figueiredo, luciano r. protestos, revoltas e fiscalidades br colonia.pdf
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5 LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995
UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
REITOR
Renato Godinho Navarro
VICE-REITOR
Dirceu do Nascimento
DIRETOR DO INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS - ICHS
Luiz Tyller Pirola
VICE-DIRETORA DO ICHS
Hebe Maria Rola Santos
CHEFE DO DEPARTAMENTO DE HISTRIA -DEHIS
Jos Arnaldo Colho de Aguiar Lima
COORDENAO DO LABORATRIO DE PESQUISA HISTRICA - LPH
Fbio Faversani - Renato Pinto Venncio - Rodrigo Patto S Motta
EXPEDIENTE Correspondncia e contribuies devem ser encaminhadas para LPH-ICHS, rua do
Seminrio, s/no, 35 420 000, Mariana, MG, tel: (031) 557 13 22.
DISTRIBUIO Editora da UFOP. Campus Universitrio, Morro do Cruzeiro, 35.400-000, Ouro
Preto, MG., tel: (031) 559 14 91.
CONSELHO EDITORIAL
Angela Castro Gomes/UFF - Carlos Guilherme Mota/USP - Ciro Flamarion Cardoso/UFF - Fbio
Faversani/UFOP - Jos Antnio Dabdab Trabulsi/UFMG - Jos Arnaldo C. Aguiar Lima/UFOP -
Luclia Almeida Neves/UFMG - Marco Aurlio Santana/UFOP - Maria Lgia Prado/USP - Renato
Pinto Venncio/UFOP - Rodrigo Patto S Motta/UFOP
Charles Pessanha/IUPERJ (ad hoc) - Joo Pinto Furtado/UFOP (ad hoc) - Jos Carlos Reis/UFOP
(ad hoc)
REVISO Mnica G.R.Alkmin, Mnica Santos de Souza, Rivnia Maria Trota, Clsio Roberto
Gonalves.
EQUIPE DE DIGITAO Alexandre G.F. Silva, Kelly Carvalho, Priscila Brando
CAPA Elias Layon
Pede-se Permuta We Demand Exchange On Demande change
LPH: REVISTA DE HISTRIA
No 5. 1995. DEP. DE HISTRIA/UFOP
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LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995 6
SUMRIO
ENTREVISTA
Entrevista com Laura de Mello e Souza ............................................ 05
ARTIGOS
Contatos culturais na Pennsula Itlica: as estatuetas de bronze
Maria Isabel DAgostino Fleming ..................................................... 13
A Busca do relato verdadeiro: a narrativa histrica de Herodiano
Ana Teresa Marques Gonalves ........................................................ 33
A Questo indgena em Minas Gerais: um balano das fontes e da bibliografia
Crisoston Terto Vilas Bas ................................................................ 42
Protestos, revoltas e fiscalidade no Brasil Colonial
Luciano Raposo de Almeida Figueiredo ............................................ 56
Minas Gerais de 1750 a 1850: bases da economia e tentativa de periodizao
Carla Maria C. AlmeiTirania e fluidez da etiqueta nas Minas setecentistas
Iris Kantor ........................................................................................ 112
Histria urbana de Mariana: primeiros estudos
Cludia Damasceno Fonseca ........................................................... 122
Uma Utopia para o passado: a Inconfidncia Mineira nas leituras das Cartas ChilenasJoaci Pereira
Furtado ............................................................................................. 138
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7 LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995
Os Anarquistas e a questo da moral (1890-1930)
Jardel Dias de Cavalcanti ................................................................. 144
O Soviete de 1905
Ivan Antnio de Almeida ................................................................. 155
Cultura poltica e imaginrio popular no segundo governo Vargas (1951-1954)
Luiz Vitor Tavares de Azevedo ....................................................... 166
COMUNICAO
Organizaciones obreras, clase obrera y vida cotidiana de los obreros: nuevos conceptos en la
historiografia de los movimientos obreros en Europa
Henrike Fesefeldt ............................................................................. 184
RESENHA
Bizire, J-M & SOL, J. Dictionnaire des biographies. La France moderne.
Marcos Antnio Lopes ..................................................................... 198
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LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995 8
Este nmero dedicado memria do Prof. Luiz Vitor Tavares de Azevedo, falecido em janeiro de
1995. A ttulo de homenagem, publicamos um de seus ltimos trabalhos.
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9 LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995
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LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995 10
ENTREVISTA
Entrevista com Laura de Mello e Souza
Entrevista realizada, em agosto de 1995, pelos Profs. Luiz Carlos Villalta,
Renato Pinto Venncio e Fbio Faversani
Depto. de Histria - UFOP
1. Na sua trajetria intelectual, quais foram os historiadores mais importantes? Qual a
contribuio particular voc atribui a cada um deles do ponto de vista terico e do ponto de vista
temtico?
Sofri influncias variadas no decorrer de minha trajetria profissional. A maior delas foi a de
Fernando A. Novais, porque no diz respeito apenas sua obra - Portugal e Brasil na Crise do
Antigo Sistema Colonial - mas ao convvio intenso que venho mantendo com ele desde 1972,
quando fui sua aluna pela primeira vez, tanto no curso terico como na turma de seminrio, durante
um ano inteiro. Nos seminrios, as leituras eram variadas, os alunos no mais do que 25, e
aprendamos a ler, fichar e comentar textos de autores. O que me fascinava era um certo ecletismo de
sua parte, apesar da ntida e sabida predominncia do marxismo na sua formao. Foi nesses
seminrios que li Foucault pela primeira vez (A Histria da Loucura), tornando-me obsedada por
suas idias durante alguns anos, e Robert Mandrou, minha porta de entrada para a histria das
mentalidades; isto sem falar de clssicos da histria da cultura, como Paul Hazard, e clssicos da
sociologia, como Max Weber, Ferdinand Toennies e Celestin Bougl. Devo minha formao
intelectual a Fernando Novais, sobretudo na recusa a rtulos: no fao s histria social, nem s
histria da cultura, nem s histria das mentalidades, talvez por perseguir o horizonte que ele nos
abriu, e que vastssimo.
Daquela poca data a primeira grande influncia temtica que sofri; a da abordagem dos
desclassificados sociais sugerida por Caio Prado Jr. em Formao do Brasil Contemporneo. Digo
temtica porque, do ponto de vista terico propriamente dito, fui influenciada mais pela leitura que
Fernando Novais fez do sentido da colonizao de Caio Prado Jr. do que pela abordagem deste
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11 LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995
ltimo, que apesar de brilhante e fundamental - sobretudo levando-se em conta a poca em que foi
escrita -, parece-me, em geral, pouco nuanada. Logo em seguida, li toda a obra de Gilberto Freyre,
aproveitando mais uma vez a variedade temtica que oferecia e, sobretudo, sofrendo profunda
influncia da forma como escrevia. Ainda no perodo de graduao, destaco a influncia do
antroplogo Oscar Lewis e seus vrios livros sobre cultura da pobreza, que li todos, e dos quais
gostei muito.
Na poca em que realizei meus cursos de ps-graduao, li boa parte da obra de Antnio
Gramsci - creio alis que li quase tudo: Os Intelectuais..., Maquiavel..., os Cadernos do Crcere, A
Questo Meridional (que eu simplesmente adorava). Li tambm partes do Capital e os Gundrisse,
mas no entendia quase nada destes, e daquele s pesquei alguma coisa mesmo do volume 1.
Portanto, tive influncia marxista nesta poca, mas sobretudo por meio de Gramsci, que at hoje o
meu preferido. Dentre os autores nacionais, destaco o Circuito Fechado, do grande mestre Florestan
Fernandes, alguns captulos de O Modelo Poltico Brasileiro, de Fernando Henrique, e, mais do que
todos, Homens Livres na Ordem Escravocrata, de Maria Slvia de Carvalho Franco. Este foi meu
livro de cabeceira durante anos, e at hoje o considero uma obra prima.
At agora, quase no falei de historiadores, mas sobretudo de cientistas sociais. Comecei a
me deixar influenciar pelos historiadores propriamente ditos na dcada de 80, e creio que isto tem a
ver com as caractersticas dos estudos de humanidades no Brasil da ditadura, e com a necessidade de
engajamento poltico que nos obsedava. Nos anos 80, acho que posso resumir minhas leituras
fundamentais a quatro autores: Jacques Le Goff (Para um Novo conceito de Idade Mdia e O
Nascimento do Purgatrio foram dois marcos), Marc Bloch (Os Reis Taumaturgos, a obra prima do
sculo, talvez), Srgio Buarque de Hollanda (tudo, absolutamente tudo, como continua sendo at
hoje, mas com a predominncia de Viso do Paraso e Caminhos e Fronteiras) e Carlo Ginzburg
(sobretudo O Queijo e os Vermes e Mitos-Emblemas-Sinais, mas vale igualmente todo o resto,
sempre excelente). Foi quando dei uma guinada para a histria da Cultura (e no das mentalidades,
da qual sempre gostei muito, mas que me influenciou menos, pois a acho menos problemtica no
bom sentido).
Nos ltimos anos, tenho lido com enorme considerao os livros de Braudel, sobretudo
Civilisation Matrielle, conomie et Capitalisme e tenho gostado muito da historiografia britnica,
como Thompson (que na verdade redescoberta pela primeira vez em 1973, mas sem entender
direito o fundamental) e Trevor-Roper, que um autor fora de moda, conservador demais mas
brilhantssimo e, sobretudo paradoxal - o que me agrada muito. Por fim, tenho me valido muito dos
historiadores italianos mais antigos, que so notveis: Eugnio
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LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995 12
Garin, Federico Chabod, Dlio Cantimori. Fico assim entre uma histria social e uma histria da
cultura. Metodologicamente, creio que o que mais me fascina, hoje, so os trabalhos e as
consideraes da micro-histria italiana neste sentido. Gosto muito de histria da arte, tal como
feita pelos estudiosos ligados ao Instituto Warburg de Londres - Gombrich, sobretudo, e Panofsky;
mas no sou especialista neste assunto, s curiosa.
2. Durante os ltimos quinze anos, a historiografia relativa ao Brasil Colnia viveu um momento de
profunda transformao. No seu entender, quais so os futuros campos de pesquisa em relao ao
Brasil Colonial?
