estudo e relatÓrio de impactos em direitos humanos
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ESTUDO e RELATÓRIO DE IMPACTOS EM DIREITOS HUMANOS DE GRANDES PROJETOS (EIDH/RIDH): O CASO DO MONOCULTIVO DE EUCALIPTO EM LARGA
ESCALA NO NORTE DO ESPÍRITO SANTO
Foto: Zélia Siqueira
Conceição da Barra/São Mateus-ES 2010
ESTUDO e RELATÓRIO DE IMPACTOS EM DIREITOS HUMANOS DE GRANDES PROJETOS (EIDH/RIDH): O CASO DO MONOCULTIVO DE EUCALIPTO EM LARGA
ESCALA NO NORTE DO ESPÍRITO SANTO
O Projeto Agroindustrial da Aracruz Celulose (Fibria) e as
Comunidades Quilombolas do Sapê do Norte
Entidade proponente: Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) Entidade executora: Centro de Defesa dos Direitos Humanos da Serra (CDDH)
Apoio: Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos (PPDDH)-Espírito Santo Entidades financiadoras: CESE e Instituto Marista
Coordenação: Gilsa Helena Barcellos
Equipe
Antônio Rodrigues de Oliveira Eduardo Moreira
Jefferson Gonçalves Correia Joice Nascimento Cassiano
Kátia Santos Penha Sandro José da Silva
Simone Raquel Batista Ferreira Winfridus Gerardus Johannes Overbeek
Conceição da Barra/São Mateus-ES
2010
O desenvolvimento como acumulação de capital e mercantilização da
natureza para a geração de ‘excedentes e lucros’ envolve, portanto, a
reprodução não apenas de determinadas formas de criação de riqueza,
mas também formas de criação de pobreza (VANDANA SHIVA, 1991).
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustrações Pág.
Foto 1 – Casa de estuque em Linharinho 86
Foto 2 - Tradicional casa de farinha 86
Foto 3 - Casa de Farinha 87
Foto 4 - Trabalho familiar na Casa de Farinha 87
Foto 5 - Casa de estuque em São Jorge 88
Foto 6 - Casa de farinha 88
Foto 7 - Moradores de São Domingos reunidos na escola da comunidade 90
Foto 8 - Mapa do território elaborado em oficina pela comunidade 90
Foto 9 - O “correntão” 110
Foto 10 - Testemunho das queimadas da floresta tropical para a implantação da monocultura do eucalipto no Município de Pinheiros/ES
110
Foto 11 - Córrego do Conrado 118
Foto 12 - Ponte de concreto construída sobre o Córrego São Domingos 120
Foto 13 - Da ponte construída sobre o Córrego São Domingos pode-se observar seu escasso volume de água
120
Foto 14 - Córrego São Domingos, na comunidade de Linharinho. 120
Foto 15 - Cabeceira do Córrego da Água Branca 121
Foto 16 - Córrego da Água Branca, com plantios de eucalipto em sua margem e represamento provocado pela ES-010. Comunidade Linharinho.
121
Foto 17 - Córrego da Água Branca, lado direito sentido Conceição da Barra-Itaúnas, Comunidade Linharinho, com acúmulo de sedimentos (assoreamento).
122
Foto 18 - Cabeceira alimentadora do Córrego do Caboclo, afluente do São Domingos
122
Foto 19 - Cabeceira alimentadora do Córrego do Caboclo, afluente do São Domingos
122
Foto 20 - Canal de drenagem construído à jusante de zona alagadiça que corresponde à cabeceira alimentadora do Córrego do Caboclo, onde foi plantado o monocultivo do eucalipto
123
Foto 21 - Canal de drenagem construído à jusante de zona alagadiça que corresponde à cabeceira alimentadora do Córrego do Caboclo, onde foi plantado o monocultivo do eucalipto
123
Foto 22 - Córrego São Domingos, na comunidade de São Domingos 124
Foto 23 - Córrego São Domingos, na comunidade de São Domingos 124
Foto 24 - Córrego da Pindoba, na comunidade de Roda D’Água 125
Foto 25 - Córrego da Pindoba, na comunidade de Roda D’Água 126
Foto 26 - Represamento do Córrego Fundo, na comunidade de Roda D’Água 127
Foto 27 - Represamento do Córrego Fundo, na comunidade de Roda D’Água 127
Foto 28 - Represamento do Córrego Fundo através da estrada construída pela Aracruz Celulose, na comunidade de Roda D’Água
127
Foto 29 - Manilhamento do Córrego Fundo sob a estrada construída pela Aracruz Celulose, na comunidade de Roda D’Água
128
Foto 30 - Situação do Córrego Fundo à jusante do manilhamento sob a estrada construída pela Aracruz Celulose, na comunidade de Roda D’Água
128
Foto 31 - As nascentes do Córrego dos Pretos/ Negros, afluente do São Domingos, foram ocupadas pela monocultura do eucalipto da empresa Aracruz Celulose S.A
130
Foto 32 - Cabeceira do Córrego do Ricardo (afluente do córrego do Angelim), coberta pelo plantio de eucalipto e aflorando água em decorrência das chuvas abundantes
130
Foto 33 - Córrego do Angelim, na comunidade de Angelim 1 131
Foto 34 - Córrego do Angelim, na comunidade de Angelim 1 131
Foto 35- Represa construída pela Aracruz Celulose na nascente de um afluente do Córrego do Angelim, na comunidade de Angelim 1
132
Foto 36 - Vista da Lagoa do Castelo, sem água e rodeada pelo plantio de eucalipto 133
Foto 37 - Lagoa do Mulato, com plantio de eucalipto em suas margens e água em decorrência de chuvas intensas. Comunidade Angelim
133
Foto 38 - Lagoa do Serra (Bacia do São Domingos), rodeada pelo plantio de eucalipto
134
Foto 39 - Lagoa do Serra (Bacia do São Domingos) em momento posterior ao corte (2001)
134
Foto 40 - Lagoa do Engenho represada pela estrada, rodeada pelo plantio de eucalipto, com pouca quantidade de água e muita vegetação em seu interior. Comunidade Linharinho
134
Foto 41 - Lagoa do Edísio (Cabeceira do Córrego Angelim), com plantio de eucalipto em suas margens e seu interior
135
Foto 42 - Lagoa dos Gracianos (bacia do São Domingos), rodeada pelo plantio de eucalipto. Comunidade São Domingos
135
Foto 43 - Lagoa do Braga, que alimentava o Córrego São Domingos, era habitada por uma grande quantidade de jacarés, irerês e peixes, e hoje se encontra aterrada
136
Foto 44 - Extração de areia da Lagoa dos Paus (bacia do São Domingos), onde se pode observar seu espelho d’água e o plantio de eucaliptos jovens em sua margem.
138
Foto 45 - A escassa e escura água do Córrego São Domingos, na comunidade de Linharinho
139
Foto 46 - Córrego São Domingos, na comunidade de Linharinho 139
Foto 47 - Córrego da Piaba, na comunidade de Roda D’Água 140
Foto 48 - A cor escura do Córrego da Piaba, na comunidade de Roda D’Água 140
Foto 49 - Aplicação de agrotóxico em cabeceira da Bacia do Angelim num período chuvoso, o que intensifica a contaminação dos cursos d’água
141
Foto 50 - A contaminação das águas é um risco que está também presente durante o abastecimento dos caminhões-pipa para posterior dissolução dos agrotóxicos em pó, conforme foi verificado no Córrego do Meio, Comunidade Linharinho
141
Foto 51 - Represa no Córrego Jueirana (afluente do São Domingos) em más condições ambientais. Comunidade São Domingos
142
Foto 52 - Dona Estela Valentin, moradora de São Jorge 144
Foto 53 - Registro dos acontecimentos em Linhares, em 2008 185
Foto 54 - Registro dos acontecimentos em Linhares, em 2008 185
Foto 55 - Registro dos acontecimentos em Linhares, em 2008 186
Foto 56 - Registro dos acontecimentos em Linhares, em 2008 186
Foto 57 - Registro dos acontecimentos em Linhares, em 2008 186
Foto 58 - Registro dos acontecimentos em Linhares, em 2008 187
Foto 59 - Registro dos acontecimentos em Linhares, em 2008 187
Foto 60 - Ocupação de Linharinho, em 2007 192
Foto 61 - Ocupação de Linharinho, em 2007 192
Foto 62 - Ocupação de Linharinho, em 2007 192
Foto 63 - Ocupação de Linharinho, em 2007 192
Foto 64 - Polícia na área para realizar a desocupação da área em Linharinho 193
Foto 65 - Invasão policial na comunidade de São Domingos, no dia 11 de novembro de 2009
195
Foto 66 - Invasão policial na comunidade de São Domingos, no dia 11 de novembro de 2009
195
Foto 67 - Invasão policial na comunidade de São Domingos, no dia 11 de novembro de 2009
196
Foto 68 - Invasão policial na comunidade de São Domingos, no dia 11 de novembro de 2009
196
Foto 69 - Invasão policial na comunidade de São Domingos, no dia 11 de novembro de 2009
196
Foto 70 - Quilombolas machucados pela ação policial 196
Foto 71 - Polícia no trevo de entrada de Conceição da Barra, na BR 101 196
Quadro 1 - Eventos que envolvem o processo de instalação e expansão da Aracruz Celulose
47,48
Quadro 2 - Extrato de Cadeia Dominial Vintenária (Córrego do Amorim) 59
Quadro 3 – Extrato de Cadeia Dominial Vintenária (Córrego do Sapato) 60
Gráfico 1 - População urbana e rural do Espírito Santo 26
Gráfico 2 – Potencial/capacidade de produção de celulose (ARCEL). 38
Gráfico 3 – Maiores produtores de celulose de fibra curta branqueada do mundo (milhões t/ano)
39
Gráfico 4 – Produtividade versus número de empregados (ARCEL) 42
Gráfico 5 – Produção de celulose pelo Grupo Aracruz 46
Gráfico 6 – Grupos de Área Total (estabelecimentos) - Conceição da Barra – 1940 a 1996
70
Gráfico 7 – Grupos de Área Total (área) - Conceição da Barra - 1940 a 1996 71
Gráfico 8 – Grupos de Área Total (estabelecimentos) - São Mateus – 1940 a 1996 72
Gráfico 9 – Grupos de Área Total (área) – São Mateus – 1940 a 1996 74
Gráfico 10 – Evolução do desmatamento no bioma Mata Atlântica 109
Gráfico 11 – Uso da terra (estabelecimentos) – Conceição da Barra – 1960 a 1996 111
Gráfico 12 – Uso da terra (área) – Conceição da Barra – 1950 a 1996 112
Gráfico 13 – Uso da terra (estabelecimentos) – São Mateus – 1960 a 1996 113
Gráfico 14 - Uso da terra (área) – São Mateus – 1950 a 1996 114
Mapa 1 – Estado do Espírito Santo 3
Mapa 2 – Municípios de São Mateus, Conceição da Barra, Pinheiros e Pedro Canário/ES.
3
Mapa 3 - Localização das comunidades do Sapê do Norte 85
Mapa 4 – Território quilombola de Linharinho 104
LISTA DE TABELAS
Tabelas Pág.
Tabela 1 - População do Espírito Santo em números absolutos e da Região Metropolitana da Grande Vitória em %
26
Tabela 2 - Índices de GINI de municípios do norte do Espírito Santo 30
Tabela 3 - Crescimento do monocultivo de eucalipto no Espírito Santo (ha) 33
Tabela 4 - Contribuições/financiamentos para a construção da Fábrica A da ARCEL 34
Tabela 5 - Composição acionária da ARCEL em 1975 35
Tabela 6 - Composição acionária da ARCEL em 1990 36
Tabela 7 - Composição acionária da ARCEL a partir de 2001 39
Tabela 8 - Recursos do BNDES repassados para a ARCEL até o ano de 2003 (US$, Cr$, R$)
41
Tabela 9 - Áreas de propriedade do Grupo Aracruz no Brasil 44
Tabela 10 - População da Vila de São Mateus – 1824 e 1827 51
Tabela 11 - Grupos de Área Total (estabelecimentos) Conceição da Barra - 1940 a 1996
70
Tabela 12 - Grupos de Área Total (área) – Conceição da Barra – 1940 a 1996
71
Tabela 13 - Grupos de Área Total (estabelecimentos) – São Mateus – 1940 a 1996
72
Tabela 14 - Grupos de Área Total (área) – São Mateus – 1940 a 1996
73
Tabela 15 - Área de matas naturais e plantios de eucalipto e cana-de-açúcar (%) - município de Conceição da Barra (2006/2008)
74
Tabela 16 - Área de matas naturais e plantios de eucalipto e cana-de-açúcar (%) - município de Conceição da Barra (2006/2008)
75
Tabela 17 - Uso da terra (estabelecimentos) - Conceição da Barra – 1960 a 1996 111 Tabela 18 - Uso da terra (área/ha) - Conceição da Barra – 1950 a 1996 112 Tabela 19 - Uso da terra (estabelecimentos) – São Mateus – 1960 a 1996 113 Tabela 20 - Uso da terra (área) – São Mateus – 1950 a 1996 114 Tabela 21 - Diversidade de espécies e endemismos presentes no bioma Mata Atlântica
115
Tabela 22 - Biomassa animal produzida em diferenciados ambientes (kg/ km²/ ano) 115 Tabela 23- Ocupação principal 161 Tabela 24 - Ocupação principal por faixa etária 162 Tabela 25 - Ocupação principal por sexo 162 Tabela 26 - Ocupação secundária 163
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABRAF – Associação Brasileira de Florestas
ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
ADIN – Ação Direta de Inconstitucionalidade
ADR – American Depositary Receipt (Recibo de Depósito de Ações)
AGB – Associação dos Geógrafos Brasileiros
AGU – Advocacia-Geral da União
ALES – Assembléia Legislativa do Espírito Santo
ANFPC – Associação Nacional dos Fabricantes de Papel e Celulose
ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária
APAL-CB – Associação dos Pequenos Agricultores e Lenhadores de Conceição da Barra
APP – Áreas de Preservação Permanente
APM – Aracruz Produtos de Madeira
ARCEL – Aracruz Celulose S. A.
ARFLO – Aracruz Florestal S. A.
BB – Banco do Brasil
BNDE – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
BNDESPAR – BNDES Participações
BOVESPA – Bolsa de Valores do Estado de São Paulo
BRACELPA – Associação Brasileira de Celulose e Papel
BRALANDA – Brasil Holanda Indústria S. A.
BVRJ – Bolsa de Valores do Rio de Janeiro
CDDH – Centro de Defesa dos Direitos Humanos
CDI – Conselho de Desenvolvimento Industrial
CF – Constituição Federal
CENIBRA – Celulose Nipo-Brasileira S. A.
CEPAL – Comissão Econômica e Social das Nações Unidas
CEPEDES – Centro de Estudos e Pesquisas para o Desenvolvimento do Extremo Sul da
Bahia
CODEMAT – Coordenadoria Nacional de Defesa do Meio Ambiente de Trabalho
CODES – Companhia de Desenvolvimento Econômico do Espírito Santo
COFAVI – Companhia Ferro e Aço de Vitória
CONAB – Companhia Nacional de Abastecimento
CONAFLOR – Comissão Coordenadora do Programa Nacional de Florestas
CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente
CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito
CBPO – Companhia Brasileira de Projetos e Obras
CSN – Companhia Siderúrgica Nacional
CST – Companhia Siderúrgica de Tubarão
CUT – Central Única dos Trabalhadores
CVRD – Companhia Vale do Rio Doce
DEM – Partido Democrata
DHAA – Direito Humano à Alimentação Adequada
DISA – Destilaria Itaúnas S/A
DOU – Diário Oficial da União
DST – Doença Sexualmente Transmissível
DTC – Divisão de Terras e Colonização
ECF – Elemental Chlorine Free (Livre de Cloro Elementar)
ECOTEC – Empresa de Consultoria Economia e Engenharia Industrial S/A
EIA/RIMA – Estudo e Relatório de Impacto Ambiental
EIDH/RIDH – Estudo e Relatório de Impactos em Direitos Humanos
ES – Espírito Santo
FAES – Federação de Agricultura do Espírito Santo
FAO – Food and Agriculture Organization (Organização para Alimentação e Agricultura)
FASE – Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional
FCP – Fundação Cultural Palmares
FIBASE – Insumos Básicos S/A - Financiamentos e Participações
FINAME – Agência Especial de Financiamento Industrial
FINEM – Financiamento a Empreendimentos
FLONIBRA - Florestas Nipo-Brasil
FOMES – Fórum de Mulheres do Espírito Santo
FSC – Forest Stewardship Council (Conselho de Manejo Florestal)
FINSIDER – Società Finanziaria Siderurgica (Sociedade Financeira Siderúrgica)
GERCA – Grupo Executivo da Racionalização da Cafeicultura
GERES – Grupo Executivo de Recuperação Econômica do Espírito Santo
GSI – Gabinete de Segurança Institucional
GT – Grupo de Trabalho
GTI – Grupo de Trabalho Interministerial
HISPANOBRA – Companhia Hispano-Brasileira de Pelotização
IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
IBC – Instituto Brasileiro de Café
IBDF – Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IDAF – Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal
IDH – Índice de Desenvolvimento Humano
IEMA – Instituto Estadual de Meio Ambiente
IFC – International Finance Corporation (Corporação Financeira Internacional)
IN – Instrução Normativa
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
IPEMA – Instituto de Permacultura e Ecovilas da Mata Atlântica
ISO – International Organization for Standardization (Organização Internacional Para a
Padronização)
ITABRASCO – Companhia Ítalo-Brasileira de Pelotização
JPB – Japan Brazil Paper and Pulp Resources Development Company (Empresa Nipo-Brasileira
para o Desenvolvimento de Recursos de Papel e Celulose)
MMA – Ministério do Meio Ambiente
MNDH-ES – Movimento Nacional de Direitos Humanos no Espírito Santo
MPA – Movimento dos Pequenos Agricultores
MPC – Movimento Paz no Campo
MPF – Ministério Público Federal
MPR - Movimento dos Produtores Rurais
MPT – Ministério Público do Trabalho
MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
NIBRASCO – Companhia Nipo-Brasileira de Pelotização
OEA – Organização dos Estados Americanos
OG – Observação Geral
OIT – Organização Internacional do Trabalho
ONG – Organização Não-Governamental
ONU – Organização das Nações Unidas
PDL – Partido Democrata Liberal
PFL – Partido da Frente Liberal
PGE - Procuradoria Geral do Estado
PIDESC – Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PMN – Partido da Mobilização Nacional
PND – Plano Nacional de Desenvolvimento
PNF – Plano Nacional de Floresta
PNPC – Programa Nacional de Papel e Celulose
PSB – Partido Socialista Brasileiro
PRO-ÁLCOOL – Programa Nacional de Álcool
PPDDH – Programa de Proteção dos Defensores de Direitos Humanos
RTID – Relatório Técnico de Identificação e Delimitação
SBS – Sociedade Brasileira de Silvicultura
SESP – Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social
SCA – Svenska Cellulosa Aktiebolaget
SIDERBRÁS – Siderurgia Brasileira S. A.
SIMCA – Sociéte Industrielle de Mécanique et Carrosserie Automobile (Sociedade Industrial de
Mecânica e Carroceria Automobilística)
SODEPA – Sociedade de Empreendimentos, Publicidade e Participações S/A
STD – Standard method
STF – Supremo Tribunal Federal
TCF – Total Chlorine Free (Livre de Cloro)
UFES – Universidade Federal do Espírito Santo
VEMAG – Verdener Maschinen- und Apparatebau Gmbh
WRM – World Rainforest Movement (Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais)
SUMÁRIO
1- APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................... 1
2 - INTRODUÇÃO.............................................................................................................................. 4
2.1 - Problematizando o conceito de “desenvolvimento”............................................................. 4
2. 2 - O desenvolvimento e os direitos humanos........................................................................... 10
2.3 - A especificidade do EIDH/RIDH no Espírito Santo: população quilombola e os direitos étnicos no Brasil .................................................................................................
14
3 - PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS...................................................................... 17
CAPÍTULO I - ARACRUZ CELULOSE/FIBRIA........................................................................... 24
I. 1 - OS CONTEXTOS NACIONAL E ESTADUAL DA INSTALAÇÃO DO PROJETO AGROINDUSTRIAL DA ARACRUZ CELULOSE NO ESPÍRITO SANTO..........................................
24
I. 2 - A CHEGADA DA ARACRUZ CELULOSE AO ESPÍRITO SANTO ................................................. 30
CAPÍTULO II - VIOLAÇÕES DOS DIREITOS TERRITORIAIS QUILOMBOLAS.................................................................................................................................
49
II. 1 - A TRAJETÓRIA TERRITORIAL QUILOMBOLA NO SAPÊ DO NORTE ................................. 49
II. 2 - AS AÇÕES DA ARACRUZ CELULOSE/FIBRIA E DO ESTADO NA EXPROPRIAÇÃO DOS TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS DO SAPÊ DO NORTE-ES.................................................................. II. 3 - CONCENTRAÇÃO FUNDIÁRIA E ÊXODO RURAL: ALGUMAS DAS CONSEQÜÊNCIAS DA EXPROPRIAÇÃO DOS TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS DO SAPÊ DO NORTE..............................................................................................................................................................
53
68
II. 4 - O PROCESSO DE RECONHECIMENTO E REGULARIZAÇÃO DOS TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS DO SAPÊ DO NORTE..................................................................................................................................................................................................................
75
II. 4.1 - A Legislação, sua implementação e as ameaças................................................................ 76
II. 4.2 - O processo de regularização dos territórios quilombolas do Sapê do Norte............... 83
a. Território de Linharinho................................................................................................................ 86
b. Território de Serraria e São Cristóvão.......................................................................................... 87
c. Território de São Jorge................................................................................................................... 87
d. Território de São Domingos e Santana.......................................................................................... 89
e. Território da Bacia do Angelim...................................................................................................... 90
II. 4.3 - Os principais entraves à regularização fundiária dos territórios quilombolas do Sapê do Norte.....................................................................................................................................
90
II. 4.3. 1 - As contestações e ação judicial da Aracruz Celulose/Fibria....................................... 90
II. 4.3.2 - O Movimento Paz no Campo (MPC)............................................................................... 93
II. 4.3.3 - A questão das terras devolutas......................................................................................... 102
II. 5 – CONSIDERAÇÕES.................................................................................................................. 106
CAPÍTULO III – A QUESTÃO AMBIENTAL NO TERRITÓRIO QUILOMBOLA DO SAPÊ
DO NORTE: IMPLICAÇÕES SOCIOAMBIENTAIS DO PLANTIO HOMOGÊNEO DE ÁRVORE EM LARGA ESCALA.....................................................................................................
108
III. 1 - AVALIAÇÃO DOS IMPACTOS SOCIOAMBIENTAIS À LUZ DE ALGUNS INSTRUMENTOS JURÍDICOS.............................................
149
CAPÍTULO IV - TRABALHO, ALIMENTAÇÃO E CRIMINALIZAÇÃO .............................. 155
IV. 1 - IMPACTOS SOBRE O DIREITO AO TRABALHO........................................................................... 155
IV. 2 - IMPACTO SOBRE O DIREITO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA E DIREITOS AFINS: O RELATÓRIO SOBRE O DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA (DHAA).......
165
IV. 3 - O PROCESSO DE CRIMINALIZAÇÃO E OS CONSTRANGIMENTOS ENFRENTADOS PELOS QUILOMBOLAS DO SAPÊ DO NORTE..........................................................................................
168
IV. 3.1 - Os acontecimentos no município de Linhares envolvendo quilombolas.................... 181
IV. 3. 2 - Outros acontecimentos relatados...................................................................................... 187
CONCLUSÕES.................................................................................................................................... 205
RECOMENDAÇÕES PARA O ESTADO BRASILEIRO NAS SUAS DIVERSAS ESFERAS E NÍVEIS .................................................................................................................................................
