversa mesmo, de fato.
E não fiquemos preocupados com uma... uma informalidade talvez...” – Entre pessoas
que detém esse conhecimento ou esse ‘fazer artístico’? “Sim.”
Qual o seu papel? Você se sente um editor-chefe? Visto que a plataforma não é
completamente livre como a Sheila gostaria? Como é feita essa triagem ou não existe
uma triagem?
“Eu não me vejo como um editor. Eu me coloco neste lugar de dialogar, então,
quando eu recebo um texto, por exemplo, a minha proposta é: ‘Ele vai ser publicado’.
Quando? A gente pode ir vendo... Eu e a pessoa que enviou o texto... Quando a gente
achar que está legal, que está legal não no sentido de estar em um formato específico
que o 7x7 venha a ter, mas a proposta é dialógica, então é: ‘Vamos conversar sobre
esse texto? Vamos conversar sobre esse trabalho? Vamos conversar sobre como você
traduziu esse trabalho artisticamente para este texto? Nesta conversa, chega um
momento em que a gente pode falar: ‘Acho que já se esgotou aquilo que a gente
139
poderia conversar’ e essas conversas interferiram de alguma forma no texto. Você
concorda? Então, vamos subir? Vamos. Pronto. Acho que é mais neste lugar. Não é
mais de enquadrar em determinado modelo”.
Existem alguns colaboradores que não participam diretamente do núcleo do
7x7 e que escrevem sempre. E não há qualquer restrição quanto à quantidade de
publicações para cada pessoa. “Uma das pessoas, para citar um nome, é o Wagner
Schwartz. Ele manda textos para a gente direto. Achei que este texto aqui cabe no 7x7.
Ou mesmo quando a gente vê alguma postagem dele no Facebook, a gente até convida
para publicar também no 7x7”.
“Eu me considero um interlocutor, embora eu esteja colocado neste lugar de
coordenador, porque, ainda é recente essa minha função, dentro deste projeto, a
Sheila ainda me orienta bastante, em vários quesitos, desde os quesitos que, claro não
estão separados, técnicos aos conceituais. Porque eles estão muito juntos no 7x7 por
ser uma proposta conceitualmente que acontece em rede, ela se dá na rede, a gente
usa a rede, então essas ferramentas e esses entendimentos estão muito próximos.
Mas eu me vejo ainda muito como um interlocutor. Então, eu estou ainda tentando
achar o melhor modo para coordenar. E esse é um pouco a forma que estou tentando
trilhar. A partir dessa interlocução, que eu já fazia antes, fazer agora essa
coordenação”.
Sobre a proposta do 7x7 como uma nova mídia:
“Como proposta, eu vejo como algo inovador. Mas aquilo que está
acontecendo, eu confesso que eu acho que ainda não chegou neste lugar. A proposta,
como a Sheila já falou, era que fosse aberto, que não houvesse essa mediação nossa
para os textos subirem, que seja uma plataforma aberta. Só que eu acho que isso
ainda está muito difícil de acontecer, mesmo com a gente fazendo essa mediação, não
apenas no sentido de receber para poder fazer o upload, mas a nossa mediação
enquanto artistas, pesquisadores, enfim, que tentam difundir e reverberar essa ideia.
Para que ela possa pegar de fato para que um dia, isso possa acontecer. Acho que
ainda não aconteceu”.
140
Sobre haver uma linha editorial:
“Os nossos critérios são: seja artista para escrever, fazer uma imagem, um
vídeo e que seja sobre dança. A gente já até pensou em falar sobre teatro ou artes
visuais, mas ainda não experimentamos”.
Relação com o Público:
“Eu vejo que essa formação, essa orientação de público, ela se dá e ela pode se
dar, a partir do contato que esse público possa a ter com esses textos. Não
necessariamente de uma forma direta, como uma espécie de convite, por exemplo. A
gente até, os primeiros textos, os meus pelo menos, eu reparei isso. Teve uma
mudança. Nestes primeiros textos, no primeiro parágrafo, sempre falava sobre o
trabalho, mas de forma localizada, que foi apresentado no SESC tal, no dia tal, no
Festival tal”. – Bastante jornalístico (Lead). “Exatamente. Mas a gente parou de fazer
um pouco isso. Não sei. Não foi nada acordado entre nós. A gente foi percebendo que
a gente foi parando de fazer isso. Eu entendo que essa formação de público, ela se dá
a partir deste contato, os públicos na verdade venham a ter com as informações que o
7x7 vai publicando. Então, eu acho que o cuidado ou o exercício que o 7x7 pode fazer
para aproximar, formar... Não sei, o público, eu acho que é insistir com essas
informações. Sei lá, a gente tem o Facebook. De um tempo para cá eu tenho percebido
que, por exemplo, no Facebook não sou só eu que posto, não é só a Sheila que posta.
Somos nós dois e mais as pessoas que são da equipe. E de um tempo para cá eu
percebo que as postagens são muito específicas, por exemplo, as minhas são muito
diferentes das da Sheila, que são muito diferentes das do Arthur. É engraçado que, de
um tempo para cá, o Arthur tem postado alguns vídeos, alguns trechos de
coreografias, algumas coreografias prontas. E isso aumentou bastante a visualização
da página do 7x7 como site e da página do Facebook. Isso convida também as pessoas
para verem os textos publicados especificamente no 7x7. Não vou chamar isso de
estratégia, sabe, eu prefiro chamar, inclusive uma palavra que a Sheila utiliza bastante,
de coabitação. Ao mesmo tempo que o 7x7 usa a página do Facebook e permite que a
página tenha textos reflexivos, artísticos, críticos sobre trabalhos de dança, também
tem esse lugar aí dessas pequenas coreografias de YouTube, sabe? Então, eu acho que
enfim, não tem uma ação específica para falar: ‘vamos pensar no púbico’, que é como
141
a gente lida com esse público, que faz a gente pensar esse público. E convida esse
público também para o site”.
Também não há intenção de vender espaços do Site ou de conseguir mídia ou
patrocínio para determinados produtos ou o próprio site, para além da intenção de ser
uma troca entre artistas, certo? “Exatamente”.
“A minha meta, no 7x7 é essa: de exercitar, desenvolver um entendimento
deste compartilhamento da rede para a infiltração e coabitação. A minha vontade é
que isso aconteça um dia ainda mais livre, mas é como eu falei, eu acho que ainda não
está rolando”.
Outros exemplos:
“Tem outros dois trabalhos na Bienal que vão trabalhar com o 7x7 que estão
neste lugar da mediação e que também são propostas artísticas. A nossa, claro, está
mais neste lugar da rede, da internet. Aqui também tem essa proposta de fazer diálogo
com artistas Precisa-se de público 36 , de Cláudia Müller e Clarissa Sacchelli e
Discoreografia37 de Elisabete Finger. Essas são duas propostas também artísticas para
36 As artistas Cláudia Müller e Clarissa Sacchelli compraram textos sobre os espetáculos
da programação Semanas de dança (Julho de 2014). Qualquer pessoa que assistia aos
espetáculos poderia participar. A pessoa não precisava ser conhecedora de dança,
bastava querer ser um espectador. Qualquer observação ou reflexão valia como ponto
de partida e cada um poderia inscrever quantos textos quisesse. Foram comprados dez
textos pelo valor de R$100,00 cada um, e que foram publicados no livro Precisa-se
público, distribuído pelo Centro Cultural São Paulo.
37 O Discoreografia – Música, Dança e Blá, Blá, Blá é um programa de web-rádio em
que artistas falam de suas obras e seus processos criativos através da música. Em cada
programa, Elisabete Finger recebe um convidado diferente para que ele apresente sua
discografia pessoal costurada por histórias, memórias e projetos. O objetivo do
programa é ser um encontro, no velho estilo rádio, para escutar música e falar sobre
como ela embala criações coreográficas, performáticas, teatrais, visuais, literárias,
filosóficas. Profissionais e sentimentais.
142
também fazer essa medição, essa interlocução, entre trabalhos e o público” –
Novamente são iniciativas com “cara” de jornalismo, mas realizado por artistas. Tanto
Precisa-se de público quanto o Discoreografia são projetos artísticos de comunicação.
“Acho que o papel, falando por mim, não é o de se colocar no lugar do
transmissor da informação. A nossa proposta tem mudado um pouco. Não está mais lá
sendo escrito no primeiro parágrafo, sabe, ah... Foi apresentado no Festival tal... Dia
tal tal tal tal... Porque eu acho que isso vai minando um pouco este lugar do passar a
informação. Porque quando você escreve com determinado formato, já com esses
indicadores, claro que você vai estar formando esse público para sempre pedir por
esse tipo de informação. Agora, quando você desestabiliza um pouco isso e coloca algo
completamente diferente, e por isso chamamos de artístico, porque está criando, no
momento em que está compondo aquele texto, criando outras conexões,
desestabilizando alguns modelos, algumas estruturas já convencionadas, você permite
que o público comece a se habituar, e comece a se interessar por aquele tipo de
formato também. Então, eu acho que é um pouco o lugar da formação de público
como eu entendo também.”
“Para encerrar, eu acho que o 7x7 está contribuindo para a construção de uma
espécie de literatura, porque a gente está falando de leitura, então são leituras de
artistas, que traduzem artisticamente trabalhos de outros artistas, isso, o produto, o
algo final, a gente tem, na maioria parte do 7x7, como texto. Não se resume, não se
limita a esse formato, mas eu acho que está produzindo um outro exercício de leitura,
que é este lugar da literatura. Leitura, leitura mesmo sabe, de você pegar um texto e
ler e não fazer traduções de espetáculos, claro, isso é inegável, mas também está
criando esse tipo de leitura reflexiva, de texto mesmo, de texto escrito também”. – E
que pode virar livro. “É... A gente está pleiteando essa proposta”.
143
d. Marika Gidali, diretora do Ballet Stagium
- Entrevista realizada na sede do Ballet Stagium em 22 de julho de 2015.
História recente do Ballet Stagium:
“Os últimos 10 anos estão bem complicados! O que a gente tinha de patrocínio
de Petrobras e Camargo Correia e aí acaba perdendo os dois; estamos em uma luta
insana para manter uma companhia de pé, trabalhando, e mantendo seu ritmo de
produção, estreias e espetáculos. Nós estamos vivendo o nosso próprio trabalho. Tem
editais que a gente consegue e ajuda bastante, e temos parcerias com o SESI, com os
CEUs, e o SESC que ajuda muito que, aliás, é o grande salvador da pátria quando ele
resolve comprar as coisas. Estamos trabalhando pontualmente. E tem a Boticário que
está há 2 anos já nos apoiando. Então, estamos vivendo de oportunidades, mas não de
uma segurança que você possa ter uma folha de pagamento garantida no final do mês
para pagar tudo o que é necessário pagar. Então, é uma luta insana para dizer a
verdade”. O que você acha que mudou nestes últimos 10 anos? “Eu acho que
diversificou demais... Tem muita dança, muita, muita... E o dinheiro está sendo
espalhado e nem sempre muito bem aplicado. Eu acho que é muito importante apoiar
os grupos que iniciam; é importante apoiar novas pesquisas; tudo eu acho importante,
mas parece que está de uma forma que parece que aquilo que está feito, já está feito e
não precisa mais de apoio. E isso é uma forma errada de enxergar as coisas. E a
distribuição da verba também é muito discutível e precisava ser revisto. Veja bem...
Tem o Estado de São Paulo com a Companhia de Dança; tem a Prefeitura com a
Companhia de Dança; tem os pequenos grupos que seria o tal do Fomento; tem os
outros que entram em editais e vencem ou não vencem... Muita coisa. É muita coisa.
Tinha que peneirar um pouco essa conta aí. E também acho que deveria ter
prateleiras, cada macaco no seu galho, ganhando o seu dinheiro necessário e aplicado
onde realmente o dinheiro tem que ser aplicado. Logicamente, você deve aplicar um
dinheiro numa experiência, uma experiência é uma coisa, agora um trabalho que você
confirmou, mostrou e está com problema, aí é outra... A visão das coisas precisa ser
um pouco modificada”.
144
Sobre o Fomento:
“Eu nem sei o que que é esse Fomento! A única coisa que eu sei é que tem uma
panelaça lá dentro ganhando há não sei quanto anos, com sempre os mesmos grupos,
alguns grupos a mais para despistar um pouco a situação, mas está super na cara que
aquilo não é nada democrático. A gente está fora da visão do Fomento... Não dá para
te explicar isso. E também nem está me interessando muito. Mas que é uma coisa
errada, é. Se existe um dinheiro para a dança, a gente está presente. Estamos
demonstrando que estamos aí trabalhando, pesquisando, a vida inteira, desde bem
antes do Fomento existir, a gente já pesquisava... E não taxamos a nossa dança como
algo... Temos nossa identidade, e isso tem um preço alto... Mas taxar... Aliás, qual é a
visão do fomento, meu Deus? Dança Contemporânea? Mas o que que é Dança
Contemporânea, gente? É desserviço cultural total. O que eles chamam de dança
contemporânea, para mim, é um desserviço cultural. Porque sim!”. No final ainda
complementa: “Está dividido de cima para baixo. É um absurdo. O Fomento eu até
hoje não entendi, mas é uma ‘patotagem’; o Estado resolveu fazer um Ballet de
excelência e dá acho que 3 milhões de grana por ano. E você não tem nenhum tostão.
Quando você ganha 100 mil, você fica oba... 100 mil reais... O que vai fazer com isso?
Conseguimos manter os salários, mas é sempre atrasado. E por isso é uma fórmula que
precisa ser repensada muito bem, porque não mantém”.
Estratégias de Comunicação com o Público:
“Esse é o nosso trabalho desde 1971. Desde 71, a gente tem essa luta pela
comunicação direta. Porque não adianta a gente ficar dançando aqui no palco e o
público lá, foi embora e até logo. Então, nós temos um trabalho bastante grande, em
várias áreas, em vários setores... A gente sai fora do teatro já desde o começo. Já nos
anos 70, a gente estava fora do teatro, fazendo teatro também. E hoje em dia, eu acho
que é super legal o que agente faz, porque estamos trabalhando dentro das Escolas. E
é onde você pode falar da formação de público, porque é uma juventude que nem
teria chance de ver isso aí, e é um blá blá blá meio furado, mas é verdadeiro. Você
chega em uma Escola e vê aquela criançadinha... E não é ir lá e só fazer o espetáculo.
Tem que ter um pouco mais que isso. A gente explica, a gente fala, conversa sobre
nosso trabalho. Então, tem toda uma conquista que também estamos fazendo em
145
espetáculos normais, que não são dentro das Escolas... A gente não faz mais só o
espetáculo, a gente faz o espetáculo e tem o blá blá blá depois do espetáculo, antes
também... Então, a gente conquista, seduz... A gente vai nas Escolas e também traz a
Escolas para o teatro. A gente tem essa troca. Mas só isso é pouco. Tem que ser isso e
mais um pouco. Entrar um pouco mais na cabeça dessa criançada, conversar com os
professores também... Aí eu acho que vale a pena. E a vida inteira nós fizemos isso,
desde os anos 1990, nós estamos direto neste trabalho. E nós fazemos tudo sozinhos.