Creio que muito ainda est por fazer, porque por muito tempo a repblica e o imprio foram
mais estudados do que a colnia, em parte devido maior dificuldade oferecida pela leitura e
manuseio da documentao colonial. Acho que a pesquisa daqui em diante deve ser conduzida de
forma mais rigorosa, procurando inclusive preservar e divulgar acervos documentais que, com nosso
clima e nossos polticos, podem desaparecer rapidamente. Sou a favor da publicao de documentos,
da elaborao de edies crticas e, mais do que da realizao de trabalhos imaginosos ou
preocupados com modismos, daqueles que se voltem para a reflexo de questes importantssimas
ainda no esclarecidas: funcionamento da administrao; enraizamento local das oligarquias; origem
das fortunas; controle social; natureza do protesto, etc. Nem sei se sou capaz de fazer este tipo de
trabalho, pois sou impaciente demais, mas os considero importantssimos. Trabalhos como estes
sobre a Fazenda Resgate - que no li ainda mas, pelo que soube, fundamental, apesar de irregular -
so muito teis. S queria esclarecer uma coisa: no sou contra trabalhos imaginosos e que sigam
modas; acho que a imaginao histrica justamente o que diferencia o grande historiador. S penso
que s vezes, entre ns, preocupamo-nos mais em fazer um trabalho l Darton ou l Chartier do
que em ascultar quais as necessidades efetivas da nossa historiografia. Na verdade, cada um deve
ajustar as escolhas feitas a seu prprio temperamento, acho fundamental voltar a discutir questes
referentes a economia colonial, mas tenho certeza de que s entrarei nessa discusso de forma
indireta dado o meu temperamento e minha vocao mais afeita s anlises da cultura e da
sociedade. De qualquer forma, tenho tais questes no meu horizonte. Acabei de escrever um artigo
sobre os quilombos em Minas, onde enfatizo as relaes entre civilizao e barbrie evidentes no
relato cotidiano de uma expedio; apesar deste ser o foco, dou bastante peso s relaes entre
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13 LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995
perseguio a quilombos e expanso da fronteira agrcola, cortejando inclusive o movimento de
perseguio e os nmeros referentes a doao de sesmarias nos governos do final do sculo.
Enfim, para fechar a questo: no podemos nos dar ao luxo, no Brasil de fazer histria com
base em historiografia, como grandes historiadores europeus o fazem: Perry Anderson, Hobsbawm,
Braudel. Temos obrigao de ir aos arquivos, trancrever documentos, edit-los, denunciar a incria
administrativa e governamental neste campo. Estamos mais de cem anos atrasados, como disse Lus
Felipe de Alencastro numa entrevista polmica h cerca de um ano: no fizemos, at hoje, as nossas
Monumenta. O historiador brasileiro em geral muito preguioso no que diz respeito frequentao
de arquivos.
3. Qual a pesquisa que voc est desenvolvendo atualmente? Qual a relao que ela ter com seus
trabalhos anteriores?
No momento estou envolvida com trs projetos diferentes. Um, coletivo, sobre a vida privada
no Brasil, para o qual devo escrever um captulo referente ao perodo colonial. Outro, que j dura
oito anos, sobre a vida cotidiana em Minas na segunda metade do sculo XVIII; ele acabou saindo
um pouco dos trilhos originais, e tanto a parte j escrita, que a primeira do livro - cerca de 200
pginas - quanto a que estou escrevendo se referem percepo do meio natural e vida nas
fronteiras da capitania. A primeira parte chama-se, provisioramente, As bordas de Minas. A
segunda parte diz respeito zona de minerao, mas sobretudo sociedade e ao poder, e se chama
Os mineiros do centro; explora a idia de que este ncleo exporta valores e padres sociais e
polticos para o resto do territrio, mas se constitui, simultaneamente, em funo dos elementos das
bordas. A terceira parte chama-se algo como Prticas desconcertantes, e explora a idia da revolta
formal e da revolta informal, que venho expondo em outros artigos desde 1989, e que tem partes j
redigidas. O todo procura repensar a questo da inconfidncia, ou melhor, da sociedade da
inconfidncia frisando o problema da tenso entre reforma e sedio. um trabalho muito
complicado e pretensioso (creio que no bom sentido), e no consigo pr um fecho na pesquisa nem
dispor do tempo necessrio para escrever. Creio que ficar enorme, o que talvez seja mau, e eu seja
obrigada a cortar partes.
O terceiro projeto sobre as revoltas e sedies do perodo colonial, e tem me entusiasmado
bastante. mais simples, quase s uma tipologia analtica, e deve ser publicado como livro mais
geral, de divulgao.
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LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995 14
4. O conceito de desclassificao social, tal qual voc utilizou em seu primeiro livro e reafirmou
em O Diabo na Terra de Santa Cruz, ainda lhe parece pertinente? Se voc fosse reescrever Os
Desclassificados do Ouro, quais seriam as mudanas de enfoque que voc privilegiaria, caso
julgasse necessrio promover uma reviso? Ao analisar a pobreza e a desclassificao social, em
Os Desclassificados do Ouro, voc concede um lugar especial minerao. Como voc avalia hoje,
luz da historiografia recente, as posies da minerao e da agricultura na economia mineira e
seus reflexos na organizao das sociedades das Gerais?
Obviamente, todo trabalho historiogrfico datado, pois tambm um pedao da histria
intelectual do pas em que foi escrito, e da pessoa que o escreveu - e, neste sentido, inserido no
prprio movimento da histria. Visto assim, Desclassificados foi um esforo considervel de pensar
uma questo social e econmica - a da pobreza e da marginalidade - em chave histrica, referida ao
mesmo tempo ao presente - os anos 70 de nossa histria, com milagre econmico, pobreza e
dependncia - e ao passado - Minas, o ouro que vai embora, a misria, etc. Portanto, um pouco da
histria regressiva cara a Marc Bloch. Foi uma tentativa de enfrentar a questo do engajamento e
da crtica ditadura, e acho que me sa bem, pois busquei uma anlise mais flexvel e aberta sem
deixar, entretanto, de tocar nas questes fundamentais que as esquerdas debatiam ento. Neste
sentido, creio que o conceito de desclassificao social se mantm, e operacional ainda hoje, indo
alm dos limites conceituais presente s vezes nas Cincias Sociais e lanando luz, de forma
satisfatria, sobre uma realidade histrica. Gosto dele, e o mantenho. Alis, acho que outros tambm
vm utilidade nele, pois bastante invocado, para minha surpresa, inclusive entre alunos.
J a questo da agricultura mais complexa. Penso hoje que talvez tenha hipertrofiado o
papel da minerao; quase no havia anlises sobre a agricultura naquela poca, e eu mesmo no as
faria, pois no estudo a economia, como j disse, nem me sinto aparelhada para tal. Por outro lado,
paira sempre a evidncia irrespondvel: com a decadncia da minerao, os mineiros debandaram e
fundaram um sem nmero de vilas e cidades nesse xodo, inclusive em So Paulo. A anlise dos
troncos familiares dos antigos paulistas mostra tal fenmeno: boa parte dos que no remontam ao
sculo XVI, remontam a este momento, ou seja, final do sculo XVIII e incio do sculo XIX,
quando os mineiros voltaram ou fugiram do marasmo econmico.
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Por fim, se a minerao conviveu o tempo todo com a agricultura, foi aquela, e no esta, que
deu o padro civilizacional das Minas, que deu o tom que a distinguiu e fez dela a pea-chave da
colnia no setecentos: a urbanizao, e no ruralismo; apreo pela cultura, e inclusive a criao de
um sistema cultural - no sentido de haver criao e consumo de bens culturais; pensamento crtico,
etc. etc. etc.. Portanto, mesmo que caiba relativizar o que disse h quinze anos atrs, acredito que a
anlise no foi ainda ultrapassada e se mantm.
Durante algum tempo, pensei reparar certas passagens dos Desclassificados..., sobretudo
aquela em que me valho muito da leitura de Wilson Cano para a economia mineira. uma anlise
muito terica e pouco emprica, muito generalizadora e, creio, pouco histrica. Mas resolvi deixar,
como testemunho da concepo dominante na poca em que escrevi, como pista que ajuda a
entender os caminhos que trilhvamos ento. A produo historiogrfica estava numa crise
considervel, e tirando um ou outro trabalho - sobre os quais pairavam, sempre olmpicos, os de
Srgio Buarque de Holanda - no era a histria quem melhor pensava o Brasil, mas as Cincias
Sociais. Foi de meados dos anos 70 em diante que as teses produzidas nos programas de ps-
graduao vieram espanar essa conjuntura.
5. Carlo Ginzburg, em suas investigaes sobre a histria cultural, utiliza os conceitos de cultura
popular, cultura erudita e circularidade. Roger Chartier recusa o estabelecimento de
dicotomias culturais, pois entende que at o sculo XVIII haveria uma cultura comum s elites e s
camadas subalternas, propondo-se a investigar como os mesmos elementos culturais foram
apropriados de modos diversos pelos diferentes grupos sociais (no apenas classes). Como voc
avalia a utilizao desses paradigmas nas investigaes sobre a cultura no Brasil Colonial?
Esta pergunta dificlima, precisaria quase escrever uma tese para respond-la. No
simpatizo muito com a teoria que est por trs das concepes de Chartier, apesar de simpatizar
muitssimo com ele, que uma pessoa muito gentil e afvel, alm de obviamente, inteligentssimo.
Chartier um homem que constri suas concepes sobre cultura em cima da experincia que tem
da anlise dos livros e da leitura: acaba numa anlise da cultura letrada, ou do seu contrrio - o que
vem a ser o mesmo, dada a identidade do referencial. Escreveu muitos artigos, mas poucos livros,
poucas anlises recortadas. Tende, no limite, a afirmar que as diferenas de classe so menores do
que a participao num universo de
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cultura, o que pode ser sugestivo mas deve sempre ser matizado, pois descamba na indistino.
Ginzburg, por sua vez, escreveu vrios estudos sobre objetos diversos: crenas populares de carter
exttico e sua transformao num perodo de cem anos; crenas populares e eruditas no vo noturno
na cavalgada do exrcito furioso, e sua analogia com outras crenas milenares; a construo das
concepes cosmognicas de um moleiro, e seu choque com as crenas e saberes eruditos da mesma
poca; a relao entre os propsitos dos comitentes das obras de arte e os de um artista especfico
(Piero della Francesa), etc, etc, etc. A experincia de Ginzburg como historiador
incomparavelmente superior de Chartier, no h como negar. Alm disso, os resultados
demonstrados a partir do manejo do conceito de circularidade atesta sua eficcia, quando bem
utilizado. Sou f de Ginzburg no tipo de anlise que faz, e o acho quase inigualvel, pois d conta de
uma gama variada de relaes e nuances.