213
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................................. 219
ANEXO I – O PROCESSO DE GRILAGEM DE TERRAS ENVOLVENDO A ARACRUZ CELULOSE, COM ANÁLISE DE ALGUMAS CADEIAS DOMINIAIS
ANEX0 II– AÇÃO JUNTO AO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO OF/CODIN/ PRT-17ª/Nº 0231/2002
ANEXO III – INTERDITO PROIBITÓRIO PARA ALTIANE BLANDINO DO SANTOS E ANTÔNIO JORGE DOS SANTOS
ANEXO IV – MANDADO DE CITAÇÃO E INTIMAÇÃO DE EDNALDO C. SILVARES E ALDIR DA SILVA COSTA
ANEXO V – MULHERES E EUCALIPTO: HISTÓRIAS DE VIDA E RESISTÊNCIA
ANEXO VI - GASODUTO GASENE CACIMBAS-CATU
1
O projeto agroindustrial da Aracruz Celulose (Fibria) 1 e as
comunidades quilombolas do Sapê do Norte
1 – APRESENTAÇÃO
O chamado modelo hegemônico de desenvolvimento, que se baseia em grandes projetos
industriais, energéticos, minerais, agroindustriais e de infra-estrutura, tem desafiado
organizações de direitos humanos, particularmente aquelas existentes nos países do Sul, à
elaboração de estratégias político-metodológicas para o enfrentamento dos seus impactos
negativos. Experiências em diversas partes do mundo registram constantes violações de direitos
por parte de grandes empreendimentos e de Estados nacionais, que se apresentam como um
bloco que, conjuntamente, implementam as estratégias desenvolvimentistas, gerando impactos
significativos na realização dos direitos humanos.
No Brasil, a partir de acúmulos acerca do tema em fóruns nacionais de direitos
humanos, elaborou-se a proposta do instrumental Estudo e Relatório de Impacto sobre Direitos
Humanos em Grandes Projetos (EIDH/RIDH), objetivando incidir de maneira efetiva na relação
entre desenvolvimento e direitos humanos. Em 2004, tal proposta foi transformada numa
resolução na IX Conferência Nacional de Direitos Humanos. O EIDH/RIDH é um instrumento
análogo ao Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), no entanto, pretende ser
mais abrangente, porque propõe discutir aspectos para além dos que integram o rol deste
último, investigando questões relacionadas aos direitos humanos no seu conjunto.
Contudo, entre uma proposta e a sua instituição legal e aplicação, um longo caminho
precisa ser percorrido. O presente estudo faz parte de uma das etapas deste processo, ou seja,
busca construir argumentos para serem apresentados ao Ministério da Justiça acerca da
importância e da urgência da instituição deste novo instrumento, como um dos pressupostos
para avaliar a implantação de grandes projetos no Brasil.
Parece relevante informar que este estudo acerca dos impactos da monocultura de
eucalipto sobre populações quilombolas no Sapê do Norte (Espírito Santo) integra um projeto
mais amplo do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), que desenvolve mais
1 Em 2009, após 40 anos, a Aracruz Celulose S/A deixou de existir quando foi adquirida pela Votorantim. Hoje, os acionistas principais são o Grupo Votorantim e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Por ainda ser muito mais conhecida como ‘Aracruz’, principalmente entre as comunidades impactadas, optou-se, neste relatório, trabalhar com este nome.
2
outras três investigações: uma em Minas Gerais que busca investigar os impactos do plantio de
cana-de-açúcar em larga escala, uma no Rio Grande do Sul, que também tem como objeto
central os impactos do monocultivo de eucalipto da Aracruz Celulose (Fibria), e a terceira no
Maranhão sobre os impactos da soja. A escolha de duas experiências que envolvem a Aracruz
Celulose (Fibria) no Espírito Santo e Rio Grande do Sul constitui a possibilidade de se
identificar as ações de um único projeto produzindo impactos em realidades geográficas
distintas.
O eucalipto vem sendo posto como estratégia de desenvolvimento de estados do Brasil,
e os mais conhecidos destes são Espírito Santo, Minas Gerais, Bahia, São Paulo e Rio Grande do
Sul. São, em geral, grandes empresas, em sua maioria, movidas por capital e interesses
transnacionais, as que patrocinam os projetos de conversão das bases de produção local,
concentrando-se na monocultura como recurso para a produção e exportação de celulose.
Corroborando isso, há o fato de o plantio de árvores homogêneas estar sendo usado como
recurso ambiental, sobretudo no seio dos debates dos créditos de carbono e de outras iniciativas
de obter subsídios como pagamento pela “recuperação ambiental”. Portanto, o plantio de
eucalipto em larga escala toca em aspectos de fundo do modelo de desenvolvimento, baseado
no capitalismo globalizado, dialogando com questões ambientais, sociais, econômicas,
produtivas e, sobretudo, com a maneira dos empreendimentos lidarem com as populações que
ocupam tradicionalmente os territórios (ou vivem no seu entorno) nos quais os projetos são
instalados.
No caso do Espírito Santo, a violação dos direitos humanos de populações tradicionais
(indígenas e quilombolas) pela empresa Aracruz Celulose S/A já é bastante conhecida. Quando
a empresa iniciou sua atuação no estado, em 1967, os primeiros eucaliptos foram plantados no
município de Aracruz sobre os territórios indígenas dos povos Tupiniquim e Guarani. Em
seguida, a Aracruz expandiu-se para os municípios de Conceição da Barra e São Mateus no
extremo norte do Espírito Santo, sobretudo em território quilombola (MAPAS 1 e 2).
3
MAPA 1
Legenda: ���� Estado do Espírito Santo. Fonte: Salomão, 2006.
MAPA 2
Legenda: ���� Municípios de São Mateus, Conceição da Barra, Pinheiros e Pedro Canário/ES. Fonte: Salomão, 2006.
4
De acordo com os dados do IBGE de 2008, o plantio de eucalipto ocupa 34,55% da área
total do município de Conceição da Barra e 15,68% da área total do município de São Mateus
(CENSO AGROPECUÁRIO, 2006, IBGE, 2008).
O processo que envolveu o plantio de eucalipto do norte e extremo norte do Espírito
Santo produziu uma série de conseqüências para as comunidades quilombolas localizadas na
região chamada Sapê do Norte, entre elas a perda de grande parte do seu território, o que levou
a uma série de reações dessa população que, atualmente, luta pela sua retomada. Por causa dos
conflitos locais, as organizações de direitos humanos têm sido acionadas regularmente para
intervir. Essa proximidade com a realidade dos impactados deu uma base de informação para
indicar a experiência do Espírito Santo como uma das quatro a serem estudadas no Brasil.
O Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) e o Centro de Defesa dos
Direitos Humanos da Serra-Espírito Santo (CDDH-ES), respectivamente propositor e executor
do presente estudo, entendem o mesmo como uma contribuição modesta, mas centrada no viés
dos direitos humanos. Ademais, entendem que será um exercício significativo a fim de
“experimentar” novas metodologias e acumular conhecimentos para a proposição de novos
instrumentos de ação em direitos humanos.
2 – INTRODUÇÃO
2.1 – Problematizando o conceito de “desenvolvimento”
Pode-se aqui destacar três grandes ciclos de colonização da sociedade brasileira. O
primeiro iniciou com a chegada dos portugueses ao que hoje é o território brasileiro. Esse
processo de colonização perdurou até a segunda década do século XIX, quando foi declarada a
Independência do Brasil; o segundo ciclo foi marcado pela Revolução Industrial, quando o
Brasil, então “independente”, se ligou economicamente à Inglaterra. Para Florestan Fernandes
(2008), a inclusão da economia brasileira no mercado mundial, no século XIX, representou um
simples episódio do ciclo das modificações dos laços coloniais, no quadro histórico, criado pela
elevação da Inglaterra à condição de grande potência colonial. Os laços coloniais mudaram o
seu caráter e sofreram uma transferência.
5
Esse processo histórico-social, que vinculou o destino da nação emergente ao neocolonialismo [relações imperialistas constituídas, particularmente, pela Inglaterra], provocou conseqüências (políticas e econômicas) de enorme monta para a estruturação e a evolução do capitalismo no Brasil (FERNANDES, 2008, p.24).
O terceiro e último ciclo se iniciou no período Pós-Segunda Guerra Mundial,
quando os Estados Unidos buscaram hegemonizar o seu modelo de desenvolvimento
para o resto do mundo. Escreve o ativista alemão Wolfgang Sachs (2000, p. 118): “O
significado do desenvolvimento depende da maneira como as nações ricas se sentem”. A
afirmação de Sachs é dotada de sentido quando se vasculha na história2 as condições objetivas e
subjetivas que determinaram a implantação do projeto hegemônico de desenvolvimento a partir
de meados do século XX.3 Talvez um dos acontecimentos mais marcantes nos últimos 60 anos
foi o discurso do presidente estadunidense Harry Truman, quando buscou definir, no Pós-
Guerra, um padrão de desenvolvimento mundial, tomando como referência o modelo
tecnológico e industrial do seu país. Discursa Truman em 20 de janeiro de 1949:
É preciso que nos dediquemos a um programa ousado e moderno que torne nossos avanços científicos e nosso progresso industrial disponíveis para o crescimento e para o progresso das áreas subdesenvolvidas. O antigo imperialismo – a exploração para o lucro estrangeiro – não tem lugar em nossos planos. O que imaginamos é um programa de desenvolvimento baseado nos conceitos de uma distribuição justa e democrática (TRUMAN citado por ESTEVA, 2000, p. 60. Grifo nosso).
2 De acordo com o escritor e militante mexicano Gustavo Esteva (2000), o desenvolvimento descreve um processo pelo qual são liberadas as potencialidades de um objeto ou de um organismo para que esse venha a alcançar sua forma natural, completa e amadurecida. Daí o uso do termo para explicar o crescimento natural de plantas e animais. Na biologia, o desenvolvimento refere-se ao processo por meio do qual organismos atingem o seu potencial genético: “a forma natural daquele ser, prevista pelo biólogo”. Frustra-se o desenvolvimento “[...] todas às vezes que a planta e ou animal não lograssem cumprir seu programa genético [...]” (ESTEVA, 2000, p. 62). Tal acontecimento decorreria uma anomalia. Segundo o autor, a metáfora biológica do desenvolvimento para a esfera social, mais particularmente para a história, ocorreu a partir de meados do século XVIII, quando Herder buscou fazer a comparação entre as fases da vida humana com a história social. “Segundo ele, o desenvolvimento histórico seria a continuação do desenvolvimento natural; e ambos seriam meras variantes do desenvolvimento homogêneo do cosmos criado por Deus” (ESTEVA, 2000, p. 62). No início do século XIX, sustentado pela lógica antropocêntrica da modernidade o autodesenvolvimento tornou-se moda na Europa, abrindo “[...] todas as possibilidades para o sujeito humano, agora autor de seu próprio desenvolvimento e livre dos desígnios divinos”. Pouco mais adiante, o desenvolvimento (o desenvolvimento das forças produtivas) tornou a categoria central na obra de Karl Marx. “A concepção hegeliana da história e a darwinista da evolução fundiram-se no conceito de desenvolvimento e adquiriram novo vigor com a aura científica de Marx” (ESTEVA, 2000, p. 62). Nas fronteiras do século XIX e XX, o termo desenvolvimento incorporava o linguajar popular. Na virada do século XX, a palavra desenvolvimento é adjetivada pelo urbano: “desenvolvimento urbano” das áreas periféricas resultantes do processo de industrialização na Europa e nos Estados Unidos. Em 1939, o governo britânico edita a Lei de Desenvolvimento e Bem-Estar das Colônias, objetivando dar um conteúdo simpático à sua condição colonial: “Com a intenção de dar à filosofia do protetorado colonial um sentido positivo, os britânicos sustentavam que seria necessário assegurar níveis mínimos de nutrição, saúde e educação aos nativos. Um duplo mandato começou a ser esboçado: o conquistador deveria ser capaz de desenvolver a região conquistada e, ao mesmo tempo, de aceitar a responsabilidade de cuidar do bem-estar dos nativos. Quando o nível de civilização passou a ser identificado com o nível de produção, o duplo mandato deu lugar a apenas um: o desenvolvimento” (ESTEVA, 2000, p. 64). 3 O discurso proferido por Clinton Anderson, Secretário da Agricultura dos EUA, em 1946: “Não existe uma solução agradável. O fato de que em alguns países as pessoas morrem de fome não é razão suficiente para fornecer [assistência]... Nós estamos na posição de uma família que tem uma ninhada de filhotinhos indesejados; nós temos que decidir quais serão afogados.” (citado FRITH, 1995,citada por BARCELLOS, 2008, p. 29).
6
Com esse discurso, Truman inaugurou, segundo Esteva, a Era do desenvolvimento. Desde
então, o objetivo dos Estados Unidos foi inserir, particularmente os países do Sul, denominados
por eles de “subdesenvolvidos”, à nova dinâmica desenvolvimentista: “Naquele dia [20 de
janeiro de 1949], dois bilhões de pessoas passaram a ser subdesenvolvidas. [...] deixaram de ser
o que eram antes, em toda a sua diversidade, e foram transformados magicamente em uma
imagem inversa da realidade alheia” (ESTEVA, 2000, p. 60). Truman introduz o
desenvolvimento como símbolo de sua política externa, adotando, para alguns autores, outra
forma de colonização: nesse contexto, a palavra desenvolvimento adquiriu uma virulência
colonizadora insuspeita, construindo a necessidade de se escapar da condição indigna chamada
subdesenvolvimento. “Para que alguém possa sequer imaginar a possibilidade de escapar de
uma situação específica, é preciso, primeiramente, que tenha chegado àquela situação
específica” (ESTEVA. 2000, p. 60), ou seja, para a grande maioria da população mundial pensar
em alcançar o desenvolvimento econômico/industrial era preciso que assumisse a sua condição
de subdesenvolvida (BARCELLOS, 2008).
No conceito de desenvolvimento está inserida a idéia de “progresso cultural” vinculado
aos avanços científicos e tecnológicos.
O desenvolvimento é sinônimo de crescimento econômico, compreendido como a passagem de uma economia tradicional, eminentemente agrícola, para outra moderna, industrializada, favorecida por um processo de expansão quantitativa, por um contínuo progresso científico e tecnológico, aplicado à produção para fazer aumentar a produtividade, crescer o montante do capital e o PNB - Produto Nacional Bruto. (RIZZOTTO, citado por SALOMÃO, 2006, p. 102).
O capitalismo não compreende, em sua lógica, modos de vida que possuem
temporalidades distintas da sua. Assim, todos que não podem ser classificados segundo suas
categorias são invisibilizados ou subordinados. Neste caso, territórios ocupados por populações
não inseridas na dinâmica do capital são considerados vazios ou subutilizados.
Por outro lado, as sociedades do chamado Terceiro Mundo não são vistas com modos de
vida próprios, mas atrasadas e em direção a um desenvolvimento progressivo. Segundo
Salomão (2006), para justificar a industrialização a todo custo, faz parte da estratégia de
implantação dos grandes projetos a colocação da crença de que os empreendedores são os
portadores de uma mudança social: a população é vista como atrasada, a região estagnada e o
empreendimento será o portador do progresso para todos. Assim, os impactos negativos são
7
vistos como pequenos prejuízos necessários para o progresso e qualquer resistência é lida como
um obstáculo à mudança e ao progresso social, cultural e econômico.
Na grande maioria das vezes, na implantação de grandes projetos, as comunidades
envolvidas não são vistas como sujeitos políticos, produzindo-se o que Vainer (2006) chama de
naturalização das populações junto com o meio físico, ou seja, como se estas fizessem parte da
paisagem subordinada aos olhos verdadeiramente humanos. Falando de outra forma: é como se
estas populações não possuíssem o mesmo grau de humanidade dos sujeitos condutores do
desenvolvimento. São povos sem história, que vivem em “estado de natureza”, em estágios
inferiores de um mesmo continuum onde no ápice do desenvolvimento estão a Europa e os
EUA. Neste sentido, o desenvolvimento permitirá a essas populações a sua inclusão na história,
a sua humanização e, por conseqüência, a sua civilização.
Em praticamente todos os estudos de previsão e avaliação de impactos ambientais de grandes projetos temos uma divisão fundamental: a ação
impactante e o objeto impactado. De um lado o projeto, o empreendimento, o empreendedor; de outro lado, a região afetada, o meio ambiente impactado, a
população atingida. Na verdade, de um lado um sujeito de ações, de outro lado o
objeto, alvo ou campo de exercício destas ações [...] a população, suas formas de existência social e as formas vigentes de sua relação com o seu meio ambiente
vêem-se reduzidas a meio ambiente de obra. (VAINER, citado por SALOMÃO, 2006, p. 103. grifos do autor).
A idéia de subdesenvolvimento possibilita a definição de pobreza numa escala global,
Obviamente, em toda sociedade há coisas sendo produzidas, distribuídas e consumidas, mas
nem toda sociedade que possui uma atividade econômica se organiza a partir da lógica
capitalista. Entretanto, desde a década de 1950, o modo de vida das comunidades tradicionais
vem sendo incorporado à definição de pobreza.
[...] a naturalização da pobreza [...] corresponde ao desconhecimento de sujeitos sociais, especificidades culturais e contextos sócio-políticos. Temos a transformação da pobreza num objeto em si, descolada das relações societárias. (RIBEIRO, citado por SALOMÃO, 2006, p. 102)
Para Salomão (2006), no fim dos anos 60, ficou claro que a conjunção de crescimento
econômico com o progresso social não funcionava. No mais, a preocupação dos Estados Unidos
com o crescimento populacional mundial possibilitou, nesse mesmo período, o surgimento da
concepção neomalthusiana. Eles atribuíam a culpa dos problemas ambientais – que surgiam em
decorrência do processo acelerado de industrialização – ao crescimento populacional,
particularmente, nos países do Terceiro Mundo. Foi então que o presidente do Banco Mundial,
8
Robert McNamara, em 1973, propôs novas alternativas para a promoção do desenvolvimento:
rapidamente, fenômenos tais como desemprego, pobreza, injustiça e degradação ambiental
foram transformados em problemas que deveriam ser resolvidos com estratégias especiais de
desenvolvimento.
Dessa forma, problemas decorrentes do processo de industrialização foram
transformados em argumentos para dar continuidade ao projeto desenvolvimentista. “De tal
modo, a questão do crescimento econômico é colocada como condição a priori para a solução
dos problemas sociais” (RIZZOTTO, citado por SALOMÃO, 2006, p. 103). Desenvolvimento
tornou-se uma expressão não muito clara, mas que podia expressar qualquer coisa, uma vez
que “Desenvolvimento, assim, não tem conteúdo, mas possui, sim, uma função: permite
qualquer intervenção para ser santificado em nome de um objetivo maior, em evolução”
(SACHS, 1989, p. 7).
Mediante a publicação do Relatório da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento pela ONU, mais conhecido como o Relatório de Brundtland, em 1987, intitulado
“Nosso Futuro Comum”, pôde-se assistir novamente à escolha insistente da pobreza como a
causa principal da degradação ambiental e obstáculo à promoção do desenvolvimento. Acusou-
se a pobreza de reduzir a capacidade de uso dos recursos de forma sustentável: “[...] ela [a
pobreza] intensifica a pressão sobre o ambiente [...]. Uma condição necessária, mas não
suficiente para a erradicação da pobreza absoluta é um crescimento relativamente rápido nas
rendas per capita no Terceiro Mundo.” (COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E
DESENVOLVIMENTO, 1989, citada por SACHS, 2000, p. 121).
“Não há desenvolvimento sem sustentabilidade; não há sustentabilidade sem
desenvolvimento.” (Ibidem). O Relatório de Brundtland celebrou a união entre desenvolvimento
econômico e sustentabilidade. Segundo Barcellos (2008), se nas décadas de 1970 e 1980 a palavra
de ordem era redução populacional e crescimento econômico equitativo, nos anos 1990 passou a ser
desenvolvimento sustentável. No entanto, a estratégia discursiva continuava a responsabilizar o
Terceiro Mundo por sua incapacidade em abraçar o projeto moderno de desenvolvimento,
impedindo que se considerasse a presença definitiva dos chamados países desenvolvidos na
exploração dos recursos naturais e, por conseguinte, que se acertasse o verdadeiro alvo da crise
ambiental: o alto padrão de consumo dos países desenvolvidos. “Neste caso, agimos [o Primeiro
Mundo] como se possuíssemos uma considerável fatia do planeta fora da Europa”, aponta
9
Martínez-Alier (1999, citado por BARCELLOS, 2008, p. 34). No entanto, continua o autor: 4
“Quase ninguém está reclamando ou tentando cobrar de nós uma multa; porém, já se ouvem
ruídos vindos de baixo, relativos à ‘dívida ecológica’5 (com aspectos espaciais e temporais) que
isso constitui.” (MARTÍNEZ-ALIER, 1999, citado por BARCELLOS, 2008, p. 34).6
Quando da publicação do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em
1992, o mundo pôde constatar que as estratégias desenvolvimentistas implementadas por quase
quatro décadas falharam. Observou-se uma forte polarização da riqueza produzida entre as
décadas de 1960 e 1980: “[...] 82.7% do rendimento global ficam por conta dos 20% mais ricos,
enquanto que os 20% mais pobres ficam com 1.4%. Em 1960, o quinto do topo [20% mais ricos]
da população mundial ganhava trinta vezes mais do que o quinto da base [20% mais pobres]”
(PEET; WATTS, 1996, citados por BARCELLOS, 2008. p. 34). Ainda, de acordo com os autores,
até 1989, a disparidade havia crescido sessenta vezes. O desenvolvimento havia mudado a face
do Planeta, mas não da forma como se esperava: “Em 1960, os países do Norte eram 20 vezes
mais ricos que os do Sul; em 1980, essa proporção já havia aumentado 46 vezes” (SACHS, 2000,
p. 14).
Ao final do século XX, segundo Gustavo Esteva, a metáfora do desenvolvimento deu
hegemonia global a uma história puramente ocidental,7 roubando dos povos com culturas
diferentes a oportunidade de definir as formas de sua vida social.
Quando a metáfora [do desenvolvimento] voltou ao vernáculo, absorveu um poder colonizante súbito e violento, logo utilizado pelos políticos da época. Converteu a história em um programa: um destino necessário e inevitável. O
4 “Martínez-Alier (1999, p. 216) trabalha o conceito de distribuição ecológica: “[...] refere-se às assimetrias ou desigualdades sociais, espaciais e temporais na utilização pelos humanos dos recursos e serviços ambientais, objeto ou não de trocas comerciais, isto é, ao esgotamento dos recursos naturais (incluindo a perda da biodiversidade), bem como às cargas de poluição (BARCELLOS, 2008, p. 34) .” 5 “Segundo Martínez-Alier (1999, p. 217), a dívida ecológica é originada do uso de um espaço ambiental que vai além do próprio território. “O relatório da organização não-governamental Amigos da Terra (Friends of the Earth) acerca da Holanda, em 1993 [...], a partir de premissas adequadas, mostrou que aquele país absorve um espaço ambiental aproximadamente quinze vezes maior do que seu próprio território.” BARCELLOS, 2008, p.34) .” 6 “Otto Ullrich (2000, p. 345) escreveu: ‘No momento atual, a quantidade de combustível fóssil queimado por ano equivale ao que foi armazenado pela natureza em um período de quase um milhão de anos. A maior parte deste combustível, cerca de 80%, é utilizada pelos países industriais, onde vivem somente 25% da população mundial. Esse apetite voraz dos recursos torna-se ainda mais evidente no caso dos Estados Unidos: menos de 6% da população mundial consomem cerca de 40% dos recursos naturais do mundo. Se esse modo de produção industrial e estilo de vida se expandisse para toda a população da terra, seria necessário que cinco ou seis planetas iguais à Terra estivessem disponíveis para o saqueio de recursos e recolhimento do lixo.’” (BARCELLOS, 2008, p. 34) 7 Para Gustavo Esteva, “[...] a mera associação de nossos projetos de vida com o desenvolvimento tende a anulá-los, contradizê-los, subordiná-los. Ela impede que pensemos sobre nossos próprios objetivos [...]; ela corrói a autoconfiança e a confiança em nossa própria cultura [...]; ela clama por aquele tipo de gerenciamento de cima para baixo [...]; ela converte a participação em truque manipulativo para envolver indivíduos em conflitos para obter algo que os poderosos querem lhes impor [...] (ESTEVA, 2000, p. 64).
10
modo de produção industrial, que era nada mais que uma entre as muitas formas de vida social, tornou-se por definição o estágio final de um caminho unilinear para a evolução social. Esse estágio, por sua vez, passou a ser visto como a culminação natural de potenciais já existentes no homem neolítico e como sua evolução lógica. Assim, a história foi reformulada nos termos do Ocidente (ESTEVA, 2000, p. 63).