A única coisa é que a logística pode ser feita pelo FDE que é a Fundação do
Desenvolvimento da Educação ou pela Secretaria Municipal de Educação. A logística
eles ajudam, mas quem sustenta somos nós”. E sobre diminuição de público: “Eu acho
que não. Mas também não aumentou. Tem aí um fluxo que você nunca entende
quando vai e quando não vai. Mas não é ruim. E no nosso caso, temos o público
garantido por conta do Projeto Escola. A gente leva a criançada e, com isso, nunca
você dança com casa vazia. Porque aí é um pecado. No mínimo 100 a 150 crianças por
espetáculo. Dependendo do tamanho do teatro, às vezes 300, 400”.
Sobre mídias digitais:
“No Boticário é um pouco mais fácil porque eles têm uma verba para fazer
jornalismo. Mas mesmo assim, a gente faz Blogs, Facebook, etc. A gente pesquisa isso
aí. O Fábio (Villardi) não sai do computador... A gente está fazendo sim. E hoje em dia
acho que vale mais do que as chamadas em jornal”. Sente a diminuição de espaço na
mídia para a dança? “Para a dança não, para qualquer lugar, porque quem tem
dinheiro compra. Por exemplo, você entra no jornal, a gente tem entrado nos Guias
que é mais direto. Mas se você pega um jornal e você tem uma página inteira de
qualquer global que seja, e aí você está ali pequenininho do lado, é um desserviço até.
Fica até feio. Então, não vale nem a pena fazer. Nos Guias dá para fazer uma coisinha
melhor, então a gente fica nos dois Guias: da Folha e do Estado. Mas fora, é uma
concorrência absolutamente visual mesmo. E é uma mídia comprada que a gente
compra também com a verba da Boticário, mas não é a mesma verba daqueles que
tem páginas inteiras. Então, tem que pensar muito bem como gastar o dinheiro da
divulgação para que você não seja um ‘primo pobre’ daquela coisa toda, é muito
chato. Antigamente, nos anos 1980, por exemplo, se você dançasse assim no bairro, se
146
você pusesse assim um pequeno quadrado, um 10 cm x 10 cm, no jornal, você estava
salvo. Você tinha público na certa. Então, era uma mídia que valia a pena. Hoje, não.
Não é por aí. Mudou. Então, tem que ser rádio, que é muito bom, tem que ser Face,
tem que ser Blog, tem que ser por outros caminhos”.
147
e. Elisabete Finger, idealizadora do Projeto Artístico Discoreografia
- Entrevista realizada na Casa das Rosas em 4 de agosto de 2015.
Como surge o Projeto Discoreografia:
“O Discoreografia surgiu, primeiro, de uma paixão que eu sempre tive por essa
mídia, pelo rádio. E, a princípio, eu nem estava pensando em webrádio, foi no sentido
muito analógico de rádio mesmo, que você coloca em casa e você escuta enquanto
está fazendo outras coisas ou, então, na época eu tinha carro e passava muito tempo
no trânsito, escutando rádio, e sempre a mesma rádio, e eu percebi o quanto você
começa a reconhecer as vozes, e a reconhecer como se fosse um outro universo que te
acompanha, se você está conectado a uma rádio. E eu sempre achei uma mídia super
criativa, que é o que você pode ouvir, mas não pode ver. Então você completa de
alguma forma, você fabrica uma imagem. Então, eu acho que para um espectador, da
rádio, para um público de rádio, ele é um público ativo, neste sentido, te leva para
outras viagens, que talvez sejam mais livres do que um programa de... acho que tem
outras liberdades, pois um programa com imagens também tem muitas possibilidades
e também pode ser super criativo. Mas a rádio tem isso: essa ausência de imagem, te
convoca a participar, com a criação das suas próprias imagens. Então, isso é uma coisa
que sempre me fascinou”.
“O Discoreografia veio em um período que eu estava em Berlim e eu fazia parte
do Couve-flor, uma mini-comunidade artística mundial, e a gente estava trabalhando
muito à distância, e surgiu uma proposta do Neto Machado, que é um dos “ex-
couves”, e ele criou um circuito de entrevistas, ele estava super interessado nisso: nas
entrevistas e de fazer perguntas para outras pessoas responderem, o que eu também
acho super interessante. Me lembro de uma coisa do Viveiros de Castro que ele diz
‘em uma entrevista, o importante não é responder as perguntas, mas sim sair delas’. E
eu sempre guardei isso para mim, né, porque as perguntas são ótimas né e as
respostas não precisam ser necessariamente, assim, matching, mas tá... Então, a gente
estava nesta de entrevistas, perguntas, e daí o Neto sempre propunha que as pessoas
elaborassem o formato de suas entrevistas, então, isso aconteceu no Cafofo, em
Curitiba, no Couve-flor. Então, se eu te convido para fazer uma entrevista, eu vou
escolher, por exemplo, se eu vou te entrevistar no banheiro, na piscina, se eu quero
148
gravar um CD, se eu quero passear de pedalinho, enfim, escolher o formato e o
ambiente para isso. E quando ele me fez essa proposta, ficou: eu quero fazer um
programa de rádio. Claro, quero fazer um programa de rádio daqueles tradicionais,
apresenta música, fala sobre a música, apresenta outra música, fala sobre a outra
música. Então, assim, conversa, escuta a música, volta para a conversa. E queria usar
esse formato para falar de arte e dessas artes do corpo, dança, teatro, enfim, que
envolva, qualquer forma de arte que envolva a expressão do corpo. Na época, era um
ciclo de entrevistas entre a gente, entre o Couve-Flor, então eu convidei a Cris Bouger,
que foi uma das integrantes do coletivo, e ela morava em Nova York, e ela é uma
pessoa muito caprichosa, tudo o que você pede para ela, ela vai fazer muito bem. Eu
falei: Cris, quero fazer um programa de rádio com você, falei a proposta é essa, eu
queria que você escolhesse uma playlist com músicas que você quer apresentar ou
qualquer material em áudio, porque ela escreve muita poesia, e eu sabia que ela tinha
criado algumas coisas, tem algumas composições sonoras assim, e eu falei que queria
que ela separasse esse material, e que a gente criasse uma forma de falar sobre o teu
trabalho, sobre criação, performance, dança, através desse material, apresentando
essas músicas. Aí, ela super pirou, foi lá, a gente conversou um pouco, criou um roteiro
mais ou menos juntas, e ela foi para o estúdio e gravou, e me trouxe o primeiro
programa assim, empacotadinho de presente. Aí eu levei isso para o Itaú e, há muito
tempo também, tenho que dizer isso, a gente tem parceiros maravilhosos no Itaú
Cultural e a Cris Espírito Santo, que é uma das gerentes de Artes Cênicas, não sei se
gerente ou coordenadora, a gente já tinha conversado, mas em conversa ‘de bar’
sobre fazer alguma coisa para rádio, vamos fazer, super legal, nunca fizemos... Aí,
quando apareceu esse programa, eu falei para ela que tinha uma ideia, eu fiz isso, com
a Cris Bouger, a outra Cris, fiz esse programa e eu acho que tem assim um puta
potencial; eu queria mudar um pouquinho, que essa primeira entrevista com a Cris
Bouger tinha sido muito pessoal, assim, em cima de uma trajetória dela muito pessoal,
chamava Behind the Bio, que ela tem um website, e no site dela tem um ícone que
chama Behind the Bio, eu curiosa fui lá e cliquei, e eram só capas de discos, aí eu falei
poxa! Legal! Você contar a sua biografia através dos discos. E tinha lá desde Menudos,
Balão Mágico, Patti Simith, coisas super contemporâneas, umas coisas de Nova York,
umas coisas do Brasil, dá para você traçar mais ou menos o perfil de uma pessoa por
149
ali. E a ideia foi essa: como é que eu poderia traçar o perfil de um artista, ou de uma
obra, ou de um conjunto de obras, pelas músicas que ele escuta, mais do que as
músicas que ele usa nas peças, as músicas que ele escuta. Então, foi uma junção desta
ideia com essa paixão pela mídia de rádio. Eu apresentei tudo isso para a Cris e ela
topou fazer. Vamos refazer esse piloto, já que a proposta era um pouco diferente, não
estar tão em cima da biografia do artista e sim da obra, a ideia de criação, então a ideia
era discutir processos criativos em arte contemporânea, em artes do corpo, através
das músicas e através dessa mídia que é a rádio. Essa foi a célula inicial do
Discoreografia”.
Sobre falar em rádio sobre uma arte tão visual:
“Justamente. Esse era o ponto. Por isso que eu acho que a rádio é super
criativa, porque coloca a pessoa para pensar dança de uma outra forma, mais ativa
mesmo, para imaginar essa coreografia, esse trabalho do qual a gente está falando.
Então, eu também queria instigar esse público a, se eu conheço esse artista e eu estou
ouvindo isso que ele está falando sobre essa obra, eu quero ver, agora eu quero ver. Aí
vai lá, procura e vai ver o que ele está fazendo. Ou não, eu não quero ver, mas isso já
me supriu, poxa, acho que isso que ele falou tem tudo a ver. E o Discoreografia
também tinha essa ideia de atingir pessoas que talvez não conhecessem os artistas,
mas conhecem as músicas, então, tem uma outra porta de entrada. A priori, todo
mundo se interessa por música, por algum tipo de música, então, se eu tenho um
programa de rádio, eu falo, opa, um programa de rádio, vamos ver o que está tocando
aqui, Play, aí eu vou lá e só tem David Bowie, poxa, nunca ouvi falar do Neto Machado,
que fez o trabalho dele essencialmente baseado em David Bowie, tinha mais dois
outros, mas tinha muito Bowie... Ah! Nunca ouvi falar do Neto Machado, mas adoro
David Bowie, então vou ver o que que é esse cara, que gosta de alguma coisa que eu
gosto. Então, de criar também essas outras portas de entrada, outros pontos de
conexão para a arte contemporânea. E também tinha muito essa ideia de aproximar
um público que está ouvindo, e que não está vendo, de uma outra forma dessa obra. E
também que essas conversas, que o Discoreografia são essas entrevistas, isso é uma
vontade desde o início, que elas usassem a música para a entrada de um canal mais
afetivo, pessoal, mais descomplicado, do que esse discurso tão... Algumas vezes
150
acadêmico, algumas vezes mais conceitual, algumas vezes mais intelectualizado, que a
gente está aprendendo a ter. Durante muito tempo, eu acho que as pessoas da dança
não falavam tanto, mas hoje a gente fala muito. E acaba-se criando uma linguagem
super complexa, super hermética... Você vai conversar com uma pessoa, sei lá, público
normal, e aí você fala desse jeito sobre uma peça, a pessoa sai correndo... Ela não vai
voltar para ver sabe... Outro dia eu vi um título de um livro na internet, que eu não me
lembro ao certo o nome, mas eu recortei e colei e mostrei para um amigo que trabalha
com comunicação e marketing e ele falou assim: interna! Tem assim, umas sete
palavras assim muito difíceis na mesma frase, sabe, e eu conheço a pessoa, o livro
deve ser ótimo, ela é uma puta professora, mas nossa, para quem olha, é assim
traumatizante. Então, eu queria chegar em uma conversa sobre dança que acessasse
em nós, em mim, no artista que está conversando comigo, um lugar que é mais pessoa
comum. Que é mais isso: ah! Eu escuto essa música para fazer faxina. Ela é ótima! E daí
eu tive essa ideia de criar isso na coreografia, nunca tinha pensado em fazer
coreografia com vassouras, mas de repente sabe... Dar esse salto, apresentar esses
saltos criativos que a gente tem em um processo criativo de uma outra forma, de uma
forma que as pessoas possam entender. Claro, essa é a primeira hipótese. Depois você
vai ver os programas e vai ver que cada artista acaba conduzindo de uma forma muito
pessoal”.
O papel de “jornalista” sendo artista:
“Eu, primeiro de tudo, eu olho para essas pessoas e elaboro as perguntas a
partir de um lugar do artista, de quem faz. E eu acho que isso muda muito o ponto de
partida das perguntas. E eu procuro olhar para as pessoas com essa minha experiência
até quando eu passo muito tempo sem trabalhar na prática, eu acho que eu preciso
voltar para a prática para eu poder continuar fazendo o Discoreografia. Mas eu acho
que tem um lugar assim de ‘perguntadora’, de curiosa, mas que é uma curiosidade que
vem porque eu pratico, que eu estou envolvida com a feitura, com os processos
criativos, então eu acho que é por aí. Eu não tenho uma preocupação de ‘verdade’ ou
de esgotar uma informação... Não. Eu acho que pelo contrário, é uma informação
muito parcial, sendo que a maioria, eu sempre faço essa provocação para os artistas:
se você fosse gravar disco, pensa o Discoreografia como se você fosse gravar um disco,
151
então pode ser o The best of fulano de tal, ou O meu disco para crianças, pode ser O
meu disco de músicas instrumentais ou O disco da faxina, sabe aquela ideia de mixtape
que havia na década de 80, vou te gravar um disco com as minhas músicas favoritas...
Então, que eles agarrem essa oportunidade para eles falarem o que eles querem falar,
do modo como eles querem falar, então, que seja mesmo parcial, e que tenha uma
assinatura deles, que depois se funde com uma assinatura minha que estou propondo
esse programa, já que a gente elabora o roteiro juntos. Então, um exemplo, do Jorge
Alencar, é um exemplo de quem se apropriou do formato total, porque ele ama
musicais, então é desses que vai ver tudo até Mudança de Hábito, até esses mais
famosos aí da Broadway adaptados, e que faz uma arte contemporânea super
experimental. Então, como é que ele fala disso... Aí ele fez um produto, o
Discoreografia dele é todo cantado, ele canta do começo ao fim, ele me fez cantar...
Então tem um diálogo que ele fez esse diálogo cantado.... Então, assim, é até uma
informação, até o modo como a informação é passada ele é muito específico, já é um
modo criativo, apropriado pelo artista e por mim. Então, eu acho que não tem essa
preocupação jornalística de ser neutra, eu posso estar falando uma besteira, porque
eu acho que o jornalismo também já cresceu nesta discussão, né? Mas não tem essa
preocupação assim tão informativa. Tem também. Eu quero muito que o público fique
sabendo de coisas sobre esse artista, mas eu quero muito que esse artista se
apresente de uma forma específica, que esse como também apareça. (...) Eu acho que
eu sei perguntar, porque eu estou nesse bolo, que eu estou envolvida com isso, eu
acho que eu sou curiosa com coisas que talvez uma pessoa que estivesse fora, talvez
nem visse que estivesse ali, por falta de familiaridade. Então, eu acho que eu consigo
fazer perguntas diferentes por estar envolvida com isso. Mas acho ainda que a
principal diferença está na forma como as perguntas são feitas e a forma como as
respostas são dadas, a forma como o artista se apropria da coisa toda, é também
criativa, ela não é só explicativa ou informativa. É também explicativa e informativa,
mas também criativa”.