Para a anlise da cultura na colnia, tenho certeza de que a influncia de Ginzburg mais
profcua; tanto acredito nisso que O Diabo na Terra de Santa Cruz e Inferno Atlntico dialogam
com Ginzburg, em dois momentos diversos: O Queijo e os Vermes e os Andarilhos do Bem, no
primeiro caso; Mitos-Emblemas-Sinais e Histria Noturna, no segundo. A nossa realidade cultural
to complexa e multifacetada que torna impositiva a adoo de um vis que leve em conta esse
movimento todo. Agora, bvio que Chartier se mostra muito til no tocante anlise da leitura e
dos livros; da mesma forma, alis, que Robert Darnton.
7. Em entrevista Folha de So Paulo, h tempos atrs, voc se posicionou face controvrsia
existente em torno da figura do Tiradentes. Como voc avalia hoje o papel desempenhado pelo
Alferes? Como voc avalia outra personagem controvertida de nosso passado: o governador das
Minas, Lus da Cunha Menezes?
Muita gente, inclusive amigos, criticou-me por dizer que Tiradentes era amalucado. Continuo
achando que era mesmo, basta ler os Autos para ver como agia por instinto e impulso, envolvendo os
outros sem pensar. A grande guinada veio com a priso, quando ele realmente vira um sujeito
fantstico, digno e reto como nenhum, assumindo para si a totalidade de uma culpa que, obviamente,
era tambm de outros. Tenho bastante afinidade com a leitura que Maxwell faz dos grupos, e acho
que Tiradentes, o Padre Correia e Alvarenga eram os mais estourados, dispostos a romper mesmo
com tudo. Alguns poemas de Alvarenga sugerem que ele tinha muito claro o que significava ser
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17 LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995
colnia e ser explorada: ele e Tiradentes me parecem os que percebem melhor os mecanismos da
explorao e a necessidade de neg-la. Mas so elos de uma corrente, no so gigantes isolados: um
pouco por acaso, outro tanto por mrito, deram a voz a cinquenta anos de insatisfao mais ou
menos difusa. Do ponto de vista da ruptura, e no da reforma, so, a meu ver - e temerrio afirmar
algo assim quando se tem por fonte bsica as viciadssimas Devassas - os mais significativos
elementos de 1789, apesar do Cnego, de Gonzaga e de Cludio serem muito mais cultos,
articulados e brilhantes (mais reformadores do que revolucionrios, possivelmente). Os dois
primeiros eram amalucados, enquanto os trs que acabei de citar eram ponderadssimos (apesar do
final trgico e enigmtico de Cludio, que pode sugerir desequilbrio maior do que seus escritos
fazem supor). No interessante que os amalucados enxergassem mais longe?
J quanto a Lus da Cunha Menezes, acho que no to feio quanto pintam. Corruptssimo
sem dvida, e meio boal; mas tinha um projeto que desejava executar, e que passava pela circulao
das elites locais no poder, deixando de lado - mesmo que momentaneamente - as restries
estamentais de cor e nascimento. Talvez fosse mais moderno, mais burgus do que seus antecessores
- homens muito mais encantadores do que ele, e certamente muito mais cultos, como o Conde de
Cavaleiros. Uma vez, Francisco Iglsias me disse que via o Fanfarro como uma espcie de Ademar
de Barros setecentista. Acho engraada a comparao, bem provocativa - na melhor tradio mineira,
l Feu de Carvalho. Tiradentes louco, e Fanfarro populista. Fico por aqui, pois estou comeando a
dizer coisas que caberiam melhor na boca irreverente de um Darci Ribeiro.
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ARTIGO
CONTATOS CULTURAIS NA PENNSULA ITLICA:
AS ESTATUETAS DE BRONZE.
MARIA ISABEL DAGOSTINO FLEMING
Museu de Arqueologia e Etnologia -USP
INTRODUO
Uma primeira insero da produo das estatuetas de bronze no processo histrico da Pennsula
Itlica leva imediata associao com o tipo de desenvolvimento por que passou a arte itlica. O
grande repertrio de tipos, de estilos e de formas dessas estatuetas indica que na histria da cultura
artstica da Itlia antiga, anterior ao completo domnio romano, no se pode nunca falar de um
desenvolvimento unitrio (Bianchi-Bandinelli, 1976: passim). Este o primeiro dado que resulta
evidente pela diversidade de povos que a ocuparam e a povoaram e, sobretudo, pelo diferente grau de
desenvolvimento que em um mesmo momento os diversos povos tinham atingido. Conseqentemente
distinguiram-se diversas estratificaes. H o substrato das populaes existentes na Itlia no incio da
Idade do Ferro, anterior colonizao grega, que se mantm substancialmente imutado, ainda que
tenha havido contatos externos na regio costeira desde tempos remotos (scs. XIV-XIII a.C.) atravs
de correntes de comrcio provenientes da bacia do Egeu. H, em seguida, a chegada dos colonos gregos
e a formao, nas cidades fundadas e administradas por eles, de uma arte colonial, ligada metrpole,
mas diferente da arte da Grcia. H, ainda, o reflexo desta cultura artstica grega sobre os centros
indgenas.
Para compreender melhor as condies nas quais se desenvolveu a arte itlica, devemos levar
em conta alguns caracteres da arte grega na Itlia e na Siclia. De fato, assiste-se ao progressivo
retrocesso a condies mais primitivas dos prprios artesos gregos imigrados, os colonos, em relao
a uma cultura artstica originria grega. Isso aconteceu, seja pela mistura de vrias provenincias dos
prprios colonos gregos (entre os quais no faltavam os artesos e os artistas), seja pelas exigncias
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mudadas da clientela que reagia de modo diferente daquela da metrpole, porque colocada em outro
contexto social e espiritual; ou seja, enfim, pela mistura que teve lugar com os usos e costumes das
populaes indgenas com as quais os gregos entraram em contato.
Deve-se tambm mencionar que algumas cidades da Itlia meridional e da Siclia no so o
produto da colonizao de uma nica plis grega; que nessas cidades confluam colonos de ambientes
de origem cultural diversa; que as colnias, que por sua vez derivavam de outras colnias, assumiam
obviamente um carter sempre mais remoto em relao ao da metrpole.
A autonomia colonial logo articulou-se atravs do peso cada vez maior que foram assumindo
Siracusa, na Siclia; Cuma e Tarento, na Itlia meridional. Este ltimo centro ter um papel de
liderana na arte do perodo helenstico.
O declnio da influncia direta da metrpole e conseqente abrandamento do esprito grego
determinaram o renascimento das autonomias indgenas. As populaes do interior, com efeito, sempre
submetidas civilizao costeira colonial, das quais obtinham sugestes contnuas, se encontraram,
pela fraqueza do mundo colonial, obrigadas a definir tendncias prprias com conseqentes
manifestaes originais. Essas manifestaes permaneceram substancialmente as nicas vlidas para
um notvel nmero de populaes e por um longo perodo de tempo.
, por isso, necessrio compreender a fundo o fenmeno do mundo indgena no sc. V e na
primeira metade de sc. IV. a.C.: no se trata, de fato, mais de um mundo que reagia ao colonial,
diversificando-se antagonicamente em relao a ele, mas de um mundo que chegou, para sobreviver, a
incorporar as prprias normas de civilizao.
Ao lado do mundo colonial grego, parte fundamental do desenvolvimento da arte itlica apia-
se na civilizao etrusca, que se afirmou na regio delimitada pelo Arno e o Tibre, com uma oligarquia
dominante, economicamente potente e que se manteve por sculos, sendo responsvel por uma
produo artstica de alto luxo. testemunho a documentao material de tumbas que reproduziam os
ambientes requintados dos vivos e perpetuavam o orgulho de uma casta.
Nesta circunstncia e nas possibilidades de ativssimas trocas comerciais e de trabalho dado aos
artesos gregos estabelecidos na Itlia meridional e na prpria Etrria, residem os pressupostos
histricos da arte etrusca.
Na Itlia pr-romana a arte etrusca permanece, sem dvida, a manifestao artstica mais
original e mais rica, superando em quantidade e variedade mesmo a produo artstica da Aplia, da
qual tambm, em um certo momento, a Etrria extraiu elementos estruturais e ornamentais.
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LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995 20
Com a maior afirmao do mundo indgena, a partir da metade do sc. IV a.C. se estabelece
uma certa unidade de linguagem artstica na Itlia sub-apennica. Prevaleceram nesta linguagem,
qualitativamente, as verses pulas e etruscas, estas mesmas fortemente influenciadas pelas primeiras;
mas comeavam a distinguir-se caractersticas da Campnia e do Lcio.
A partir de uma linguagem comum mdio-itlica, que estava se estabelecendo na Pennsula no
incio do sc. III a.C., teria podido formar-se e caracterizar-se uma arte relativamente unitria e de um
nvel bastante elevado. O processo foi interrompido pela guerra aniblica, depois da qual restaram
poucos documentos de uma cultura artstica que no exprime uma linguagem articulada e na qual
afloram elementos de vrias provenincias e de vrios acentos junto a resduos de aquisio do
helenstico. sobre esta base, um tanto disforme e inconsistente que, com uma nova leva de obras e de
artistas da Grcia, ir se constituindo a arte romana, que herdar dos predecessores itlicos e etruscos
concepes de estrutura e simbologia iconogrfica, mas, quanto forma, bem pouco.
A PRODUO DE ESTATUETAS DE BRONZE NO CONTEXTO ARTSTICO-
CULTURAL DA PENNSULA ITLICA
O quadro acima o referencial que situa a produo artstica e artesanal das estatuetas de
bronze na Pennsula Itlica em consonncia com as tendncias que variaram, conforme a maior ou
menor intensidade dos contatos culturais em cada perodo e regio, at o nascimento de uma unidade
mais definida, prenunciando a arte romana.
Assim, uma possvel diviso cronolgica so os perodos que tiveram seu incio marcado por
profundas modificaes nas sociedades envolvidas na produo e consumo desses objetos desde o final
da Idade do Bronze:
1. A Idade do Ferro (scs. XII-VIII a.C.)
2. A fase orientalizante e a colonizao grega (scs. VIII-V a.C.)
3.O final do perodo clssico e o perodo helenstico (scs. IV-I a.C.)
1. A Idade do Ferro (scs. XII-VIII a.C.).
Na regio dos Apeninos, no final da Idade do Bronze (sc. XIII a.C.), teve lugar uma cultura a
que se convencionou chamar de civilizao apennica, a qual se desenvolveu mais na Itlia
meridional e se difundiu do sul para o norte. Das suas manifestaes diferenciou-se mais tarde um
aspecto sub-apennico, em que se deve reconhecer uma fase distinta (scs. XII-XI a.C.) que
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21 LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995
representou um vasto fenmeno de unificao cultural. A esta segunda fase se usa estender o nome,
tambm convencional, de civilizao vilanoviana. Observada primeiramente na rea centro-
setentrional (a mesma rea na qual mais tarde se desenvolver a civilizao etrusca) a civilizao
vilanoviana foi mais tarde reconhecida como extensa e particularmente florescente na Itlia
meridional entre a Campnia e a Lucnia. Esta civilizao aparece como expresso, com variantes
locais, de um tipo de cultura comum a populaes diversas. Com a civilizao vilanoviana da Idade do
Ferro se forma efetivamente uma cultura unitria, ainda que com particularidades e atrasos locais, que,
segundo Bianchi-Bandinelli (1976: 24), no tem nenhuma implicao tnica nem poltica.