Observa-se que, a partir dos eventos citados e das reflexões esboçadas pelos diversos
autores, é difícil, senão impossível, desconectar a expressão “desenvolvimento” da lógica
moderno-industrial, já que ele se produz e reproduz – do ponto de vista material e simbólico –
dentro do contexto da sociedade moderno-industrial. Para Shiva (1991), por exemplo, as teorias
do desenvolvimento, na contemporaneidade, focam o progresso puramente derivado das
economias industrializadas, na pressuposição de que o estilo de progresso ocidental seria
possível para todos. O desenvolvimento, como a melhoria do bem-estar de todos, foi então
igualado com categorias ocidentalizadas – necessidades humanas, produtividade e crescimento:
“O desenvolvimento como acumulação de capital e mercantilização da economia para a geração
de ‘excedentes e lucros’ envolve, portanto, a reprodução não apenas de determinadas formas de
criação de riqueza, mas também [e sobretudo] formas de criação de pobreza.” (SHIVA, 1991,
citada por BARCELLOS, 2008, p.34).
A despeito da promoção do desenvolvimento inclusivo e para todos, conclui-se,
tomando como referência as questões aqui suscitadas, que o termo “desenvolvimento” é
marcado por um emaranhado de estratégias teórico-político-econômicas que busca garantir, em
última instância, fôlego ao modo de produção capitalista. Dito isto, a expressão
“desenvolvimento” deve estar sempre sob forte suspeitas e mesmo as ações ditas “bem
intencionadas” devem ser avaliadas com o rigor que a questão exige.
2. 2 - O desenvolvimento e os direitos humanos
Ao se analisar a relação desenvolvimento e direitos humanos, algumas indagações
devem ser consideradas: não estaria na gênese do desenvolvimento (hegemônico) a violação de
direitos humanos? É possível conceber uma forma digna de desenvolvimento dentro da
sociedade moderno-industrial? Seria possível identificar dentre os projetos de desenvolvimento
implantados nos países do Terceiro Mundo aqueles que respeitam os direitos humanos das
populações locais e, por conseguinte, o seu modo de vida? Estas questões se fizeram presentes
no decorrer desta investigação.
11
Tomando como parâmetros os documentos da ONU, pode-se observar que este
organismo abraçou fortemente a discussão acerca do desenvolvimento, tanto na implementação
de políticas que pudessem promover a “inclusão” dos países ‘pobres’ no projeto hegemônico de
desenvolvimento quanto em ações que pudessem lidar com os seus impactos negativos. Ao
mesmo tempo, populações impactadas negativamente pelas ações desenvolvimentistas viram-
se excluídas do desenvolvimento. Não obstante, a sua inclusão já estava dada, mas de forma
desigual e subordinada.
Na Resolução nº 41/128, de 4 de dezembro de 1986, publicada pela Assembléia Geral das
Nações Unidas, que trata da relação desenvolvimento e direitos humanos, definiu-se o
desenvolvimento como um processo econômico, social, cultural e político abrangente, “que visa
ao constante incremento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos com base
em sua participação ativa, livre e significativa no desenvolvimento e na distribuição justa dos
benefícios daí resultantes” (ONU, 1986). A Resolução confirma o direito ao desenvolvimento
como um direito humano inalienável e que a igualdade de oportunidade para o
desenvolvimento é uma prerrogativa também das nações/povos que compõem os Estados-
nação, ou seja, das diversas e diferentes nações que integram o conjunto do Estado-nação. E
mais, a Convenção 169 da OIT (aprovada no ano de 2002 pelo Congresso Nacional brasileiro e
promulgada em 2004 pela Presidência da República), no seu art. 7º, itens 1 a 3, estabelece que:
1. Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente.
2. A melhoria das condições de vida e de trabalho e do nível de saúde e educação dos povos interessados, com a sua participação e cooperação, deverá ser prioritária nos planos de desenvolvimento econômico global das regiões onde eles moram. Os projetos especiais de desenvolvimento para essas regiões também deverão ser elaborados de forma a promoverem essa melhoria.
3. Os governos deverão zelar para que, sempre que for possíve1, sejam efetuados estudos junto aos povos interessados com o objetivo de se avaliar a incidência social, espiritual e cultural e sobre o meio ambiente que as atividades de desenvolvimento, previstas, possam ter sobre esses povos. Os resultados desses estudos deverão ser considerados como critérios fundamentais para a execução das atividades mencionadas.
12
A Resolução nº 41/128 diz ainda, no seu art. 2°, que “A pessoa humana é o sujeito central
do desenvolvimento e deveria ser participante ativo e beneficiário do direito ao
desenvolvimento” (Ibidem). Para tanto, estabelece como obrigação para os estados nacionais,
signatários de tais instrumentos (Estados-partes), a de promover o respeito e a observância
universais aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, “sem distinção de
qualquer natureza, tal como de raça, cor, sexo, língua, religião, política ou outra opinião
nacional ou social, propriedade, nascimento ou outro status” (Ibidem).
A Resolução nº 41/128 toma os direitos humanos e as liberdades fundamentais como
indivisíveis e interdependentes. Por conseguinte, considera imprescindíveis a eliminação das
violações maciças e flagrantes dos direitos humanos dos povos e indivíduos afetados por
situações resultantes do colonialismo, neocolonialismo, apartheid, de todas as formas de racismo
e discriminação racial, dominação estrangeira e ocupação, agressão e ameaças contra a
soberania nacional, unidade nacional e integridade territorial. Tais eventos, segundo ela,
impedem o estabelecimento de circunstâncias propícias ao desenvolvimento de grande parte da
humanidade e à sua completa realização, implicando na negação dos direitos civis, políticos,
econômicos, sociais e culturais.
A Resolução incorpora ainda, no seu art. 1º, inciso II, o direito à autodeterminação:
O direito humano ao desenvolvimento também implica a plena realização do direito dos povos de autodeterminação que inclui, sujeito às disposições relevantes de ambos os Pactos Internacionais sobre Direitos Humanos, o exercício de seu direito inalienável de soberania plena sobre todas as suas riquezas e recursos naturais.
E no seu art. 2º, inciso II:
Os Estados [nacionais] têm o direito e o dever de formular políticas nacionais adequadas para o desenvolvimento, que visem ao constante aprimoramento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos, com base em sua participação ativa, livre e significativa e no desenvolvimento e na distribuição eqüitativa dos benefícios daí resultantes.
Art. 3º, inciso I: “Os Estados têm a responsabilidade primária pela criação das condições
nacionais e internacionais favoráveis à realização do direito ao desenvolvimento”; no seu art. 4º,
inciso I:
É necessária ação permanente para promover um desenvolvimento mais rápido dos países em desenvolvimento. Como complemento dos esforços dos países em desenvolvimento, uma cooperação internacional efetiva é essencial para prover esses países de meios e facilidades apropriados para incrementar seu amplo desenvolvimento.
13
Art. 6º, Inciso III: “Os Estados devem tomar providências para eliminar os obstáculos ao
desenvolvimento resultantes da falha na observância dos direitos civis e políticos, assim como
dos direitos econômicos, sociais e culturais”.
Art. 8º diz que:
1. Os Estados devem tomar, em nível nacional, todas as medidas necessárias para a realização do direito ao desenvolvimento e devem assegurar, inter alia, igualdade de oportunidade para todos, no acesso aos recursos básicos, educação, serviços de saúde, alimentação, habitação, emprego e distribuição eqüitativa da renda. Medidas efetivas devem ser tomadas para assegurar que as mulheres tenham um papel ativo no processo de desenvolvimento. Reformas econômicas e sociais apropriadas devem ser efetuadas com vistas à erradicação de todas as injustiças sociais.
2. Os Estados devem encorajar a participação popular em todas as esferas, como um fator importante no desenvolvimento e na plena realização de todos os direitos humanos.
E, no seu último artigo (art. 10) estabelece que “Os Estados deverão tomar medidas para
assegurar o pleno exercício e fortalecimento progressivo do direito ao desenvolvimento,
incluindo a formulação, adoção e implementação de políticas, medidas legislativas e outras, em
níveis nacional e internacional”.
Os conteúdos da Convenção 169 da OIT e da Resolução 41/128 possibilitam uma série de
reflexões acerca da relação desenvolvimento e direitos humanos, e ainda problematiza a própria
questão do desenvolvimento como possibilidade ou ameaça à realização dos direitos humanos.
Coloca com força a “[...] diferença entre os compromissos feitos pelo Estado (os direitos
humanos em princípio) e a possibilidade de desfrutar dos ditos direitos na realidade do país (os
direitos humanos na prática)” (RIGHTS AND DEMOCRACY, s/d, s/p). Esta diferença entre os
direitos humanos como princípio e a sua realização se explicita no fato de já terem se passado 23
anos desde a publicação da Resolução 41 e o que se pode observar é que, apesar da existência de
importantes instrumentos jurídico-políticos e dos esforços coletivos de diferentes sujeitos em
diversas partes do planeta, estes não conseguiram humanizar o processo de desenvolvimento,
particularmente, nos países do Terceiro Mundo. Observa-se constantemente a violação dos
direitos humanos de grupos e populações locais e/ou tradicionais em nome do
desenvolvimento. Neste sentido, o processo ocorrido no território quilombola do Sapê do Norte
exemplifica com bastante propriedade a desumanidade do desenvolvimento.
14
2.3 - A especificidade do EIDH/RIDH no Espírito Santo: população quilombola e os direitos étnicos no Brasil
A questão étnica tem grande relevância na realização do presente estudo. Refletir acerca
dos impactos de grandes projetos sobre populações quilombolas implica em se discutir
especificidades que envolvem estes sujeitos na sua trajetória sócio-histórica. Não é possível
ignorar que essas populações ocupam na sociedade contemporânea um lugar determinado ou
influenciado pela experiência colonial; que essa tradição persiste ao longo dos séculos e se
manifesta de diversos modos, reforçando o lugar de subalternidade dos negros no sistema-
mundo (WALLERSTEIN, 1990). No Brasil, apesar do discurso da miscigenação, da mistura de
raças, observa-se que esse lugar de exclusão e desrespeito continua existindo e, em muitos
casos, se ampliando. Para Boaventura de Sousa Santos, o Brasil pode estar transpondo o
período da pós-Independência e chegando ao período pós-colonial. Segundo o autor, a entrada
no pós-colonialismo “[...] dá-se pela constatação de que o colonialismo, longe de ter terminado
com a Independência, continuou sob outras formas, mas sempre em coerência com o seu
princípio matricial: o racismo como uma forma de hierarquia social não intencional, porque
assente na desigualdade natural das raças” (SANTOS, As dores do pós-colonialismo. Folha de
São Paulo. São Paulo: 11 ago. 2006).
No entanto, não se pode desconhecer a existência de instrumentos jurídico-políticos
internacionais que buscam romper com a subordinação de raça. Por isso, alerta a
desembargadora federal, Maria Lúcia Luz Leiria, que é preciso superar o conceito “quilombola”
vinculado à legislação colonial escravocrata, tendo em vista que:
a) a historiografia reconhece a diversidade cultural e de organização dos quilombos, que não se constituíam apenas de escravos fugitivos; b) a Associação Brasileira de Antropologia-ABA estabeleceu, com base em estudos empíricos, um marco conceitual, a servir de base para o tratamento jurídico; c) o dispositivo constitucional, de caráter nitidamente inclusivo e de exercício de direitos, não pode ser interpretado à luz de uma realidade de exclusão das comunidades negras; d) os remanescentes não constituem "sobra" ou "resíduo" de situações passadas, quando o comando constitucional constitui proteção para o futuro [...].8
8 D.E. Publicado em 07/05/2009. Relatora: Des. Federal Maria Lúcia Luz Leiria. Disponível em http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/1309395/agravo-de-instrumento-ag-10160-pr-20080400010160-5-trf4.
15
Nesse sentido, alguns instrumentos se destacam ao proporem medidas que contribuem
para que esses povos se constituam sujeitos de direito, entre eles está o Pacto Internacional dos
Direitos Políticos e Civis, instituído em 1966, pela Organização das Nações Unidas, que tem
como um dos seus eixos principais questões relacionadas ao princípio da autodeterminação dos
povos, que é o direito de cada povo dispor de seu destino.
Artigo 1º
1. Todos os povos têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito, determinam livremente seu estatuto político e asseguram livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural.
2. Para a consecução de seus objetivos, todos os povos podem dispor livremente de suas riquezas e de seus recursos naturais, sem prejuízo das obrigações decorrentes da cooperação econômica internacional, baseada no princípio do proveito mútuo e do Direito Internacional. Em caso algum poderá um povo ser privado de seus próprios meios de subsistência.
3. Os Estados-partes no presente Pacto, inclusive aqueles que tenham a responsabilidade de administrar territórios não autônomos e territórios sob tutela, deverão promover o exercício do direito à autodeterminação e respeitar esse direito, em conformidade com as disposições da Carta das Nações Unidas.
A Constituição Federal brasileira traz para o seu conteúdo questões tratadas pelo Pacto
Internacional. O art. 4º da CF afirma que as suas relações internacionais serão guiadas pelos
princípios: II - prevalência dos direitos humanos; III - autodeterminação dos povos; VIII -
repúdio ao terrorismo e ao racismo. Segundo Sandro Silva (2010), “a idéia mais importante da
legislação sobre os direitos étnicos no Brasil contemporâneo é a idéia de autodeterminação”.
Para ele, apesar de o seu propósito ser remetido mais diretamente aos direitos dos povos
indígenas e quilombolas, a idéia de autodeterminação pode ser acessada por grupos sociais
“cuja identidade e os modos de produção e reprodução cultural são comprometidas pelo poder
econômico, político e social”.
Nascida após a Segunda Guerra Mundial a idéia de autodeterminação é uma aplicação dos Direitos Humanos que pretende que nenhuma forma de discriminação seja usada contra as populações cuja identidade não seja hegemônica. O acesso às identidades e identificações terá a partir de agora a memória como lugar privilegiado especialmente pela autodefinição que, afastando qualquer forma de objetivação científica da identidade, privilegiará as formas de inscrição desenvolvidas socialmente. A verdade não estará mais no corpo, mas na capacidade de lembrar as atrocidades da guerra e da ideologia do extermínio. É neste sentido que o passado, enquanto vida coletiva, pode ser nomeado como identidade de grupo. Esta nova memória possibilitará pensar os grupos e seus lugares de fabricação, seja a origem comum, a cultura comum, o território comum (SILVA, 2010)
16
Corrobora o princípio da autodeterminação o direito à auto-identificação. De acordo
com a Comissão Pró-índio, “a legislação brasileira reconhece como critério para determinação
de comunidades como quilombolas a auto-identificação. Esse critério está reconhecido no artigo
2º do Decreto 4.887/2003. Também está presente na Convenção 169 da OIT que estabelece o
critério da auto-identificação como fundamental para identificar os sujeitos de sua aplicação. O
direito de uma comunidade inteira se reconhecer quilombola abre um rico e profundo debate
sobre a importância de sua identidade sociocultural e a fortalece como sujeito coletivo de
direito.
Outro instrumento importante, neste caso de combate ao racismo, é a Convenção sobre a
Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial adotada pelas Nações Unidas em 21 de
dezembro de 1965 e ratificada pelo Brasil em 27 de março de 1968. Constitui o primeiro
instrumento internacional que trata, com profundidade, da relação entre racismo e direitos
humanos.
Na qualidade de instrumento global de proteção dos direitos humanos editado pelas Nações Unidas, a Convenção integra o denominado sistema especial de proteção dos direitos humanos. O sistema especial de proteção dos direitos humanos é endereçado a um sujeito de direito concreto, visto em sua especificidade e na concreticidade de suas diversas relações. Vale dizer, do sujeito de direito abstrato, genérico, destituído de cor, sexo, etnia, idade, classe social, dentre outros critérios, emerge o sujeito de direito concreto, historicamente situado, com especificidades e particularidades. Daí apontar-se não mais ao indivíduo genérica e abstratamente considerado, mas ao indivíduo especificado, considerando-se categorizações relativas ao gênero, idade, etnia, raça.
A Convenção afirma a necessidade de se eliminar a discriminação racial no mundo, em
todas as suas formas e manifestações, e de assegurar a compreensão e o respeito à dignidade da
pessoa humana, com a convicção “de que a doutrina da superioridade baseada em diferenças
raciais é cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa, e que
não existe justificação para a discriminação racial, em teoria ou na prática, em lugar algum”. A
Convenção estabelece o racismo como crime que deve ser combatido por todos os Estados-
partes.
No entanto, no Brasil, há forte reação por parte da elite, que organiza estratégias para
impedir avanços para que o Estado reconheça o imenso passivo que tem com os afro-
descendentes, parcela expressiva da população brasileira, e institua políticas e ações afirmativas
no sentido de contribuir para a realização dos seus direitos humanos. Escreve Boaventura de
Sousa Santos:
17
Assim se naturalizou um sistema de poder, até hoje em vigor, que, sem contradição aparente, afirma a liberdade e a igualdade e pratica a opressão e a desigualdade. Assentes nesse sistema de poder, os ideais republicanos de democracia e igualdade constituem hipocrisia sistêmica. Só quem pertence à raça dominante tem o direito (e a arrogância) de dizer que a raça não existe ou que a identidade étnica é uma invenção. O máximo de consciência possível dessa democracia hipócrita é diluir a discriminação racial na discriminação social. Admite que os negros e os indígenas são discriminados porque são pobres para não ter de admitir que eles são pobres porque são negros e indígenas. (SANTOS, As dores do pós-colonialismo. Folha de São Paulo. São Paulo: 11 ago. 2006).
Em 2001, a Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e
Intolerância Correlata observou que “[...] apesar dos esforços da comunidade internacional, os
principais objetivos [estabelecidos para as] três décadas de Combate ao Racismo e
Discriminação Racial não foram alcançados e que inúmeros seres humanos continuam até hoje a
ser vítimas do racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância. Tal constatação reforça a
idéia de que existe uma distância substancial entre a existência dos instrumentos de direitos
humanos e a sua realização de fato. Portanto, a luta anti-racista no interior da sociedade é
condição imprescindível para a sua superação. Afirma Santos (2006):
Uma democracia de muito baixa intensidade. A sua crise final começa no momento em que as vítimas da discriminação se organizam para lutar contra a ideologia que os declara ausentes e as práticas que os oprimem enquanto presenças desvalorizadas. Os agentes dessas lutas distinguem-se dos seus antecessores por duas razões. Em primeiro lugar, empenham-se na luta simultânea pela igualdade e pelo reconhecimento da diferença. Reivindicam o direito de ser iguais quando a diferença os inferioriza e o direito de ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza. Em segundo lugar, apostam em soluções institucionais dentro e fora do Estado para que o reconhecimento dos dois princípios seja efetivo. Daí a luta pelos projetos de Lei de Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial. O alto valor democrático desses projetos reside na idéia de que o reconhecimento da existência do racismo só é legítimo quando visa a sua eliminação. É o único antídoto eficaz contra os que têm o poder de desconhecer ou de negar o racismo para continuar a praticá-lo impunemente. Esses projetos de lei, se aplicados, darão ao Brasil uma nova autoridade moral e um novo protagonismo político no plano internacional (SANTOS, As dores do pós-colonialismo. Folha de São Paulo. São Paulo: 11 ago. 2006).
3 – PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Se por um lado a chegada de um grande investimento, no Brasil, é uma boa notícia para
o Estado, governos e investidores; por outro, pode ser motivo de alerta para comunidades locais
que terão que conviver, na maioria das vezes, com os impactos negativos do empreendimento.
18
Observa-se, particularmente, a partir da implantação de grandes projetos em países do Terceiro
Mundo, que comunidades têm utilizado de vários métodos para se fazer ouvir, seja porque já
vivenciam os impactos negativos ou porque buscam se antecipar a eles, temendo o
comprometimento do seu futuro. Contudo, em geral, quando as comunidades se confrontam
com governos e empresas implicadas, observa-se um grande desequilíbrio na correlação de
forças e as populações, que dispõem de poucos instrumentos (institucionais e organizativos),
acabam por “levar a pior nessa queda de braços”. Diante de tantos acontecimentos, são cada vez
mais numerosos aqueles que se inquietam com os impactos de grandes projetos
desenvolvimentistas, em especial neste caso os agroindustriais, sobre populações locais,
sublinhando dentre esses impactos a flagrante violação de direitos humanos.
Um investimento estrangeiro, na maioria das vezes, vindo do Norte, que busca realizar
aquisição de bens em um país, na maioria das vezes, do Sul, como de terras e de outros recursos
naturais, pode vir a assumir formas e conteúdo muito complexos, desorganizando o ambiente
local. Investidores, precavendo-se de qualquer transtorno e/ou comprometimento dos seus
investimentos, procuram reduzir os riscos em potencial, ou seja, apostam nas melhores
condições ambientais (matéria-prima, terra, recursos hídricos etc), mão-de-obra barata, leis mais
flexíveis, incentivos e subsídios oferecidos pelo país anfitrião, infra-estrutura, etc. Também são
avaliados os níveis de resistência e potencial de alianças político-institucionais locais, regionais
e nacionais.
As comunidades locais, por sua vez, ao se depararem com uma nova realidade, precisam
constituir os seus próprios instrumentos de proteção aos interesses da coletividade, de avaliação
e porque não dizer de resistência. Vários instrumentos foram instituídos no Brasil buscando
prevenir e/ou minimizar os impactos negativos de grandes projetos, a exemplo dos EIA/RIMAs,
da incorporação do custo ambiental pelos empreendimentos, da instituição do princípio
poluidor-pagador. No entanto, observa-se que tais instrumentos têm sido sistematicamente
burlados e/ou manipulados para legitimar ações de agressão ao meio ambiente, objetivando
ampliar cada vez mais o poder de acumulação de capital.
O EIDH/RIDH busca ser um instrumento que possibilitará levantar os impactos sobre os
direitos humanos de um projeto de investimento. Desta forma, objetiva-se ampliar o raio de
investigação acerca de um grande investimento, incorporando-lhe novas questões para além
daquelas, por exemplo, levadas em conta em um EIA/RIMA. Para tanto, toma-se como
referência, além da Resolução 41/128 de 1986, os princípios integrantes da Declaração Universal
dos Direitos Humanos e os tratados e acordos internacionais assinados pelo Brasil (veja abaixo).
19
Ao mesmo tempo, busca-se superar a idéia de que só especialistas têm condições de realizar
análises de impactos, destituindo as populações locais dos seus saberes/conhecimentos sobre o
seu ambiente. É preciso incorporar o olhar dos que vivem nas regiões e lugares impactados.
Para isso, é necessário estabelecer novas metodologias que impeçam a fragmentação da
realidade e do sujeito implicado nela; que acionem espaços efetivos e legítimos de participação
popular; que impeçam que tais instrumentos fiquem reféns daqueles que buscam privilegiar tão
somente a dimensão econômica/mercantil do investimento.
O presente estudo organizou seu roteiro de trabalho com base nas orientações do Centro
Internacional de Direitos Humanos e Desenvolvimento Democrático, conhecido como Rights
and Democracy.9 No guia que esta entidade elaborou para a realização de estudos de impactos
sobre direitos humanos, são sugeridas 24 etapas para a realização do estudo, contemplando
desde a elaboração do projeto até o momento de divulgação do relatório final. Neste caso
específico, buscando adequar a proposta do Rights and Democracy à realidade local, foram
realizadas apenas 18 etapas distribuídas em quatro grupos:
(i) A preparação do Estudo foi constituída por seis etapas, sendo elas: escolha de
uma coordenação para o projeto; encontro com as comunidades/lideranças
(Comissão Quilombola do Sapê do Norte) e aliados/apoiadores para
apresentação da proposta; estabelecimento dos objetivos do estudo; escolha
dos membros da equipe; determinação de como se reunir/levantar a
informação; elaboração de um plano de trabalho.