Sobre o público do Discoreografia:
“Eu tenho procurado estudar isso. Na ideia original do Discoreografia, o que eu
propus era que ele fosse lançado em uma rádio aberta e que depois a gente deixasse
152
isso disponível no site. A gente esbarrou em várias questões: uma é que na rádio
aberta os horários são pagos, na verdade, então esse programa eles iriam comprar,
mas quem que iria querer anunciar em um programa de meia hora a 50 minutos
falando sobre arte contemporânea. Talvez, uma rádio universitária. Enfim, a gente
nunca conseguiu chegar lá. E depois o universo da webrádio foi se abrindo. E o que eu
acho mais precioso da Web, da internet, é que você só risca o fósforo e deixa a coisa
queimar. Eu fico ali alimentando, olha isso, olha aquilo... Fico um mês no
Discoreografia... Neste mês, estou repetindo Rodovalho e Quasar. Então, vou ficar ali
dando informações sobre a Quasar, sobre as músicas que a gente falou, tentando
replicar isso. Mas depois que você botou o link você não tem mais controle, tipo eu
passo para você que passa para ele, que passa para ele... Quantas pessoas já
assistiram? A gente pode medir isso pelo número de plays que você tem no... E agora,
já faz tempo que estou pedindo para eles me darem esses resultados, estão até o topo
de trabalho, e ainda não conseguiram medir... A primeira vez que a gente mediu foi
um choque: bem poucos. Depois, a coisa foi crescendo, e cresceu muito assim, e o que
é mais legal é que a cada programa novo, aumenta a audiência dos anteriores, e isso
também é ótimo na web né, os programas estão disponíveis no arquivo. Então você
não tem a dor e delícia da performance que acontece e acaba, ou a coisa da rádio que
eu escuto... Imagina, eu acho que seria super legal, estou lá dirigindo e de repente
estou escutando, sei lá, Marcelo Evelin, falando sobre dança contemporânea. Nossa!
Nunca ouvi falar... Acho que é super especial. Mas se eu quiser ouvir de novo e isso for
só em uma rádio analógica, não pode, acabou. Mas na web está lá disponível, e isso é
muito legal”. Pouco quanto e muito quanto? “Pouco era, por exemplo, no começo a
gente tinha assim 45 plays para um programa, é muito pouco. Hoje a gente tem...
Então, hoje, eu não tenho esses números, mas hoje, sei lá, na casa de uns 500, 700,
para alguns programas e o Passinho está com 10.000. Então, assim, de 45 para 10 mil
cresceu muito nosso público e, claro, teve esse salto da rádio para a imagem, já que o
Passinho é audiovisual. É nossa primeira tentativa e acho que vão rolar outras, assim,
mas... E o público né... O público qualitativo. O que eu acho, essencialmente, é que o
público dos programas de webrádio no site do Itaú Cultural é um público
essencialmente de artistas ou de interessados por arte, mas por vários motivos: um é
que o player está dentro do site do Itaú, se você der uma busca, uma busca Google
153
assim, você vai cair dentro do site do Itaú, mas é um site difícil de lidar, é um site de
arte, de uma Instituição de arte, então assim, você vai afunilando quem é que vai
chegar no Discoreografia. Então, alguém que está navegando na internet, para ele
chegar no Discoreografia, só se ele esbarrar no Itaú Cultural, no Idança ou em algum
site de algum artista ou no Facebook de alguém que está falando sobre isso. Então eu
acho que ainda é esse público que são artistas ou pessoas ligadas aos artistas. Agora, a
gente também teve um braço do Discoreografia, que é esse que está crescendo,
recebendo vários convites para isso, que é o Discoreografia nos Festivais de Dança. E é
um pouco isso de encontrar uma outra forma de encontrar o público, do artista
encontrar o público no Festival. Daí o público muda um pouquinho, mas não muito,
porque aí eu acho que além dos artistas e das pessoas no entorno da arte, que é o
público do site, você ganha também o público de Festival. Vocês interessados ou
desavisados, que está passando por ali, e vão acabar no Discoreografia. Mas está
muito perto dessas pessoas que já estão envolvidas com arte. Agora, isso muda um
pouco quando a gente coloca o Passinho, isso que também é uma aposta. Primeiro, o
que eu acho maravilhoso do Passinho, é dizer: gente, as pessoas estão fazendo dança!
E eles são muito bons nisso! Eles estão pensando coreografia com os instrumentos
deles, com as propostas que eles fizeram, com o jeito de falar deles, com a estética
deles, estão super ligados ao Showbiss sim, super ligados à Globo e à Coca-cola e tudo
isso. Mas eles estão fazendo dança e eles têm um pensamento sobre isso. E daí a ideia
é puxar isso prá cá e falar: vamos conversar... E outra é puxar o público deles para cá e
falar: gente, se vocês gostam disso, talvez, vocês gostem disso também... Então, na
época do Passinho, que a gente lançou o programa e ficou o mês passado todo, o
público do Facebook do Discoreografia cresceu em quase 1.000 pessoas. E isso para a
gente é incrível. Você vai ver nesses sites de arte ou mesmo no canal do Itaú Cultural
do YouTube, você vai ver o número de views dos vídeos, é assim... 500... 600... E
quando você tem o Passinho, que é um vídeo de dança, faz 10.000, você fala poxa, as
pessoas gostam de dança! O que que a gente está fazendo então? Tem alguma coisa
quebrada...” Mas qual dança? “É... Qual dança e como a gente está apresentando essa
dança para as pessoas? Então, para mim, está sendo um grande estudo de público o
Discoreografia. E eu gostaria muito que ele atingisse mais pessoas para além desse
154
conjunto de artistas e pessoas interessadas em arte, que ele fosse mais para fora
disso”.
Sobre a quantidade de pessoas que trabalham no Projeto:
“Eu trabalho sozinha na concepção, e tenho o meu marido que é o Murilo que
trabalha com Comunicação e ele é um super parceiro para conversar sobre essas
coisas, e ele me chama muito a atenção para isso, porque ele vem de um outro lugar
de criação e ele está fazendo mercado assim, marketing, daí, ele dá uns feedbacks
assim que para mim parecem super tolos, mas no fim fazem muita diferença. Por
exemplo, Rodrigo Pederneiras, eu vou lá e falo: Não perca! Discoreografia com Rodrigo
Pederneiras, e já acho que vai bombar né... Aí ele vem e fala: Quem é Rodrigo
Pederneiras? Não. Se você não colocar: coreógrafo do Grupo Corpo, a pessoa vai
passar assim e vai falar.. Então... tipo essas coisas, de como comunicar esse programa
também, ou, ainda exemplo do Rodrigo Pederneiras, começa com Rocks off, do Dale,
então começa lá com o ‘rockão’, do Rolling Stones, aí eu deixo tocar a música toda, eu
amo deixar a música toda tocar, mas o programa começa com a música inteira
tocando, aí o Murilo falou assim: eu dou um play e está tocando a música inteira, eu
falo: Cadê o Rodrigo Pederneiras? Entendeu? O tempo está rolando, tocou uma música
inteira, se fosse para escutar Rocks Off só, eu vou lá no YouTube e coloco e vou escutar
ela inteira. Então, tipo isso: não deixa o espectador sozinho. Você quer tocar a música
inteira, ok, mas toca um pedaço e fala: oh... A gente está aqui... Eu e o Rodrigo
Pederneiras vamos conversar daqui a pouco, e deixa mais um pedaço da música”.
Muito jornalística essa estratégia. “É, então, é de uma pessoa de comunicação. Então,
eu estou aprendendo muito com essas conversas e eu tenho vários amigos jornalistas
também, depois que eu vim para São Paulo, os jornalistas estão assim, em todo o
lugar. E a gente tem conversado sobre isso e eu acho que a gente tem muito a
aprender na dança mesmo em como comunicar o que a gente está fazendo, ou tipo,
essas coisa até, se eu estou fazendo Facebook que hoje é uma mídia de comunicação,
de trabalho, de coreografia, de uma peça mesmo de dança, ou do Discoreografia,
então, é assim, como é que se escrevem textos para o Facebook? Se você escrever
meia página, ninguém lê. Se tem lá, veja mais informações para clicar, ninguém clica.
Então, assim, fale em três linhas. Então, é aprender a usar essas ferramentas e, ao
155
mesmo tempo, resistir a elas... Uma coisa que eu resisti muito foi na duração do
Discoreografia, porque a princípio as pessoas falavam que tinha que ter menos tempo,
tem que ter 20 minutos, e para mim assim, gente, se for em 20 minutos, não é uma
playlist, duas ou três músicas não é uma lista, não cria um universo, e você não
consegue desenvolver um assunto, desenvolver mesmo um recorte, um pensamento
de um artista, através da música, falando sobre mais de uma obra... Eu queria usar
essa exemplificação para você, sabe, escutar uma, depois você escuta a segunda, você
pode reler a anterior, e quando você escuta a terceira você fala opa, mas a mesma
pessoa que colocou Rocks Off lá no início escuta Skank? Então, isso já gera uma
contradição que faz parte do pensamento daquele artista. Então, você precisa de
tempo para isso, e para mim vai muito contra as lógicas do... Isso eu escuto muito do
Murilo porque ele fala que ninguém curte o seu programa, só os artistas, porque
ninguém se dá esse tempo, em São Paulo, ou em uma vida louca que a gente leva,
ninguém vai tirar 50 minutos para escutar a dança contemporânea. Aí eu já fiz uma
campanha que era assim: Discoreografia, não pare para ouvir! Vai limpando a casa e
vai escutando as pessoas falarem... E eu acho super possível, a rádio tem isso”. Mas
quantas pessoas mesmo então, só você e seu marido? “Essencialmente eu, e ele me dá
esses feedbacks e algumas pessoas em volta com quem eu tenho conversado. Eu que
edito com um técnico. E a gente sempre troca muito com a Cris e a Bebel, a Sônia,
muito pouco, que são do Itaú. Mas cada artista, os artistas recebem para fazer esse
Programa, eles recebem um cachê, então, é um trabalho mesmo, um trabalho
conjunto, boto eles para trabalhar. Então, vamos fazer? Vamos fazer, mas isso quer
dizer que você tem que separar um tempo para isso, que a gente vai sentar,
geralmente, eu faço em dois dias o Discoreografia, um encontro de pelo menos duas
horas, sem gravar, porque a gente adora falar sobre isso, mas que é para a gente
elaborar um roteiro, então, as pessoas trazem o material, eu olho junto com elas o que
elas têm, a gente pensa em uma dramaturgia para isso... O Jorge Alencar disse que eu
‘coreografo a conversa’, mas a gente pensa realmente em uma dramaturgia para isso,
então, eu sugiro, a pessoa sugere, daí a gente pensa em um título, que eu acho
maravilhoso a gente pensar em um titulo, porque é uma obra, a gente está criando... É
uma coisa criativa. A gente pensa em uma foto de capa, pensando em um álbum,
como se tivesse gravando um disco mesmo, você pensa em uma foto de capa, a ordem
156
em que as músicas aparecem, o quanto de conversa tem entre uma música e outra, e
tem sempre uma dedicatória, que eu gosto muito de propor isso, porque isso sempre
puxa sempre um lado muito emotivo nas pessoas, que eu também acho que leva para
longe, um pouco, desse discurso. Ah... Cheio de verbetes, que a gente usa na dança
contemporânea, então, leva para esse lugar de ah, eu quero agradecer, quero
oferecer, quero pensar isso no futuro, ou isso é para esse trabalho que está
nascendo...”.
Sobre a possibilidade do ao vivo (Streaming), já que se trata de um programa
de rádio:
“Porque a gente grava e depois edita. Já pensei, mas vou te dizer, que a gente
não tem tecnologia para isso nos Festivais. Ter até tem, no mundo tem, mas isso custa
para eles uma logística, tipo agora na Bienal, a gente falou para fazer Streaming, eles
acharam maravilhoso e toparam fazer, mas daí, isso implica em ter alguém aqui
trabalhando no domingo, trabalhando na Bienal, dando conta dessa comunicação, e aí
eles disseram lá... Deixa... Deixa... Vamos editar... A gente limpa... Mas eu acho
maravilhoso, embora tenha esses ‘poréns’. E assim, a gente está esbarrando em vários
‘poréns’ de tecnologia. Por exemplo, você não pode escutar o Discoreografia no carro.
Por quê? Você não pode fazer download do programa, porque mesmo que você esteja
conectado com internet foda, só se você ligar o seu computador, porque ele não entra
no celular, nem no Ipad, só no computador, por causa dos players do Itaú Cultural.
Então, isso também é um problema de interface deles, e eles estão sempre querendo
resolver, querendo que o site toque em outros dispositivos, mas por enquanto não
toca. Então, tem essa limitação que é uma grande limitação. Você não pode sair para
correr com sua internet boa, escutando o Discoreografia, o que seria uma ótima ideia.
Mas isso não é possível ainda”.
Sobre debater processos artísticos:
“Eu pergunto também que música que as pessoas escutam em casa, que
música que não gera dança, que música que gera dança, o que que vem antes da
dança... Assim, porque essa informação música, na verdade qualquer informação, ela
atravessa o processo criativo de um jeito que nem sempre é linear, nem sempre é uma
157
flecha que vai para um lugar e o resultado é um espetáculo. Às vezes, ela esbarra aqui,
estilhaça ali, chuta para lá e quando você vai ver, ela está lá no final, de algum jeito ela
está presente, ou ela está presente só no pensamento desse artista, mas ela informou
um momento desse trabalho. Então sim, o Discoreografia também tem esse lugar do
fazer artístico e, por isso, sempre que eu convido alguém, a minha principal linha de
‘curadoria’, são pessoas que estão fazendo. Pessoas que estão neste labor do fazer.