Nas manifestaes da arte figurativa vilanoviana, praticamente no houve espao para
estatuetas de bronze como elementos isolados. Elas estavam geralmente associadas a vasilhas de vrios
tipos, predominantemente com funes cerimoniais (urnas cinerrias, ossurios, vasos em forma de
animais). Em grupos que representavam cenas do cotidiano, atividades de trabalho, batalhas, jogos ou
cultos, essas figuras traziam as caractersticas formais de um certo primitivismo, tanto nos detalhes
fisionmicos como na prpria anatomia. O corpo cilndrico, a cabea apenas destacada de um longo
pescoo, olhos salientes, cercados por um sulco, grande nariz triangular proeminente, as extremidades,
mos e ps, simplesmente esboados com sulcos (Fig. 1).
Essas figurinhas esto em consonncia com os exemplares da terracota aplicadas em vasos de
impasto, que evoluram de estatuetas isoladas, as quais, num momento histrico posterior Idade do
Ferro inicial, com a afirmao da colonizao grega nas costas meridionais e sicilianas, e o rpido
florescimento da cultura proto-etrusca no mdio Tirreno, tiveram um vasto desenvolvimento e uma
difuso bem maior. Essa produo de terracotas foi perdendo o significado original,
predominantemente funerrio para transformar-se em aplicaes decorativas, ou em ex-votos
oferecidos em santurios.
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Fig. 1 - nfora em lmina de bronze com figurinhas, sc. VIII a.C. Bizencio (Lago de Bolsena),
necrpole Olmo Bello. Roma, Museu de Villa Giulia. R. Bianchi-Bandinelli, Etruschi e Italichi Prima
del Dominio di Roma. Milo, 1976, no 46.
Entre os centros de produo das figurinhas de bronze, a preponderncia deve ser atribuda
Campnia, de onde provm inmeros bronzes decorados com carregadores de vasos, guerreiros,
msicos, minotauros, macacos, cervos, gansos etc.. Segundo o local dos achados arqueolgicos, resulta
que esses objetos foram exportados para a Lucnia e a Daunia. Essa posio de liderana da Campnia
confirmada pela presena dos primeiros exemplos de uma escultura em pedra. So estatuetas votivas
de pequenas dimenses que repetem tipos inalterados e frmulas prprias da plstica reduzida.
2. A fase orientalizante e a colonizao grega (scs. VIII-V a.C.).
A ltima fase vilanoviana confirma-se coincidente com a civilizao orientalizante, que
devemos reconhecer como plenamente etrusca. A Campnia meridional, que apresentou um grande
desenvolvimento vilanoviano, rapidamente evolui, como faro outros centros etruscos, para o
orientalizante. Tem-se, portanto, a confirmao de dois fatos de grande importncia cultural: o primeiro
consiste numa
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23 LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995
continuidade entre o perodo vilanoviano e o orientalizante, com uma interpenetrao espontnea; o
segundo evidencia que ao fundo espontneo primitivo da cultura itlica vem sobrepor-se um
patrimnio de formas mais cultas, fruto de elaborao secular em ambientes particularmente sensveis
elegncia e correo da forma naturalstica. O substrato primitivo reaparece sempre que falta o
suporte da forma culta de derivao grega (Bianchi-Bandinelli, 1976: 45).
Fig. 2 - Fragmento de ala de encoa de tipo rdio. Itlia oriental, sc. VI a.C. Paris, Biblioteca
Nacional. A - M. Adam, Bronzes Etrusques et Italiques. Paris, 1984, no 20.
O perodo entre a metade do sc. VIII a.C. e o incio do sc. V a.C. representa o momento da
formao e da articulao de uma civilizao colonial de um lado e, de outro, o da aquisio de
motivos coloniais por parte das populaes indgenas e a criao de manifestaes, mesmo que
espordicas, de uma arte local (Adam, 1980: passim) (Figs. 2 e 3).
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LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995 24
Fig. 3 - Arqueiro a cavalo, ornamento de urna cinerrio (lebes). Cpua, sc. V a.C. Paris, Biblioteca
Nacional. A.-M. Adams, Bronzes Campaniens du Ve Sicle Avant J.-C. au Cabinet des Mdailles. In:
MEFRA. 92 - 1980 - 2. No 892, fig. 1.
As estatuetas de bronze, a partir do perodo orientalizante, sobretudo dos centros etruscos
(Vulci, Chuisi, Veio, Cerveteri, Caere) e das colnias gregas da Siclia e Itlia meridional (Piceno,
Campnia principalmente) tiveram um grande impulso. Elas podem ser divididas em duas categorias:
a) figuras isoladas ou componentes de vasos e outros objetos do mobilirio, como trips e candelabros
predominantemente - muitas dessas estatuetas so de um nvel tcnico e artstico elaborado e as
personagens representadas continuam a tradio iniciada no perodo vilanoviano em que eram
retratadas cenas do cotidiano, religiosas, cultuais, de jogos, batalhas etc. (Figs. 4 e 5); b) a segunda
categoria a de ex-votos, em geral figuras com acabamento mais simples e, em sua quase totalidade
representando divindades do panteo grego: Hracles, Ares, Zeus, Hermes, Atena, Apolo, so as
principais (Figs. 6 e 7).
Alm da grande difuso na Pennsula Itlica, a partir do final do sc. VI - sc. V a.C., os ex-
votos tiveram grande penetrao ao norte, principalmente na Glia (Boucher, 1976:21 e ss.).
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Fig. 4 - Figura masculina. Base de incensrio (thymiaterion). Etrria meridional, sc. V. a. C.. Paris,
Biblioteca Nacional. A.-M. Adam, Bronzes Etrusques et Italique. Paris, 1984, n 46.
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Fig. 5 - P de cista: Hrcules e Iolaos combatendo a Hdria. Vulci, sc. V a. C.. Paris, Biblioteca
Nacional.. A.-M. Adam, Bronzes Etrusques et Italiques. Paris, 1984, n 26.
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Fig. 6 - Hrcules. Castelbellino (Ancona), scs. VI-V a. C.. Florena, Museu Arqueolgico. G.
Colonna, Italica Arte In: Enciclopedia dellArte Antica, vol. IV. Roma, 1963, n 56 a.
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Fig. 7 - Minerva. Todi, Etrria, sc. V a. C.. Paris, Biblioteca Nacional A.-M. Adam, Bronzes
Etrusques et Italiques. Paris, 1984, n 252.
3. O final do perodo clssico e o perodo helenstico (scs. IV-I a.C.)
A civilizao de tipo helenstico que se articulou sobretudo em Tarento e que, de l, se difundiu
em toda a Itlia, teve muita ressonncia, sobretudo, na Etrria. A essa civilizao corresponde, na
Siclia, a cultura de Siracusa, que assimilou em grande medida motivos de Alexandria. O perodo que
vai do final do sc. IV ao final do sc. III a.C., representa o apogeu da arte itlica, sob o ponto de vista
da tcnica e da adequao aos modelos cannicos (Fig. 8). Difunde-se uma prtica de bom estilo que d
produtos suficientemente cultos e corretos, ainda que, s vezes, medocres, muito prximos produo
greco-helenstica (Adriani, 1970: 75 e ss.). Pode-se falar de uma Koin cultural itlica que tende
sempre mais a absorver em si o ambiente etrusco e lacial (Colonna, 1963:57).
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Fig. 8 - Apolo. Etrria, scs. IV-III a.C.. Paris, Biblioteca Nacional. A.-M. Adam, Bronzes Etrusques et
Italiques. Paris, 1984, n 245.
Na passagem do sc. III para o sc. II a.C., as formas so marcadas por uma vulgarizao,
tornando-se tambm mais pesadas (Fig. 9). medida que se entra no sculo II, este fenmeno se
acentua. Causas de origem geral como, em primeiro lugar, a decadncia das cidades da Magna Grcia,
determinam o estabelecer-se de um clima artstico qualitativamente mais baixo e mais aberto s
deformaes expressionistas (Balty, 1962: 196 e ss.).
No sc. I a.C., o estilo adquire um aspecto claramente tardo-helenstico e vai perdendo
progressivamente a originalidade de modo que, quase insensivelmente, adentra-se na produo romana
do perodo de Augusto e da dinastia Jlio-Cludia.
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Fig. 9 - Figura masculina, ofertante com coroa de folhas. Etrria centro-meridional, scs. III-II a.C..
Paris, Biblioteca Nacional. A.-M. Adam, Bronzes Etrusques et Italiques. Paris, 1989, n 319.
Em continuao ao perodo anterior, o perodo helenstico acrescentou outras personagens
quelas j consagradas entre os ex-votos de bronze. So as figuras femininas de ofertantes ou
divindades de provenincia claramente oriental, como Cibele (Fig. 10).
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CONCLUSO
A produo de estatuetas de bronze na Pennsula Itlica, compreendida como fruto dos intensos
contatos culturais ocorridos desde a Idade do Ferro at o sc. I a.C., apresenta uma enorme dificuldade
de adequao a unidades de desenvolvimento da arte na Itlia com possveis seqncias entre si.
As unidades propostas neste trabalho, ainda que necessrias para sua exposio, apresentam um
grave risco de homogeneizao que no d espao s especificidades de
Fig. 10 - Figura feminina, ofertante. Carsoli, sc. II a. C.. Chieti, Museu Nacional. G. Colonna,
Italica Arte. In: Enciclopedia dellArte Antica, vol. IV. Roma, 1963, n 63.
algumas tradies mantidas apesar do peso da influncia etrusca e grega na Pennsula Itlica, pelo
menos at o perodo helenstico. Alm desses, h vrios outros aspectos que no podem ser abordados
em um trabalho de sntese e, entre eles, cabe destacar os repertrios iconogrficos intimamente
associados aos contextos de utilizao das estatuetas ou figuras de bronze. de especial interesse a
distribuio das representaes de figuras masculinas e femininas entre as estatuetas.
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A abordagem desse problema leva ao confronto entre o mundo etrusco ou de influncia etrusca
(etrusco-itlico) e o mundo colonial grego, tendo como veculo dois tipos diversos de produes a
partir do sculo VIII a.C.:
a) objetos com decoraes plsticas ou figuras isoladas de conotao funerria.
b) ex-votos com sentido cultural.