(ii) No campo do marco Jurídico, as etapas foram quatro: a identificação dos
tratados e acordos internacionais assinados pelo Brasil relacionados à
proteção dos Direitos Humanos; os instrumentos jurídicos nacionais,
estaduais e municipais de proteção aos direitos humanos; a seleção dos
Direitos Humanos a serem confrontados durante a pesquisa; e a seleção de
perguntas. Trabalhar de acordo com o marco de referência dos direitos
humanos significa observar e analisar uma situação, baseando-se nos direitos
garantidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Este
procedimento permite esclarecer o papel dos responsáveis (governos) e dos
titulares de direitos (que vivem sob a jurisdição do Estado). De acordo com
“Rights and Democracy”:
9 Ver: www.dd-rd.ca. Em português: “Direitos e Democracia”.
20
Um marco de referência de direitos humanos se baseia em um certo número de
princípios. Alguns dos mais importantes são os seguintes: a) participação e acesso à
informação: todos têm direito de participar no planejamento e na realização de decisões
que afetam seus direitos humanos e têm direito a acessar informação necessária para
participar verdadeiramente; b) imputabilidade e acesso a soluções eficazes: os
responsáveis (governos) têm obrigação de implementar seus compromissos relativos aos
direitos humanos. Os cidadãos devem ter acesso aos recursos eficazes quando correm a
violação dos seus direitos humanos; c) igualdade e não discriminação: todos os seres
humanos são iguais e ninguém deve ser sujeitado à discriminação. Deve-se outorgar
uma atenção especial a toda ação que pode resultar em discriminação, particularmente
contra os grupos mais vulneráveis; d) indivisibilidade dos direitos: todos os direitos
humanos, sejam sociais, econômicos, culturais, civis e políticos, são indivisíveis, estão
inter-relacionados e são interdependentes. [...] Uma avaliação de impacto em direitos
humanos (EIDH) é um processo que mede a diferença entre os compromissos feitos pelo
Estado (os direitos humanos em princípio) e a possibilidade de desfrutar dos ditos
direitos na realidade do país (os direitos humanos na prática). A avaliação trata de
identificar os direitos que não se respeitam ou para os que existem fortes indicadores de
que não serão respeitados no futuro (tradução nossa).
(iii) O processo de investigação foi divido em duas etapas: levantamento de dados
(empíricos); levantamento de informações disponíveis (revisão de literatura e
de documentos oficiais).
(iv) A análise e a divulgação do relatório foram constituídas em seis etapas:
sistematização e análises das informações; elaboração de um relatório (RIDH)
preliminar; seminário com as comunidades quilombolas e aliados/parceiros
para a apresentação e discussão do relatório preliminar; incorporação ao
relatório preliminar das alterações/sugestões; audiência pública aberta à
sociedade como um todo, quando deverão ser convidados representantes do
Estado e da Empresa; revisão do relatório; divulgação do relatório.
Após a escolha da coordenação pelo Centro de Defesa dos Direitos Humanos da Serra
(CDDH), foi marcada uma reunião com a participação de aproximadamente 100 pessoas (70
quilombolas de várias comunidades e lideranças integrantes da Comissão Quilombola Sapê do
Norte e apoiadores/aliados, tais como: lideranças indígenas; Observatório dos Conflitos no
Campo da Universidade Federal do Espírito Santo, professores, pesquisadores e alunos desta
universidade; Fórum de Mulheres do Espírito Santo (FOMES); Movimento dos Pequenos
Agricultores/MPA); Rede Alerta Contra o Deserto Verde; Federação dos Órgãos de Assistência
Social e Educacional (FASE); CDDH e Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos
Humanos (PPDDH), onde foram expostas as idéias acerca do estudo. Depois de uma longa
discussão, a proposta foi bem recebida pelos presentes, que enunciaram algumas questões, tais
como: que o estudo fosse utilizado para denunciar a situação de violência e opressão vivida
21
pelas comunidades; que fortalecesse a sua luta pelo território tradicional quilombola. Com
relação aos eixos, deliberou-se que o estudo investigasse, em especial:
a) a situação dos criminalizados/constrangidos/perseguidos;
b) as questões relacionadas ao território quilombola;
c) a destruição dos ecossistemas locais;
d) o comprometimento da sua cultura.
A partir daí, começou-se a esboçar de forma um pouco mais detalhada o estudo,
definindo-se por três eixos de investigação: Os impactos sobre o Território/terra, os impactos
socioambientais e a situação de criminalização de quilombolas. O aspecto cultural deveria
perpassar as análises dos três eixos de investigação. Para tanto, estabeleceu-se um
subcoordenador para cada eixo.
Em seguida, foi marcada uma reunião com a Comissão Quilombola, quando foram
escolhidos três jovens quilombolas para contribuir no levantamento de dados. Foi proposto pela
comissão que o estudo priorizasse o levantamento da situação dos quilombolas criminalizados,
constrangidos e perseguidos dentro de suas comunidades pela Visel e Garra, empresas de
segurança da Aracruz Celulose, pela Polícia Militar e por outros funcionários ou aliados da
Empresa, como é o caso do Movimento Paz no Campo (MPC), constituídos por fazendeiros,
latifundiários e pequenos proprietários instalados nas regiões do entorno das comunidades.
Diante da solicitação, decidiu-se por priorizar tal levantamento e para isso foi usado o
questionário do Programa de Proteção dos Defensores dos Direitos Humanos (PPDDH). Foram
preenchidos 44 questionários.
A fase seguinte foi se debruçar sobre os marcos jurídicos no âmbito internacional que foram
confrontados com os dados resultantes do estudo. Tomaram-se como referências:
1. Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948 e ratificada pelo Brasil em 10 de dezembro de 1948.
2. Convenção sobre a Eliminação de todas das formas de Discriminação Racial adotada pelas Nações Unidas em 21 de dezembro de 1965 e ratificada pelo Brasil em 27 de março de 1968.
3. Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), ratificado pelo Brasil em 24 de abril de 1992
4. Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966), ratificado pelo Brasil em 24 de abril de 1992.
5. Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (1979), ratificado pelo Brasil em 2 de março de 1984.
22
6. Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais (1989), ratificada pelo Brasil em 25 de julho de 2002.
7. Convenção 111 sobre a Discriminação (emprego e ocupação) da Organização Internacional do Trabalho aprovada em 1958, ratificado em 16 de novembro de 1965.
8. Declaração sobre o Direito e o Dever dos Indivíduos, dos Grupos e das Instituições de Promover e Proteger os Direitos Humanos e as Liberdades Fundamentais Universalmente Reconhecidos, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 9 de dezembro de 1998.
9. Declaração Final dos Defensores de Direitos Humanos na III Consulta Latino-
Americana de Defensores e Defensoras dos Direitos Humanos, ocorrida em São Paulo,
em agosto de 2004.
Em âmbito nacional e estadual, tomaram-se como referências:
1. Constituição Federal do Brasil: Artigos 215, 216 e 225 da CF e Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
2. Constituição do Estado do Espírito Santo
3. Legislação que regulamenta a demarcação de terras quilombolas no Brasil (Decreto 4887/2003).
4. Legislação ambiental: Código Florestal 1965 e Resolução CONAMA nº 001 de 23 de janeiro de 1986 - EIA/RIMA.
5. Decreto de 13 de julho de 2006, que altera a denominação, competência e composição da Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.
6. Decreto 6.040 de 07 de fevereiro de 2007, que instituiu a Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais
7. Lei Estadual nº 5.623/98, que reconhece a propriedade definitiva de terras devolutas ocupadas por comunidades remanescentes de quilombolas;
8. Lei Estadual 617/1951, Lei Delegada Estadual 16/1967 e Decreto-Lei 2.688/1968 sobre terras devolutas.
Em seguida, foram cadastradas as pesquisas e trabalhos realizados sobre as
comunidades quilombolas: dissertação de mestrado e tese de doutorado de Simone Raquel
Batista Ferreira, dois relatórios sobre os “Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (DESC 1 e
2) elaborados pela FASE em parceria com a Rede Alerta Contra o Deserto Verde, Cartilha
Mulheres e Eucalipto editada pelo Movimento Mundial de Defesa das Florestas Tropicais
(WRM), em anexo a este relatório; Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID)
produzidos por equipes contratadas pelo INCRA/ES para o reconhecimento do território
quilombola no Sapê do Norte; tese de doutorado de Gilsa Helena Barcellos; tese de
doutorado de Marilda Maracci; Relatório final da CPI da Aracruz Celulose instalada pela
23
Assembléia Legislativa em 2002; Cartilha “Direitos Humanos e Aracruz Celulose”,
publicada pela Câmara Federal; a publicação “Quilombolas do Sapê do Norte: as
comunidades negras de Conceição da Barra e São Mateus”, da Koinonia (2005); Relatório da
autoria de Anna Fanzeres intitulado “Temas conflituosos relacionados à expansão da base
florestal plantada e definição de estratégias para minimização dos conflitos”, realizado em
2005, a pedido da Comissão Coordenadora do PNF (CONAFLOR); relatórios produzidos
pelo PPDDH; Relatório “O Gasoduto Cacimbas/Catu e as comunidades quilombolas do
Sapê do Norte”, de autoria de Sandro Silva (2009), em anexo a este relatório.
Com os dados em mãos, iniciou-se o processo de escrita do Estudo e Relatório de
Impactos em Direitos Humanos. Na medida em que questões importantes eram apontadas
pela revisão da literatura, novas perguntas e/ou sujeitos eram integrados à pesquisa
empírica.
24
I - ARACRUZ CELULOSE/FIBRIA
I. 1 - OS CONTEXTOS NACIONAL E ESTADUAL DA INSTALAÇÃO DO PROJETO AGROINDUSTRIAL DA ARACRUZ CELULOSE NO ESPÍRITO SANTO
De acordo com Barcellos (2008), os anos de 1970 foram de grandes mudanças,
particularmente para o Brasil, caracterizadas pela adoção de uma estratégia desenvolvimentista
pautada na implantação de grandes projetos orientados para atender o mercado externo,
marcando a inclusão do Estado capixaba no projeto nacional de desenvolvimento econômico.
Uma das medidas do Governo Federal era a constituição de pólos intermediários de
desenvolvimento, em cidades de porte médio, buscando desviar o grande fluxo migratório dos
estados do Nordeste rumo a São Paulo. Corroborando o desejo da elite capixaba de inclusão do
Estado na dinâmica da economia nacional, o Espírito Santo foi incorporado a essa estratégia
desenvolvimentista. No entanto, para garantir um crescimento econômico mais duradouro e de
relativa autonomia, seria necessária a implantação de empresas de grande porte, que
funcionassem como pólos de desenvolvimento por meio da geração dos efeitos em cadeia das
suas atividades sobre outras atividades econômicas (DALCOMUNI, 1990). Um eficiente projeto
de dominação e controle do espaço e, por conseguinte, de desterritorializações.
O Plano de Ação do Banco de Desenvolvimento do Espírito Santo (BANDES) para os
anos de 1975-79 definia quatro grandes complexos prioritários: o complexo siderúrgico
(construção da CST, expansão da COFAVI, implantação das usinas de pelotização da CVRD,1
implantação da usina de pelotização da Samarco), o complexo naval (implantação de estaleiro
de reparos navais), o complexo paraquímico (investimentos em infra-estrutura, indústrias e
plantio de eucalipto da ARCEL, ampliação das atividades da Flonibra,2 incluindo a exportação
de cavacos de madeira) e o complexo portuário (porto de Tubarão, porto privado da ARCEL –
Portocel –, terminal de exportação de Ubu e projeto portuário no canal da baía de Vitória)
(DALCOMUNI, 1990). Para esses, o Governo Estadual buscava garantir as condições com vistas
1 A Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) teve sua sede transferida para o Espírito Santo em 1961. Desde então, ela passou a influenciar a dinâmica da economia e da política capixaba. A Empresa ampliou os seus investimentos no Estado, com o objetivo de aumentar e aperfeiçoar a estrutura de exportação de minério de ferro, e também diversificou as suas atividades, com vistas a potencializar o uso da sua infra-estrutura de transportes. A CVRD – e suas subsidiárias, a Floresta Rio Doce e a Docemade –, uma das maiores reflorestadoras do País, tinha como projetos a exportação de cavacos de madeira. “Em 1974, ela possuía 56 mil hectares no Espírito Santo e Minas Gerais, 15 mil hectares na zona do Rio Doce e 300 mil hectares no médio vale do rio Jequitinhonha.” (FERREIRA, S. R., 2002, p. 124). 2 A Flonibra (Empreendimentos Florestais S.A.) foi constituído em 1974, mediante a associação da CVRD com capital japonês, Japan Brazil Paper and Pulp Resources Development Co. JPB, e suas atividades, produção de cavacos e celulose. Localizava-se no Espírito Santo e no Sul da Bahia (FERREIRA, S. R., 2002). Quando encerrou as suas atividades, em 1984, suas terras, 155 mil hectares, foram transferidas para a Cenibra Florestal, empresa pertencente aos mesmos grupos (CARRERE; LOHMANN, 1996, citados por BARCELLOS, 2008, p.148).
25
à sua implantação e/ou expansão, fazendo gestões perante o Governo Federal, que se
encontrava em pleno vapor com a implantação do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II
PND). “O II PND, portanto, aglutinou e financiou projetos suscitados pelo crescimento dos
mercados internos e externos durante o período do ‘milagre’, possibilitando sua concretização.
É o que se verifica, por exemplo, com a implantação da Aracruz Celulose S.A.” (DALCOMUNI,
1990, p. 182). Essa empresa pôde dispor, juntamente com outras empresas plantadoras de
eucalipto, entre os anos de 1967 e 1987, de investimentos estaduais da ordem de US$ 75.736.990
(Ibidem).
Para o capital internacional, ávido por se instalar em território brasileiro, podendo
contar com incentivos dos mais variados, matéria-prima em larga escala, mão-de-obra barata e
com um Estado negligente na garantia de direitos trabalhistas e no cumprimento de regras
ambientais, mas atento para fazer valer os interesses empresariais, a situação não podia ser mais
favorável. Somava-se a tudo isso a excelente localização geográfica do Espírito Santo, banhado
pelo Oceano Atlântico, que permite uma razoável estrutura portuária.
Com o passar do tempo, observa-se que os impactos da implantação dos grandes
projetos sobre as características demográficas estaduais foram diversos. O maior percentual
registrado de crescimento populacional foi durante os anos 1960, chegando a 36,59%. No
entanto, ainda nesse período, a população rural se sobrepunha à população urbana. A inversão
só viria a ocorrer na década de 70, quando se registrou um crescimento populacional de 26,51%,
com 63,92% dos habitantes vivendo no espaço urbano (TAB. 1 e GRAF. 1). Ou seja, até o final da
década de 60, os fluxos migratórios se relacionavam não somente, mas sobretudo à crise
cafeeira, conforme registrou Helder Gomes (2008). A partir de 1970, o perfil e o caráter do fluxo
migratório mudam. Nesse período, observa-se um acelerado processo de urbanização da
população capixaba. Os responsáveis foram os fluxos migratórios internos e externos. Estes
últimos vindos de várias regiões do País, em especial dos estados da Bahia e de Minas Gerais,
atraídos pelos grandes projetos, para formar, na maioria das vezes, o exército industrial de
reserva.3
3 O município da Serra, por exemplo, nos anos 1970, teve o maior crescimento populacional do Estado, chegando à casa dos 16% ao ano. O número de moradores cresceu de 17,2 mil para 82,5 mil no período de implantação da Companhia Siderúrgica de Tubarão (CST). De acordo com Cláudio Zanotelli (2000), durante a construção da siderúrgica, ocorrida entre 1978 e 1983, na Serra, 25 mil operários trabalharam nos canteiros de obras da Companhia, mobilizando um fluxo migratório de aproximadamente 100 mil pessoas.
26
TABELA 1 População do Espírito Santo em números absolutos e da Região Metropolitana da Grande Vitória em % Anos População
total Percentual de crescimento populacional
População urbana
% População rural
%
1940 790.149 _ 157.925 19,99 632.224 80,01 1950 957.238 21,15% 199.186 20,81 758.052 79,19 1960 1.170.858 22,32% 367.568 31,39 803.290 68,61 1970 1.599.333 36,59% 721.916 45,14 877.417 54,86 1980 2.023.340 26,51% 1.293.378 63,92 729.962 36,08 1991 2.284.659 12,92% 1.664.714 72,86 619.945 27,14 2000 3.093.171 35,39% 2.459.464 79,51% 633.707 20,49 2000 até 2007
3.351.669 8,36% - - - -
Fonte: CASTEGLIONE, 1986; DALCOMUNI, 1990; IBGE, 2007; IJSN, 2008 (In. BARCELLOS, 2008, p. 150)
GRÁFICO 1 - População urbana e rural do Espírito Santo. Fonte: IBGE, 2000 (In: BARCELLOS, 2008, p. 151).
No caso do município de Aracruz, o processo de urbanização e o crescimento
populacional ocorrem precisamente a partir da chegada da Aracruz Celulose, em 1967.
Esses fatores [crise do café; êxodo rural; preço baixo da terra; incentivos fiscais; legislação protecionista] favorecem o projeto de implantação de um novo modelo de agroindústria voltado para a produção de celulose, pois o eucalipto
0
500.000
1.000.000
1.500.000
2.000.000
2.500.000
3.000.000
1970 1980 1991 2000
P. urbana P. rural
27
se adaptava à região e havia a possibilidade de se obter um agrupamento de terras em escala industrial (BRASIL, 1994, p. 64).
De acordo com os professores Ângela Morandi e Haroldo Rocha (1986), o movimento de
aquisição de terras, no município de Aracruz, em escala industrial, foi causa da extinção de
pequenas propriedades rurais e, segundo eles, chegou a comprometer a produção de alimentos
na região. No que se refere às populações indígenas localizadas em Aracruz, esse movimento
culminou com a perda de grande parte dos seus territórios. “No município de Aracruz, a
implantação do complexo da celulose – reflorestamento, fábrica, porto – reordenou toda a
produção econômica, sendo responsável também por uma nova diferenciação inter-regional
dentro do Espírito Santo.” (BRASIL, 1994, p. 64). Dessa forma, “Acelera-se o processo de
urbanização do município, cuja vida econômica está subordinada às iniciativas da Aracruz
Celulose S. A.” (BRASIL, 1994, p. 64)
A partir de meados de 1970, a agenda econômica do Estado seria definida pelas grandes
empresas. O restante das atividades econômicas, incluindo as indústrias locais, torna-se forças
auxiliares. Essa mudança de comportamento na economia e na política capixabas ocorreu por
várias questões. Em primeiro lugar, a ARCEL e os outros grandes projetos inauguraram no
Estado capixaba a formação de empresas sob a forma de joint ventures4 entre capital estatal,
capital estrangeiro e capital nacional, o que, segundo Dalcomuni (1990), lhes conferiu maior
poder empresarial e de articulação de interesses nos centros de decisão da esfera federal do
governo. Em segundo lugar, devido ao grande porte desses empreendimentos e a
complexidade de interesses e fatores que constituíram a sua dinâmica de implantação,
funcionamento e expansão, os reflexos das suas decisões de investimentos passaram a impactar
de forma significativa o conjunto da sociedade capixaba, a exemplo da agricultura, atingida
pela alta concentração de terras nas mãos da ARCEL. Sobre isso, escreve Dalcomuni (1990, p.
217): “Em verdade [...] Aracruz Celulose influenciou em algumas dessas transformações: na
aquisição de vastas áreas de terra.” Em 1987, constituía-se na maior proprietária de terras do
Estado, contabilizando 100 mil ha, contribuindo para um forte processo de concentração
fundiária entre os anos de 1967 a 1980.
4 O Grupo Aracruz constitui-se em um joint venture composto pelas seguintes empresas: Aracruz Celulose S.A. – responsável pelo processo industrial e composta pelas três unidades (Fábricas A, B e C); Aracruz Florestal S.A. – empresa subsidiária responsável pela produção de madeira e desenvolvimento de pesquisa florestal; Aracruz Trading e Aracruz Internacional – sediadas no exterior, responsáveis pelo apoio aos negócios externos e ampliação de mercado; Portocel – porto exportador de celulose; Aracruz Corretora de Seguros – presta serviços às demais empresas, agenciando seguros (DALCOMUNI, 1990).
28
[...] Esses projetos provocaram profundas alterações na estrutura econômica, social e política no Espírito Santo. Estas transformações referem-se principalmente aos processos de concentração industrial, concentração fundiária, modificações no uso do solo e relações de trabalho na agricultura, concentração urbana e agudização de problemas ambientais suscitados pelos mesmos [...] (DALCOMUNI, 1990, citada por BARCELLOS, 2008, p. 152).
Nesse período, o Estado capixaba se defrontava com um paradoxo, porque, ao mesmo
tempo em que o desenvolvimento acontecia em grande estilo, indo ao encontro do objetivo
estratégico da elite local, sentia o esvaziamento do seu papel político na condução do projeto
desenvolvimentista. O centralismo fez com que os grandes empreendimentos se ausentassem
de maiores discussões com o poder e a sociedade locais, estabelecendo canais diretos de acesso
ao governo federal e a outros blocos estrangeiros de capital.
Diante dos novos contextos, inclusive pós-promulgação da Constituição Federal de 1988,
que confere aos estados e municípios maior autonomia política, o Estado capixaba, que acumula
experiências em projetos de desenvolvimento econômico, busca afirmar o seu papel de
dirigente político na condução do projeto de desenvolvimento estadual. Para tanto, sofistica
cada vez mais o planejamento de suas ações e amplia parcerias com as elites econômicas. O
Governo do Espírito Santo e o Movimento Espírito Santo em Ação,5 com o apoio da Petrobras,
realizaram, em 2006, o Plano de Desenvolvimento Espírito Santo 2025 (ES-2025).6
O ES 2025 não é um plano elaborado exclusivamente pelo governo, nem tampouco destina-se a orientar apenas as ações de governo. Trata-se de uma parceria público-privada para elaborar e implantar um plano que oriente e mobilize o setor público em seus três níveis, o setor privado e o terceiro setor, abrangendo as diferentes dimensões do desenvolvimento sustentável. Na fase de elaboração do Plano, colaboraram diretamente mais de 200 profissionais e especialistas de diversas instituições, além de se contar com o apoio de consultoria e estudos específicos, viabilizados através da parceria entre o Governo Estadual, a Petrobras e o Movimento Espírito Santo em Ação (DIAS, 2006).
Nesse Plano, segundo Barcellos (2008), estão contidas diversas ações de médio e longo
prazos que permitirão, segundo o próprio governo, alcançar o desenvolvimento desejado.
“Existe uma forte expectativa da sociedade capixaba no sentido de que um novo ciclo de
desenvolvimento seja capaz de distribuir seus benefícios em todo o território estadual.” (ES-
5 O Movimento Espírito Santo em Ação é composto pelos setores do agronegócio de celulose, logística (grande mídia), metal-mecânica, pecuária, energia e química, rochas, turismo e vestuário (ES-AÇÃO, 2008). 6 Toda a documentação relativa ao Plano pode ser acessada no endereço <www.espiritosanto2025.com.br>.
29
AÇÃO, 2008, p. 5). Dentre as ações para a promoção do desenvolvimento local está a previsão
de investimentos estaduais em projetos de expansão da capacidade de produção de álcool
derivado da cana-de-açúcar. O Espírito Santo já possui usinas de álcool e 50 mil hectares de
monocultura de cana-de-açúcar, no extremo norte do Estado.7 O objetivo, então, é duplicar a
quantidade dessa monocultura na região norte e em outras partes do Estado. Outra atividade
pensada pelo governo é o fortalecimento da agroindústria de celulose sob a alegação do
aumento do mercado local, no litoral norte do Espírito Santo, o que demandaria uma ampliação
das já extensas plantações de eucalipto.
Se o objetivo do governo é, a partir das ações incorporadas ao Plano, gerar um novo ciclo
de desenvolvimento estadual, cabe então perguntar: qual é o foco desse projeto de
desenvolvimento? A escolha pela continuidade do desenvolvimento pela industrialização, pela
expansão de ações industriais de grande escala no Estado tem sido historicamente produtora do
antidesenvolvimento das economias locais, gerando cada vez mais exclusão daqueles que não
integram a economia de grande escala (BARCELLOS, 2008). No Espírito Santo, observa-se que
o esvaziamento do campo está diretamente relacionado à concentração de riquezas e renda, em
especial a partir dos anos de 1970 (TAB. 2), nos municípios do norte do Estado, onde a ARCEL
intervém de forma mais intensa com os seus plantios de eucalipto, constituindo-se em uma das
regiões mais pobres do Espírito Santo. Os dados na tabela 2 mostram que os municípios da
região norte do Estado são os que registram maior desigualdade entre os anos de 1970 e 1980. O
município de Aracruz – onde está instalada a planta industrial da empresa –, na década de 1960,
estava próximo da média do índice de GINI8 estadual. No entanto, em 1980, era o município de
maior concentração de riqueza e renda da região norte, distanciando-se da média estadual.