Vira e mexe eu penso em chamar algum curador... Mas eu falo não... Eu quero falar
com quem está na lida, com o artista que está fazendo. E tem muito artista que virou
curador, tem artista que está fazendo sua pesquisa, ou tem gente que migrou para a
educação, mas tem um trabalho super criativo, mas eu acho tão importante a pessoa
estar nesta prática, de elaborar a obra, confrontar com o público, girar, fazer turnê,
voltar, fazer outras... Esse fazer e esse confronto com o público eu acho que é uma
coisa super específica assim e eu acho mesmo que as pessoas merecem saber mais
sobre isso. E que seria muito bom para fazer crescer esse púbico, que elas saibam mais
sobre o fazer artístico”. E você acha, então, que seria uma das possibilidades de
ampliar o público para a dança? “Isso é uma preocupação minha imensa, eu acho que
se a gente não se preocupar com o nosso público, a gente vai morrer! Em pouco
tempo. Porque essas grandes mídias estão assim, exatamente o teu exemplo, os
musicais estão cheios, quer dizer, tem gente querendo assistir dança, você pergunta
para as pessoas se elas gostam, se elas se interessam... Sim... Gostam e se
interessam... Mas por que elas não chegam na dança contemporânea? Eu acho que
tem alguma comunicação acontecendo atravessada aí, que não está chegando... E eu
acho que a gente é muito responsável por este lugar, desde o release do espetáculo
que eu escrevo, até a foto dele que eu apresento, até o post que eu faço no Facebook,
sabe? Então, esse cuidado de como eu comunico o meu trabalho, até isso, pensar
projetos em que eu posso falar sobre comunicação e dança, como é o Discoreografia,
eu acho que é o meu papel como artista”. Que é o papel da mediação que estamos
tratando na dissertação. “Eu acho que a arte contemporânea e a dança
contemporânea pode ser super experimental, ter um pensamento super estilhaçado,
fragmentado, levar isso para a cena, quebrar tudo, desconstruir, e ual... Mas o que
acontece? Se você pega uma pessoa que nunca viu arte, e a primeira coisa dela é
justamente essa, ela pode... Essa pessoa que vem educada, justamente, pela novela
158
das 8, pelo estádio de futebol, pelas grandes mídias, esse ritmo de informações ao qual
ela está submetida desde a infância, se essa pessoa chega e vai ver essa arte, ela pode
ficar traumatizada e, não só não gosto dessa peça, como nunca mais quero ver dança
na vida. Então, eu acho que a dança contemporânea e a arte contemporânea precisam
de um certo contexto para ela existir. Para a gente não gerar esse tipo de trauma. E aí,
essas iniciativas como o Discoreografia, como o 7x7, como outros lugares é isso, é
abraçar um contexto em volta da obra, existe um entorno dessa obra, existe esse
coreógrafo, essa companhia, as obras anteriores, o pensamento desse artista e
companhia, sabe, tudo o que transborda disso... É tirar o pano de cima, trazer à tona
isso para uma plateia, para um público, eu acho que também vai contribuir muito para
que esse tipo de experiência traumática não aconteça. E eu acho muito que está nas
nossas mãos mesmo, para a gente não ficar tão a mercê de Festivais que façam isso,
de programadores, ou de uma Instituição, que tem dinheiro e vai chamar alguém para
escrever sobre a coisa e que daí sim vai fazer a coisa girar.... Eu acho que a gente pode
fazer, pode fazer mais. E a gente sabe muito bem como falar do nosso trabalho... Acho
que a gente tem muito a aprender, mas tem coisas do nosso processo de criação que
só a gente sabe, que nem um jornalista vai poder lhe perguntar, porque ele não sabe
que existe. Você tem que falar. Agora, é esse como... Como falar? Como falar para as
pessoas que eu acho que é um trabalho que a gente precisa dar um pouco mais de
atenção. Falo por mim mesmo”.
159
f. Antônio Nóbrega, músico e diretor da Cia Antônio Nóbrega de Dança
- Entrevista realizada no Instituto Brincante em 11 de agosto de 2015.
Breve Histórico da Cia Antônio Nóbrega de Dança:
“Eu vim para São Paulo já há bastante tempo. Cheguei aqui em 1983. E nesta
ocasião eu ainda não tinha configurado tão bem como um trabalho de dança. Ele
começou a se configurar como um trabalho de dança a partir de 1989, acho, quando
apresentei um espetáculo chamado O Reino do Meio-dia no 1º Carlton Dance Festival.
A dança já estava imbuída nos meus trabalhos, sobretudo, teatrais, mas ela não
protagonizava os espetáculos. Antes, já em 1985, eu fui convidado para ser um dos
professores que deram nascimento ao curso de dança da Unicamp, no Instituto de
Artes Corporais. Um curso cuja a ideia foi da Marília Oswald de Andrade, e que teve a
mim, a Helena Katz, o J.C.Viola, o Klauss Vianna, e outros professores como aqueles
que primeiro deram aula lá e lançaram portanto o curso de dança. Bem, eu passei
cinco anos lá e depois eu resolvi deixar a Universidade por duas razões: primeiro,
porque eu tinha interesse em desenvolver o meu trabalho artístico e a cotidianidade
universitária barrava um pouco esse meu interesse; e também porque eu achava que
eu tinha ido a um determinado lugar e que me encontrava em um determinado
impasse em relação a um pensamento, em relação a dança que eu fazia. Eu fui
convidado a participar do Instituto como professor de dança brasileira, uma entidade
que a rigor não existe, stricto sensu, mas eu vinha já com uma bagagem já do
nordeste, principalmente, com um trabalho nesta direção, mas a certa altura eu senti
que já tinha esgotado, dentro do âmbito universitário, as minhas possibilidades de
avançar. E aí continuei então a exercitar o meu trabalho na dança, inclusive, nos meus
espetáculos multidisciplinares, sempre trabalhei com a música, incluindo a música e o
teatro, eu trabalhei o teatro, incluindo a dança e a música. Até que até uns 10 anos
atrás eu resolvi então criar espetáculos unicamente dedicados à dança. Então, veio
uma leva de quatro espetáculos, Passo, Naturalmente, Húmus e o último, que eu
estreei há poucos meses, chamado de Pai. A Companhia nasce entre o segundo e o
terceiro desses espetáculos, Naturalmente e Húmus, eu digo nasce oficialmente,
quando eu batizo meu trabalho e o trabalho de cada um na companhia com meu
nome: Antônio Nóbrega Cia de Dança. Concomitantemente com os trabalhos que eu
160
venho desenvolvendo, eu venho associando-os à minha pesquisa, à minha música,
caudatária de duas grandes influências culturais: um lado a linha cultural do ocidente,
que traz no seu bojo desde a formação em dança clássica, passa por moderno e
contemporâneo, etc.; e por outro lado, o universo matricial popular brasileiro no seu
todo. Então, o meu trabalho corresponde, sucintamente falando, a uma dança que
reflita esses dois mundos. Os meus trabalhos são sempre subsidiados por editais, ou
editais ligados às leis de incentivo como a Rouanet, ou Leis Municipais. Eu ganhei uma
única vez um único Fomento. Não me recordo... Já faz tempo. Ganhei um Petrobras
uma vez, foi a partir deste momento que nasce a Companhia, propriamente, oficializa
a companhia. Ganhei ultimamente o Boticário, com uma dotação orçamentária bem
enxuta. E talvez aqui ou acolá alguma ajuda pequena”. E são esses editais que fazem
com que a Companhia exista? “Exatamente. São esses editais que fazem com que a
Companhia exista e inexista. Tem aquela curva sinuosa de trabalhos e de, às vezes,
poucos trabalhos. Então, esse é o fundo com o qual eu venho trabalhando... Como eu
não sou uma pessoa tempo integral da dança, isso, para mim, até faz parte do meu
jogo, porque eu, concomitantemente que tenho um espetáculo de dança, eu tenho 3
ou 4 outros que navegam por diferentes áreas, aulas-espetáculos, palestrante,
espetáculo de música, principalmente. Então, isso me dá uma situação de uma pessoa
da dança muito atípica. Eu não vivo exclusivamente da dança, ela é um segmento do
meu trabalho”.
Nestes 10 anos, o que mudou com relação aos incentivos para a Dança?
“Eu acho que eles aumentaram. Os editais vêm se acumulando, por exemplo,
nós temos o edital Boticário que é inteiramente dedicado à dança. O da Petrobras,
acho que foi a única entidade que subsidiou alguns grupos de dança, é o caso do
Corpo, Deborah Colker, etc. Quando eu ganhei o Petrobras, e eu ganhei para um
período de dois anos, acho que o único modelo de subsídio era esse, eu tentei, eu
solicitei ser um subsidiado de médio e longo prazo, mas eles já tinham cortado essa
possibilidade. E eu sei que as dotações dedicadas àqueles que já estavam também
diminuíram. Então, a Petrobras que foi a minha incentivadora máster, me parece agora
que também... está vivendo momentos difíceis, em crise, e há dois anos não lançam
edital. Então, a crise realmente está imperando. Além dos editais da Petrobras e dos
161
editais do Boticário, algumas entidades estatais, como o Banco do Brasil e como outras
tem se dedicado, tem se colocado aí no caleidoscópio das suas linguagens
patrocináveis a dança. Então, sem dúvida, eu acho que, se você voltar um pouco para
trás, 10 ou 15 anos atrás, não existia. O próprio Fomento aqui nas Leis Municipais. Se
eles estão em sua melhor maneira de se potencializar, talvez não, alguns estão, não
sei, aí é um outro tipo de abordagem... Poderia ser melhor? Provavelmente. Mas há,
sem dúvida, um ganho. E há sem dúvida também, hoje a massa de pessoas que se
dedicam à dança, grupos, exponencialmente, se multiplicou. Muitos dançarinos hoje,
que faziam parte de companhias, hoje, formaram suas próprias companhias. E muitos,
até uma coisa da época, as necessidades pessoais terminam se sobrepondo às
necessidades coletivas e, com isso, há então uma proliferação muito grande de
grupos”.
Mais especificamente no Fomento, como você vê e o quanto ele é importante
para as Companhias em São Paulo?
“Pessoalmente, até pelas razões que lhe falei, eu tenho conseguido
desenvolver o meu trabalho, independente do Fomento. Eu, até na ocasião em que lhe
falo, eu submeti novamente ao Fomento. A última vez que submeti foi aquela (refere-
se a uma das edições do ano de 2013, quando um grupo de artistas, entre eles eu,
Antônio Nóbrega, Ana Catarina Vieira, Diogo Granato, entre outros, iniciaram uma
discussão a respeito da legitimidade e dos critérios de avaliação da banca do Fomento),
na ocasião não fui contemplado, então... Tive algumas... Me posicionei. Estávamos
juntos lá nesta ocasião. E... Algumas razões me foram dadas, bem... Eu resolvi colocar
dentro de uma determinada prateleira, a discussão em relação ao Fomento. E, estou
submetendo essa vez (refere-se à 19ª edição do Fomento à Dança que teve as
inscrições encerradas no último dia 3 de agosto de 2015) para, a partir desta outra vez,
eu arrazoar melhor. Acho que eu teria aí condições melhor de refletir, ganhando ou
não ganhando, sendo ou não contemplado. Eu não tenho, assim, apesar de tudo,
condições de avaliar integralmente o próprio Fomento, em tese, eu acho que ele
trouxe benefícios para a população de dança em São Paulo, sabe, porque há verba
destinada às pessoas que exercitam a dança. Provavelmente, pode ser que haja
162
lugares para serem mexidos, para serem repensados, mas eu... por ora, gostaria de
ficar fora desta discussão”.
Como vive a Companhia hoje?
“Ela está hoje ativa com um misto de uma pequena contribuição do Boticário
que eu, embora tenha ganhado, embora eu tenha sido um dos contemplados, a
dotação que me foi destinada foi de 1/5, ou menos de 1/5 do que eu propus. Então, eu
tive que fazer uma completa mudança. E calha de eu ter sido convidado para o Festival
Boticário, sem contrapartida financeira, então eu tive que remexer profundamente,
para poder estrear o espetáculo em 3 meses, você deve imaginar o que é isso, então
dentro de condições muito austeras de figurino, tudo isso, porque não tinha verba,
que me seria destinada e me daria cancha para trabalhar durante um ano e só a partir
deste momento estrear um espetáculo. Então, eu estou com essa dotação, recebi um
pequeno aporte financeiro agora do Instituto Itaú Cultural. Eu submeti lá, eles têm
uma banca, então, isso vai dar uma sobrevida, bem modesta, até eu acho que até o fim
do ano. Como nós somos um grupo bastante integrado, temos aí uma busca e pesquisa
e momento de encontro da gente ir afinando o nosso fazer, então... E todos os demais
bailarinos têm trabalhos paralelos ao meu, então, eu estou conseguindo manter essa
companhia com um número de dois ensaios semanais. Eu tive um ganho com esse
último espetáculo, apressadamente, é que eu tive sorte do espetáculo ganhar um
respeito meu, coisa que quando ele foi lançado no Boticário, eu tinha uma certa
dúvida, mas que em certo momento se esvaneceu agora depois dessas outras
apresentações que tivemos. Eu acho que conquistamos direito a andar com esse
espetáculo. Isso é bom porque agora eu tenho o espetáculo pronto. Tenho que polir,
tenho que avançar com o espetáculo, mas dá para ele sabe, esse produto, como se usa
na mídia, para podermos avançar em outras secções, mesmo com a dinâmica de
apenas dois encontros semanais. Sim. Ganhei agora também o edital Klauss Vianna,
mas é um trabalho que vai contemplar um trabalho de ordem teórica, é um livro que
eu escrevi, justamente com este tema, de caráter pedagógico, de história também, e
que, indiretamente, ajuda a Companhia.
163
Qual a sua percepção do público nos últimos 10 anos? E qual a relação da
Companhia com o público?
“O meu público nunca foi um público específico da dança. Tanto é que eu
tenho uma vantagem no meu espetáculo de dança, porque eu tenho um público não
só da dança, então... É verdade, se eu faço um espetáculo na Vila Mariana ou algo
assim, 10 dias antes está lotado, está esgotado, com um espetáculo de música. Com a
dança já é um pouco diferente. Mas lota. Lotou no SESC Pinheiros. O que normalmente
não é comum a não ser naquelas companhias que já vem... Tem sido muito
trabalhadas pela mídia, é o caso do Corpo, Deborah Colker, que tem uma presença
midiática maior do que a minha, por exemplo. Então, clareando mais o que eu estou
dizendo, o meu público é um público não só da dança. Agora, é o seguinte, eu sinto
que a dança, dentre aquelas linguagens artísticas que frequentam a cidade de São
Paulo, como em Recife também e outras capitais, é um público proporcionalmente
menor do que nas outras linguagens. E eu acho que se pode fazer uma discussão.
Historicamente, a gente sabe que a dança, ela provavelmente não tenha se afirmado
com a mesma força ou mesma intensidade que a música, mesma intensidade que o
teatro. E, no Brasil, sempre reflexo disso, isso também ocorreu. E eu acho que ocorre
uma outra questão que eu acho que é a seguinte, na minha maneira de ver, a dança,
principalmente a dança pós-moderna, ou a dança que vem depois do moderno, ela
vem se tornando excessivamente cerebral, para usar de um conceito mais simplista.
Ela vem perdendo um certo caráter de ludicidade, de lúdico, de atacabilidade
emocional e sensorial que faz com que a dança se legitime. Um espetáculo de dança
que eu vou para ler intelectualmente, eu acho que ele me furta alguma coisa específica
da linguagem da dança, isso porque essa realidade de entender intelectualmente um
produto, um artefato artístico, posso conseguir a partir de um livro, posso conseguir a
partir de uma outra instância, de um outro tipo de concentração. Eu tenho para mim
que a dança tem que envolver quem assiste não só intelectualmente e, com isso, não
quer dizer que a dança não tenha também um conteúdo intelectual, uma reflexão, um
tema, mas eu acho que, na melhor das hipóteses, ele tem que trabalhar em bitolas
semelhantes. Ele não pode ser um protagonista tão a frente das demais qualidades.
Então, provavelmente, eu acho que a concepção de dança, a formação do bailarino,
164
em geral, não falaria em São Paulo, eu acho que estamos devendo um pouco à dança,
esse caráter mais de... Utilizei essas palavras, sensorial, emocional, etc.”.
Qual o papel da mídia em seu trabalho e para a dança em geral? Quais são os
outros caminhos hoje?
“Eu acho que, justamente, a gente tem hoje a possibilidade de não depender
unicamente da mídia impressa. Houve um tempo em que era absolutamente vital você
ter um crítico, por exemplo, de um dos grandes jornais, ter uma reportagem... Eu, 15
anos atrás, não lançava um espetáculo sem um dia antes dedicar para a Band, para a
Globo, para que todas as televisões fossem lá e para sair nos noticiários. Hoje, eu nem
me preocupo, aliás, prefiro até que não vão, porque muitas vezes atrapalha o ensaio...