Fig. 11 - Danarina. Ornamento de recipiente (cttabos) (?). Etrria central, scs. IV-III a.C.. Paris,
Biblioteca Nacional. A.-M. Adam, Bronzes Etrusques et Italiques. Paris, 1984, n 78.
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33 LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995
As duas categorias de bronzes apresentam uma diferena de repertrio iconogrfico nitidamente
associada s diferentes funes que desempenham esses objetos de luxo, funerrios, ou religiosos.
Entretanto, no interior mesmo de cada uma dessas categorias de objetos que as diferenas tornam-se
mais significativas, segundo pertenam ao contexto etrusco-itlico ou ao colonial grego. Um dos
elementos diferenciadores a presena da figura feminina assim distribuda:
Fig. 12 - Figura feminina, ofertante. Itlia setentrional, sc. VII a. C.. S. Boucher, Recherches sur les
Bronzes Figurs de Gaule Pr-Romaine et Romaine. BEFAR. Roma, 1976, fig. 7.
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LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995 34
Contexto etrusco-itlico
A figura feminina aparece nos objetos das duas categorias. Na categoria a, so freqentes as
representaes de mulheres em cenas de gnero (Fig. 11). Tambm na categoria b (ex-votos), ao lado
de figuras emprestadas ao panteo grego, onde so dominantes as divindades masculinas, exceo de
Atena, representada a figura da ofertante ou fiel, continuando uma tradio baseada no substrato
itlico dos sculos VIII-VII a.C. e, sem dvida, com razes orientais e ligaes precisas a figuras
descobertas na sia Menor (Boucher, 1976:17) (Figs. 12 e 13).
Fig. 13 - Figura feminina, ofertante com um pssaro. Etrria setentrional, Vneto, sc. VI a.C.. Paris,
Biblioteca Nacional. A.-M. Adam, Bronzes Etrusques et Italiques. Paris, 1984, n 223.
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Contexto colonial grego
interessante notar a rara presena feminina nas figuraes de adornos de vasos de bronze com
sentido funerrio e de ex-votos de conotao cultual. Nos casos de representaes femininas, os
motivos so de clara influncia etrusca como, por exemplo, os exemplares campnicos de vasos com
decorao plstica dos scs. VI-V a.C., quando a Campnia foi absorvida pela rbita cultural etrusca
(Fig. 14). Quanto aos ex-votos, h uma evidente separao de repertrios distribudos entre as
estatuetas de bronze e as de terracota. Aos bronzes esto associadas predominantemente as divindades
masculinas e Atena e, s terracotas, as divindades femininas, entre as quais Demter, Persfone, Hera,
Afrodite.
possvel fazer um paralelo entre essa distribuio de repertrios de bronzes e terracotas
coloniais com a produo grega, desde o sculo VIII a.C. at o perodo helenstico, ainda que se note
entre os ex-votos de bronze gregos a presena espordica de figuras femininas de ofertantes,
praticamente ausentes na Pennsula Itlica.
A separao dos repertrios de ex-votos de terracota e de bronze no mundo colonial grego entre
os scs. VIII-IV a.C. um aspecto relevante da produo artstica e artesanal da Siclia e da Magna
Grcia que deixa entrever diferentes esferas de atribuio e associao a cultos de naturezas diversas,
onde se opem as divindades ligadas fecundidade e fertilidade e as intimamente associadas ao mundo
masculino, responsvel pela eficincia na defesa dos territrios ocupados.
A partir do final do sc. IV a.C. diminui a produo de ex-votos de terracota da rea colonial
grega, ao mesmo tempo em que so introduzidas personagens do mundo profano. Quanto aos ex-votos
de bronze, o repertrio ampliado com a presena de divindades e personagens absorvidas do mundo
oriental, como Cibele, e que, em parte, substituem as anteriores de terracota ligadas fertilidade -
situao tpica do amlgama formado pelas monarquias asiticas e egpcias.
Comparando a produo de estatuetas de bronze dos mundos etrusco-itlico e colonial grego,
v-se, atravs da produo etrusco-itlica helenstica, abrir o caminho para a intensa produo do
mundo romano, que levou para confins distantes da Europa e Oriente as heranas recebidas dos povos
da Pennsula Itlica.
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LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995 36
Fig. 14 - Stiro e Mnade, ornamento de urna cinerria. Sta. Maria Capua Vetere, sc. V a.C..
Londres, Museu Britnico. R. Bianchi-Bandinelli, Etruschi e Italici Prima del Dominio di Roma.
Milo, 1976, n 139.
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
ADAM, A.-M. Bronzes Campaniens du Ve Sicle Avant J.C. au Cabinet des Mdailles.
MEFRA,1980:155-190.
ADAM, A.-M. Bronzes Etrusques et Italiques. Bibliothque Nationale. Paris, 1984.
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37 LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995
ADRIANI, A. La Magna Grecia nel Quadro dellArte Ellenistica. La Magna Grecia nel Mondo
Ellenistico. Atti del Nono Convegno di Studi sulla Magna Grecia (Taranto, 1969). Tarento,
1970:72-104.
BALTY, J. Ch. Dgradations sucessives dun type dHercule italique. Coll. LATOMUS, LVIII (1962):
197-215.
BIANCHI-BANDINELLI , R. Etruschi e Italici Prima del Dominio di Roma. Milo, 1976.
BOUCHER, S. Recherches sur les Bronzes Figurs de Gaule Pr-Romaine et Romaine. BEFAR.
Roma, Paris, 1976.
COLONNA, G. Italica Arte In: Enciclopedia dellArte Antica, vol. IV. Dir. R. Bianchi- Bandinelli e G.
Becatti. Roma, 1963.
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LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995 38
ARTIGO
A BUSCA DO RELATO VERDADEIRO: A NARRATIVA HISTRICA DE HERODIANO.
ANA TERESA MARQUES GONALVES
Departamento de Histria - UFG
Muito pouco se sabe sobre a vida particular e pblica de Herodiano, o que faz com que os
historiadores que trabalham com sua obra, intitulada Histria do Imprio Romano depois de Marco
Aurlio, estejam sempre situados no campo das hipteses. Atualmente acredita-se que ele tenha
nascido por volta de l80 d.C., na regio oriental do Imprio, pois escreveu em grego, e que tenha
falecido na mesma regio em torno do ano de 250 d.C. Sua condio social incerta, mas na sua
prpria obra ele afirma que exerceu vrias funes imperiais ou pblicas, durante as quais foi
testemunha de vrios fatos que constituram o objeto de sua narrativa (Herod. I, 2, 5).
Herodiano inicia o seu primeiro captulo com as seguintes palavras:
A maioria dos que se dedicam composio de obras de histria e aspiram manter viva a
recordao de fatos acontecidos no passado, em seu af de fama perene para seu ensino e com
o fim de no passar sem glria e inadvertidamente pelo grande pblico, preocupam-se pouco
com a verdade em seu relatos, mas cuidam sobretudo do vocabulrio e do estilo, porque
confiam que, ainda que suas palavras lidem com a lenda, eles recolhero o aplauso de seu
auditrio e no ser questionada a exatido de sua investigao (Herod. I, l, l)1.
O autor coloca-se, assim, ao menos a nvel do discurso, ao lado de uma tradio
historiogrfica que remonta aos gregos, na qual busca-se os fatos verdadeiros mediante a feitura de
uma investigao criteriosa do que ser relatado. Moses Hadas, por exemplo, ressalta a influncia da
tradio literria grega e a de
1 Pelo fato de Herodiano ter escrito sua obra em grego (koin), abstivemo-nos de apresentar as passagens aqui
citadas no original. Preferimos inseri-las no corpo do texto mediante uma traduo portuguesa, feita por ns a
partir do original grego.
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39 LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995
Tucdides, em especial nas obras de Polbio, Tito Lvio, Tcito e Dionsio de Halicarnasso (HADAS,
l950, pp. 226-243). Gostaramos de demonstrar neste trabalho que esta influncia no se limitou s
obras produzidas na Repblica e nos dois primeiros sculos do Imprio, perodos nos quais o gnero
historiogrfico mais se desenvolveu em Roma. Ela permaneceu ativa no III Sculo d.C. e serviu de
referncia, tanto para a obra de Dion Cssio (BOWERSOCK, l973, p.204), quanto para a obra de seu
contemporneo Herodiano.
Mas o que exatamente teria Herodiano retirado dos ensinamentos gregos acerca da confeco
de obras de Histria?
Em primeiro lugar, Herodiano enfatiza que gloriosos e dignos de memria devem ser os fatos
narrados e no os empreendedores da tarefa de relat-los. Tanto que o nome do autor no aparece
nenhuma vez discriminado na narrativa. Ele s aparece expresso junto ao ttulo da obra,
reponsabilizando-se pelo que est escrito. Contudo, participa de forma indireta no relato ao dar
algumas opinies morais e ao mostrar os procedimentos utilizados em suas investigaes. O gnero
histrico serviria, assim, para glorificar os autores dos feitos narrados e no os autores da narrativa
dos feitos.
Em segundo lugar, a Histria, para Herodiano, no o relato de todos os fatos ocorridos, mas
sim a narrao do que considerado importante e digno de glria pelo narrador, que utiliza como
critrios de escolha do que ser narrado: a possibilidade de verificar a veracidade do fato; a grandeza
em si do acontecimento; e a potencialidade didtica da ocorrncia. O bom historiador deve
concentrar a sua ateno sobre os episdios importantes e significativos e organiz-los de uma forma
lgica, para serem compreendidos pelos leitores de sua poca e pelos leitores posteriores. Seguindo
uma cronologia baseada na sucesso dos imperadores, Herodiano preocupa-se mais em fornecer
elementos para a reflexo poltica e sobre as questes relacionadas ao poder, do que em especificar
indubitavelmente o momento em que os fatos ocorreram. Os fatos s se tornam compreensveis se
dispostos de uma forma encadeada cronologicamente.