7 O plantio de cana-de-açúcar e a construção de usinas de álcool no extremo norte do Espírito Santo aconteceram em decorrência do Programa Nacional do Álcool (Pró-Álcool), instituído pelo Decreto nº. 76.593, de 14 de novembro de 1975, pelo presidente Ernesto Geisel. 8 O Coeficiente de Gini é uma medida de desigualdade desenvolvida pelo estatístico italiano Corrado Gini. Pode ser utilizada para calcular a desigualdade de distribuição de renda, mas pode ser usada para qualquer distribuição. “Ele consiste em um número entre 0 e 1, onde 0 corresponde à completa igualdade de renda (onde todos têm a mesma renda) e 1 corresponde à completa desigualdade (onde uma pessoa tem toda a renda, e as demais nada têm).” O índice de Gini é o coeficiente expresso em pontos percentuais (é igual ao coeficiente multiplicado por 100). (disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Coeficiente_de_Gini>).
30
TABELA 2 Índices de GINI de municípios do norte do Espírito Santo
Anos Aracruz Conceição da
Barra Linhares São Mateus Espírito Santo
1960 0.4229 0.5721 0,5600 0,5167 0,4092
1970 0,6283 0,6281 0,6172 0,5858 0,4853
1975 0,7393 0,6250 0,6250 0,6773 0,5199
1980 0,7726 0,7051 0,6792 0,7357 0,5565
Fonte: DALCOMUNI, 1990.
Na atualidade, o desejo do governo estadual é que as ações contidas no ES-2025
coloquem o Espírito Santo na “[...] quinta posição9 no Ranking Estadual de Intensidade de Valor
das Exportações (U$ FOB) até 2025.” (ES-AÇÃO, 2008). Ele também deseja elevar de 19 para 35
o número de setores econômicos responsáveis por 90% do PIB capixaba. Em síntese, o governo
estadual continua fazendo a opção pelo desenvolvimento via industrialização, acreditando que
ele (o desenvolvimento) é capaz de distribuir as riquezas geradas e melhorar o índice de
desenvolvimento humano (IDH) no Estado. No entanto, a realidade estadual tem demonstrado
o contrário, não só por causa da concentração populacional, mas, sobretudo, pela deterioração
do modo de vida de populações que vivem em regiões rurais, que são colocadas pelas políticas
públicas estaduais e nacionais, cada vez mais, numa relação de subordinação aos grandes
projetos e particularmente ao agronegócio, perdendo a sua autonomia e capacidade de se
sustentar.
I. 2 - A CHEGADA DA ARACRUZ CELULOSE AO ESPÍRITO SANTO
De acordo com Barcellos (2008), a Aracruz formalizou a sua chegada ao Espírito Santo com
a criação da Aracruz Florestal S.A. (ARFLO), em janeiro de 1967. Nesse mesmo ano, ela iniciou
a compra de terras no município de Aracruz daqueles que ela denominou pequenos
proprietários e adquiriu 10 mil hectares de terra da Companhia Ferro e Aço de Vitória
(COFAVI). A composição acionária inicial da ARFLO, de acordo com os registros de Dalcomuni
(1990), era a seguinte (In: BARCELLOS, 2008, p. 156):
9 O Estado, atualmente, ocupa a sétima posição.
31
(i) Supergasbrás – com 17,05% das ações –, resultante da fusão ocorrida em 1967/1968 de
outras duas empresas: a Gasbrás, que pertenceu, desde o ano de 1955, ao empresário
norueguês Erling Sven Lorentzen, e a Supergás, de capital brasileiro.
(ii) Credibrás, empresa de crédito para aposentados e idosos – com 6,45% das ações – e de
capital nacional.
(iii) Refinaria e Exploração de Petróleo União – com 6,39% das ações –, de capital nacional e
pertencente aos grupos Soares Sampaio, Ultra e Moreira Salles.10 Dos três grupos,
apenas o Grupo Moreira Salles participaria da ARCEL, constituindo-se em um dos seus
maiores acionistas.
(iv) CBPO: Companhia Brasileira de Projetos e Obras11 – com 6,32% das ações –, empresa
paulista criada em 1931, de capital nacional.
(v) A Paranapanema S.A, empresa de mineração e indústria de construção – com 5,03% das
ações –, era de capital nacional e controlada por fundos de pensão: Previ, Petros, Sistel,
Aerus e Telos. O BNDE era um dos acionistas da Paranapanema S.A. Dos que
compunham a Paranapanema S.A., apenas o BNDE integrou o quadro de acionistas da
ARCEL (SOARES, [s/d]).
(vi) Unibanco S.A, criado por empresas brasileiras de seguro de capital nacional. O banco
possuía 5% das ações da ARFLO.
(vii) Bralanda (Brasil Holanda Indústria S.A.)12, detinha 3,92% das ações. As informações que
se tem sobre essa empresa é que teria sido resultado de uma parceria entre grupos
brasileiros e holandeses para a exploração de madeira no norte do Espírito Santo e sul
da Bahia, ou seja, era de capital nacional e estrangeiro.
(viii) Banco Brascan Investimentos S.A., com 3,69% das ações – tinha como acionista principal o
Brookfield, fundo de investimentos do Canadá. Era um banco de capital estrangeiro que
atuava no Brasil desde 1899, nas áreas imobiliária, de infra-estrutura e energia.
(ix) Estabelecimentos Comerciais Reunidos S.A., com 2,55% das ações – de capital nacional.
(x) Brasil Warrant Companhia Comércio e Participações: com 2,36% das ações – era de
propriedade do grupo Moreira Salles e de capital nacional.
10 Em 1966, os três grupos proprietários constituíram, em parceria com a empresa americana Phillips Petroleum, a Petroquímica União (BOSCO, 2003). 11 Em 1980, ela foi incorporada ao Grupo Odebrecht (disponível em: <www.odebrecht.com.br>). 12 De acordo com o Cepedes e Centro de Defesa dos Direitos Humanos (1992), a Bralanda é uma madeireira com unidades industriais em Nanuque-MG. Possui sede no Rio de Janeiro e áreas de monocultivo em vários municípios do extremo sul da Bahia. “Tem grilado terras e expulsado posseiros com mais de 30 anos de ocupação.” (CEPEDES, CENTRO DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS, 1992, p.13).
32
(xi) Havia outros pequenos acionistas, de capital nacional, que, conjuntamente, possuíam
41,24% das ações da ARFLO.
Sônia Maria Dalcomuni, na sua dissertação de mestrado, sistematiza informações
privilegiadas dos movimentos institucionais, técnicos e políticos ocorridos na época, que
contribuíram para a implantação da Aracruz Celulose no Espírito Santo. Conta Dalcomuni
(1990) sobre o importante papel da Empresa de Consultoria em Economia e Engenharia
Industrial S.A. (ECOTEC): “Resgatar a participação da ECOTEC no desenvolvimento da
indústria de celulose significa deslindar um complexo conjunto de inter-relações econômicas,
políticas e pessoais entre os denominados ‘atores políticos locais’, que se estabeleceram nesse
processo.” (DALCOMUNI, 1990, p. 187). A empresa de consultoria, segundo a autora, tomou a
iniciativa de realizar estudos sobre o mercado mundial de celulose, com vistas a implantar uma
indústria do ramo no Brasil. O resultado do estudo foi exposto a onze empresários nacionais e
estrangeiros,13 que, segundo Dalcomuni, aceitaram prontamente a proposta de investir no setor
de celulose. Após o fechamento de um contrato entre os empresários e a ECOTEC, esta
assumiu a responsabilidade de identificar o local da implantação do empreendimento. A partir
dos contatos estabelecidos com o governo do Espírito Santo, foi selecionado o município de
Aracruz para sediar a empresa.
[...] alegando-se condições edafo-climáticas favoráveis ao desenvolvimento de florestas de eucalipto, por representar uma região de atividades economicamente inexpressivas, topografia plana favorável à mecanização, privilegiada localização quanto ao sistema viário, próximo ao principal pólo de desenvolvimento do estado, Vitória, e próximo ao mar, o que facilitaria a construção de porto para exportação de produtos (DALCOMUNI, 1990, p.188).
Em julho de 1967, a empresa iniciou os plantios de eucalipto. Nesse período, ela já pôde
acessar os benefícios oferecidos pela Lei 5.106 (BRASIL, 1966) que, segundo Morandi e Rocha
(1986), contribuíram para iniciar e expandir o seu monocultivo de eucalipto entre os anos de
1968 e 1979 (TAB. 3). Em 1968, de acordo com Dalcomuni (1990), a ARFLO também conseguiu
utilizar recursos do Programa de Diversificação do IBC/GERCA, viabilizando um empréstimo
de NCr$ 1.500.000 (um milhão e quinhentos mil cruzeiros novos), com o objetivo de adquirir
maquinários necessários ao plantio de eucalipto.
13 Eram eles: Antônio Dias Leite Jr., Erling Lorentzen, Otávio Cavalcanti Lacombi, Oliva Fontenelle de Araújo, Fernando Machado Portella, Eliezer Batista, João Miguel de Moura, Álvaro Soares, Afonso Soares, José Chaldas e Renato Grajiollo (DALCOMUNI, 1990).
33
TABELA 3
Crescimento do monocultivo de eucalipto no Espírito Santo (ha)
Ano Área plantada Ano Área plantada
1968 3.552,55 1974 67.780,74
1969 8.849,18 1975 89.642,60
1970 13.713,43 1976 106.104,54
1971 22.955,78 1977 121.781,26
1972 40.567,96 1978 129.827,61
1973 50.499,57 1979 131.356,61
Fonte: DALCOMUNI, 1990, MORANDI; ROCHA, 1986.
Em 1969 a ARFLO contratou a empresa canadense Sandwell para a realização de
estudos de viabilidade da construção do seu complexo fabril - ARCEL. Em 1971 a Sandwell
concluiu o estudo, indicando, no seu relatório, o potencial para a construção de uma unidade
industrial com capacidade de produção de 273.750 t/ano de celulose. Nesse mesmo ano, a
ARFLO solicitou novo estudo à empresa finlandesa Jaakko Poyry, que redimensionou a escala
de produção da futura fábrica de celulose, apontando para uma produção de 474.500 t/ano.
Em 24 de maio de 1972, foi criada a ARCEL, e a ARFLO passou, desde então, a ser uma
de suas subsidiárias responsáveis pela aquisição de terras e pelo plantio de eucalipto.14 A
ARCEL teve uma composição acionária diferente da ARFLO, a exemplo do empresário
norueguês Erling Lorentzen, que vendeu a sua parte na Supergasbrás e investiu na criação
daquela. Outro grupo que passou a ser acionista da ARCEL foi o grupo Moreira Salles, que
integrava a Refinaria União, acionista da ARFLO.
Desde a idéia da criação da ARCEL, foi deflagrada a busca por financiamentos. Uma das
instituições abordadas foi o BNDE. Nesse período, o banco já atuava sob a orientação do II
PND, que tinha como uma das suas principais metas a elevação da produção brasileira para fins
14 Há outras duas empresas que cumpriram um papel importante no processo de aquisição e expansão do plantio de eucalipto no Espírito Santo: a Vera Cruz Agroflorestal S.A. – que compôs o quadro inicial de acionistas da ARCEL – e a Brasil Leste Agroflorestal – que não é mencionada nos documentos da empresa. No entanto, nos registros de compra e venda de terras, consta que as terras foram adquiridas pelas duas empresas e somente depois foram repassadas para a ARCEL (ver Certidão Vintenária emitida pelo Cartório 1º Ofício Adolpho Serra, em 12 de abril de 2002, localizado em Conceição da Barra-ES, onde são registradas quinze transações de compra e venda de propriedades no município de Conceição da Barra pela Brasil Leste, que hoje são de propriedade da ARCEL). Isso também parece ter ocorrido com a Vera Cruz Agroflorestal: “As áreas originalmente quilombolas estavam justamente na região do Sapê do Norte, nos municípios de Conceição da Barra e São Mateus, onde a Aracruz Celulose S.A., segundo o seu relatório de 1989, ‘incorporou’ 30 mil hectares adquiridos da Vera Cruz Agroflorestal S.A. já plantados de eucalipto. Essa Vera Cruz Agroflorestal é o primeiro embrião da atual Veracel Celulose S.A. [...]” (FASE, p. 52). Essa questão precisa ser mais bem esclarecida, no entanto sabe-se que foram empresas que cumpriram um papel estratégico na aquisição de terras para a ARCEL, no Estado, no final de 1960 e durante os anos 1970.
34
de exportação. Inicialmente, o projeto de criação da ARCEL foi orçado em US$ 460 milhões,15
mas, como era um período com alta taxa de inflação, esse valor teve que ser corrigido, ficando
na ordem de US$ 536 milhões o custo total do empreendimento. Desses, o BNDE, em agosto de
1975, assegurou US$ 337 milhões, distribuídos entre financiamento, compra de ações e avais
(TAB. 4). Dois anos depois, a ARCEL recebeu um financiamento do Grupo Executivo de
Recuperação Econômica do Espírito Santo (GERES) da ordem de Cr$ 140.000.000 (cento e
quarenta milhões de cruzeiros). Um valor pequeno diante das demandas que se apresentavam
para a viabilização do novo empreendimento, comprovando a relevância dos recursos vindos
do governo federal. Para Dalcomuni (1990, p. 202), “esses dados, portanto, corroboram a
fundamental participação do Estado brasileiro na concretização da ‘Aracruz’ e comprova a
hipótese da essencialidade do II PND na concretização desse ‘Grande Projeto’.”
TABELA 4
Contribuições/financiamentos para a construção da Fábrica A da ARCEL
Instituição Contribuição em %
BNDE 32%
FINAME/BNDE 13%
Externas 19%
Recursos próprios 36%
Total 100%
Fonte: DALCOMUNI, 1990.
Segundo Dalcomuni, os recursos do Finame serviram para financiar a compra de 80%
dos equipamentos nacionais. Foi também concedido à empresa, pelo BNDE, um aval de US$ 44
milhões a título de financiamentos externos para aquisição de máquinas e equipamentos.
O apoio do BNDE interferiu, sobremaneira, na composição acionária da ARCEL (TAB.
5).
15 Parte desse recurso foi solicitada ao International Finance Corporation (IFC), ligado ao Banco Mundial, que se recusou a liberar o financiamento.
35
TABELA 5
Composição acionária da ARCEL em 1975
Instituição/grupo Quantidade de ações (%)
BNDE 25,90
Fibase16 14,72 (ações sem direito a voto)
Cia. Sousa Cruz 25,90
Grupo Billerud 6,07
Grupo Lorentzen 5,08
Vera Cruz Agroflorestal17 3,37
Grupo Moreira Salles 2,63
Outros 391 acionistas 16,33
Total 100,00
Fonte: DALCOMUNI, 1990, GOMES, 2008.
Em 1978, inaugurou-se a Fábrica “A”, com uma capacidade de produção de 423.400
t/ano de celulose branqueada. Entretanto, ela só usaria todo o seu potencial de produção a
partir de 1983 (GRAF. 2). O seu processo de construção e, depois, o de expansão mobilizaram
um grande contingente de força de trabalho masculina, desencadeando o crescimento urbano
da sede (cidade de Aracruz) e de Barra do Riacho, bairro predominantemente de pescadores
localizado a 1 km do complexo industrial. A etapa de operação da sua unidade fabril exigiu a
contratação de pessoal qualificado de fora da região e a conseqüente implantação de um bairro
exclusivo para seu uso, o Bairro Coqueiral, com 865 residências sobre uma área de 1,6 milhões
de m², que começou a ser construído em 1975 (DALCOMUNI, 1990). A Empresa assumiu todas
as obras de infra-estrutura e serviços básicos desse bairro, que se tornou seu cartão de visita:
sistema de abastecimento de água, de coleta de esgoto sanitário, drenagens de águas pluviais,
energia elétrica, escolas, entre outros.18
16 A Fibase, Insumos Básicos S.A., foi criada em 1974 e constituía uma das três subsidiárias do BNDE. À Fibase cabia o aporte de capital ao setor siderúrgico, segundo a filosofia de participação temporária e minoritária, incentivando também o mercado de capitais. 17 De acordo com a Certidão Vintenária datada de 22 de abril de 2002, emitida pelo Cartório Adolpho Serra, a Vera Cruz Agroflorestal S.A. foi incorporada, conforme Escritura Pública de Ratificação e Incorporação, para fins de aproveitamento de Disponibilidade e Aumento de Capital Social, aprovado na forma de Estatutos Sociais, datada de 04-07-78, lavrada às fls. 28 v° a 80 do L° 220 no Cartório do 4º Ofício de Notas de Vitória-ES pelo escrevente juramentado Juarez Furtado de Souza (ESPÍRITO SANTO, 2002, Autos da CPI..., v. 8, fl. 1499). 18 Em 1980, a empresa criou um loteamento numa área contígua ao bairro, com 116 lotes. Devido à sua ampliação, oito anos depois, em 1988, a Aracruz criou um outro loteamento para mais 223 casas e também construiu outras 170 casas, visando a atender aos novos funcionários admitidos. O Bairro Coqueiral atendeu principalmente aos funcionários da fábrica, que em 1992 representavam 97% do total de seus moradores (AGB, 2004).
36
Em 1985, a ARCEL inaugurou, em parceria com a CENIBRA, o seu porto privado,
Portocel. A CENIBRA ficou com 49% das ações do Portocel, e a Aracruz S.A., com 51%. Em
1986, fez-se a recomposição acionária da empresa. Em função da crise fiscal enfrentada pelo
País, em meados da década de 1980, o BNDES vendeu as suas ações na bolsa, e o Banco Safra,
comprador da maioria delas, passou a constituir o quadro de acionistas, com 25,90% das ações
(GOMES, 2008). No entanto, com o projeto de construção da Fábrica “B”, a ARCEL acessou
novos financiamentos no BNDES, que liberou recursos da ordem de US$1 bilhão, em 1990. Com
isso, o banco voltou a incorporar o quadro de acionistas da empresa. Nesse período, ela
dispunha de um total de 1.077.919.713 ações, das quais 455.390.699 eram ações ordinárias e 622.
529.014, ações preferenciais distribuídas da seguinte forma (TAB. 6).
TABELA 6
Composição acionária da ARCEL em 1990
Instituição/Grupo Ações Ordinárias (%) Ações Preferenciais (%) Total de Ações (%)
Sodepa (Banco Safra) 28,0 9,6 17,4
Grupo Lorentzen 28,0 - 11.8
Mondi Minorco 28,0 _ 11,8
BNDES 12,5 9,7 10,9
BOVESPA/BVRJ 3,4 25,2 16,0
Ações da Tesouraria 0,1 3,7 2,2
Nyse (ADRs)19 - 51,8 29,9
Total 100,0 100,0 100,0
Fonte: ARCEL, 1998.
Em 1991 foi inaugurada a Fábrica “B”, elevando o seu potencial de produção para 1,3
milhão de t/ano. Contudo, ela só atingiria o potencial total da produção no final dessa mesma
década. Somente em 1998, ela conseguiu atingir a produção de 1,24 milhão t/ano, com 60 mil
toneladas aquém da sua capacidade de produção. Mesmo assim, a empresa manteve sua
liderança no ranking mundial de produção de celulose de fibra curta branqueada.
19 American Depositary Receipt (ADR)/ Recibo de Depósito de Ações: ADR são papéis emitidos e negociados somente nos EUA, que representam a propriedade de ações de empresas brasileiras. Todos os direitos adquiridos pelos acionistas do país de origem – dividendos, subscrição, desdobramento – são oferecidos pelo ADR. Estes são isentos de ganhos de capital e só pagam 15% de Imposto de Renda sobre os dividendos recebidos. (disponível em: <http://www.enfoque.com.br/EC/suporte/ taxaseindic/index.asp?ativo =12>).
37
Nos anos de 1993, 1995 e 1997, a empresa conseguiu as certificações ISO 9002 para as
suas duas unidades fabris, respectivamente, ISO 9001 para todas as atividades que desenvolve e
ISO 9002 para a sua planta eletroquímica, vendida posteriormente20. Em 1999, conseguiu ISO
14001. Em 1997, no extremo sul da Bahia, diversificava suas atividades com a inauguração da
Aracruz Produtos de Madeira (APM), uma atividade pouco expressiva em comparação ao
conjunto de investimentos da empresa voltados para a produção de celulose.
O período entre os anos 2000 e 2003 foi especialmente importante para a empresa, no
que se refere à sua expansão. Em 2000, ela comprou 50% das ações da Veracel Celulose S.A., na
Bahia. Em 2001, iniciou as obras para a sua terceira fábrica. Em 2002, inaugurou a Fábrica “C”,
que elevou a capacidade de produção da unidade de Barra do Riacho para 2 milhões de t/ano
(GRAF. 2). Para tantos investimentos, foi necessário recorrer a novos financiamentos. Segundo
Helder Gomes (2008, p. 66), “dos cerca de R$ 666,3 milhões aprovados em junho de 2001, via
FINEM, o BNDES liberou cerca de R$ 417,8 milhões, com juros variando entre 7,8 e 16,65% a.a, a
serem amortizados entre 2002 e 2009, com as mesmas garantias dos empréstimos anteriores”.
Em 2003, o Grupo Aracruz iniciou a construção da fábrica da Veracel, em Eunápolis, no
extremo Sul da Bahia, em parceria com a empresa sueco-finlandesa Stora-Enso. Essa fábrica tem
a capacidade de produção da ordem de 900 mil t/ano (450 mil t são de propriedade do Grupo
Aracruz) e contou com um financiamento da ordem de US$ 546 milhões do BNDES. É
importante considerar que o extremo sul da Bahia e o litoral norte do Espírito Santo formam
hoje uma grande área praticamente contínua em termos de apropriação pela empresa e sua
monocultura. Também em 2003 a Aracruz comprou a Riocell no Rio Grande do Sul, empresa
pertencente ao Grupo Klabin, que tem uma capacidade de produção de 430 mil t/ano, se
distanciando dos outros produtores nacionais de celulose. A expansão acelerada e contínua de
seu complexo industrial envolve a expansão, também acelerada, de plantios de eucaliptos, das
desterritorializações das comunidades locais preexistentes e dos danos sociais e ambientais
decorrentes.
20 A unidade Aracruz Eletroquímica Ltda foi vendida em 1999 para a Canadianoxy Chemicals Holdings Ltd. e, com isso, a ARCEL deixou de atuar na produção química (GOMES, 2008).
38
GRÁFICO 2 – Potencial/capacidade de produção de celulose (ARCEL). Fonte: DALCOMUNI, 1990, ARCEL, 2003, 2006, 2008 (In: BARCELLOS, 2008, p. 163). Demonstrando a forte articulação institucional que a ARCEL possui, em todas as
inaugurações de suas fábricas estiveram presentes os então presidentes da República: João
Batista Figueiredo, Fernando Collor de Melo, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da
Silva. Este último esteve presente na inauguração da Veracel Celulose S.A.
Em 2004, a ARCEL firmou contrato com a International Finance Corporation (IFC) do
Banco Mundial, pelo qual recebeu o valor de US$ 50 milhões.
No final de 2007 a empresa afirmou que tinha 286.100 hectares de plantações de
eucaliptos e 169.800 mil hectares de reservas de florestas nativas, 2 mil hectares a mais do que
fora registrado em 2006. Além disso, poderia dispor de 87.000 hectares plantados de eucalipto
em 157 municípios por meio do Programa Produtor Florestal (ARCEL, 2008).
Ao todo, a Aracruz produziu 3,1 milhões de toneladas de celulose em 2007 (ARCEL,
2006; ARCEL, 2008). Em 2008, a empresa continua sendo líder mundial em produção de
celulose branqueada de eucalipto Gráfica 3) e conta com quatro acionistas principais (TAB.7):
423.400 453.330
1000000
2000000
3330000
0
500.000
1.000.000
1.500.000
2.000.000
2.500.000
3.000.000
3.500.000
1978 1979 1991 2002 2003
t/ano
39
GRÁFICO 3 – Maiores produtores de celulose de fibra curta branqueada do mundo
(milhões t/ano).
Fonte: SKOGS INDUSTRIERNA, 2008 (In: BARCELLOS, 2008, p.162).