Então, com a experiência, a gente já manda um teaser, um filme ou um vídeo que a
gente manda para lá, da uma entrevista e tal... Então, as coisas neste sentido se
tornaram mais ágeis e, então, tem todas essas possibilidades que a gente tem... A
gente tem uma Companhia de seis pessoas, então, eu tenho seis replicadores. Eu
tenho um Blog em que eu possa escrever, então, há muitos expedientes. É claro que a
mídia impressa ainda é um expediente poderoso, a Folha de S. Paulo, a Globo, a Veja, a
Carta Capital, estão ainda no topo da comunicação. Mas você pode também
tranquilamente já dispensá-los completamente e não se preocupar tanto em estar
presente neles”. Sente que diminuiu os espaços para a dança? “Talvez tenha diminuído
um pouco. A gente não tem mais em alguns jornais o crítico fixo, eu acho que a única
crítica mesmo que mantém um trabalho cotidiano regular é a Helena Katz, no Estado
de S. Paulo. Raramente eu vejo, ou muito pouco, eu vejo uma crítica da Folha de S.
Paulo, não acompanho bem os outros jornais, por exemplo, do Rio, em Recife também
já não tem mais. Então, diminuiu sem dúvida, como de resto diminuiu. Hoje os
cadernos de cultura são praticamente cadernos de variedades, eles não são mais, não
são lugares para se discutir ideias, prioritariamente, mas há uma certa perfumaria da
arte e do entretenimento, que se sobrepõe à discussão, à crítica mais gorda...”
Sobre as iniciativas de comunicação que a Companhia tem e se há estratégias
de “formação de público”:
165
“Eu tenho uma assessoria de imprensa, uma assessoria de comunicação
regular. Então ela acompanha o que eu faço, uma palestra aqui, um show... Então, tem
sempre a divulgação contínua, modesta, não é nada... Mas ela é constante. /
Diretamente, não. A gente não faz não. Mas nós temos aqui o Instituto que faz um
pouco, às vezes, disso. Pessoas que estudam aqui, além de saberem, elas também são
replicadores disso. E são pessoas de áreas diferentes de São Paulo, muitas delas
inclusive da periferia, de regiões mais afastadas, então, talvez a gente tenha um pouco
isso, mas de modo não oficial”.
Como funciona o Instituto Brincante?
“O Instituto é uma ONG, o Teatro Escola Brincante é uma ONG que presta
muitos serviços gratuitos, na medida em que a gente tem os aportes dos editais,
PROAC, etc. Eles estão rareando, escasseando, então, com isso, a gente priva muito as
pessoas de acompanhar... Esse curso que está aqui, por exemplo, tenho para mim que
é um curso gratuito e que são realizados somente às terças-feiras, que foi um PROAC
que a Instituição ganhou e se extingue praticamente no fim do ano. Mas temos muitos,
temos outros cursos que são pagos privadamente, arte do Brincante para educadores,
os preços procuram se adequar a uma realidade média de possibilidade das pessoas...
E eu acho que neste momento o curso pago se sobrepõe ao curso gratuito, porque eu
não sou uma Fundação, eu não ganho dinheiro suficiente para ter dinheiro no banco
para tirar um dinheirinho por mês e dedicar... Não sou um Itaú nem sou um SESC, nada
disso. Então, o meu dá no máximo para eu passar a minha vida. E em tempo de crise,
todo mundo está meio... Está correndo atrás do prejuízo. Então o Brincante vive a
partir do que ele consegue e enfim, de conversas...”.
166
g. Daniel Kairoz, artista da dança
- Entrevista realizada no Terreyro Coreográfico em 24 de agosto de 2015.
Sobre o Fanzine de Crítica de Dança:
“A principal coisa que me fez criar o Fanzine de crítica de dança foi uma quase
inexistência; na verdade, inexistência não, mas ter uma única pessoa que escreve
críticas de dança, basicamente, que é a Helena né, e isso, há muito tempo, já se
cristalizou. Algumas pessoas começaram a escrever na Folha, mas foi algo que não
ganhou força e que rapidamente não rolou mais, não conseguiu criar um espaço, como
a Helena criou, por estar também há tanto tempo, então, eu acho que isso é muito
prejudicial para a dança: ficar com um único ponto de vista e com uma crítica como se
ela tivesse que dar conta de tudo também. Eu acho que se conseguisse ampliar esse
campo da crítica, e até um jeito de pensar a crítica, porque também tem toda uma
crítica à crítica, que é feita, sei lá, principalmente, depois da década de 1960 e 1970.
Dos próprios artistas criticarem esse lugar do crítico, como aquele que dá o aval da
obra, que vai, na verdade, dizendo o que deve ser levado em consideração, ou não, nas
artes... Orientando para um consumo ou para um pensamento... Vai tendenciando um
pensamento do que é interessante ou não. E o que foi legal foi que foi um momento
em que os próprios artistas começaram a escrever sobre seus trabalhos, tanto
reflexivos ou explicativos, ou críticos, ou seja lá que formato fosse. Isso eu acho muito
rico, porque tem esse lugar da crítica, da forma do texto estar impregnada também de
um caráter artístico. De não ter esse pretenso distanciamento, essa lente objetiva para
olhar para o trabalho, não existe, porque você querer objetivar um trabalho de arte é
bem delicado. Mas é engraçado que, depois de um certo tempo, parece que não
importava mais esse campo da crítica, não interessava mais. Porque os artistas
começaram a produzir menos textos das suas obras e em dança, eu não sei o quanto
isso acontecia, ali naquele momento, 1960 e 1970, mas hoje em dia, são pouquíssimos
artistas que escrevem sobre seus próprios trabalhos, reflexivamente, a não ser os
artistas que levam para a Academia, fazer mestrado e doutorado, e daí é um momento
em que eles debruçam a refletir sobre a prática. O lance do Fanzine que eu achava
interessante era de escolher um trabalho e chamar diferentes pessoas para
escreverem sobre o mesmo trabalho. Que é um pouco de deflagrar essa perspectiva
167
única que está operando há tanto tempo. Então, chamar diferentes pessoas, com
diferentes modos de pensar e de escrever, para olhar para o mesmo trabalho e
produzir materiais diferentes sobre aquilo. E isso eu acho muito legal de você poder
pegar algo que está falando de um mesmo trabalho, e ao mesmo tempo se relacionar
de formas tão diferentes com aquilo. E um trabalho que não necessariamente você
viu, e isso também me interessa em pensar: no texto crítico com uma certa autonomia
com relação ao trabalho, de ser um texto tão trabalhado, tão interessante que você só
de ler aquele texto, ou te dá vontade de ver aquele trabalho, e eu acho que isso é
fundamental em um texto crítico, de você ter tanto tesão, tanto ânimo com relação
àquilo que você fala: nossa! Que legal! Quero ver esse trabalho, quero conhecer esse
artista de qualquer jeito. Isso eu acho que é o papel fundamental da crítica: instigar
esse tesão em quem lê o texto”.
Como está o Fanzine hoje, está vivo?
“Não. Quer dizer, vivo está, mas eu acho que de outras formas. Mas o Fanzine
mesmo, eu acho que ele acabou que não conseguiu tomar uma força própria. Ficou
muito dependendo de mim para acontecer as edições. Então, de eu chamar as
pessoas, de eu ficar cobrando também para poder reunir e finalizar. Porque também
tem isso, porque uma das propostas do Fanzine era de cada pessoa que escreve, olhar
os outros textos também e dar feedbacks, não para equalizar os textos, mas para ser
um ambiente também de produção de pensamento. Não ser simplesmente ah... Eu
vou lá e escrevo meu texto, e pronto, já cumpri ele ali no negócio. Não. Porque tem
textos que são às vezes um pouco mais frágeis, que eu acho legal de problematizar, de
colocar em questão também, porque muitas vezes, são pessoas que não tem tanto a
prática da escrita e que participam e eu acho muito legal essas pessoas também
poderem escrever, se sentirem à vontade para escrever, mas também de ter um
cuidado e um rigor com o texto, de não publicar qualquer coisa. Mas de talvez ter um
ponto aqui, talvez se levar o texto mais por esse caminho... Coisas que quando tem
um grupo, eu acho que é muito gostoso de fazer. Todas as vezes que rolou, foi muito
legal. Mas é isso. É um pouco trabalhoso, assim, para manter isso, porque eu também
faço muitas coisas, então, e daí começou a ficar na dependência demais minha e eu
queria que a coisa ganhasse uma outra, que outras pessoas... De repente, uma tal
168
pessoa dissesse ah, quero escrever de tal trabalho, ela chamar as pessoas e trabalhar
mais enquanto um programa para um Fanzine de crítica, do que eu sendo a pessoa
que conduz, que faz aquilo acontecer. Mas enquanto programa, pode ser replicado,
trabalhado e ativado por qualquer pessoa”.
Por que Fanzine?
“Era sempre impresso. E eu achei legal essa ideia do Fanzine também. Porque o
Fanzine vem da palavra fã também que é uma publicação de pessoas que tem um
amor por algo, você gosta muito de uma coisa e você produz ali uma publicação
independente daquilo que você ama, daquilo que você admira, daquilo que você tem
tesão... Eu achei muito legal de pensar a crítica de dança enquanto algo com prazer.
Essa relação entre a crítica e o prazer, que é algo que normalmente é dissociado e tem
no prefácio do Anticrítico do Augusto de Campos, e eu acho muito bonito isso assim,
que ele fala também dessa relação entre o prazer. Ele fala que, normalmente, o crítico
é essa figura ressentida, esse artista frustrado, que resolve falar sobre obras de arte. E
de mudar essa perspectiva, não no sentido de abandonar a crítica e o crítico, mas de
trazer o prazer e o tesão para essa figura que, às vezes, é meio...” (Intervenção de uma
pessoa na conversa) Continuação... E durou por quanto tempo? “Durou por um ano e
meio ou dois anos, mas foram poucas publicações. Foram duas impressas, uma virtual
e uma que tem todos os textos prontos, mas a gente acabou não conseguindo finalizar.
Mas tinha isso também... Essa coisa de imprimir... Porque um dos meus focos era
também era de ser algo impresso, porque eu sinto que quando a coisa está na
internet, muita gente fica sabendo, mas poucos leem. E quando está impresso, menos
pessoas ficam sabendo, mas quem fica sabendo, lê. E também de vender... Eu vendia
por, sei lá, R$2,00 cada, e era uma forma de criar uma economia do próprio Fanzine,
porque daí, com o que a gente vendeu do primeiro, a gente conseguiu imprimir o
segundo, do segundo, conseguiu imprimir o terceiro e disso ir criando uma autonomia
econômica também assim para produzir. E eu acho que isso da pessoa ter ali a
materialidade para ler, instiga mais a leitura, eu acho gostoso isso, e também porque
eu também estava começando a me interessar muito por essa performance do texto, a
publicação enquanto uma performance do texto. Então, o próprio texto ser, mas o
próprio formato também. De não assumir um formato padrão, de revista, ou de o
169
Fanzine ser uma folha e tal, mas a cada edição pensar um formato que dialogasse
também com o trabalho que estava em jogo. No primeiro, que era o da Michelle
Moura, que é um trabalho em que ela tem vários pedaços grandes de papel, e forma
assim um grande chão de papel, e as pessoas dançam por baixo e forma um pouco
essa topografia neste papel, e o formato era uma folha grandona, tipo um A1, todo
amassado. Você comprava uma bolinha de papel amassada, e daí você tinha que...
Então, esse gesto do ato de leitura, de você ter que desembrulhar essa bolinha de
papel toda amassada... Tanto que várias pessoas perderam porque compraram, daí a
moça que trabalha na casa viu, achou que fosse lixo e jogou fora, a mãe jogou fora...
Então, essa performance do texto me interessava”.
O porquê da não continuidade:
“De ter acontecido isso assim. De eu de repente ter que ficar chamando as
pessoas, de eu ter que fazer sempre a edição... Até umas pessoas falavam ah, quero
fazer e tal... Mas não foi para frente. Tenho ideia de retomar isso, mas por enquanto,
até por conta do projeto agora do Terreyro Coreográfico, é algo que está um pouco
mais parado. Mas é algo que está vivo em mim, então, eu acho que em algum
momento vai retomar. E foi muito engraçado, porque, com a experiência do Fanzine
de Crítica de Dança, me abriu para criar uma editora depois disso. E daí foi a
Phármakon, e só rolou isso por causa do Fanzine que, por conta desta primeira edição
da bolinha amassada, o cara que trabalha com publicação, mas é das artes visuais, me
chamou para participar de uma feira, que fiz uma curadoria da galera da dança, que
tivesse trabalhos de publicação, e daí eu achei poucas coisas, e tinha alguns materiais
que eu tinha vontade de publicar, de pessoas que eu conhecia o trabalho, que eu
achava muito legal, num tinha nada publicado, falei, vamos organizar... E quando eu fui
ver, tinha mais publicações que eu tinha editado do que pessoas da dança que já
tivessem publicação. E, a partir disso, eu assumi que eu tinha uma editora. Que eu
continuo com ela e ela também está um pouco parada agora assim de novas
publicações. Mas acho que vai ser bom, agora finalizando o Fomento, vai dar para... “
170
De que maneira você utiliza hoje o ambiente digital no seu trabalho?
“Eu uso bastante. Eu ainda não sei o quanto que ele realmente dá uma
visibilidade para os trabalhos, acho que para divulgação funciona, muitas pessoas
ficam sabendo das coisas, mas eu não sei o quanto elas vão, o quanto isso realmente...
Sei lá, teria que fazer algum estudo assim, e até tem pessoas já fazendo isso, mas o
quanto que isso mudou, o número de pessoas que realmente vão... Porque as redes
sociais, a internet, muita gente fica sabendo, muita gente diz que vai, muita gente
curte, muita gente acha legal, mas são poucos os que vão mesmo. De fato. E vão lá
assistir o trabalho. Que vão lá presenciar tal coisa, então, eu acho que tem algo aí que
eu ainda não sei direito do quanto realmente é eficiente, mas ao mesmo tempo, eu
acho que é um ambiente muito rico, assim, para veiculação.” (Intervenção de outra
pessoa na conversa) Continuação... “Isso de você poder associar imagens, com vídeos,
com texto, e eu acho que é um lugar muito legal para se trabalhar texto. Eu acho muito
gostoso assim, com as ferramentas, e as redes sociais, e-mail, enquanto lugares de
trabalhos textuais assim, na hora que você vai escrever um e-mail para alguém e
contar de um projeto, ou divulgar o seu trabalho ali, eu acho que é um ambiente muito
rico para a produção textual. Embora, poucas pessoas leiam coisas na internet. Então,
acho que são sempre esses prós e contras que você tem que ir equalizando e
trabalhando essas contradições, trabalhar a contradição, eu acho que isso é muito
legal”.
Como você vê a possibilidade de existir enquanto artista, e da Companhia, na
cidade de São Paulo nos últimos 10 anos? E a relação antes e após aprovação de seu
primeiro projeto no Edital de Fomento à Dança?