Segundo Herodiano: Minha inteno relatar o que ocorreu em cada caso, ordenando os
fatos cronologicamente e por reinados (Herod. I, l, 6). Isto porque o encadeamento cronolgico
dos fatos relatados que garante obra uma coerncia lgica e uma ordem de entendimento
fundamentais para que a mensagem da obra seja bem compreendida pelo pblico. A sucesso dos
fatos fundamenta a sua inteligibilidade, ou seja, o que ocorreu antes explica o que houve depois, do
mesmo modo que o futuro confirma as previses e os atos do passado e do presente. Desta forma, as
digresses se caracterizam por explicar fatos passados que, de
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LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995 40
alguma maneira, auxiliam na compreenso dos fatos narrados. Vide, por exemplo, a digresso que
feita ao tempo de Augusto para explicar a fcil entrada de Septmio Severo na Itlia, onde os
cidados estavam desacostumados do uso de armas de combate (Herod. I, 11, 3-6) ou a citao das
guerras civis para explicar o uso de adagas por alguns senadores no III sculo d.C. (Herod. VII, 11,
4).
por isso tambm que Herodiano se preocupa em comear cada livro com um resumo do
anterior; para que a cronologia dos acontecimentos seja respeitada. Mais importante que dat-los
inseri-los numa cadeia causal. Acrescente-se a isto o fato de que a organizao dos acontecimentos
por reinado facilita a discusso acerca do poder de cada soberano, pois pode-se ver o que os bons
imperadores fizeram em relao com as prticas dos maus governantes. Como o autor se preocupa
mais com a mensagem que ficar para a posteridade sobre os cinquenta e oito anos narrados na obra
do que com a exatido das datas, notvel a falta do que chamaramos de preciso no relato. So
comuns as expresses: durante um curto tempo (Herod. I, 6, 1); durante uns poucos anos
(Herod. I, 8, 1); no muito tempo depois (Herod. I, 10, 1); ocorreu por aquele tempo (Herod. II,
6, 3), entre outras. Seguindo uma cronologia causal, Herodiano preocupa-se em fornecer elementos
para reflexo que se interliguem; deste modo mais do que batalhas, que sero o fio condutor das
narrativas dos Brevirios no IV sculo, ele narra costumes, perfis de agentes histricos, conjuraes
de corte, e tudo o mais que possa dar inteligibilidade ao relato e nos quais a natureza humana seja
transformada em exemplo para as geraes vindouras. Um dos critrios de veracidade arrolados por
Herodiano exatamente o fato dos acontecimentos narrados serem necessrios para a compreenso
do que foi dito anteriormente e para o entendimento do que ser dito depois. Se o fato narrado est
servindo para dar seqncia lgica narrativa, isto j serve para demonstrar a sua veracidade.
Em quarto lugar, os fatos devem ser encadeados para transmitir uma mensagem verdadeira
sobre o passado e no de modo a adular ou criticar imperadores e outros agentes, cujo poder e
posio elevada mereceram a ateno do historiador. Herodiano critica os que ressaltam fatos e
situaes no muito importantes para a compreenso da narrativa, visando algum fim diferente da
rememorizao constante de um passado glorioso romano, ao afirmar:
Alguns por inimizades privadas ou por dio aos tiranos ou por adulao ou honra aos
imperadores, cidades ou particulares tm apresentado fatos triviais e sem importncia com uma
fama superior verdade (Herod. I, 1, 2).
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41 LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995
O autor percebeu, assim, o poder das palavras e dos que as manipulam, pois, tanto podem
construir um relato verdadeiro, quanto falso, uma imagem distorcida, ou uma que se aproxime do
real vivido no passado. Pior que no controlar a veracidade por intermdio de tcnicas precisas seria
procurar deliberadamente o engano no lugar da verdade (Herod. III, 7, 3).
Que tcnicas deveriam ser estas a garantir o princpio da veracidade?
Aps criticar historiadores que no se dedicavam a uma investigao exata e cuidadosa dos
fatos e nem se preocupavam com a causalidade discursiva, Herodiano indica como ir proceder para
no repetir tais falhas metodolgicas, isto , que tcnicas ir empregar:
Eu no aceitei nenhuma informao de segunda mo, sem provas, nem testemunhos, mas,
subordinado recente recordao de meus leitores, eu recopiei os dados para a minha histria
com total respeito exatido (Herod. I, 1, 3)
Mas meu objetivo relatar sistematicamente os sucessos de um perodo (...) que abarca o
reinado de muitos imperadores, sucessos dos quais tenho conhecimento especial. Em
conseqncia, somente apresentarei uma narrao por ordem cronolgica das aes mais
importantes (...). No ressaltarei nada por adulao, como faziam os escritores
contemporneos, nem to pouco omitirei nada do que seja digno de meno ou de recordao
(Herod. II, 15, 6-7).
Ento, as tcnicas bsicas seriam:
1o) ao relatar fatos no vivenciados, mas importantes para a compreenso da narrativa, buscar
verificar a autenticidade das informaes mediante a cpia de relatos anteriores j verificados, a
conversa com pessoas mais velhas e que vivenciaram os fatos e a aceitao do relato pelo pblico
leitor, que perceberia se h nele uma inteligibilidade clara. A veracidade assim garantida no
apenas por quem relata, mas principalmente por quem l ou escuta a obra, pois ao tratar de fatos
ocorridos em tempos prximos, a verdade encontra-se subordinada recordao dos leitores.
Herodiano no fornece o nome de seus informantes ou das fontes consultadas. Porm, como afirma
Moses Finley, esse era o comum na historiografia antiga (FINLEY, 1986, pp. 19-47), j que a
veracidade no advm somente da fonte das informaes, mas principalmente da relao que se
constitui entre o autor e o pblico por intermdio do que narrado.
2o) dar primazia aos fatos presenciados pelo narrador, os acontecimentos por ele vistos e
ouvidos. Por isso, Herodiano escolhe narrar fatos contemporneos a si, como afirma:
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Eu escrevi uma histria sobre os fatos posteriores morte de Marco, fatos que vi e escutei
durante toda a minha vida. E de alguns deles participei diretamente em meus postos de servio
imperial e pblico (Herod. I, 2, 5).
O ver e o ouvir eram critrios incontestveis de veracidade para o homem antigo.
3o) ao crer que o conhecimento que est produzindo tem um aspecto durvel, universal e
didtico e, portanto, uma utilidade e uma finalidade prtica, o historiador deve escolher um tema ou
um perodo que interesse s geraes posteriores. a crena numa utilidade prtica que leva os
autores a procurarem a veracidade. Nesta busca do que deve ser mencionado e recordado, Herodiano
indica o porqu de ter escolhido relatar o que viu e ouviu:
Eu acredito que no desagradar aos leitores posteriores o conhecimento de um to grande
nmero de importantes acontecimentos concentrados em um to curto espao de tempo. Em
todo caso se algum passasse em revista todo o perodo que vai de Augusto, quando o regime
romano se transformou em poder pessoal, no encontraria nos cerca de duzentos anos que vo
at os tempos de Marco nem to contnuos relevos no poder imperial, nem tantas mudanas de
sorte em guerras civis e exteriores, nem comoes nos povos das provncias e conquistas de
cidades (...), nem movimentos ssmicos e pestes, nem finalmente vidas de tiranos e
imperadores to incrveis que antes eram raras ou nem sequer se recordavam. Destes
imperadores, uns mantiveram sua autoridade durante bastante tempo, enquanto para outros o
poder foi passageiro; alguns, procurando somente o poder do ttulo e da glria efmera,
rapidamente foram derrotados. Durante um perodo de sessenta anos, o Imprio Romano
esteve em mos de mais senhores do que o tempo exigia, e produziu um enorme nmero de
situaes cambiantes e surpreendentes (Herod. I, 1, 3-5).
Os fatos narrados tambm recebem veracidade pelo carter de excepcionalidade e de
grandeza que o autor busca lhes imputar. Como sempre, so as situaes de mudanas rpidas, num
curto espao de tempo, que despertam a ateno do historiador. Os fatos so relevantes e dignos de
nota por assinalarem modificaes profundas e relativamente rpidas na condio do corpo cvico
organizado (MOMIGLIANO, 1984, p.52). Frente importncia da narrativa, a preocupao
metodolgica se constitui num elemento a mais para garantir a utilidade do relato para as prximas
geraes.
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43 LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995
4o) para garantir a veracidade de uma narrativa to fundamental e para poder perceber a
cadeia lgica que liga os fatos e que garante a sua inteligibilidade, o historiador deve dar um espao
temporal entre o momento em que os fatos ocorreram e o momento em que ele os relata. Herodiano
s narra os fatos ocorridos at 238 d.C., apesar de ter morrido bem depois. Acreditamos que isto
indica a necessidade desta distncia temporal, para que o narrador tenha condies de identificar
como os fatos devem ser relatados para que convenam o pblico.
5o) no inserir fatos que no sejam importantes para a compreenso do relato e de sua
mensagem moral e, ao mesmo tempo, no omitir nada que seja digno de meno e de recordao. O
relato deve ser equilibrado entre omisses intencionais e fatos dignos de integrarem o conjunto de
exempla romanos. Da Histria de Herodiano no ficam de fora as lendas, os orculos e os sonhos. As
lendas descritas so vistas como mitos historicizados, na expresso de Jean Bayet (BAYET, s.d.,
p.58), ou seja, so estrias que hoje ns identificamos como lendas, mas que na poca imperial
tinham sua veracidade garantida pela tradio e atestada pela repetio, e que foram includas na
trama histrica com um valor moral e tico. A lenda tem lugar no relato histrico quando auxilia na
explicao dos fatos ocorridos e apresentada com suas mltiplas verses. Para os romanos, ela
preenchia as lacunas de seu conhecimento sobre o passado e deveriam fazer parte da memria
poltica e cultural junto com os fatos propriamente histricos. Por exemplo, ao narrar a causa dos
romanos venerarem a Dea Mater, o prprio Herodiano afirma que: Talvez seja uma exposio
cheia de fantasia, mas oferecer uma informao nada desprezvel para os que no estejam
familiarizados com a histria dos romanos (Herod. I, 11, 1-5).
Os orculos e os sonhos, por sua vez, s so relatados quando foram confirmados pelos
acontecimentos posteriores. Aps seu relato, Herodiano sempre faz questo de enfatizar que eles
realmente indicaram algo que se efetivou, demonstrando a pertinncia de seu relato, pois
estimularam as aes humanas. Ao relatar os sonhos e os orculos que previram a ascenso ao poder
de Septmio Severo, Herodiano afirma: Se reconhece que todos estes prognsticos no se
equivocaram e so verdadeiros quando os fatos posteriores lhes do razo (Herod. II, 9, 3-7).
Estas incluses, portanto, no colocavam em perigo a veracidade e a pertinncia do relato.
6o) o historiador no precisa necessariamente buscar uma verdade geral e nica, renunciando
s verses mltiplas, optando sempre pela verso mais verossmil, mais crvel e semelhante ao real
vivido no passado. Herodiano permite a primazia da dvida e do questionamento, apresentando
vrias verses para um mesmo fato e permitindo que o leitor se incline pela que lhe parea mais
verdadeira ou mais provvel. Por exemplo, ao falar de Pescnio Nigro, Herodiano afirma:
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LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995 44
Tem quem opine que a causa de Nigro (de vencer Severo), trado por Emiliano, esteve
condenada ao fracasso desde suas origens. (...) Uns afirmam que Emiliano conspirou contra
Nigro porque o invejava (...) Outros opinam que foi persuadido por seus filhos (...) (Herod.