TABELA 7
Composição acionária da ARCEL a partir de 2001
Instituição/Grupo Participação acionária (%)
Grupo Lorentzen (Noruega) 28,0
Grupo Votorantim (comprou da Mondi Brasil, subsidiária da Anglo-American)
28,0
Banco Safra (Sodepa) 28,0
BNDES 12,5
Outros (BOVESPA/BVRJ 3,5
Total 100,0
Fonte: ARCEL, 2006 (In: BARCELLOS, 2008, p. 164) .
Em janeiro de 2009, o Grupo Votorantim, após um longo tempo de negociação, compra
finalmente, com apoio do BNDES, as ações do Grupo Lorentzen na ARCEL,21 e, logo depois,
também as ações do Banco Safra, ficando com 29,3% das ações da empresa. O BNDES ficou com
21 Friedlander, David, “Com ajuda do BNDES, Votorantim assume controle da Aracruz”, Estadão de Hoje, 21 de janeiro de 2009, http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20090121/not_imp310366,0.php
3,1
2,7
2,6
2,1
1,8
1,8
1,2
1,1
0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5
Grupo Aracruz
Arauco
Weyerhauser
Stora Enso
Södra
CMPC S/A
Votorantim (13º)
Cenibra (14º)
Empresas
40
34,9% das ações e o restante, 35,8%, são ações do mercado.22 A Votorantim resolveu dar um
novo nome a este novo grupo, um dos maiores do mundo no ramo: Fibria.
A ARCEL, hoje absorvido pela Fibria, atraiu, até o momento, investimentos da ordem de
US$ 4 bilhões, grande parte oriunda do BNDES (TAB. 8), que continua sendo um dos seus
acionistas (GOMES, 2008). A Tabela 08 mostra a importância desse banco estatal na implantação
e expansão do empreendimento, desde 1974. A ARCEL lidera, com folga, a produção mundial,
atendendo, em 2006, a 27% da demanda global (ARCEL, 2006). Sua fabricação destina-se à
produção de papéis sanitários (59%), papéis para impressão e para escrever (23%) e papéis
especiais de alto valor (18%) (ARCEL, 2007). Praticamente toda a produção da Aracruz é
exportada: 41% vão para a Europa, 34% para a América do Norte, 23% para a Ásia e 2% ficam
no Brasil e em outros países da América Latina (ARCEL, 2008). Os principais compradores são
as multinacionais norte-americanas Procter & Gamble e Kimberley-Clark, que compram cerca
de 60% da produção da empresa (ARCEL, 2008).
Em 2008, com o início da crise financeira mundial, tornou-se um fato público que a
Aracruz e o seu novo dono Votorantim usam os lucros obtidos a partir dos financiamentos
públicos do BNDES para atuarem no mercado especulativo. Em função da crise, ficou evidente
também que fizeram apostas equivocadas neste mercado, resultando num prejuízo financeiro
de US$ 4 bilhões de dólares. Porém, o estado brasileiro, no seu objetivo de criar mega-empresas
brasileiras, ajudou a reduzir o prejuízo, investindo mais dinheiro público, novamente por meio
do BNDES, na compra da Aracruz pela Votorantim, criando a nova empresa Fibria, um gigante
mundial na produção de celulose de fibra curta.23
22 www.fibria.com.br/pt/acionistas/htm 23 Baseado em Gomes, Helder, “Parceria do BNDES com a Aracruz e a Votorantim”, 2008.
41
TABELA 8
Recursos do BNDES repassados para a ARCEL até o ano de 2003 (US$, Cr$, R$)
Ano Valor Ano Valor 197424 US$44 milhões 1978 Cr$ 280 milhões 1974 Cr$ 867 milhões 1978 Cr$ 186 milhões 1975 Cr$ 429 milhões 1978 US$ 10 mil 1975 Cr$ 110 milhões 1978 US$ 15 mil 1976 Cr$ 85 milhões 1979 Cr$ 88 milhões 1976 Cr$ 90 milhões 1980 US$ 25 milhões 1977 Cr$ 31 milhões 1980 US$ 10 milhões 1977 Cr$ 11 milhões 1988 Cr$ 27.965 mil 1977 US$ 20 milhões 1990 US$ 1.04 milhões
Fábrica B 1977 US$ 40 milhões 2001 R$ 666,3 milhões
Fábrica C 1978 Cr$ 457 milhões 2003 US$ 546 milhões
Fábrica Veracel - - 2004 US$100 milhões
(Aracruz Trading S.A.)
Fonte: DALCOMUNI, 1990.
Nos últimos dez anos, a empresa investiu em equipamentos25 e tecnologias de última
geração, prevendo atingir melhora significativa nos principais indicadores do que ela denomina
de “ecoeficiência” na produção de celulose (ARCEL, 2003). Segundo a empresa, o processo de
branqueamento da polpa, que antes era feito com uso de cloro, foi modificado. Em 1995,
segundo ela, 50% da produção eram branqueados pelo processo de ECF (Elemental Chlorine
Free), 8% por TCF (Total Chlorine Free) e 42% por STD (Standard method). Em 1997, 56,1% eram
pelo processo de ECF, 11 % por TCF e 32% por STD. De 1978 a 2003 a empresa fez uso “[...] do
cloro elementar [tipo standard] STD em quantidade ainda significativa.” (FASE-ES, 2003). De
acordo com as justificativas da empresa, a mudança do padrão de branqueamento se deveu a
exigências de consumidores externos: “Nos últimos anos, preocupações com os efeitos da
produção de celulose sobre o meio ambiente, principalmente do processo de branqueamento,
levaram clientes, especialmente da Europa, a preferir celulose que seja branqueada com pouco
ou nenhum cloro.” (ARCEL, 1998, [s/p]).
Outro aspecto que chama a atenção diz respeito à geração de emprego pela ARCEL. O
processo produtivo é bastante mecanizado desde a inauguração da primeira fábrica, em 1978,
porém, mais especialmente, a partir da década de 1990 e, em decorrência disso, o aumento da
produtividade da empresa tem sido inversamente proporcional ao aumento do número de
empregos diretos (GRAF. 4).
24 Os recursos do BNDES para a construção da Fábrica “A” de US$ 337 milhões foram liberados em etapas. 25 Ela não especifica que tipo de equipamentos foi instalado.
42
GRÁFICO 4 - Produtividade versus número de empregados (ARCEL). Fonte: ARCEL, 1998 - (não inclui terceirizados) (In: BARCELLOS, 2008, p 167).
Segundo Barcellos (2008), em 1989, 8.300 trabalhadores da indústria produziam 502.000
toneladas de celulose, ou seja, cada trabalhador correspondia a 60,5 toneladas de celulose/ano.
Nove anos depois, 2.400 trabalhadores diretos eram responsáveis pela produção de 1,092
milhão de toneladas, ou seja, um trabalhador direto para 455 t/ano. A inauguração da Fábrica
“C”, em 2002, elevou a produtividade: cada trabalhador passou a corresponder a 1,052
toneladas de celulose em 2003 (DE’NADAI; SOARES; OVERBEEK, 2005). Segundo a empresa,
em 2007, ela respondeu pela manutenção de 12.010 empregos, compreendendo 2.495
empregados diretos e 9.515 terceirizados (ARCEL, 2008), o que significa 1.242,4 t/ano para um
trabalhador direto.
A ARCEL, em franca expansão (TAB. 9), divulgou, em 2007, a construção da Fábrica “B”,
no Rio Grande do Sul. Um investimento de R$ 2,6 bilhões, com vistas a produzir mais 1,37
milhão de toneladas/ano. No pacote está previsto o plantio de mais 120 mil hectares de
eucalipto (ARCEL, 2006). O novo empreendimento deverá ser inaugurado em 2010. Mais
recentemente, por meio do seu site, anunciou que pretende atingir a produção de 7 milhões de
t/ano até 2015 (ARCEL, 2008). No entanto, após a formação da Fibria, a unidade Guaíba foi
vendida em janeiro de 2009 para o grupo chileno CMPC.26
26 http://www.ageflor.com.br/noticiassetorinterna.php?id=126
0
1.000
2.000
3.000
4.000
5.000
6.000
7.000
8.000
9.000
1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997
N° empregos
0
50
100
150
200
250
300
350
400
450
Produtividade t/empregado
N° emprego Produtividade
43
Se de um lado a história da ARCEL é marcada pelo seu sucesso empresarial, pela sua
ampla capacidade de fazer alianças com outros setores do mercado e, em especial, com
agentes e estruturas do Estado, pela atração de investimentos públicos, pela conquista
de boa fatia do mercado consumidor de celulose, gerando sempre novos ciclos de
crescimento (GRAF. 5 e QUAD. 1); de outro lado, há uma outra história menos
interessante aos olhos empresariais para ser contada. A trajetória da ARCEL no Espírito
Santo é grifada por denúncias de violações aos direitos das populações que vivem no
seu entorno. Tais denúncias resultaram, no início da década de 2000, em dois relatórios:
o primeiro, intitulado “Violação de Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais
na Monocultura do Eucalipto: a Aracruz Celulose e o Estado do Espírito Santo”, em
agosto de 2002; e o segundo, “Violação de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais,
Culturais e Ambientais”, em dezembro de 2003. Os relatórios foram elaborados pela
FASE com o apoio das instituições internacionais: Terre des Hommes (França), Misereor
(Alemanha); Christian Aid (Reino Unido) e União Européia. Esses dois relatórios foram
encaminhados à Corte Inter-Americana da Organização dos Estados Americanos (OEA)
e à Comissão dos Direitos Humanos do Congresso Nacional brasileiro. Neles são
relatados os diversos impactos produzidos pela ação da ARCEL no Estado, em especial,
aqueles que se referem a populações indígenas e quilombolas. E mais, em 2002, a
Assembléia Legislativa do Espírito Santo (ALES) instalou a “CPI da Aracruz Celulose”
(ESPÍRITO SANTO, 2002), buscando também apurar o processo de aquisição de terras
pela empresa no Estado, desencadeando uma série de denúncias graves como grilagem
de terras, entre outras. Ou seja, entre uma ampliação e outra, estão perdas de terras por
agricultores, territórios tradicionais extintos ou reduzidos, rios comprometidos, matas e
solo degradados.
44
TABELA 9
Áreas de propriedade do Grupo Aracruz no Brasil
Área em hectares % do município
Regional Município Extensão do município
Plantio de eucalipto
Reservas nativas Outras finalidades
Total % da regional
Propriedade da Aracruz
Plantio de eucalipto da Aracruz
Aracruz 143.602 33.733,8 19.944,0 3.920,9 57.598,8 82,0 40,1 23,5 Serra 55.325 2.477,0 2.459,4 272,6 5.209,0 7,4 9,4 4,5 Linhares 350.160 2.251.3 3.615,4 272,7 6.139,4 8,7 1,8 0,6 Fundão 27.965 562,2 330,3 74,3 966,8 1,4 3,5 2,0 Ibiraçu 19.982 49,3 18,9 13,1 81,3 0,1 0,4 0,2 Santa Leopoldina 71.644 36,0 196,8 5,1 237,9 0,3 0,3 0,1 Santa Teresa 69.453 9,2 5,3 0 14,7 0,0 0,0 0,0 Marechal Floriano 28.610 - - 1,7 1,7 0,0 0,0 0,0
Aracruz
Total Reg. Aracruz
39.118,7 26.570,2 4.560,6 70.249,6 19,6 - -
Conceição da Barra
118.804 26.104,1 9.300,2 2.082,8 37.487,1 37,5 31,6 22,0
São Mateus 234.325 23.862,0 7.126,5 1.796,8 32.785,3 32,8 14,0 10,2 Jaguaré 65.636 4.344,0 1.646,4 395,3 6.385,7 6,4 9,7 6,6 Montanha 109.903 3.562,5 2.074,9 255,6 5.893,0 5,9 5,4 3,2 Linhares 350.160 3.027,7 3.054,3 266,5 6.348,5 6,3 1,8 0,9 Sooretama 59.337 2.620,9 583,4 208,0 3.412,3 3,4 5,8 4,4 Vila Valério 46.435 1.641,8 1.070,5 170,7 2.883,0 2,9 6,2 3,5 Pinheiros 97.506 1.322,7 950,9 104,3 2.377,9 2,4 2,4 1,4 Mucurici 53.771 604,0 477,0 45,5 1.126,5 1,1 2,1 1,1 Rio Bananal 64.548 366,1 468,8 46,3 881,2 0,9 1,4 0,6
São Mateus
Pedro Canário 43.404 311,6 144,1 25,3 481,0 0,5 1,1 0,7
45
Continuação
Alcobaça 150.599 28.926,7 21.492,5 2.750,9 53.170,1 30,9 35,3 19,2 Caravelas 236.128 24.028,2 12.873,4 2.235,2 39.136,8 22,7 16,6 10,2 Nova Viçosa 132.612 19.360,8 12.670,6 1.960,5 33.991,9 19,7 25,6 14,6 Mucurici 177.476 13.649,8 6.980,5 1.166,1 21.796,4 12,6 12,3 7,7
Ibirapuan 78.606 8.522,5 4.966,8 781,5 14.270,8 8,3 18,2 10,8 Teixeira de Freitas 115.379 2.580,0 2.110,8 342,1 5.032,9 2,9 4,4 2,2 Vereda 82.870 1.008,2 2.356,7 68,5 3.433,4 2,0 4,1 1,2 Prado 166.454 798,2 611,0 107,0 1.516,2 0,9 0,9 0,5
Bahia
Total Reg. Bahia 98.874,4 64.062,4 9.411,9 172.348,5 48,1 - -
Nanuque 151.537 4.194,7 3.968,0 331,9 8.494,6 55,5 5,6 2,8 Carlos Chagas 319.885 2.434,2 2.883,0 271,6 5.588,8 36,5 1,7 0,8 Conselheiro Pena 140.802 267,3 385 9 661,3 4,3 0,5 0,2 São José da Safira 21.445 214,0 0,4 5,3 219,7 1,4 1,0 1,0 Galiléia 72.132 95,2 225,7 19,9 340,8 2,2 0,5 0,1
Minas Gerais
Total Regional M. Gerais
7.205,4 7.462,2 637,2 15.305,2 4,3 - -
Total Unidade Barra do Riacho 212.965,9 124.991,8 20.006,8 357.964,8 100,0 - -
RS Total Regional RS (Riocell)
4.103.493 71.135 - - 119.537 - 2,91 1,73
Total Geral 284.100,9 Não há referência Não há referência
477.501,8 - - -
Fontes: ARCEL, 2006, 2007 (In: BARCELLOS, 2008, p. 169).
46
GRÁFICO 5 - Produção de celulose pelo Grupo Aracruz Fontes: DALCOMUNI, 1990, ARCEL, 2003, 2006, 2008 (In: BARCELLOS, 2008, p.171)
41 291
361 401 413 430 456 482 481 480
497
759
964 1.066
1.092
1.956
2.149
3.100
0
500
1.000
1.500
2.000
2.500
3.000
3.500
1978 1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1991 1992 1994 1997 2002 2003 2007
Milhões t/ano
23
QUADRO 1 Atenção pag. 47 e não 23 Eventos que envolvem o processo de instalação e expansão da Aracruz Celulose Data Evento jan. 1967 Constituição da ARFLO: Supergasbrás (17,05% das ações), Credibrás (6,45%), Refinaria e
Exploração de Petróleo União (6,39%), CBPO (6,32%), Paranapanema S.A. ( 5,03%) das ações Unibanco S.A. (5%), Bralanda (3,92%), Brascan Investimentos S.A. (3,69%), Brasil Warrant Companhia Comércio e Participações (2,36%), Estabelecimentos Comerciais Reunidos S.A. (2,55%), outros (41,24%).
1º semestre de 1967
Compra dos 10 mil hectares da COFAVI; aquisição de outras terras no município de Aracruz.
jul. 1967 Implantação dos primeiros plantios de eucalipto. 1968 A ARFLO acessou um empréstimo de NCr$ 1.500.000 do Programa de Diversificação do
IBC/GERCA, com o objetivo de adquirir maquinários necessários ao plantio de eucalipto. 1969 Contratação da SANDWELL (Canadá) para estudo de viabilização do projeto da fábrica de
celulose. 1971 Conclusão do estudo pela SANDWELL, indicando a viabilidade do projeto agroindustrial de
produção de 750 t/dia de celulose. Contratação da consultora Jaakko Poyry (Finlândia) para redimensionar a escala de produção, que apontou para uma produção de 1.300 t/d.
abr. 1972 Constituição da Aracruz Celulose S.A. e a transformação da Aracruz Florestal em sua subsidiária.
1971 Construção do bairro Coqueiral pela empresa, buscando abrigar os seus trabalhadores especializados.
1975 Liberação pelo BNDE de financiamento da ordem de US$ 337 milhões (esse valor foi distribuído entre financiamento, participação societária e avais) para a construção da Fábrica A, orçada, em 1975, em US$ 536 milhões. O restante dos recursos veio de capital próprio, e 19%, de financiamento externo.
1975 Recomposição acionária: BNDE (25,90%), Cia. Sousa Cruz (25,90%), Fibrase (14,72%), Grupo Billerud (6,09%), Grupo Lorentzen (5,08%), Vera Cruz Agroflorestal S.A. (3,37%), Grupo Moreira Salles (2,63%) e 391 acionistas (16,33%).
jun. 1977 Financiamento concedido pelo Grupo Executivo da Recuperação Econômica do Espírito Santo (GERES) da ordem de Cr$ 140 milhões.
set. 1978 Inauguração da primeira unidade de produção – Fábrica A –, com a capacidade de produzir 423.400 t/ano de celulose branqueada.
1985 Instalação do Portocel em parceria com a Cenibra. fev.1986 Recomposição acionária: o BNDES vende as suas ações e o Banco Safra é incorporado ao grupo,
com 25,90% das ações. 1986 Publicação, no Diário Oficial, da concessão de licença para a construção da Fábrica B pela
Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Espírito Santo. 1990 O BNDES libera US$ 1.040.280.000 para a construção da Fábrica B. 1990 O BNDES retorna para o quadro de acionistas da ARCEL. Nova composição acionária: Grupo
Lorentzen, 28,0%; Mondi Minorco, 28,0%; Banco Safra, 28,0%; BNDES, 12,5%; outros, 3,5%. abr. 1991 Inauguração da segunda unidade de produção, Fábrica B, que elevou a produção para 1,300
milhão t/ano, com a presença do presidente Collor de Melo. Com a Fábrica B, a Aracruz consolidou sua posição de maior fabricante de celulose de fibra curta de eucalipto do mundo.
maio 1992 Lançamento de ADRs de nível três na Bolsa de Valores de Nova York. jan. 1993 Certificação ISO 9002. jul. 1995 Certificação ISO 9001 para todas as atividades. abr. 1996 Certificação ISO 9002 para a planta eletroquímica. mar. 1997 Ingresso na área de produtos sólidos de madeira (Lyptus). Inauguração da Aracruz Produtos de Madeira (APM), com serraria no sul da Bahia. abr. 1999 Início das atividades pré-operacionais da Aracruz Produtos de Madeira S.A. ago. 1990 Inauguração da Fábrica Lyptus; madeira serrada de alta qualidade proveniente de eucalipto em
24
sua unidade fabril no Estado da Bahia. A madeira é destinada às indústrias de móveis e design de interiores, do Brasil e do exterior.
out. 1999 Certificação ISO 14001 para a sua gestão ambiental. out. 2000 Ingresso no controle acionário da Veracel Celulose S.A. (50% das ações ordinárias). fev. 2001 Início das obras de construção da terceira fábrica – Fábrica C –, em Barra do Riacho, que contou
com o financiamento do BNDES da ordem de R$ 666,3 milhões. nov. 2001 Aquisição de 28% das ações da Mondi pelo Grupo Votorantim. Nova composição acionária:
Grupo Lorentzen, 28,0%; Votorantim, 28,0%; Banco Safra, 28,0%; BNDES, 12,5%; outros, 3,5%. maio 2001 Fechamento da parceria entre APM e o grupo Weyerhaeuser (EUA), buscando ampliar a
produção de Lyptus. ago.2002 Inauguração da Fábrica C, com a capacidade de produção de 700 mil t/ano, elevando a
produção para 2 milhões de t/ano. 2003 Construção da fábrica da Veracel Celulose, em Eunápolis, em parceria com a Stora-Enso
(sueco-finlandesa), com uma capacidade de produção de 900 mil t/ano, recebeu financiamento do BNDES da ordem de US$ 546 milhões; compra da empresa Riocell (Grupo Klabin), RS, que tem uma produção de 430 mil t/ano.
out. 2004 Formalização do contrato de venda de 66% das ações à Weyerhaeuser, que já era parceira na comercialização do Lyptus e passou a atuar na produção.
dez.2004 Realização do contrato com a International Finance Corporation (IFC) do Banco Mundial, no valor de US$ 50 milhões.
2007 Divulgação da construção da Fábrica B, no RS; projeto de expansão da Portocel. 2009 Criação da Fibria no lugar da Aracruz Celulose, a partir da compra pelo Grupo Votorantim das
ações do Grupo Lorentzen e Banco Safra Fonte: BARCELLOS (2008, p.172)
Atenção pag. 48 e não 24. Quem for editar o texto deve alterar o número destas duas últimas páginas. Nós não conseguimos fazer isso.
49
II – VIOLAÇÕES DOS DIREITOS TERRITORIAIS QUILOMBOLAS II. 1 - A TRAJETÓRIA TERRITORIAL QUILOMBOLA NO SAPÊ DO NORTE
A existência de comunidades quilombolas no Brasil e, particularmente, no Espírito
Santo é um fato que não se pode negar, ainda que haja, como afirmam alguns estudiosos
(CICCARONE, 2006; SILVA, 2008), tentativas de silenciamento e até mesmo de ‘invisibilização’
dessas comunidades, relegando-as a um passado congelado, imutável, restringindo sua
existência ao período da escravidão e como resultado exclusivo de fugas e de um necessário
isolamento. É como se os africanos escravizados e seus descendentes não tivessem resistido e
negado a escravidão de outras formas, com variadas formas de resistência. O Brasil foi o último
país das Américas a decretar o fim do sistema escravista. Ainda assim, o fez sem qualquer
política fundiária para aqueles africanos e seus descendentes que foram escravizados. Restou a
estes continuar resistindo no período pós-Abolição, mantendo e ampliando suas redes de
relações, suas formas de organização enquanto grupo, enquanto comunidades. E assim
passaram a efetivar as conquistas de territórios (materiais e simbólicos) e de um novo papel na
sociedade. Estamos aqui afirmando que estes personagens foram e são sujeitos de uma história
ainda pouco conhecida e pouco discutida pela sociedade brasileira e capixaba, sobretudo
porque houve e há um claro interesse de silenciar as comunidades quilombolas, tornando-as
invisíveis.
A historiadora Francieli Marinato1, ao analisar a situação fundiária do Espírito Santo e
da região de São Mateus no século XIX, a formação dos quilombos e diversos documentos
produzidos pelas autoridades da então Província do Espírito Santo, constata a ocupação
territorial quilombola no Sapê do Norte, não apenas por fugas, e o empenho de tais autoridades
em dizimar ou ao menos ocultar tais comunidades. A historiadora afirma que:
[...] os imensos espaços no entorno de São Mateus que o Presidente Pereira Júnior2 considerou como “devolutos”, estavam povoados por inúmeros habitantes que as autoridades continuamente se esforçavam para subjugar ou exterminar e o discurso oficial procurava desconsiderar ou mascarar – sobretudo índios e quilombolas.
1 FERREIRA (Coord.). Relatório Técnico de Identificação e Delimitação do Território das Comunidades Quilombolas de São Domingos e Santana. INCRA-ES, 2009. 2 ESPÍRITO SANTO (Província). Presidente (1861-1863: Pereira Júnior). Relatório apresentado à Assembléia
Legislativa Provincial do Espírito Santo no dia da abertura da sessão ordinária de 1862 pelo Presidente José
Fernandes Costa Pereira Júnior [em 25 de maio de 1862]. Vitória: Typ. Capitaniense de Pedro Antonio de Azeredo, 1862.
50
Naquele período, segundo a geógrafa Simone Ferreira (2009a), a negação da
escravidão, do cativeiro, se fez através de diversas formas de resistência cotidiana, ora mais
coletivas ora mais individuais: as fugas desesperadas em busca da liberdade; o suicídio, cuja
forma mais conhecida era a ingestão de terra até a morte – banzo; o envenenamento e
assassinato de senhores e feitores; o aborto que as escravas faziam a fim de libertarem seus
filhos; a negociação de espaços de autonomia; o corpo mole no trabalho; a formação das
irmandades negras; os quilombos, dentre outras.