“Eu não tenho muita referência de outros lugares. Tenho de ouvir falar, mas eu
nunca trabalhei em outros lugares que não São Paulo. Então, a minha visão é um
pouco limitada neste sentido. E ao mesmo tempo, sei lá, por conhecer muitas pessoas
de outros lugares, e de conversar muito com outras pessoas, eu vejo que tem um
tanto de incentivo e de dinheiro que circula por aqui que é algo que pouquíssimos
outros lugares circula, uma quantidade de dinheiro, mesmo, assim. Eu não sei o
quanto isso é... De novo as contradições... Porque eu acho que isso gera contradições
bem malucas, de ter muito dinheiro para produzir os trabalhos, e terem muitos
171
trabalhos sendo produzidos e irem para o mundo, mas são pouquíssimos os que têm
uma força artística mesmo, a ponto de chacoalhar, de mexer, com o que se entende
por dança, com a linguagem, com o meio da dança, com os modos de produção em
dança, então, são trabalhos que normalmente estão muito formatados dentro dos
editais. E tem toda essa problemática também que muita gente fala e comenta que o
quanto que um edital vai conformando e vai formatando os modos de produção da
arte. E isso é muito delicado, mas, ao mesmo tempo, é possível reverter isso. Trabalhar
com isso... Sacando qual o modo de operação de determinado edital, você propor algo
que te abra uma possibilidade que não seja simplesmente cumprir o edital. Porque eu
vejo que muitos trabalhos ficam correndo atrás do próprio projeto. E isso eu acho bem
prejudicial para a criação de um trabalho artístico. Quando você tem que ficar
cumprindo coisas e correndo atrás de um projeto. E eu acho que um projeto é muito
rico no sentido de te lançar para um desconhecido. E eu acho que vários projetos que
eu tinha escrito para o Fomento especificamente, eles tinham formatos um pouco mais
careta, assim, de apresentar um trabalho que eu já tinha, fazer temporada dele, e criar
alguns grupos de estudo para também dar continuidade às pesquisas minhas
coreográficas e tal, que até envolvia o grupo de crítica e outras ações. E daí, o trabalho
mais maluco que eu escrevi, que era um projeto que falava basicamente de pessoas
que se aproximaram de mim, de um cruzamento entre áreas: arquitetura,
programação e coreografia, sem dizer exatamente o que iria ser feito ou não... Foi o
que rolou. E isso foi maravilhoso porque deu uma liberdade para a gente fazer o
projeto incrível, assim. De a gente fazer muito mais do que a gente disse que iria fazer
no projeto, e muito mais do que se a gente tivesse falado cada coisa que a gente iria
fazer, porque aí a gente teria que fazer exatamente aquilo que a gente falou e a gente
ia se ferrar, porque é isso, você começa a trabalhar e vai mudando tudo. E se você não
tem essa liberdade para deixar mudar, você está ferrado, porque daí você não vai
conseguir fazer uma criação artística... Dar um olé... E a gente é artista, então, eu acho
que é um lugar criativo também escrever um projeto”.
Como era antes do Fomento?
“Eu trabalhei também por muito tempo com outros grupos, outras
companhias. E isso foi fazendo com que meu trabalho ficasse de segundo plano,
172
porque daí o que me sustentava era o trabalho com essas companhias, que,
normalmente, eram companhias que tinham subsídios, seja lá quais fossem eles, e o
meu trabalho era sempre um ‘corre’ que eu tinha que fazer e, que por eu trabalhar
com esses outros grupos, eu não conseguia me dedicar tanto ao meu trabalho. Na
faculdade eu já consegui fazer apresentações de trabalhos que eu tinha criado ali, ou
depois de me formar também, de participar da primeira edição do Corpo Instalação do
SESC-SP, mas coisas mais pontuais assim, no Masculino na Dança, do Centro Cultural
São Paulo, coisas que de alguma forma era um jeito de dar continuidade para a minha
pesquisa, rolou o Rumus, do Itaú Cultural, logo que eu saí da faculdade, e foi bem legal,
porque foi um momento em que eu consegui focar bem no meu trabalho... Mas é a
partir dali que eu passei a ter menos tempo, então, eram coisas muito pontuais. Mas
isso de conseguir um projeto maior, por trabalhar por mais tempo em uma pesquisa
mais focada rolou só agora (após aprovação de seu primeiro projeto pelo Fomento).
Então, esses convites pontuais sempre rolaram, e alguns editais, como esse do Rumus,
teve em 2012 o da Cultura Inglesa, o Masculino na Dança, na Verbo, mas daí na Verbo
não tem dinheiro, que é um festival de performance da Galeria Vermelho... Daí, a
partir de 2011, que foi quando eu parei de trabalhar com essas outras companhias, eu
falei não, agora eu preciso me dedicar exclusivamente ao meu trabalho como a
prioridade. Para, a partir daí, conseguir trabalhar com outras companhias. E daí foi um
perrengue de 2011 até 2014, 2015, porque foi aí que rolou o Fomento. E aí eu consegui
uma duração maior”.
Você acredita que as pessoas se tornam reféns do Fomento por ser uma das
poucas formas de um trabalho, relativamente, continuado?
“Eu continuaria existindo mesmo sem ter pegado esse Fomento, porque daí...
Por exemplo, teve uma edição que eu mandei um projeto para o Fomento que não
passou e eu falei bom, vou fazer o projeto de qualquer forma, independentemente, de
ter dinheiro ou não. Óbvio, a temporada da Tempestade que era o trabalho que eu
tinha proposto, foi impossível , porque era uma produção cara, ‘60 pau’... que não tem
por onde se você não tiver um apoio, daí, tentei conversar com o SESC e tal, tentar
outros meios, mas também não rolou. Porque também tem isso né... Um certo padrão
de trabalhos que são bem aceitos, e outros tipos de trabalhos que são um pouco mais
173
trabalhosos para realizar, ninguém acha graça nenhuma. Ah! É dança? Então, tem que
ser alguma coisa que não dê muita dor de cabeça para produzir... A não ser que seja
internacional... Então, foi difícil de fazer a temporada do trabalho, mas ao mesmo
tempo os grupos de estudo que eu tinha proposto, eu comecei todos: o de tradução,
de crítica, de estudos coreográficos, e o de movimento de dança. E foi incrível, porque
também é um modo de continuar existindo e poder criar uma rede com outras
pessoas, e poder buscar outros meios de conseguir ir levando o trabalho, e daí
consegui lá na Oficina Cultural Oswald de Andrade, por seis meses, fazer esses grupos
de estudo lá, então, tudo isso, foi me criando uma independência do Fomento total”.
Como você pensa essa relação do espaço público e do público de dança que
parece muito forte em seu trabalho?
“É uma palavra que eu gosto muito: público. Porque ela tem essa confusão um
pouco que diz tanto às pessoas que vão assistir algo que se chama de público, e
também tudo o que diz respeito a todos, que é comum a todos, que é o que é público:
o espaço público, o poder público, que daí já cria um problema porque o poder público
é o poder oficial e não o povo, esse público que então, acho uma palavra que é bem
interessante que, por estar em muitos lugares próximos, mas ela tem sempre, se você
colocar todos esses lugares em que ela aparece em relação, começa a criar problemas
bons assim para... E é difícil falar assim genericamente de público, porque é isso, falar
de espaço público é algo específico, e aí falar de público, dessa figura que vai assistir e
que é algo que tem me interessado muito, que acho que mais pontualmente o público,
essa entidade que assiste a trabalhos de arte... Acho que talvez por eu ter começado a
trabalhar lá no Teatro Oficina como coreógrafo e do Zé, de alguma forma, trabalhar
com uma ideia de ‘corógrafo’, de trabalhar essa coreografia de coros, isso para mim foi
ficando muito forte: de cada vez mais pensar o público enquanto um coro. Enquanto
coro no sentido de um espaço de ressonância da obra, porque neste sentido tem a ver
com a crítica também, que é até um dos textos que eu escrevo, em uma das edições
do Fanzine é isso que o crítico é quase que uma caixa de ressonância, uma figura que
vai fazer aquela obra ressoar no mundo, dando uma continuidade de vida para o
trabalho. Um pouco do que o Benjamim fala do tradutor, na tarefa do tradutor. Ele fala
que o tradutor dá uma sobrevida à obra e eu acho que o crítico também tem esse
174
papel e o público também tem esse papel, talvez mais do que todos. Porque o público
é essa figura que é multiforme e que é composta por muitos indivíduos, e o crítica é
um que dele ramifica, agora o público é uma ramificação louca e completamente...
Eles saíram da sala de espetáculos, do teatro, assim, já foi... Foi para o mundo... São
100 pessoas que estão levando isso para outros lugares, então, é muito poderoso
esse... E pensar essa figura do público enquanto coro, eu acho muito rico, porque você
traz uma implicação para essas pessoas. Eles não estão ali apenas nesta figura de
avaliação ou de consumir, ou de apreciar, ou de qualquer coisa que está
completamente separado do que está acontecendo, mas essa figura está
completamente envolvida com aquilo. Sei lá, para mim é muito forte de ver as plateias
dos Festivais de Música e ver o grau de envolvimento deles, de vaiar, de aplaudir, de
não deixar cantar, e eu adoraria ter isso em dança, das pessoas ensandecidas com o
trabalho, puta que merda, que louco que aquilo está acontecendo, sei lá, um pouco da
história da Sagração da Primavera, da estreia assim, de um trabalho, porque não é
nem uma coisa do trabalho causar essa comoção, ah, trabalhos incríveis... Mas é do
público sentir à vontade enquanto coro, porque se ele se sente como coro,
responsável por aquilo que está acontecendo, ele não vai poder ficar quieto. Porque
eu acho muito louco, que é uma coisa que eu tenho pensado muito, ultimamente, que
é o quanto que nos trabalhos de dança o público não pode se mover. O quanto que as
pessoas se movem o mínimo possível. É uma coisa que quando eu vejo um trabalho de
dança que me toca, dá vontade de dançar junto. E não preciso entrar lá para dançar,
mas eu fico na minha cadeira meio louco ali com aquilo, completamente envolvido
cineticamente. E por que a gente não pode se mover em um trabalho de dança? Por
que a gente tem que assumir uma postura de observador? É muito frágil, muito falso,
muito besta”.
Mas de alguma forma você acaba tendo essa liberdade aqui no Terreyro
Coreográfico, não? Você não tem as poltronas confortáveis para assistir a um trabalho
de dança, além de acredito ter um público bastante variado que frequenta a região,
certo?
“Natural, é muito foda, porque te coloca neste lugar de coreografar todo esse
lugar do público, desse coro, coreografar as pessoas que vão ali. Também não dá para
175
simplesmente deixar solto, porque também tem uma tendência, então, vamos
questionar o lugar do público, então, você tira o público do lugar dele e solta em um
outro contexto. E depois você fica, ah, mas por que as pessoas ficam sentadas e não
ficam andando pelo trabalho, porque é isso, se você está tirando eles de uma situação
coreografada, que eles sabem muito bem como agir, você precisa propor outra coisa, e
você pode propor uma coisa que não seja determinante, para não cair no mesmo
lugar, mas você pode criar caminhos. Então, isso foi muito legal quando a gente fez a
Coreografia Junina aqui, porque a gente assumiu esse lugar de uma festa junina
tradicional, com alguns signos de uma festa junina tradicional, mas a gente trabalhou
isso como uma grande coreografia, então, a quadrilha era uma coreografia, o
momento de explosão dos fogos de artifício, o momento de acender a fogueira, o
cortejo para iniciar tudo isso, então, como cada coisa vai seguindo a outra, como que
vai conduzir as pessoas sem precisar ficar falando ah, agora vamos fazer tal coisa,
agora isso, mas de naturalmente ir criando esse movimento com 500 pessoas, que era
o número de pessoas que estavam aqui, pessoas do bairro, pessoas que também são
da dança, e a maioria das pessoas eram pessoas que estavam ali em uma festa junina,
curtindo uma festa junina, e isso é muito legal, de conseguir trabalhar coreografia em
outras escalas, e não só essa já mais habituada do contexto teatral, do contexto de
espetáculo, mas de pegar esse pensamento coreográfico e de levar ele para outras
escalas, outras dimensões. E isso é muito rico para pensar exatamente o lugar do
público e, no caso do Terreyro, o espaço público também. Porque é um espaço público
em jogo, mas é um espaço público curado, então, como é tornar público um espaço
público? Que foi também o foco lá no Arte Palácio, de um aparelho público, um
cinema antigo, que a Secretaria desapropriou, então era uma propriedade pública, só
que ninguém podia entrar porque tinha grade, e tinham medo que rolasse alguma
ocupação. Só que você mantém o negócio vazio, aí sim é motivo de especulação.
Porque ao invés de usar e manter vivo o espaço, não, você fecha. É que nem aqui, tudo
murado, tudo fechado, então, todo esse trabalho de coreografar essa arquitetura,
coreografar os muros, onde abrir, onde não abrir, como abrir, o quanto abrir, tudo isso
pensando no espaço público é muito rico para tornar o espaço público, público,
publicizar o espaço público”.
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h. Ana Francisca Ponzio, jornalista e idealizadora do Portal Conectedance
- Entrevista realizada na Galeria Olido em 16 de setembro de 2015.
Sobre seu histórico no Jornalismo Cultural:
“Eu convivia com as artes, curtia, fazia dança e estudava música também e eu
queria escrever. E eu fiz tudo o que é aula, de curiosa, fiz clássico, na Escola da Maria
Olenewa, depois fui para o Stagium, depois fui fazer Klauss Vianna, Sônia Mota,
Martha Graham, então, eu ia experimentando tudo isso, mas eu não queria dançar, eu
queria escrever, e quando eu cheguei no jornal, para mim ainda havia essa
possibilidade, de você escrever legal... Nesta época havia o que passou a se chamar
cobertura especializada em dança, então, tinha pessoas que escreviam, a Helena é
uma delas, Rui Fontana Lopez, o próprio Sábato Magaldi, eram referências. E eu fui
aquela que fui trabalhar na redação.” (Intervenção de outra pessoa na conversa)
Continuação... “E daí, não tinha essa cobertura especializada, sabe, tinha caras de
outras áreas, que, eventualmente, quando viam o que eles consideravam importante,
grande, ia lá fazer. E eu acho que eu levei para as redações essa minha vivência e essa
minha afinidade. Tanto que foi bárbaro, até isso coloquei em meu site, quando o
Kazuo Ohno morreu, eu coloquei lá a primeira matéria que eu fiz assim, digamos, que
foi um momento muito importante que veio o Kazuo Ohno, o Festival Carlton Dance
Festival de alguma forma abriu para linguagens que não vinham para cá, porque os
produtores traziam para cá aquelas companhias mais chaves, chaves não,
convencionais, consagradas, sabe. E de repente o Carlton Dance trouxe Merce
Cunningham, Sankai Juku, era toda uma abertura mesmo, era muito estimulante. Eu já
tinha vivido isso adolescente ali quando teve o Teatro da Dança, eu acho que São
Paulo sempre foi uma cidade estimulante. De alguma forma, sempre aconteceu coisas.