III, 2, 3).
O prprio Herodiano no opta por nenhuma das duas verses possveis para a traio de
Emiliano, inserindo ambas em sua narrativa e lhes conferindo igual valor. No importa qual das duas
a mais verdadeira, pois ambas ensinam quem as l. Ambas so relatos de maus exemplos que
devem ser evitados: quer agir por inveja, quer se deixar levar pela opinio dos mais jovens e menos
experientes. Herodiano chega mesmo a admitir em alguns momentos que desconhece certas
informaes capazes de dotar um acontecimento narrado de uma veracidade indubitvel. Por
exemplo:
No sabemos se Maximiliano desconhecia o que se tramava ou se estava secretamente
implicado nos preparativos (do motim contra Severo Alexandre) (Herod. VI, 8, 5) e No
sabemos se refletia a verdade ou se era uma inveno do Maximiano (o perigo brbaro); no se
pode diz-lo com exatido, posto que no houve ocasio de prov-lo (Herod. VII, 1, 8).
Acreditamos que estas passagens, ao invs de um descuido com a questo da veracidade e da
objetividade do relato, refletem uma preocupao do autor em separar o que foi comprovado e o que
no pde ser provado, mesmo mediante uma exaustiva investigao de provas e testemunhos. O
primado da dvida e da controvrsia no nos parece ser uma falha metodolgica do autor, mas sim
uma preocupao tcnica em separar o provvel/possvel/desconhecido do confirmado por sua
investigao ou por sua viso/audio.
Seguindo estes princpios e tcnicas historiogrficos de composio do discurso denominado
de carter histrico, expressos em sua prpria obra, Herodiano acredita estar fornecendo ao seu
relato dos acontecimentos, ocorridos entre 180 e 238 d.C., um cunho de veracidade e de objetividade
e um valor de utilidade didtica, mnemnica e poltica para a aristocracia romana, o seu provvel
pblico leitor, que compartilhava com ele o poder de construir a memria poltica romana. Como
afirma Hannah Arendt (ARENDT, 1988, pp.72-79), todas as coisas que devem sua existncia aos
homens, tais como obras, feitos e palavras, so perecveis, como que contaminadas com a
mortalidade de seus autores. A capacidade humana para dotar suas obras, feitos e palavras de alguma
permanncia e impedir sua perecibilidade era a sua recordao constante. atravs da Histria que
ocorre essa permanncia temporal. A Histria acolhe em sua memria aqueles mortais que atravs de
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45 LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995
feitos e palavras se provaram dignos da imortalidade, e sua fama eterna significa que eles podem
permanecer na companhia das coisas que duram para sempre. Cabe, portanto, ao historiador
Herodiano identificar que fatos e personagens merecem a imortalidade pela recordao e garantir a
veracidade e a pertinncia moral e didtica do que passar, por critrios de forma e contedo, a
integrar a memria poltica dos romanos.
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47 LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995
ARTIGO
A QUESTO INDGENA EM MINAS GERAIS:
UM BALANO DAS FONTES E DA BIBLIOGRAFIA1
CRISOSTON TERTO VILAS BAS
Depto. de Histria - UFOP
No Arquivo Pblico Mineiro h cpia de um mapa da Capitania de Minas Gerais onde se
podem distinguir os limites da Comarca de Sabar e as terras adjacentes2. Encimando o mapa,
maneira de um frontispcio, uma imagem emoldurada destaca-se como metfora da conquista e
ocupao do territrio interior.
A imagem no mapa identifica os atores: um cartgrafo e um ndio. O cartgrafo, com seu
compasso, estabelece as medidas do reino, indica os acidentes e nomeia a terra. Vestido com suas
roupas de reinol, sentado e circunspecto, seus olhos miram com ateno seu gesto de assinalar no
papel as largas terras do oeste. Diante dele, sorrateiramente um ndio se lhe ope de arco flexionado.
Este se posta do lado oeste, e sua flecha dirigida para um ponto enigmtico entre o corpo e o papel
de seu inimigo.
O mapa identifica parte da terra que, por aquela poca, no mais era povoada em derredor
de diversissimas geraes de Indios muy barbaros e crueis3 conforme relata a crnica do Pe. Joo
de Azpilcueta Navarro que por ali teria andado entre os anos de 1553 e 1555. No mais tantas tribos,
mas o ndio no emblema do mapa da Comarca de Sabar um testemunho histrico de que em fins
do sculo XVIII ainda permanecia por ali, como obstculo civilizao, grupos
1 Este estudo foi apresentado no Seminrio Mariana, trezentos anos: um balano da produo
historiogrfica, promovido pelo Laboratrio de Pesquisa Histrica do DEHIS-UFOP, Casa Setecentista-
Patrimnio Cultural/IBPC e Arquivo Histrico da Cmara Municipal de Mariana. Mariana, 13-15 de outubro
de 1994. 2 Trata-se do Mappa da Comarca do Sabar por Jos Joaquim da Rocha, 1778. 3 Como se pode ler na Carta do Pe. Joo de Aspilcueta, escrita em meados do sculo XVI. Ver Revista do
Arquivo Pblico Mineiro. 6 (4): 1159-1162, 1901.
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LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995 48
sobreviventes das guerras ofensivas empreendidas durante o transcurso dos sculos XVII e XVIII.
Considero esse mapa e seu emblema um mito iconogrfico da conquista territorial, onde os
atores so claramente identificados e seus lugares sociais bem discernidos. O ndio est ali e resiste.
E, no entanto, para a historiografia mineira, os indgenas em Minas Gerais tornaram-se como que
invisveis. Eles inexistem.
Assim ocorre com os estudos demogrficos sobre populaes mineiras que desconhecem
inteiramente a presena das populaes indgenas e, mais do que isso, seu papel na histria poltica e
social da Capitania e da Provncia.
Do mesmo modo, a reviso historiogrfica que relativizou o lugar da economia do ouro no
complexo econmico das Gerais e indicou a importncia das atividades agrrias e pastoris, pouca
ateno prestou s formas assumidas pelo trabalho indgena na organizao desse complexo
econmico.
A histria administrativa tampouco analisou a questo relacionada conquista de territrios
ocupados pelo indgena. No examinou o lugar destinado ao ndio desejvel na organizao de
foras-tarefas para o combate ao ndio selvagem e antropfago, identidade genrica para todos os
grupos que se interpunham aos adventcios nos diferentes perodos da histria mineira4.
No diferente a histria da igreja que pouca ateno ainda prestou ao papel sobrelevante do
clero secular nas estratgias de catequese e civilizao dos grupos indgenas de Minas Gerais,
particularmente dos habitantes das ubrrimas matas mineiras do vale do Mucuri e do Rio Doce,
para onde se encaminharam, desde meados do sculo XVIII, padres missionrios, sobre os quais as
histrias dos municpios dessa regio tanto falam.
As populaes indgenas de Minas Gerais so invisveis at mesmo para aqueles
pesquisadores influenciados pelos paradigmas da nova histria, esse vasto leque que engloba os
estudos orientados pela idia de cultura, cotidiano e mentalidade, e que procuram atingir o homem
comum, os que no deixaram de si testemunhos diretos.
4 Exemplo raro de estudo sobre os presdios e seu papel no controle das populaes indgenas a monografia
de bacharelado de Elizabeth Salgado, Aldeamento Indgena da Regio da Mata Mineira - Presdios de Abre
Campo, Rio Pomba e Cuiet (1730-1850). - Mariana: DEHIS-UFOP, 1986. (Indito). Estudo largamente
influenciado pela tipologia estabelecida por Laura de Mello e Souza em seu Desclassificados do ouro: a
pobreza mineira no sculo XVIII. - Rio de Janeiro: Edies Graal, 1982.
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49 LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995
E sem dvida dessa nova histria, com o consrcio da antropologia, que se espera o
mximo de ateno para a questo indgena em Minas Gerais.
No somente porque necessrio rever o passado e recuperar a memria dos vencidos, mas
porque ainda entre ns esto os sobreviventes do genocdio e do etnocdio, e deles podemos nos
aproximar, oferecendo-lhes agora a memria cultural e poltica de seus antepassados, inscrita nos
nossos arquivos.
Minas Gerais possui atualmente os seguintes grupos indgenas5: os Xakriab
6, com 6.000
indivduos ocupando uma rea de 46.000 he., demarcada no norte de Minas, prximo da cidade de
Itacarambi; os Patax, com cerca de 200 indivduos ocupando uma rea demarcada de 3.200 he.,
prxima de Carmsia, no Vale do Ao; os Maxacali, com cerca de 600 indivduos ocupando duas
aldeias divididas por terras invadidas por fazendeiros no municpio de Bertpolis, no Vale do
Mucuri; os Krenk, tambm com 200 indivduos, aproximadamente, ocupando perto de Resplendor,
no Vale do Rio Doce, uma rea de somente 120 he. dos 4.000 he. que lhes pertencem e que apesar de
j demarcada pela FUNAI, encontra-se sob o domnio de fazendeiros; os Pandakur, que migraram
de Pernambuco e que ocupam 60 he. de terras no municpio de Coronel Murta, no Vale do
Jequitinhonha. Tambm os indgenas Kaxix, que ora vm reivindicando sua identidade tnica,
moradores nas proximidades de Pompu, na microrregio de Trs Marias.
Os Kaxix exemplificam esse movimento recente e que se manifesta com relativa
intensidade pelo pas afora, em que os povos indgenas em diferentes graus de aculturao ou
caboclamento, reagem na defesa de seu patrimnio territorial e cultural7. Note-se que a populao
indgena em Minas Gerais est, hoje, em torno de 7.000 indivduos, quando apenas uma dcada atrs
era de 5.197. Como em todo o pas, observa-se que vem ocorrendo em Minas o fenmeno da
recuperao demogrfica.
Esse fenmeno de resistncia e recuperao tnicas impe-se como mais uma razo para que
sejam formuladas perguntas relevantes sobre os povos que at incio do dezoito eram maioria sobre
esse vasto territrio das Gerais e que, j em
5 As informaes sobre as populaes indgenas atuais, apresentadas aqui, me foram fornecidas por Marilda
Quitino Magalhes, do CIMI - Conselho Indigenista Missionrio (BH-MG), a quem agradeo. 6 Na grafia dos nomes dos povos indgenas sigo a conveno estabelecida em 1953 pela Associao Brasileira
de Antropologia que, entre outras normas, indica que os nomes de povos e de lnguas indgenas sejam
empregados como palavras invariveis, sem flexo de gnero nem de nmero. Ver Revista de Antropologia. 2
(2):150-154, 1954. 7 GOMES, Mrcio Pereira. Os ndios e o Brasil. - Petrpolis: Vozes, 1991, p. 61.