A existência de agrupamentos negros rurais no Brasil vivendo sob a lógica produtiva
familiar e com a apropriação e uso comum da terra e demais recursos naturais, remonta às
fugas das fazendas escravistas e áreas de mineração, com a formação dos quilombos; à
gratificação do Estado por prestação de serviços de guerra; à desagregação das grandes
propriedades fundiárias monocultoras e escravistas e doações de terra senhoriais aos escravos,
intensificadas no final do século XIX com o desenrolar do processo abolicionista (ALMEIDA,
1989).
A ocupação de terras pelas comunidades negras rurais, no Sapê do Norte, segundo
Marinato (FERREIRA, 2009b), nasce tanto das fugas escravas e sua transformação em
‘calhambolas’,3 como da herança das antigas fazendas escravistas da região. Por meio da
formação dos quilombos, das doações senhoriais ou da ocupação de terras das antigas fazendas
após a Abolição, de acordo com as autoras, efetivou-se a apropriação de terras livres ao longo
dos vales dos rios Cricaré e Itaúnas pelas famílias de antigos escravos, formando-se, assim, as
comunidades negras que vivem, em parte, até a atualidade naquela região.
A tabela 10 abaixo, elaborada por Marinato (FERREIRA, 2009b), demonstra a presença
escrava em São Mateus no século XIX. A historiadora destaca que “o número de cativos
correspondia a quase metade da população total de São Mateus” que “possuía a segunda
maior população escrava do Espírito Santo, sendo superado apenas pela região de Vitória”.
3 Termo usado na época para se referir a escravos fugidos.
51
Tabela 10
População da Vila de São Mateus – 1824 e 1827
Brancos Índios
Pardos
livres
Pardos
Cativos
Pretos
livres Pretos cativos
Ano
s
Hom
ens
Mul
here
s
Hom
ens
Mul
here
s
Hom
ens
Mul
here
s
Hom
ens
Mul
here
s
Hom
ens
Mul
here
s
Hom
ens
Mul
here
s
Alm
as
1824 500 603 241 270 358 412 111 154 118 153 1 424 965 5 313
1827 472 475 393 390 500 473 333 333 289 227 1 228 1 133 6 346
Fonte: Vasconcellos, 1977.
Com a proximidade do fim do sistema escravista, no final do século XIX, intensificaram-
se “o movimento de fugas e atos coletivos de alforria, praticados por senhores temerosos de
uma debandada geral de suas fazendas caso não libertassem os cativos naqueles últimos anos
de trabalho escravo na província” (MARTINS citado por FERREIRA, 2009b). Sobre isso
também escreve Juliana F. Salomão:
No Espírito Santo, de acordo com relatos orais, documentados por Maciel de Aguiar (citado por MINISTÉRIO DA CULTURA, 2004), a presença negra na região Norte é antiga, remetendo-se a tempos ainda da escravidão. Há antigas documentações de histórias de quilombos com intensa articulação econômica e social com os povoados da região. Segundo Aguiar, pode-se contar a atividade quilombola na região, no mínimo, desde o Quilombo de Santana, no século XIX: o autor diz que este quilombo era grande produtor de gêneros alimentícios, vendidos nos mercados locais e no Rio de Janeiro (SALOMÃO, 2006 , p. 40).
Salomão (2006) lembra ainda que, após o desbaratamento do Quilombo de Santana,
muitos negros que não foram mortos ou capturados, e outros, continuaram sua luta de
resistência, de formas variadas, formando outras comunidades numa sociedade
predominantemente branco-escravocrata. Dessa forma, puderam reconstruir os padrões de
ocupação do antigo quilombo, mantendo uma relativa autonomia, com a comercialização de
seus produtos e derivados, principalmente, da mandioca. “Foram estas transações comerciais
que ajudaram a consolidar as fronteiras das comunidades, uma vez que eram acatadas pelos
outros segmentos sociais com que passaram a interagir (ALMEIDA, 2002:49)” (SALOMÃO,
2006, p. 40). Portanto, se até mesmo os quilombos oriundos de fugas se relacionavam com a
sociedade envolvente, não há porque insistir na enganosa argumentação e exigência de
“isolamento” para definir um quilombo.
52
De acordo com Ferreira (2009a), um intervalo espaço-temporal sem uma profunda
valorização capitalista deste espaço permitiu, no Sapê do Norte, o surgimento de um modo
singular de organização da vida “[...] e seu uso e apropriação são guiados pelo princípio do
“comum”: a terra é comum – ‘terra à rola’ – [...]”. Conforme Ferreira (2009a, p.277):
Neste espaço dos “pretos”, a “terra era à rola”, o que designava a vastidão de “terras soltas”, o “sertão” de onde se extraía alimento e outros recursos e se criava o gado “à grané”. A terra, enquanto natureza, é considerada um “bem” que deve garantir a reprodução de todos daquele lugar, “território ou espaço onde o grupo social se reproduz econômica e socialmente” (DIEGUES, 1998:87-88) e que, portanto, “não pode ser vendida a estranhos; ela não é uma mercadoria plena. De fato, ela não o é em nenhuma forma camponesa plena: ela é patrimônio da família ou da comunidade” (WOORTMANN, 1995: 57).
Este padrão de uso da terra foi acompanhado pela construção de uma profunda rede (de
parentesco e de trocas materiais e comerciais, religiosas e festivas, de cura e de trabalho) que
possibilitou a constituição de uma identidade coletiva e de fortes laços de solidariedade. Essa
importante rede de relações era predominantemente entre a população negra – visto que a cor
de pele definiu quem deveria ser escravo -, mas não se restringia (e atualmente não se restringe)
a este critério, já que outros fatores definem o pertencimento e as fronteiras étnicas de um grupo
(BARTH, 2000). Dessa forma, “Estas terras não configura[ram] propriedade particular e não
[foram à época] valoradas como mercadoria” (FERREIRA, 2009a, p.85), permitindo a alternância
e mudança de moradia. “[...] as moradas próximas aos cursos d’água, as roças abertas nas terras
novas da floresta e os animais criados no sapê e nos brejos [...]” (FERREIRA, 2009a, p. 85 ). Para a
autora:
A atribuição de parcelas de terra aos escravos e do tempo para cultivá-las representava uma “brecha camponesa” do sistema, uma vez que lhes possibilitava certa margem de autonomia, no fazer de um seu espaço-tempo. No entanto, estes antigos e tradicionais apossamentos de terra jamais foram legitimados pelo Estado [...]. Desde o Regime de Sesmarias – que privilegiou a nobreza portuguesa como proprietária das terras tomadas dos povos originários indígenas – passando pela Lei de Terras de 1850 - que determinava a compra como única forma legítima de acesso à terra -, as políticas fundiárias pouco ou nenhum reconhecimento atribuiu a estas terras tradicionalmente ocupadas [...]. (FERREIRA, 2009a, p.104).
Até o início da década de 1970, as pesquisas indicam que viviam, no Sapê do Norte, um
grande número de famílias extensas, conforme relembrava Seu Amadeus Cardoso, antigo
morador do Córrego de Santana, falecido em 2009 (FERREIRA, 2009a, p. 283).
53
Agora, Cardoso é a sua família né? Eles tinham terra aqui nessa época?
Já. Já tinha terra nessa época. Tinha até um capoeirão, era uma fazenda. (...) Era do povo da minha mãe. (...) Aí foi cada um adquirindo seu patrimônio. (...) De princípio, cada um requeria seu pedaço, requeria um tanto, um pedaço, (...), que ali pra lá era os Braga, aqui era os Arlindo e o Cardozo, ali os Purquério, Alcino Purquério, ali embaixo já era o Valentim e foi descendo. Lá embaixo já era os Bernardo, Serafim, e aí foi descendo (AMADEUS).
E era de Córrego a córrego que marcava?
Era. (...) Era de Roda D'Água (...), de Boa Esperança pra fora (...), Vinho, Sapato, Santana, Santana é o nosso (...). Aqui passava do Lucindo ali, chega lá dentro, São Domingos, pra lá, Córrego da Lama, do Macuco, até o Angelim (...) Antigamente era tudo assim, igualzinho a barra de feijão. Casa ali, casa lá, ia tudo, ia os animais (...). Teve um tempo que era tudo misturado (AMADEUS)
Segundo lideranças mais velhas da Comissão Quilombola do Sapê do Norte, as famílias
na época, além de serem em maior em quantidade eram também muito mais extensas do que
hoje, ou seja, tinham em média mais filhos. Nesse período – final da década de 1960 –, contam
essas lideranças, existiam nos municípios de Conceição da Barra e São Mateus pelo menos 12
mil famílias quilombolas dispersas em cem comunidades, possuidoras de um vasto território4.
O não reconhecimento por parte do Estado das “terras de preto” contribuiu fortemente
para o processo de expropriação territorial dessas populações. Articulados à políticas fundiárias
que negaram os direitos territoriais das comunidades quilombolas, outros eventos vieram
corroborar esse quadro: o ciclo da madeira iniciado na primeira metade do século XX, quando,
parte expressiva da Mata Atlântica que cobria a região foi transformada em matéria-prima para
sustentar o crescimento urbano-industrial de algumas regiões brasileiras; a chegada da
monocultura de eucalipto ao Espírito Santo, no final dos anos 60, que precisou de áreas
extensas, provocando mais desmatamento e uma perda expressiva da quantidade das lavouras
na região (veja capítulo III sobre a questão ambiental); o Pró-Álcool (Programa Nacional do
Álcool), criado em 1975, que estimulou o crescimento das usinas de produção de álcool,
levando empresários locais a investirem em aquisição de terras para o plantio de cana-de-
açúcar.
Atualmente, segundo estimativa da Coordenação Estadual das Comunidades
Quilombolas do estado do Espírito Santo, há em torno de 70 comunidades quilombolas no
4 A redução significativa em numero de famílias no Sapê do Norte, de 12 mil nos anos 1960 para cerca de 1000 famílias em 2002, se reflete na queda da população rural no município de Conceição da Barra, conforme os dados do IBGE. Enquanto em 1960 havia 25.270 pessoas na área rural, em 1991 havia apenas 6.770 pessoas, mostrando de fato um grande êxodo rural.
54
estado. Na região do Sapê do Norte, que compreende os municípios de São Mateus e Conceição
da Barra, são 32 comunidades, segundo pesquisa realizada em 2002 pela Koinonia/Fase, com a
colaboração da Associação Afrocultural Benedito Meia Légua5 e apoio das prefeituras de
Conceição da Barra e de São Mateus. Também se encontram comunidades em outros
municípios, como Monte Alegre (Cachoeiro de Itapemirim), São Pedro (Ibiraçu) e Retiro (Santa
Leopoldina), estas com processo administrativo no INCRA, entre outras.
As comunidades quilombolas do Sapê do Norte estão envoltas por graves conflitos
territoriais, despertando, especialmente nos últimos dez anos, interesses (político, social,
cultural e científico) de diferentes atores sociais, seja para apoiar e\ou legitimar a luta dessa
população por seu território seja para questioná-la. Contudo, não há discordância quando se
trata em reconhecer que no Sapê do Norte se escreve uma intensa história de R-Existência.6
O termo sapê se refere a uma gramínea bastante abundante nas terras cultivadas pelas famílias negras e que não é consumida pelo gado e nem pelos animais de carga. Nem os tratores das empresas que cultivam a monocultura dos eucaliptos na região, que arrasaram a vegetação nativa, conseguiram extirpar o sapê, visto que ele continua renascendo em meio aos eucaliptos. A persistência com que a gramínea sempre voltou a renascer após sua retirada para a realização dos roçados dos quilombolas e, posteriormente, entre a referida monoculturização, têm levado as organizações das comunidades quilombolas a ressemantizarem a resistência do sapê. Os quilombolas associaram a capacidade de se recompor do sapê aos seus movimentos políticos e culturais para se manterem na terra. Resistir e renascer do pó (da terra) depois que muitos já os julgavam “vencidos” e “extintos” é uma metáfora sugestiva para uma analogia entre o sapê e as comunidades dos quilombolas que se apropriaram desta força natural para transformá-la em uma linguagem de resistência, que não dissocia o patrimônio cultural do político. (OLIVEIRA, Osvaldo Martins de. Org. 2009, p. 11, grifos no original).
Os dados acima comprovam que os antigos africanos escravizados e seus descendentes
escravos resistiram enquanto grupo, ao estabelecer com intensidade, antes mesmo do fim da
escravidão, um processo de ocupação do território do Sapê do Norte e uma rede de relações
com a sociedade envolvente, que tiveram continuidade com a Abolição. Tal processo perdurou
por quase um século, período no qual as comunidades negras rurais quilombolas garantiram
sua reprodução física, social, econômica e cultural.
5 Arruti, José Maurício (Coord.), “Quilombolas do Sapê do Norte: as comunidades negras rurais dos municípios de Conceição da Barra e São Mateus ES”, Koinonia, 2005 6 R-Existência: Porto-Gonçalves sugere uma relação entre resistência e existência: “mais do que resistência, o que se tem é R-Existência posto que não se reage simplesmente a ação alheia, mas, sim, que algo pré-existe e é a partir dessa existência que se R-Existe. Existo, logo resisto. R-Existo” (PORTO-GONÇALVES, 2006, p. 165).
55
Este importante processo foi violentamente alterado pelas ações da empresa Aracruz
Celulose/Fibria e do Estado, a partir do final da década de 1960, como veremos a seguir.
II. 2 – AS AÇÕES DA ARACRUZ CELULOSE/FIBRIA E DO ESTADO NA EXPROPRIAÇÃO DOS TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS DO SAPÊ DO NORTE-ES
Desafio que se apresenta a estes povos está constituído por megaprojetos de desenvolvimento econômico que estão levando a cabo os seus territórios tradicionais, particularmente a exploração de recursos naturais [...]. Projetos que necessariamente afetam, de maneira profunda, a existência de comunidades que habitam as zonas de exploração (SÁNCHES, 2001, p.8, citada por BARCELLOS, 2008, p. 173).
De acordo com Barcellos (2008), com ingredientes modernos e desenvolvimentistas, a
relação entre os povos tradicionais do Espírito Santo e a empresa Aracruz Celulose S.A. reedita
a história colonial – alguns a chamariam de relação pós-colonial, ou seja, formas de dominação
que caracterizaram o período colonial, reelaboradas e transportadas para a contemporaneidade
– e impõe às comunidades quilombolas e também indígenas perdas materiais e simbólicas
irreparáveis. A diferença é que, nesse acontecimento da atualidade, o colonizador estabeleceu
uma prévia aliança com sujeitos internos (Estado, lideranças nacionais e estaduais) que deu
suporte ao processo de invasão e ocupação de terras (BARCELLOS; FERREIRA, 2007).
A empresa chegou ao Espírito Santo nos tempos de ditadura militar, na gestão do
presidente Costa e Silva (1967-1969), seguido por Garrastazu Médici (1969-1974), e
primeiramente na região das comunidades indígenas Tupiniquim e Guarani. Como afirmou
Gomes (2008), foi um dos períodos de maior rigor da ditadura, o que impediu que os indígenas
esboçassem qualquer reação ao seu processo de expropriação territorial. “Época de desmandos,
censura, tortura, cerceamento das liberdades e direitos, negócios obscuros e desinformação
generalizada.” (FASE-ES, 2002, p. 8). Momento em que se conjugavam diversos fatores: a forte
concentração de terras e de riquezas; a exploração de mão-de-obra desqualificada e barata; uma
economia baseada na exportação de matéria-prima bruta; e o uso da força contra os antigos
ocupantes da terra (BARCELLOS, 2008).
Analisando este contexto de forma generalizada, pode-se então afirmar que não há ruptura entre seu aparecimento e a pior das nossas tradições terceiro-mundistas: a formação de uma elite que une interesses financeiros à violência de um Estado ditatorial, que privilegia grupos econômicos sem nenhum compromisso com a sociedade civil local, que se instala, nestes territórios, com todas as prerrogativas e regalias (FEDERAÇÃO DOS ÓRGÃOS DE
56
ASSISTÊNCIA SOCIAL E EDUCACIONAL-FASE-ES, 2002, p. 8, citado por BARCELLOS, 2008, p. 174).
A apropriação do espaço, no Terceiro Mundo, pelos grandes projetos, exigiu uma
“arrumação” de informações institucionais e políticas, ao mesmo tempo, a produção de um
espaço artificial, onde sujeitos locais, por se colocarem como obstáculos ao desenvolvimento,
foram transformados em ausentes. No caso do território indígena, estranhamente um relatório
técnico o identificava como “terras improdutivas e parcialmente desabitadas, tecnicamente
apropriadas para o plantio da monocultura de eucalipto [...] uma macabra representação de
lugares despidos de vida natural e social.” (CICCARONE; SCARIM, 2003, p. 1-2).
Populações indígenas, pequenos proprietários, lideranças quilombolas e organizações
sociais buscaram denunciar os acontecimentos da época, questionando a procedência das terras
sob o controle da ARCEL. Contudo, em um contexto de repressão política embalado pelo afã
desenvolvimentista, suas vozes pouco ecoaram. Somente a partir de 2002, com a instalação, pela
Assembléia Legislativa do Espírito Santo, de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI),
para apurar possíveis irregularidades da empresa em processos de licenciamentos ambientais,
acontecimentos graves envolvendo a apropriação ilegal de terras pela empresa vieram à tona.
Os autos da CPI revelaram que alguns de seus funcionários, atualmente aposentados, atuaram
como “laranjas” na aquisição de terras devolutas do Estado, entre as quais estão grandes
parcelas dos territórios das populações tradicionais localizados no norte do Espírito Santo.
Porém, para melhor se compreender os eventos aqui levantados, serão tecidos alguns
comentários sobre aspectos legais relacionados às terras devolutas no Espírito Santo.
No início de 1970, a legislação estadual vigente, na qual se definiram o conceito de terras
devolutas, a legalidade do processo de vendas e a legitimação por parte de terceiros, consistia
na Lei Estadual 617/1951, na Lei Delegada Estadual 16/1967 e no Decreto-Lei 2.688/1968. Assim,
terras devolutas eram aquelas que passaram para o domínio patrimonial do Estado e não foram
incorporadas ao domínio particular. Posteriormente, a Lei Delegada 16/1967 ampliou o conceito
de terras devolutas, definindo-as como: as que não servissem a nenhum uso público do Estado;
as dadas em sesmarias e sob outras condições, incursas em comissão por haverem sido
revalidadas; as que não fossem objetos de posse que, embora processadas de acordo com a lei,
ainda não tivessem sido julgadas ou não dispusessem de título legal; as que não se achassem no
domínio particular por qualquer título legítimo.
57
A legislação citada impunha assim ao requerente de terras devolutas o preenchimento de alguns pré-requisitos, entre os quais a comprovação de que o requerente fosse lavrador ou criador, ou se dedicasse a atividades agropecuárias. A lei delegada estadual 16/67 impunha ainda, para a legitimação de posse, a existência de cultura efetiva, moradia habitual do posseiro no prazo mínimo de três anos e que ele mantivesse, pelo menos, uma quinta parte do terreno em exploração (FEDERAÇÃO DOS ÓRGÃOS DE ASSISTÊNCIA SOCIAL E EDUCACIONAL-ES, 2002, p. 22, citado por BARCELLOS, 2008).
Os Autos da CPI de 2002 registram flagrantes ilegalidades cometidas pela ARCEL (na
época, ARFLO) e por outros requerentes de terras, a seu pedido. Constatou-se, por exemplo,
que os requerentes usados por ela, então funcionários da empresa, nunca foram agricultores,
nunca moraram nas terras requeridas e nem sequer sabiam onde estas eram localizadas. Aqui
são destacados trechos de alguns depoimentos prestados à CPI, de funcionários aposentados da
empresa, buscando exemplificar a questão. Como os autos são de domínio público, não se
identificaram problemas ao nominar os depoentes.7 São eles: Orildo Antônio Bertolini, Sérgio
Antônio Forechi e Ivan de Andrade Amorim (BARCELLOS, 2008). Quando se lhes perguntou se
trabalharam na Aracruz, que funções exerciam e em qual período, responderam:
As minhas funções principais na Aracruz foram na área de biometria, medição de florestas, e na área de silvicultura, programação e controle de silvicultura. Na área de biometria seria a estimativa do volume de madeira em pé, nas diversas idades da floresta a partir dos vinte e quatro meses. E na silvicultura, programar e controlar recursos aplicados nas operações silviculturais (Forechi citado por ESPÍRITO SANTO, 2002, v. 22, fl. 4493).
Eu fui admitido na antiga Aracruz Florestal em setembro de 1974, e lá permaneci até março de 1993. Eu fui admitido na antiga Aracruz Florestal como escriturário, depois como auxiliar administrativo 3, e a última função exercida na antiga Aracruz Florestal foi a de coordenador. Então, a minha função era executar tarefas que me eram passadas em razão de minha qualificação profissional na época (Amorim citado por ESPÍRITO SANTO, 2002, v. 24, fl. 4494).
Entrei na Aracruz em 1968 e trabalhei na área topográfica. A empresa comprava áreas, eu ia lá e ‘retombava’ essas áreas para poder pagar o valor da área e fazia outros serviços que a empresa precisava como marcação de estradas, talhões, contorno de áreas. Meu trabalho era na área de topografia em geral (Bertolini citado por ESPÍRITO SANTO, 2002, v. 22, fls. 4193-4194).
Quando questionados sobre a quantidade de áreas adquiridas por eles, sua localização,
custos, e o que fizeram com as áreas requisitadas, responderam (BARCELLOS, 2008):
7 Os dois primeiros depoimentos foram colhidos em 7 de maio de 2002, e os seguintes, em 14 de maio de 2002.
58
Que eu me lembre, um requerimento [...] Não me lembro nem da localização e nem da dimensão e nem do município [...] Na verdade, essa terra foi legitimada no meu nome e repassada para a empresa (Forechi citado por ESPÍRITO SANTO, 2002, v. 24, fls. 4495-4496). Se não me falha a memória, fiz dois requerimentos [de áreas]. [...] Não tenho lembranças [do ano da aquisição]. [...] Também não me recordo [da localização], até em função do tempo. Recordo que assinei, mas não tenho como informar o local dessa titulação [...] Titulei para a empresa [...] as empresas da época eram Brasil Leste, Vera Cruz e Aracruz Celulose (Amorim citado por ESPÍRITO SANTO, 2002, v. 24, fls. 4494-4495).
Tenho um sítio em Aracruz [...] Já tive outras [terras] e passei para a empresa, depois de legitimada [...]. Eram bem maiores [...] Era bem mais. Uns duzentos hectares, não tenho certeza [...] Exato não sei. Acho que uma área de noventa e poucos hectares, outra de duzentos, um negócio assim. Eu não tenho certeza [...] Tinha consciência de que iriam ser requeridas em meu nome para, posteriormente, depois legalizadas para a empresa Aracruz Celulose [...] Mas, no caso, essas terras eram terras devolutas, é isso. Isto. Terras devolutas [...] Assim que as adquiri passei para a Aracruz [...] após a legitimação (Bertolini citado por ESPÍRITO SANTO, 2002, v. 22, fl. 4194).
À pergunta “se receberam algum valor da empresa para cumprir esse papel”,
responderam (BARCELLOS, 2008):
Nada. Fiz isso por liberalidade. A empresa me pediu e não hesitei, porque era um pedido da empresa [...] Na época, assinei o requerimento, depois que a escritura foi liberada, não sei em que período, outorguei a escritura para a empresa (Amorim citado por ESPÍRITO SANTO, 2002 v. 24, fls. 4495-4496) Nada. Essas terras foram só legalizadas em meu nome para que eu passasse para a Aracruz depois, para o uso de reflorestamento de eucalipto (Bertolini citado por ESPÍRITO SANTO, 2002, v. 22, fls. 4199).
Orildo desconhecia, de acordo com os Autos da CPI (2002), que tinha requerido uma
área de duzentos e um hectares, na localidade de Córrego da Sapucaia e outra de trezentos e
noventa e cinco hectares na localidade de Córrego do Airimirim8. Da mesma forma, Ivan de
Andrade Amorim alegou desconhecer que tinha adquirido uma área de 480 hectares9, no
Córrego do Sapato. Todas estas três áreas estão localizadas no município de São Mateus. E
Sérgio Antônio Forechi não lembrava que tinha adquirido, em 1974, 530 hectares de terra no Rio
Angelim, área de ocupação das comunidades quilombolas, no município de Conceição da
Barra.10 (BARCELLOS, 2008, p. 176).