Então, era aquela descoberta do corpo, o Stagium que tinha aquela coisa política, o
Teatro da Dança, da Marilena Ansaldi, aqueles diretores teatrais trabalhando com
dança, era muito legal. E isso tudo me estimulou a me interessar cada vez mais por
dança e, estando nas redações, eu fazia essa cobertura mesmo, eu nunca tive essa
coisa de ‘quero ser crítica’, sabe? Ok. Eu acho que é consequência, faz parte, mas
sempre o grande tesão para mim foi fazer o que a gente chama de ‘boa reportagem’,
porque para mim, envolve pesquisa, você correr atrás, apurar a informação, escrever
177
aquilo legal com começo, meio e fim... E até um certo momento, foi possível, porque
eu peguei momentos privilegiados na imprensa. Então, eu comecei lá no Jornal da
Tarde, que era legal, porque era um momento em que havia uma convivência, aquela
redação era um ir e vir, sabe, os artistas iam lá, tinha uma circulação bárbara, mas já
eram os estertores lá, porque já tinha sido o auge do Jornal da Tarde e já estava
entrando em um outro momento, então, eu peguei esse final, final da década de 1980.
Daí, em 1990, está começando a ter as demissões e tal... Porque eu tenho que
trabalhar... Então eu sempre fui tentando me virar... E para mim isso foi um desgosto
quando eu vi isso, que para mim era uma profissão, entrar em derrocada. Entrou e
agora você tem que reinventar, mas a imprensa está um merda”.
Então você percebe essa grande diminuição de espaço?
Sim, mas ainda teve bacana, porque eu ainda arrumei um emprego, como
chamavam na época, me chamaram para trabalhar na Revista Elle, foi legal também,
um baita aprendizado de como fazer revista. E eu falei, ah, meu deus, e agora? Vou
deixar de escrever sobre dança, sobre cultura... Mas não deixou, foi sempre, quando
eu achava que algo estava acontecendo, eu corria atrás, porque daí já me chamaram
para fazer umas colaborações, porque eu estava precisando, e tal... Então, eu fui
cobrindo demandas, assim como a Helena fazia as críticas, o Rui Fontana, e muitos
outros no Rio de Janeiro também... E daí eu não fiquei muito lá na Elle porque me
chamaram para ir no Caderno 2, quando os cadernos estavam começando a bombar, e
foi um pouco do que eu falei lá (refere-se a uma mesa de Jornalismo Cultural que ela
fez parte na IX Mostra do Fomento à Dança, edição 2015, no Centro de Referência da
Dança), assim, a gente tinha tido um período de censura, que veio por conta da
ditadura, então quando vem esse outro momento, os cadernos culturais bombavam,
eles investiam nos cadernos culturais com projetos gráficos, em pessoas, era o
máximo, aquilo fervilhava. E hoje é ao contrário, hoje não se investe mais nos cadernos
culturais, e a política ganhou um status aí, dentre as editorias, que antes não tinha.
Não se discutia tanto, ainda tinha aquela coisa de ter medo de se discutir política...
Então, foi um momento muito bárbaro no Caderno 2 e para mim sempre foi
aprendizado, e eu vejo que hoje é tudo mais fast food, lamento também porque as
condições também não colaboram muito. Naquele tempo a gente podia fazer qualquer
178
reportagem, tentar esgotar um assunto, e isso para mim foi um grande aprendizado.
Depois, a gente teve a oportunidade de fazer coberturas internacionais... Agora não
tem mais, é tudo via Skype, etc... Mas a gente podia ir lá, em loco, cobrir grandes
festivais, foi muito rico, eu acho. Aí eu fui para a Folha de S. Paulo, e a Folha é muito
selvagem, embora o Estado de S. Paulo tenha assim uma aparência mais conservadora,
e a Folha também é, embora tenha uma fachada mais irreverente, e que até perdeu
com o tempo, mas em uma época, a Ilustrada tinha, porque a Ilustrada começou e foi
quem abriu para explorar os assuntos mais pop. No Estadão não, até ter moda no
Estadão demorou, TV, gastronomia, essas coisas sabe, depois foi expandindo... E eu fui
para a Folha, mas foi uma outra experiência, porque, de qualquer maneira, a Folha te
dá uma visibilidade muito grande e veja só, agora não tem quase nada, e eu fazia capas
e capas e capas sobre dança. Então, a dança estava presente. Depois, surgiu a Bravo,
que imagina, no começo era um miquinho, os intelectuais fazendo aquela revista, e eu
fui chamada para ser editora de dança, então, imagina, sempre entrava dança, e essas
discussões de reunião de pauta, em que todos trazem alguma coisa, sempre achei isso
muito estimulante, sempre foi rico. E com o tempo isso foi acabando, foi muito chato.
A própria Bravo, né... E depois o Valor Econômico, quando foi lançado, embora se
espelhasse no Financial Times, ele tinha um caderno cultural forte diário, depois virou
semanal, e agora esse semanal tem tudo, tem comportamento, economia e, se der,
entra cultura, dança então, nem se fala. E para mim, vinha assim de uma coisa purista
também, porque naquela época não tinha também essa coisa da receita publicitária
determinante. Eu não sei o que eles faziam que viabilizava aquilo e, de repente, me vi
um dia, eu fazendo trabalhos bacanas, elogiados, e de repente, alguém fala lá: ‘dança
não tem importância’, e eu me dei conta que o critério, o que estava valendo era: não
dá receita publicitária, audiência, essa mensuração começou a ser muito mais efetiva e
importante”.
Isso seria já nos anos 2000?
“É. Eu entrei na Folha em 1994, fiquei uns 16 anos e depois ainda fiquei
fazendo algumas colaborações, mas foi se efetivando, na Folha começou antes até
com essas coisas, mas foi mesmo mais pelos anos 2000 que começou a ter também
algumas situações financeiras, eram crises... Eu lembro quando teve o plano Collor, eu
179
estava trabalhando na Elle, e o editor do Caderno 2 me chamou para ir para lá, eu
fiquei felicíssima, nunca esqueço, era mês de maio, e eu quase pedi demissão. Mas se
eu tivesse pedido, estava ferrada, porque entrou o Collor, e veio com aquele plano
Collor que confiscou tudo e congelou tudo, mas mesmo assim foi bacana porque eu
consegui ir para lá depois em agosto. Mas daí já não tinha mais carteira assinada,
sabe... Estou assim lhe contanto os detalhes, que tem nessa lida... A gente passou a ser
microempresa, essas coisas assim terceirizadas, nossa, tudo isso eu vivi. E daí criaram
essa fachada do colaborador, então, para não ter custos trabalhistas, você fica em casa
trabalhando, com sua estrutura, então, não tem obrigações... Ai, deus me livre!”.
“Bom, daí, com a internet isso, mundialmente até, foi interferindo em tudo, na
revolução, porque interferiu e continua interferindo na própria receita de
sustentabilidade desses veículos. Se, nos veículos impressos, na Veja é uma fortuna
aqueles anúncios, assim como os anúncios de página inteira nos cadernos são
‘carérrimos’, e na internet não é esse valor. É outra mensuração, então, e tem essa é
essa coisa da quantidade também, eu diria banalização dessa indisponibilidade das
pessoas de se aprofundarem nos assuntos, tudo jogo rápido... Eu mesma tenho que
me adaptar a isso. Quando eu fiz o Conectedance, o meu veículo com aquele idealismo
todo, e agora ralando, aí finalmente eu tenho espaço onde eu vou poder fazer todas as
matérias que eu amo fazer, planejei como uma publicação completa, eu não queria um
blogzinho, eu sempre pensei em desenvolver coisas para a dança que desse a ela o seu
status, não fosse rabeira, não fosse mambembe, não fosse o secundário. Quando foi
em 1996, eu acho, me chamaram para fazer um Festival de Dança, chamou-se um
nome horrível que deram lá, que era Confort em Dança, um produtor havia
conseguido um patrocínio da Gessy Lever, do amaciante Confort e tiveram que colocar
o maldito nome no festival, e me chamaram para fazer a curadoria. E daí, naquela
época o Carlton Dance Festival era uma referência muito grande, e a despeito de ter
trazido coisas importantes, sempre foi assim: os internacionais com os brasileiros na
rabeira, então, quando eu fiz o Confort, eu queria que fosse um evento daqueles com
padrão internacional, mas com os brasileiros. Durou uns 2 ou 3 anos, porque depois
muda o cheiro do sabão lá, e muda tudo. Então, é sempre essa coisa da interrupção, da
instabilidade, que todos nós vivemos na nossa área. E quando eu fiz o Conectedance,
eu fui percebendo a importância do meio digital, e eu assim como outros, sempre
180
tivemos aquele sonho de ter uma Revista para a Dança, mas sempre esbarrava em
como viabilizar isso, porque a impressão é cara, distribuição é complicada, e a internet
resolveu isso. Eu acho bacana. Eu acho que a gente ainda está em um momento de
muita transformação, revolução, nós todos vamos nos adequando, mas ainda tem
muita coisa que a gente nem tem noção, do quanto isso vai interferindo e vai trazendo
mudanças. Então, a internet permitiu fazer uma publicação, como eu disse, que queria
fazer uma revista Bravo para a dança, não era qualquer coisa, e agora eu morro de
desgosto porque eu não consigo manter isso. Então, eu estruturei ali com várias
editorias, várias maneiras de você abordar a dança, desde os novos até os outros, uma
coisa mais reflexiva, ensaios, pontos de vista e outros assim perfil de novos criadores,
tem lá um fique de olho... Mas eu não consigo dar conta porque é uma quantidade, a
internet também é uma máquina devoradora de informações, você tem que ter uma
estrutura que, eu tive a sorte, assim, de ter um patrocínio para lançar, mas durou 6
meses, e eu, ingênua, achei que imediatamente teria outro, o povo da dança estava
gostando, mas aí eu caí na experiência do que é você ir atrás do patrocínio, de
conseguir uma verba... Eu inscrevi na Lei Rouanet, quando terminou esse patrocínio de
6 meses, eu já tinha inscrito na Rouanet e pensei que seria imediato, imagina, olha a
santa ingenuidade. Até hoje eu não consegui, invalidou lá a lei porque eu não consegui
o patrocínio. O que eu percebo, assim, com relação à sustentabilidade é ser como os
demais veículos, você veicular publicidade, porque você vai à uma empresa, não existe
mentalidade ainda para patrocinar esse tipo de ‘produto’ cultural, vamos chamar
assim, eles querem coisa mais evidente, um espetáculo que pode dar repercussão mais
imediata, jamais vão investir em um veículo que está em processo de
desenvolvimento. Que é de informação. E eu fui me deparando com todas essas
dificuldades, e toda vez que eu contatava uma empresa, e por ser um veículo, eles
mandam para o departamento de mídia, que é outro inferno, é um critério assim para
nós até agressivo, eu tenho a maior dificuldade de falar com essas pessoas, porque
você pode explicar a importância do veículo, a importância de existir isso para a dança,
de você fomentar informações, e isso é assim para eles zero, eles querem saber de
números, audiência, e você pode até apresentar o número de audiência que para a
dança é expressivo, para eles, isso não significa nada. Então, foi assim uma coisa de
bater de porta em porta, isso que você fala assim de não conseguir... Inúmeras vezes, e
181
pior ainda, porque assim você ainda tem uma interlocução (refere-se ao Fomento à
Dança), você vai falar com uns caras, uns executivos de marketing, são umas toupeiras,
os caras não entendem nada, você se fazer entender por eles é muito difícil”.
Em que ano surge o Conectedance?
“Em 2009, olha o tanto, 6 anos... E você veja, em 6 anos eu me sinto ainda
patinando, chegou momento que eu me senti um Dom Quixote, eu preciso acabar com
isso, não está chegando onde eu pretendia, mas ao mesmo tempo, tem um retorno
que eu acho que alimenta, eu percebo que é possível, eu não posso deixar a peteca
cair, e eu tenho que cavar oportunidades. Agora, eu gasto tempo e energia correndo
atrás de possibilidades, terrível, então, aquilo não anda como eu gostaria, as coisas
ficam empacadas, sabe... E obviamente, a gente vai percebendo o poder da linguagem
audiovisual na internet e eu falei, eu tenho que ter uma coisa audiovisual nisto aqui, e
desenvolvi lá o projeto Conectedance Vídeos, e na cabeça do povo já vieram com
aquela história de que ah, é muito longo, 15 minutos, 10 minutos, que já não é nada
para mim, mas eu acho que é uma coisa que eu curto que é assim, é possível fazer uma
síntese ali, você tem um pensamento, proporciona a compreensão de alguma forma,
tem me deixado satisfeita, apesar do trabalho que me dá. E eu sou exigente comigo
mesma, com algumas coisas, assim, tem que ter legenda, não parece mas aquilo dá um
trabalho danado, você tem que pegar toda aquela conversa, e às vezes o artista vai
para uma dimensão interplanetária que não é tão simples traduzir, por exemplo, e
fazer as legendas... Em inglês para os brasileiros, porque eu quero que seja canal para
um programador estrangeiro, um curador de teatro estrangeiro, alguém que tenha o
potencial de convidar os brasileiros, sempre muito idealista, porque nada é imediato,
mas é pensando ali no que pode resultar. Então, todos os brasileiros tem legenda em
inglês e, obviamente, os estrangeiros tem legenda em português. E eu acho que a
despeito da, não é simples é difícil, eu acho que já tem um acervo interessante, porque
tem os novos criadores da dança contemporânea brasileira, não tenho verba para
viajar, então, de certa forma é o que acontece em São Paulo, mas São Paulo é um
centro. Então, o que aparece assim de estrangeiros importantes, eu faço... Tem alguns
que eu considero histórico, teve uma entrevista que eu acho que foi muito feliz com a
Márika e com o Décio, que eles falam ali da trajetória deles, e eu acho que ficou muito
182
legal, um registro importante, que eu fico pensando, e aí que está, não é o caminho
mais fácil, porque eu já falei com pessoas que falam: ah, a coisa da audiência, se você
fizer algo apelativo, que pode ser digerido rapidamente, aquilo vai te dar uma
audiência maior, mas não, eu tenho que fazer algo que tenha uma consistência, que
possa representar algo para o futuro, que possa servir como fonte de pesquisa, de
tudo, consulta. Então, é sempre pelo caminho mais difícil. E tem algumas coisas como
eu disse, felizes, que dão esse registro histórico, por exemplo, veio a companhia da
Trisha Brown para cá, super importante, e ela nem veio porque está doente, mas veio
a braço direito dela, assistente e ex-bailarina, que trabalhou com ela por décadas, e foi
uma entrevista generosa, maravilhosa, rendeu tanto que eu falei: não posso cortar
isso! Fiz dois vídeos, para ter esse registro. Outro bacana desses internacionais
digamos assim, foi o da Lisa Nelson, que traz toda essa história da improvisação,
parceira do Steve Paxton, e foi também super legal, deu para fazer dois vídeos. Eu
mantive contato com ela e ela me mandou imagens históricas da década de 1960, em
que ela se apresentava em Nova York, com Steve Paxton, naquele momento de
eclosão do pós-modernismo, e foi bárbaro. E eu percebo também que a dança, essa
nossa dança, ela não é simples em nenhum lugar, ela não está dentro da indústria
cultural, dessa coisa de massa, então, é sempre, dentro das devidas realidades e
proporções, não é área que está gerando dinheiro, tem as suas especificidades. E eu
percebo que esses vídeos, e ele sendo assim bem feitos, essas pessoas de fora também
gostam, curtem, para eles também é importante... Eu estou dando essa referência,
mas a proposta é essa. Agora, por exemplo, eu fui aprovada no edital do Boticário do
ano passado, e eles fizeram cortes homéricos, porque ali também ninguém entende
nada, é um critério assim também muito comercial mesmo... Eles ligam o marketing à
dança, sabe, isso que o Juca Ferreira está discutindo é pertinente, os caras usam
dinheiro de imposto para patrocinar, nem é dinheiro direto deles, e daí eles são os
apresentadores, os realizadores, e ainda querem vincular aquilo ao marketing. Não é
brincadeira. Então, no ano passado eu ganhei lá a verba do edital e, provavelmente,
não vou ganhar esse ano, por isso eu digo, eu enfrento tudo isso que vocês enfrentam,
ou até pior... E no ano passado eles deram só 30% da verba, que nas Leis de Incentivo,
não sei se você já trabalhou com elas, na Rouanet você tem que ter 20% da verba
aprovada para poder movimentar o dinheiro, se não fica bloqueado. E a Estadual, que
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é a que se usa no Boticário, 35%, então, eles deram o 35% justo. Então, se no primeiro
ano eu fiz 26 vídeos, agora eu vou poder fazer, sei lá, meia dúzia, sabe... E para mim
desvirtua, tira uma certa integridade porque a proposta é fazer os históricos, os novos,
brasileiros, estrangeiros importantes... Ter esse rol de referências, mas enquanto o
Conectedance tem essa instabilidade, às vezes eu sinto que está meio parado uma
coisa lá, pelo menos os vídeos tem saído. E eu acho que é importante esse conteúdo
lá. Agora, eu acho que eu lido com as minhas próprias dificuldades dentro dessa
realidade que a gente vive por isso, eu penso que tem pessoas lá que fazem um
negócio mais, digamos assim, consumível rapidamente, seria até mais fácil, mas não.