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LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995 50
fins daquele sculo, foram reduzidos minoria e encurralados pelos diferentes agentes
neobrasileiros8 de ocupao.
Essas perguntas, a cincia histrica no as fez, infelizmente. Essa indigncia bibliogrfica ,
por decorrncia, tambm temtica e conceitual. Assim, os grandes panoramas histricos das Minas
que acompanham a linhagem inaugurada por Diogo de Vasconcelos9 mais desinformam, por sua
perspectiva cannica. Situa-se neste plano a obra de Oiliam Jos, Indgenas de Minas Gerais, que
no oferece algo como seu til Historiografia Mineira10
. Seu Indgenas de Minas Gerais repete, no
essencial, as informaes pouco precisas de Nelson de Senna11
. Alm disso, expressa-se num tom
que faz eco aos esteretipos tnicos presentes nos documentos que manuseou. Do mesmo modo, o
trabalho de Daniel Carvalho, Formao Histrica de Minas Gerais, pouco acrescentou ao lugar
comum de que nas bandeiras paulistas, se os chefes e os oficiais possuam sangue ndio, o grosso
da tropa era constitudo por ndios das fazendas, das aldeias prximas e at das redues
jesuticas12.
Mesmo um autor que representou novidade nos estudos mineiros, como Charles R. Boxer,
repete o mote do sangue ndio correndo nas veias dos mineiros:
Embora sangue europeu e africano predominassem no cadinho racial de Minas Gerais,
correntes paulistas e amerndias no eram de forma alguma insignificantes (...) houve alguns
casamentos entre os dois grupos, e algumas famlias paulistas foram absorvidas na populao
geral, depois de uma ou duas geraes. Recorrendo lista de escravos nos arquivos de Minas
Gerais, tambm temos revelada a presena de numerosos escravos amerndios. A maior parte
era designada sob o nome genrico de Carijs e, sem dvida, quase todos pertenciam ao sexo
masculino. Deve ter havido, contudo, algumas mulheres, cujo sangue, com toda a certeza, veio
a mesclar-se com o das famlias de seus senhores13.
8 Chamo de neobrasileiros os agentes povoadores que chegaram aps o descobrimento. 9 necessrio fazer justia a Diogo de Vasconcelos. Sua perspectiva est superada em vrias dimenses, mas
ele continua a ser fonte de referncia pela abrangncia e intuio com que tratou diversos temas. Seu grande
defeito talvez esteja em que suas informaes no sejam acompanhadas da identificao das fontes que
manuseou. 10 JOS, Oiliam. ndigenas de Minas Gerais. - Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1965. Historiografia
Mineira tambm foi publicado pela Imprensa Oficial, em 1987. 11 SENNA, Nelson de. Sobre Ethnographia Brasileira - Principaes povos selvagens que tiveram o seo
habitat em territrio das Minas Geraes. Revista do Arquivo Pblico Mineiro. 25 (1): 337-355, 1937. Nelson de Senna arrola 177 grupos. Mas tambm no oferece suas fontes. 12 CARVALHO, Daniel. A Formao Histrica de Minas Gerais. - Rio de Janeiro: Mec, 1956. p. 12. 13 BOXER, Charles. R. A Idade do Ouro do Brasil. - So Paulo: Cia. Editora Nacional, 1963, p. 154-155.
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51 LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995
Nada de novidadeiro em Boxer, seno sua afirmao peremptria sobre a presena da mo-de-obra
indgena escrava tambm nas atividades de minerao. Presena que, por sinal, j podia ser lida em
Antonil em 171114
.
As pesquisas histricas no tm feito justia relevncia das populaes amerndias, mas o
mesmo acontece com os estudos antropolgicos.
Os estudos atuais que esto sendo formulados pela antropologia, tomada por uma profunda
cliofilia,15 tm-se ocupado muito pouco com as populaes indgenas em Minas Gerais16. De
destaque mesmo, podem-se assinalar as pesquisas sobre os ndios Maxacali realizadas na dcada de
60 por trs antroplogos. Trata-se de ndios Maxacal: resistncia ou morte, de Marcos Magalhes
Rubinger, na poca professor da UFMG, Maria Stella de Amorim e Snia de Almeida Marcato17
.
Esses pesquisadores no puderam nos oferecer o que prometeram devido ao furor da ditadura que,
em 1964, prendeu e exilou Rubinger, idealizador do Projeto de pesquisa Maxacal, inspirado no
conceito de frico intertnica de Roberto Cardoso de Oliveira, outro antroplogo cujos trabalhos
tm sido de grande relevncia para a histria etnolgica.
Vale tambm assinalar os importantes estudos etnogrficos e lingsticos realizados na
dcada de 40 pelo etnlogo paraense Rosrio Gurios,18
elogiados inclusive por Herbert Baldus.
Gurios registrou aspectos lingsticos dos ndios botocudos, entre outros, que permitem em linhas
gerais restabelecer unidades gentico-culturais relevantes para a confeco de laudos tnicos, esses
14 Das cidades, vilas, recncavos e sertes do Brasil, vo brancos, pardos e pretos, e muitos ndios, de que os
paulistas se servem. Ver ANTONIL, Andr Joo. Cultura e Opulncia do Brasil. - Belo Horizonte: Itatiaia;
So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 1989. p. 167. 15 Essa uma afirmao de Eduardo Viveiros de Castro, do Museu Nacional do Rio de Janeiro, e pode ser lida
na resenha que fez do livro Histria dos ndios no Brasil. Ver. CASTRO, Eduardo Viveiros de. Histrias
Amerndias. Novos Estudos Cebrap. (36): 22-33 , julho de 1993. 16 Entretanto, o mesmo no se d em relao aos grupos tnicos de outras regies do Brasil. Com uma
orientao histrica temos o excelente ndios da Amaznia, de Maioria a Minoria (1750-1850) - Petrpolis:
Vozes, 1988, de Carlos de Arajo Moreira Neto, talvez o mais informado antroplogo brasileiro sobre a
histria etnolgica do Brasil. E mais recentemente, os estudos dirigidos pela antroploga Manuela Carneiro da
Cunha, publicados em Histria dos ndios no Brasil.- So Paulo: Companhia das Letras/Secretaria Municipal
de Cultura/FAPESP, 1992. Mas antes desses, temos os inspiradores estudos clssicos da etnologia histrica
brasileira realizados por Florestan Fernandes, Curt Nimuendaj, Egon Schaden e Dacy Ribeiro, entre outros. 17 Ver RUBINGER, Marcos Magalhes. ndios Maxacali: resistncia ou morte. - Belo Horizonte: Interlivros,
1980. Apesar do livro trazer na capa e no ndice uma nica autoria, os captulos identificam corretamente as
outras autoras.Rubinger morreu em 1973, no exlio. 18 Gurios publicou diversos estudos lingsticos sobre grupos indgenas de Minas Gerais. Ver, p.ex.
GURIOS, Rosrio Farani Mansur. Entre os botocudos do Rio Doce. Gazeta do Povo, Curitiba, 18, 10 e 21
de junho de 1944. Cf. o resumo feito por H. Baldus na Revista do Arquivo Municipal, So Paulo (96): 217-
218, 1944.
-
LPH: REVISTA DE HISTRIA. N5, 1995 52
instrumentos necessrios para a reconstruo da identidade tnica de grupos que se desviram
caboclos.
Conclui-se, portanto, que se conhece de menos apesar da abundncia de fontes e documentos.
Na abundncia de fontes, destacam-se aquelas j publicadas e de fcil acesso tais como as
descries dos viajantes (Saint-Hilaire19
, Wied,20
Pohl,21
Spix e Martius,22
Freireyss,23
entre outros)
e os extraordinrios relatrios de engenheiros do sculo XIX, como o de Pedro Victor Reinault,
publicado em 1846 na Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro24
ela mesma, em seus
diversos volumes, um manancial inestimvel para a pesquisa sobre indgenas de Minas Gerais; bem
como os relatrios dos Diretores de ndios, como o de Jos Janurio de Cerqueira, de 1886, inclusos
como anexos em relatrios dos Presidentes da Provncia.25
Entre os documentos, sobressaem naturalmente aqueles depositados nos diversos arquivos
mineiros. Documentos de manuseio gravemente difcultado por
19 Ver, p.ex., SAINT-HILAIRE, Auguste De. Viagem pelas provncias de Rio de Janeiro e de Minas Geraes. -
Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 1975 . As diversas obras de
Saint-Hilaire contm informaes sobre os ndios Botocudo, Maxacali, Malali, Monox, Makuni e Coroado. 20 WIED, Maximilian, Prinz von. Viagem ao Brasil. - Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: Editora da
Universidade de So Paulo, 1989. Informaes sobre os Botocudo. 21 POHL, Joo Emmanuel. Viagem no interior do Brasil, empreendida nos anos de 1817 a 1821 . - Rio de
Janeiro: INL, 1951. 2 vols. No segundo volume encontram-se os relatos sobre os Botocudo, os Maxacali e os
Moaquanhis. 22 SPIX, Johan Baptist e MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von. Viagem pelo Brasil: 1817-1820. - So Paulo:
Editora da Universidade de So Paulo, 1981. 3 vols. Traz importantes informaes etnogrficas sobre diversos
grupos indgenas. 23 FREIREYSS, Georg Wilhelm. Viagem ao interior do Brasil. - Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: Editora
da Universidade de So Paulo, 1982. Um dos mais interessantes relatrios de viagem do incio do sculo XIX. 24 REINAULT, Pedro Victor. Relatorio da exposio dos rios Mucury e Todos os Santos. Revista do
Instituto Historico e Geographico Brasileiro, Rio de Janeiro, 8: 425-452, edio de 1867 (2). Nesse relatrio
encontram-se importantes descries etnogrficas sobre os ndios Puri, Patax e Botocudo. 25 Os relatrios dos Presidentes da Provncia so fonte importante para o estudo da poltica administrativa em
relao aos ndios. Neles e nos anexos, podem-se obter informaes valiosas sobre poltica de aldeamento, de
ocupao e trabalho indgenas, de educao e mesmo estatstica. Por exemplo, no relatrio de J. J. Cerqueira
obtm-se dados demogrficos e ocupacionais sobre os ndios do aldeamento de N. Senhora dos Anjos de
Itambacury. No aldeamento moravam 100
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