Então, fica mais difícil mesmo”.
Você acredita mesmo neste potencial das redes como alternativa da falta de
espaço no jornalismo tradicional?
“Eu acredito, mas como um complemento. Não pode ser só isso, porque, eu
também, na medida em que eu entrei no Facebook, e eu nem sou tão interativa lá, eu
uso mais para divulgar trabalhos, eu vejo que realmente foi um canal que surgiu para
divulgação que o povo da dança não tinha. É interessante, é poderoso o poder de
divulgação, tudo o que é empresa usa o Facebook para divulgar, mas eu acho que não
pode ser único, é isso, é um complemento, faz parte de um conjunto. Porque, ao
mesmo tempo, é superficial, é descartável, ele não fixa, tem essa coisa do consumo, da
novidade a todo o momento, então, eu acho que é uma ferramenta importante, mas
ele tem que estar agregado a outras coisas, e eu acho que é esse equilíbrio que a gente
tem que buscar em diversos canais. É isso, eu tenho consciência dos limites que eu
tenho dentro dessa publicação, como eu disse, tem horas que a gente desanima e fala
que vai desistir, mas outras coisas ali seguram e alimentam. Eu percebo que hoje tem
algumas outras publicações, eu diria até que são todas complementares, porque cada
uma tem o seu perfil, a sua proposta editorial, então, eu acho interessante ter isso, eu
acho que é isso mesmo, são complementares”.
Você trabalha com quantas pessoas?
“Varia, porque quando eu tive esse patrocínio, como a gente é romântico né, e
tenta colocar uma coisa em prática com estrutura, uma equipe, eu já tentei isso várias
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vezes, mas eu não aceito essa coisa como outros fazem de ter trabalho gratuito, e é
até muito usado isso, e às vezes até tem gente que quer escrever porque tem interesse
de ter texto publicado, então, quando é uma situação que realmente não tem como
pagar e a pessoa está afim, eu falo olha, fazemos essa troca, mas eu fico sempre
focada em ter uma estrutura mínima, porque também pensei como um canal plural,
que tenha ali todas as opiniões, digamos assim... Eu acho que a primeira edição foi
bárbara, porque mostrou esses compartimentos todos, eu convidei pessoas... Então,
tinha várias coisas, eu tento segurar, mas quando eu lancei, eu fiz sozinha
praticamente. Só chamei uma menina para ajudar para fazer o quem é quem da dança
contemporânea, e que agora precisa de um monte de atualizações, e o mapa, de
alguma forma, vai um pouco por aí, mas vamos aos poucos... Eu chamei uma menina
para me ajudar, mas eu fiquei quase louca, e até se houvesse ali o link de internet do
grupo ou coisa assim, quando ela me mandou aquilo, uma zona, tinha link de balada,
sabe, eu tive que refazer tudo. E já entrou com mais de 100, então, eu acho bárbaro,
se você tem condições, eu acho que nós todos que trabalhamos com dança, a gente só
fica porque nós somos loucos apaixonados, porque se a gente tivesse uma cabeça mais
pragmática, às vezes eu converso com pessoas que são muito ligadas a dar certo
financeiramente na vida, eu falo gente, acho que estou fora... Mas é também um
alimento que a gente tem e que outras pessoas sentem falta. Então, eu estou sempre
focada em conseguir e fico sempre mal porque não consigo tudo neste
desenvolvimento. Você falou de equipe né... Mas depende, às vezes não é tão simples
você ter pessoas, porque eu venho daquela coisa de ter um fechamento bacana, bem
escrito, bem fechado, um bom título, e não parece, mas é muito trabalhoso. A
programação que eu tento manter em dia, aquilo dá um trabalho para fazer, porque
você tem que baixar foto, às vezes não dá certo, tem que trocar, quando chega um
release bem feito como o da Elaine (assessora de imprensa que estava presente nesta
entrevista), ótimo, mas às vezes chega um que não tem nada, e você tem que ir atrás,
sabe... E lá no wordpress, não sei se vocês conhecem, onde alimenta ali, pelo menos a
minha estrutura lá, eu tive que ter aulas para isso, os programadores às vezes tem que
entrar no meio porque não deu certo, tem que refazer, rever, e eu com pressa, e aí
não dá tempo, é um horror. Mas ali, você tem colocar e eu queria fazer um serviço
bacana, sabe, tem um mapinha lá se você clicar, vai dizer onde é, por isso eu torço
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sempre para me mandarem as informações completas. Então, tem um segmento para
cada coisa, você tem que inserir a data, o não sei o que, é São Paulo, não é, baixa foto,
põe a legenda, não sei o que, pesquisa aqui, não é simples... Então, tem hora que eu
enlouqueço, porque não é fácil fazer tudo isso, sabe, e eu falo, eu me proponho a ser
uma publicação completa, mas com uma estrutura micro”. – Sem toda a estrutura e
equipe de uma empresa de comunicação. “Mas eu acho que a proposta é essa, você
difundir a informação, e eu mesma sei que uma informação consistente, ela te
desperta, ela te leva, te conduz a você, usando positivamente o termo, a consumir
cultura, você descobrir, ter aberturas para a arte contemporânea, tudo isso. Então, é
acreditando nisso que a gente se dispõe a fazer”.
De que outras maneiras você vê que o Conectedance se diferencia dos outros
veículos midiáticos, por exemplo, dos portais dos jornais na internet?
“Por exemplo a página do Uol? Veja só, aquilo é uma baita estrutura que
também foi mudando com o tempo. Tinha a redação da Ilustrada impressa, a redação
da Folha impressa, que ficava à parte do Uol, hoje, está tudo misturado. Quando eles
misturaram, foi outra mudança, porque os caras passaram a ter que alimentar esses
vários canais, eu acho que interferiu também, e eu acho que isso tudo está em
questão, as grandes empresas estão tentando resolver. Agora imagina a gente, micro,
se eles têm dificuldades, porque eu acho que interferiu na própria edição do assunto,
porque se antes você tinha a oportunidade de se aprofundar um pouco mais sobre um
assunto, na internet, você já tem que ... ‘estalar dos dedos’... é tudo meio igual. E por
isso que eu acho que os impressos estão afundando, porque a internet se antecipa na
informação em si, e os impressos que tinham a função de aprofundar, não estão
aprofundando, a tal reportagem, que eu acho o máximo, não tem mais”. – Fomos
interrompidos pelo alarme de incêndio da Galeria Olido. Trocamos de espaço, e
continuamos.
Sobre a possível diminuição de público para a dança:
“Isso eu acho que também deveria ter sido discutido naquele encontro
(novamente se referindo à Mesa da IX Mostra de Fomento à Dança), porque a minha
intenção era essa, foi diminuindo na mídia e, obviamente, isso deixa de alcançar um
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público e o que interfere? Mas enfim não deu... Mas eu vejo o seguinte: quando
começou essa coisa assim estimulante na redação, era bárbaro, porque a gente tinha
reuniões de pauta, como eu te falei, que reunia todo mundo da editoria, então tinha o
cara que trazia as coisas de literatura, de teatro, de cinema, e eu levava a dança, era
bacana, todos discutiam, todos ficavam ali interessados e animados. E tinha uma
época menos maluca como agora que a gente tinha essa oportunidade, de sair da
redação e ir para os teatros. Eu via absolutamente tudo, desde os mestres do jazz até...
Tudo, tudo. Agora, os coitados ficam nas redações 24 horas, ganhando quase nada e
ainda não veem nada, e é tudo por telefone, ou pelo que recebe da assessoria. A
percepção que eu tenho, teve um momento, que teve um público interessado em
dança, eu vejo até, uma certa inteligência mesmo, sabe, vejo os colegas, tem caras que
tem um padrão cultural, se interessam por cultura, mas com o tempo eu fui vendo
perder o interesse pela dança. E eu não sei como, fico querendo discutir com o
pessoal, e acho que de alguma forma se discute, mas eu acho que ficou muito
introjetado sim, e eu acho que, óbvio, o primeiro momento o grande apelo é de uma
companhia muito conhecida, vem o Baryshnikov para cá e todo mundo quer ver, e
paga qualquer coisa, mas a proposta é que o hábito cultural esteja presente no dia-a-
dia das pessoas. Eu já fui para eventos no interior da França, onde eles cultivam isso.
Agora, eu acho que é toda uma situação brasileira, é descontinuidade, você não sabe
se no ano que vem você vai continuar fazendo, entendeu, então, não se cultiva. Uma
época eu ia muito para o Festival de Montpellier, que é uma cidade desse tamanhinho
assim, mas tem lá os Festivais , então tem vida cultural desde as salas das
universidades, até no teatro antigo, no teatro super moderno, na sala não sei de onde,
você vivencia aquilo. Esses Festivais, assim como Avignon, ocorre na época de férias
deles que é verão, no meio do ano, e lá tem esse hábito, eles vão para o interior, levam
os filhos para terem contato. Eu, por exemplo, via discussões, acontecia uma discussão
no museu, ali de Montpellier, de arte contemporânea, até a Trisha Brown fez uma vez
uma apresentação lá, e eu acho que ela fez aqui também, e à tarde tinham as
discussões que eles reuniam jornalistas e críticos do mundo inteiro, o mundo inteiro ia
para lá, porque veja só, tinha algo ali que interessava a todo mundo, sabe, vinha gente
de Israel, porque ia a programadora lá do Festival, se alimenta, convida, não sei o que,
e esse trâmite que não é possível ainda desenvolver aqui com regularidade. Eu acho
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que essa falta de regularidade é um grande problema para nós. E à tarde tinham essas
discussões, eu estou citando lá do museu, iam os críticos internacionais, os jornalistas
todos, os criadores, e assim, aquele cidadão comum que vai lá e não se sente
intimidado de falar o que ele achou do espetáculo. E é um pouco mais elaborado,
porque ele tem isso no seu dia-a-dia, ele pode não entender nada de dança, mas está
inserido na vida dele. Então, hoje, depois dessa vivência toda, é o que eu defendo:
educação, tem que estar pensada junto, no Brasil é tudo assim, tudo jogado, educação
e cultura, aqui é tudo muito imediatista, são projetos personalistas, que você faz e o
cara sai da função, do mandato, o outro que vem, destrói tudo para botar o dele, sabe,
não! Ali, as coisas duram. O Festival de Avignon tem mais de 50 anos, acontece todo
ano, então, nós todos sabemos, se você tem a chance, disso que o Fomento trouxe de
2 anos, é um avanço, mas ele é muito pouco, sabe, você teria que ter uma perspectiva
de pelo menos 5 anos para frente. Porque é assim que você desenvolve e ganha estofo
para ter uma sustentabilidade. De tudo, seja do seu projeto criativo, do seu grupo, da
minha publicação, então, tudo isso vai criando uma rede, e olha que assim, essas crises
atingiram esses centros mais estruturados, mas mesmo assim é diferente e é isso que
eu digo, as pessoas tem que estar com a cultura no seu dia-a-dia. E eu ainda digo que
no Brasil nós tivemos essa coisa que, grande parte da população foi educada, entre
aspas, pela Rede Globo. Fazia lá, sabe, o Dança em Pauta no Centro Cultural Banco do
Brasil, que legal, vai um público que nunca viu dança, e eu lembro que uma vez eu
programei o Diogo Granato que tem uma pegada mais pop, ótimo, e daí vai aquele
povo que nunca viu dança e eu também acho ótimo, e daí está todo mundo assim...
Auditório... Então, isso tudo é educação, e eu acho que se a gente tivesse uma coisa de
educação mais evoluída, se a criança está tendo acesso a uma informação, a uma
formação mesmo desde criança, ela pode nem gostar de arte contemporânea quando
adulta, mas não será estranho para ela, ela vai ver e não vai achar um bicho de 7
cabeças, nem vai se sentir intimidada. Então, eu digo que nós todos somos
missionários, quixotes, porque se eu tenho, assim, eu seguro essa publicação que me
dá mais trabalho e dor de cabeça do que outra coisa, questionamentos mil, que eu não
consigo chegar aonde idealizei, é porque a gente fica assim, nós fazemos os nossos
trabalhos, individuais, enquanto isso deveria ser um projeto político de cultura. Então,
eu acho muito importante o que acontece na cidade de São Paulo, essa oportunidade
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de diálogo, de reuniões, embora tenha todas as discussões e discordâncias, uns ficam
ainda menos ou mais, mas criou-se uma perspectiva nesta cidade que antes não havia.
Hoje eu estava lembrando... Eu sou mais velha, e eu lembro de uma época em que
havia as bolsas Vitae e eu era chamada lá nas comissões, e que era o que, teve um
empresário sensível, bibliófago, um mecenas que criou essa fundação para dar bolsas,
chamava de bolsas, uma verba ali para a pessoa desenvolver. E realmente, até a
maneira de apresentar, gente importante mandava, às vezes, manuscrito com uma
florzinha desenhada... Então, sabe, evoluiu muito, mas ainda é muito pouco... E em
uma cidade tão consumista como a de hoje, a pessoa se dispor a dedicar a dança, que
não te dá dinheiro, não te dá um monte de coisa, eu acho demais. Agora, eu acho que
essas discussões todas são importantes, e o Fomento, de alguma forma, a gente
percebe que levou um tempo, ele foi trazendo mudanças importantes, porque desde
que eu acompanho, teve todo aquele escopo, mas ele foi abrindo para grupos que
estava mais à margem, e se agora tem essa discussão discutível, problemas e tudo
mais, eu acho que tem uma certa validade. Porque eu acho que tem que estar tudo
reunido mesmo para a dança se fortalecer”.
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