8 Registro Geral de Imóveis da Comarca de São Mateus/ES (Transcrição 16210 e 16209, Livro 3/R, 1974). 9 Registro Geral de Imóveis da Comarca de São Mateus/ES (Transcrição 16916, Livro 3/S 1975). 10 Registro Geral de Imóveis da Comarca de São Mateus/ES (Transcrição 12236, Livro 3/L, 1974).
59
Os referidos requerimentos de terras feitos em nome dos então funcionários da ARCEL
para depois legalizá-los para a empresa, também foram alvo de análise do Relatório Técnico de
Identificação e Delimitação (RTID) do Território de São Jorge. Abaixo, seguem as cadeias
dominiais (QUAD. 2) dos adquirentes Orildo Antônio Bertolini11 e Ivan de Andrade Amorim12
elaboradas pelo advogado Darcy Pelissari, responsável pela seção jurídico-fundiária do referido
relatório técnico.
Quadro 2 – Extrato de Cadeia Dominial Vintenária (Córrego do Amorim)
11 RTID do Território de São Jorge, Seção Jurídico-Fundiária, pp. 335 e 336. 12 RTID do Território de São Jorge, Seção Jurídico-Fundiária, pp. 351 e 352.
60
Quadro 3 – Extrato de Cadeia Dominial Vintenária (Córrego do Sapato)
Estas são algumas de muitas cadeias dominiais13 que demonstram que os adquirentes
“revenderam” as terras para a empresa em curto intervalo de tempo, às vezes no mesmo dia. Os
valores variavam de 40 a 80 vezes a mais daqueles que foram adquiridos do Estado do Espírito
Santo. Além disso, a maioria dos adquirentes não aparece na listagem de recadastramento do
IDAF (órgão estadual de terras), o que seria um indício de que estes não atendiam um dos
requisitos legais para a aquisição de terras devolutas: moradia habitual. Ao comparar tais dados
com os depoimentos dos ex-funcionários da empresa na CPI constata-se que houve simulação
na aquisição de tais terras.
13 Outras situações semelhantes podem ser consultadas no Anexo I - O processo de grilagem de terras envolvendo a Aracruz Celulose, com análise de algumas cadeias dominiais.
61
Um caso emblemático tratado por Gilsa Barcellos, em sua tese de doutorado, é o de
Antônio Alage. A autora se utiliza dos relatórios e registros da CPI da Aracruz Celulose. A
partir da análise da documentação que compõe os Autos da CPI da Aracruz, observam-se
algumas contradições que comprovam a produção manipulada de documentação, buscando
legitimar e “legalizar” a aquisição de terras pela empresa, no Espírito Santo:
a. Primeira irregularidade: Antônio Alage, filho de Adalberto Alage e de Maria Alage, de
acordo com a sua certidão de nascimento de nº 4229 (Livro 30, fl. 89, no Cartório de
Registro Civil, no município de São Mateus),14 nascido em 18 de julho de 1948, adquiriu
200 hectares de terras para “cultura de pastoris”, num lugar chamado Itauninhas,
Córrego de Santo Antônio, distrito do município de Conceição da Barra, no ano de 1947,
um ano antes do seu nascimento. O ato de requisição da terra foi lavrado pela Divisão
de Terras e Colonização (DTC), vinculada à Secretaria da Agricultura, Viação e Obras
Públicas do Estado do Espírito Santo.15 Em 23 de janeiro de 1948, foi emitido o Termo de
Início de Medição dos 200 hectares pelo mesmo órgão.16 A Escritura da propriedade de
Alage foi lavrada em 4 de fevereiro de 1952 pelo tabelião do Cartório Adolpho Serra, no
município de Conceição da Barra.17
b. Segunda irregularidade: em 19 de fevereiro de 1975, Antônio Alage requereu, num lugar
denominado de Rio Santana, em São Mateus, mais 178 hectares de terras devolutas para
a “cultura de cereais” que lhes foram concedidos pelo Diretor Geral do DTC: “tudo de
acordo com a Lei 617 de 31-12-1951, da Lei Delegada n° 16, de 18-11-1967, e Decreto nº
2.688, de 6-2-68 [...]. Esse terreno limita-se com o Rio Santana e Brasil Leste Agroflorestal
S.A.” (ESPÍRITO SANTO, 2002, v. 8, fl. 1499). Um dia após a solicitação por meio do
preenchimento de um formulário, ele quita a taxa de requerimento na Divisão de
Assuntos Tributários no valor de Cr$12,86 (Recibo de nº 22.8844). Nesse mesmo ano,
Alage repassou a propriedade para a Brasil Leste Agroflorestal S.A., que já era
proprietária de terreno vizinho.
c. Terceira irregularidade: o Cartório Adolpho Serra certifica, por meio de uma Certidão
Vintenária, emitida em 22 de abril de 2002, que Alage adquiriu – sete meses após a
aquisição dos 178 hectares – uma outra propriedade de 64 hectares, em 29 de setembro
de 1975 e, no mesmo dia, Alage a repassou para a Vera Cruz Agroflorestal S.A. Os 64
14 ESPÍRITO SANTO, 2002, Autos da CPI, 2002, v. 1, fl. 113. 15 ESPÍRITO SANTO, 2002, Autos da CPI, 2002, v. 1, fl. 143. 16 Ibidem, v. 1, fl. 144. 17 Ibidem, v. 1, fl. 143.
62
hectares estavam localizados num lugar denominado Fazenda Estrela do Norte, em
Conceição da Barra.
[...] limitando-se ao norte com Córrego do Macuco; ao sul, com o Flonibra; a leste, com Mateus Laurentino; e a oeste, com João Cardoso, foi adquirido por Aracruz Celulose S.A. [...] por incorporação da Vera Cruz Agroflorestal S.A. [...] tendo Vera Cruz Agroflorestal S.A. adquirido de Antônio Alage, conf. Reg. 12.981, fls. 131 do Lº 3-M em 26-09-75 [...] Tendo Antônio Alage adquirido do Estado do Espírito Santo conf. Reg. 12.937, matrícula 122, do Lº 3-M em 29-09-75 (ESPÍRITO SANTO, 2002, v. 1, fl. 108, grifo nosso).
Ainda de acordo com a certidão, quando em 1978 a Vera Cruz18 foi incorporada ao
patrimônio da ARCEL, as terras que um dia “pertenceram” a Antônio Alage passaram a
incorporar o patrimônio fundiário da ARCEL.
Edivar Alcântara foi o agrimensor da DTC que fez a medição de parte das terras adquiridas
por Alage. Alcântara trabalhou no órgão estadual até 1976, quando foi contratado pela ARFLO.
Ele foi um dos ouvidos pela CPI sobre a questão:
Quanto à minha vida funcional, de 1950, por concurso, entrei no Estado com a função de encarregado de medições e a desempenhei até dezembro de 1976. Em 1977, entrei para a Empresa Aracruz Florestal S.A., vindo a me aposentar, definitivamente, em 1992. Entrei na Aracruz Florestal como chefe da Divisão de Topografia [...] Comecei a trabalhar para organizar a implantação do cadastro topográfico da empresa [...] foi quando começou a informação de todas as áreas, de todos os talhões do plantio de eucalipto, áreas de preservação, tudo foi passado para o computador e entrei, exatamente, para coordenar toda essa ação de cadastramento. E quanto ao resto, fiz medições em várias partes do Estado [...] (Alcântara citado por ESPÍRITO SANTO, 2002, v. 22, fl. 4212, citado por BARCELLOS, 2008, p. 177).
Quando foi perguntado se havia feito a medição das terras de Antônio Alage, Alcântara
respondeu: “Não tenho lembrança, mas se existe alguma planta, algum memorial assinado por
mim em nome de Antônio Alage, ele deve ter legalizado a terra, porque quem requer é óbvio.”
(Ibidem).
De acordo com Anna Fanzeres (2005), 22 mil hectares de terras devolutas foram
repassados à ARCEL por meio de 29 ex-funcionários da empresa, alguns dos quais, na
18 De acordo com a Certidão Vintenária emitida pelo Cartório de Registro Civil e Tabelionato, em 29 de maio de 2002, com sede em Conceição da Barra, 40 propriedades da Brasil Leste Agroflorestal S.A., adquiridas também de terceiros, foram vendidas, no mesmo dia, 17 de julho de 1975 (Livro n. 61), para a Vera Cruz Agroflorestal S.A. E mais, de acordo com a Certidão Vintenária emitida pelo Cartório Adolpho Serra, também de Conceição da Barra, em 12 de abril de 2002, a Vera Cruz Agroflorestal adquiriu da Brasil Leste Agroflorestal S.A. 15 áreas entre os dias 21 de novembro de 1974 a 23 de julho de 1975. Nessa mesma certidão, constam dez repasses de terras por então funcionários da ARCEL para a Vera Cruz Agroflorestal S.A., a exemplo de José Antônio Cutini, ex-funcionário da empresa. Todos os repasses foram feitos no mesmo dia, 15 de outubro de 1974 (ESPÍRITO SANTO, 2002, v. 8, fls. 1476, 1477, 1478; v. 37, fls. 7333, 7334, 7335, 7336, 7337, 7338).
63
atualidade, são funcionários aposentados. Sobre isso, também Salomão (2006, p. 63) comenta
que “como os requerimentos eram realizados diretamente junto ao Poder Público, muitas vezes
as famílias só vinham a saber o que tinha ocorrido quando já não possuíam mais o terreno.”
Segundo Calazans (FEDERAÇÃO DOS ÓRGÃOS DE ASSISTÊNCIA SOCIAL E
EDUCACIONAL, 2003, p. 8), “[...] o cenário de privilégio acabou por criar uma verdadeira
‘caixa preta’ onde a forma pela qual as terras da empresa foram adquiridas e seu violento
processo de legitimação junto às populações tradicionais permanecem até hoje obscuros.”
Longe de seguir um padrão ético, a ARCEL foi rapidamente tomando posse de territórios de
uso comunal de populações indígenas, no município de Aracruz, e de comunidades
quilombolas, nos municípios de São Mateus e Conceição da Barra. Lembra um ex-morador da
aldeia extinta Guaxindiba, a primeira vez que chegou o agrimensor para fazer a medição da
terra (BARCELLOS, 2008):
[...] apareceu um agrimensor que veio medir, dizia ele que era ordem do Governo do Estado para medir os terrenos de todo o morador ali. Diz ele que tinha que medir a parte que quisesse, que se não pudesse medir aí ia ficar só com uma beirada da casa, a ordem do [dada ao] agrimensor era medir tudinho, mas a gente não sabia pra que era. Ele veio com a ordem de medir, mas não sabia se alguém vinha pra comprar o terreno. Aí eu pensei, eu comecei a medir o pedaço de terra, o meu tio, que morava perto, e os meus primos, aí nós medimos, era terreno pegado. Aí a gente criava lá uns porquinhos, pegamos e vendemos tudinho, depois da medição. Nós não tinha certidão, depois que eu me formei eu já tava com 20 anos já, eu tirei a certidão. Porque quando eu morava em Putiri a gente não registrava. Quando o cartório vinha, ele registrava todo mundo, mas não dava certidão pra pessoa, não, ficava com eles. [...] Então, tinha esse agrimensor que tava medindo, deu uma colônia, nós vendemos os porquinhos e eu lembro dava 35 contos só pra pagar a medição. Diz o agrimensor que é ordem que ele teve. Aí, não bastou... Escuta só o que aconteceu: aí ele pegou os documentos... não foi só meu, não, ele pegou de todos eles que interessava a medir, de todos eles. Ele mediu, recebeu o dinheiro, quem já tinha documento dava, quem já não tinha dava a certidão, igual a eu que só tinha certidão, aí ele levou. Ele prometeu que ele levava pra Vitória, fazia os documentos do terreno e depois voltava entregar os documentos do terreno e pra devolver a certidão. Até hoje ele não voltou mais. Pegou os documentos de todo pessoal aí e sumiu. Aí, logo depois o pessoal da florestal veio, com a mesma idéia de medir o terreno, quem quisesse ficar ia só ficar com as partes de casa, o que interessava eles era indenizar a gente pra gente sair. Não tinha ninguém pra orientar a gente se era pra ficar ou sair, aí nós falamos: “Nós vamos sair”. Aí nós saímos, a gente desmanchou o barraquinho, tiramos a madeira [...] (BARCELLOS, 2007. Entrevista 5).
Relatos como este, articulados às informações dos depoentes na CPI, levam a crer que a
estratégia da empresa era impedir que os indígenas e quilombolas tivessem possibilidade de
contestação ao despejo imposto, desaparecendo com quaisquer vestígios de documentação que
64
comprovasse a propriedade ou o uso da terra pelas famílias (BARCELLOS, 2008). Ao mesmo
tempo, terceiros, funcionários, adquiriam do Estado terras devolutas em nome próprio,
alegando ser pequenos agricultores e, em seguida, as transferiam de forma ‘legal’ para a
empresa. Tais acontecimentos denunciam uma rede de favorecimento à época, envolvendo
cartórios de registros de imóveis e órgãos públicos estaduais. Corroborando essa análise, um
representante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), declara na CPI:
Uma outra curiosidade: em todos os processos, ele [o requerente de terras] faz uma declaração, todos fizeram isso, ao diretor geral do Departamento de Terras e Colonização do Estado... Faz uma declaração destinando as terras para a empresa Brasil Leste Agroflorestal, uma empresa incorporada da Aracruz Celulose. Todos têm essa declaração, 100% deles da mesma forma. Não tem nenhuma diferença entre um e outro. No mesmo ano, ele já não era mais o dono da propriedade. Ele requer no ano de 1975 e transfere para a Aracruz no mesmo ano (João Batista Marre, citado por ESPÍRITO SANTO, 2002, grifo nosso, citado por BARCELLOS, 2008, p. 179).
Observa-se que, no depoimento de Marré, ele cita a Brasil Leste como uma empresa
incorporada à ARCEL, mas tal fato não foi esclarecido; sabe-se, no entanto, a partir dos relatos e
dos documentos que integram os autos da CPI, que ela foi “testa de ferro” da ARCEL no
processo de aquisição de terras no Estado.
A partir do conjunto dos depoimentos, é possível identificar diferentes estratégias de
apropriação do território indígena: em algumas situações, a exemplo de Guaxindiba, aparecia a
figura do agrimensor, funcionário da empresa, que se apropriava da documentação19 das
famílias, desaparecendo com quaisquer vestígios legais de relação dos indígenas com a terra;
em outras situações, a exemplo da aldeia Tupiniquim Cantagalo, a tática era usar terceiros para
a “compra” das benfeitorias das famílias, solicitando que elas deixassem a terra imediatamente;
e, por último, aquelas de caráter coercitivo explícito, uso da força, buscando expulsar os
indígenas, a exemplo das aldeias Macacos e Irajá.
Insta registrar que a CPI não teve continuidade, encerrando, dessa forma, o trabalho
investigativo sobre a apropriação de terras pelo Grupo Aracruz no Espírito Santo.
A CPI da Aracruz parou de funcionar, sem resultar num relatório final, em função de uma decisão do Supremo Tribunal Federal em resposta a uma ação impetrada pela Confederação Nacional das Indústrias, alegando que o presidente da CPI havia solicitado a prorrogação da CPI fora do prazo
19 Parte da documentação de posse dos índios foi adquirida ainda no século XIX, com a criação da Lei de Terras (ver SILVA, 2000).
65
estabelecido [um dia depois] pelo regimento interno da Assembleia Legislativa do Espírito Santo (SEBASTIÃO RIBEIRO, 2008, citado por BARCELLOS, 2008,
p. 185).20
Baseado nas fraudes que vieram à tona na CPI da Aracruz, várias entidades que
integram a Rede Alerta contra o Deserto Verde, fizeram um requerimento, junto à Procuradoria
Geral do Estado - PGE, protocolo 28212827 de 17/08/2004, pedindo a anulação das legitimações
das terras, “visando reaver as referidas terras para devolvê-las a seus legítimos donos, os
quilombolas do Sapê no Norte”. Depois de uma primeira análise, a PGE encaminhou o pedido
para o IDAF em 28/11/2005 para que fosse feito um levantamento em relação às fraudes
denunciadas, porém, até o início de 2009, o IDAF não tinha informado o andamento da
apuração, mesmo depois de um novo pedido de informação por parte da Assembléia
Legislativa em 2008.21
Quando a ARCEL, em 1975, iniciou a construção da sua primeira fábrica, já havia
conseguido plantar, no Estado, 51 milhões de pés de eucalipto. A cena instigante de uma
grande agroindústria se sobrepondo à pequena aldeia indígena Macacos, local onde foi
construída a sua primeira planta industrial, evoca a imagem da disputa entre duas
racionalidades radicalmente distintas e excludentes entre si (LEFF, 2001) e denuncia uma
correlação de forças de extrema desigualdade. Nesse período, os indígenas se acotovelavam em
uma área de 0,1% do seu território original. “Em 1979, os Tupiniquim e os Guarani encontram-
se ‘ilhados’ em 40 hectares das terras que lhes restavam e que a Aracruz alegava serem de sua
propriedade.” (MARACCI, 2008, p. 190).22
No entanto, a ação da empresa não se restringiu ao município de Aracruz. No início dos
anos de 1970, de acordo com os depoimentos de lideranças quilombolas, registrados pela CPI
da Aracruz, ocorrida em 2002, diferentes estratégias foram utilizadas para afugentar a
população das terras onde vivia no Sapê do Norte: a utilização de figuras próximas e de
confiança das comunidades, uma delas foi Benedito Braulino, conhecido vulgarmente como
Pelé, que buscou fazer o convencimento das famílias para que vendessem suas terras à ARFLO,
atualmente conhecida como ARCEL. No entanto, quando a diplomacia não funcionava, era
acionado o tenente Merçon, conhecido por seus métodos bastante diretos e agressivos. Quem
escreve sobre isso é Helder Gomes:
20 Sebastião Ribeiro foi o assessor técnico da CPI da Aracruz. 21 RIBEIRO FILHO, Sebastião, “Fraudes e ilegalidades”, capítulo em livro a ser publicado em 2010 sobre impactos da Aracruz Celulose no ES, Rede alerta contra o Deserto Verde e Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais 22 A autora não computa neste período a área da aldeia de Comboios com 2.546 hectares que, por ser uma área de restinga, por isso imprópria para o plantio de eucalipto, a empresa não a utilizava.
66
[...] outra figura importante no processo de coação visando à apropriação das áreas pretendidas pelo Grupo Aracruz foi o tenente Merçon. Este teria se utilizado da patente do Exército Brasileiro, ameaçando queimar ou passar com os tratores sobre os casebres das famílias residentes, se estas resistissem em deixar as terras que cultivassem, em favor da Aracruz Celulose. Ou seja, quando a tática de sedução não funcionava, partia-se para o uso da força, mesmo (GOMES, 2008, p. 33).
Na CPI da Aracruz, o líder quilombola Domingos Firmiano dos Santos, também relata
sobre o processo de entrada da Aracruz e atuação de Pelé e de Tenente Merçon:
...O Pelé foi usado para fazer esse tipo de transação de relação com a comunidade negra. Ele iniciou indo com o Tenente Merçon, que não vi mais, era pequeno, tinha uns quatorze anos a quinze anos, mas recordo-me muito bem ele começou a ir as comunidades e comprar algumas terras. Das outras terras ele mandava as pessoas saírem mesmo, várias famílias que conhecemos
foram mandadas sair da terra.23 Eles tinham algumas estratégias e uma delas, como disse inicialmente, é que falavam que o negro tinha que estudar, que dariam emprego para você na empresa. E quando eles não conseguiam atingir seus objetivos havia um tenente Merçon, que junto com Pelé – porque o Pelé foi seduzido e não sei qual é a dele ter “entrado nesse barco” – e como Pelé era referência e fazia toda a circulação junto com o Tenente Merco, porque se fosse um cara branco tratar diretamente com os negros não conseguia a propriedade, porque não tinha a relação com a comunidade negra. Era uma extensão muito grande de negros na região e a estratégia deles era a de chegar e conversar primeiro, caso não
conseguissem ele ameaçava.24
Quando você fazia o jogo dele tudo bem, quando não fazia o jogo dele; ele ameaçava. Quando a terra não era legalizada ele (tenente Merçon) falava que a terra era do Estado e que tinha que pegar a terra porque o Estado vendeu aquela terra para a Aracruz. Era assim que falava. Tinha de sair porque aquela
terra era da Aracruz.25
Também nos autos da CPI da Aracruz Celulose, às fls. 8037 e 8050, se encontra o
depoimento do senhor Manoel José Valentin, quilombola da comunidade de São Jorge, vítima
de esbulho na terra em que morava:
Eu tinha um terreno, não era meu era de um tio meu. Eu não poderia requerer o terreno, então meu tio passou o terreno para outra pessoa. Ele foi e requereu o terreno. Tinha vinte anos que eu morava no terreno. Tinha coqueiral, tinha tudo plantado lá. Então, ele vendeu a terra para a Aracruz e me tirou de lá. Aí mudei para outro terreno lá fora onde tinha um pedaço de terra. O tenente
23 Autos da CPI da Aracruz, fls. 8038. Depoimento de Domingos Firmiano dos Santos. In: FASE (2002). 24 Autos da CPI da Aracruz, fls. 8044. Depoimento de Domingos Firimiano dos Santos. In: FASE (2002). 25 Autos da CPI da Aracruz, fls. 8046. Depoimento de Domingos Firmiano dos Santos. In: SILVA, Sandro J. (Coord.) RTID da Comunidade Quilombola se São Jorge, p. 374.
67
Merçon me tirou de lá. Eu disse a ele que não saía, que só saía se ele tirasse a minha casa de onde estava e botasse no meu terreno. Porque eu tinha dois alqueires de terra fora. Ele disse que eu sabia que a terra não era minha e por que eu estava morando lá? Ele falou que se eu não saísse, que mandaria o tratorista passar em cima da minha casa. Disse a ele que não, que não queria que ele mandasse. Queria que ele mesmo fosse. [...] Algumas pessoas eles compravam a terra e davam qualquer dinheiro. Compravam casa na rua e davam às pessoas. Davam aqueles barraquinhos e ficavam com a terra. Agora eles iam medir, eram dez alqueires e eles mediam vinte, trinta” (fls. 8037 e 8050 dos autos da CPI da Aracruz Celulose, arquivados no arquivo da Assembléia Legislativa do Estado do Espírito Santo. In: SILVA (Coord.), RTID da comunidade quilombola de São Jorge, pp. 375 e 376. grifos no original).
Falsos argumentos, coação e a utilização de “laranjas” com a conivência de órgãos
estatais eram outras estratégias de praxe para que as terras se tornassem de domínio da
empresa ARCEL (cabe ressaltar a forte participação acionária estatal no período), comprovando
como esta agia premeditadamente e de forma acintosa para alcançar seus objetivos: a formação
de um grande latifúndio para o plantio da monocultura de eucaliptos, mesmo que para tal
fossem desconsiderados os direitos mais básicos das populações que detinham o legítimo
direito à terra, pois a ocupavam havia muitas décadas.
Segundo os depoimentos dos moradores, esse senhor (Benedito Braulino, mais conhecido como Pelé) comprava terras utilizando nomes de terceiros para posteriormente serem transferidas para empresas ligadas ao grupo Aracruz Celulose S/A, holding que abarca as empresas Vera Cruz Agroflorestal S/A, Aracruz Florestal e Tecniflora Agroflorestal S/A e Brasil Leste Agroflorestal S/A. Aparecem nas cadeias dominiais também as empresas Celulose Nipo-Brasileira – CENIBRA, Mucuri Agroflorestal S/A e Florestas Rio Doce S/A.” (RTID da comunidade quilombola de São Jorge, p. 373)
Tais estratégias de uso de terceiros (laranjas) para aquisição de terras pela empresa,
dentro dos territórios quilombolas, coroadas por uma condição de favorecimento em diversos
níveis dos órgãos estatais responsáveis, demonstram claros atos de ilegalidades como ato
simulado na aquisição de terras devolutas e esbulho das posses quilombolas. Se as leis vigentes
naquele período fossem cumpridas, os quilombolas teriam suas posses legitimadas, pois
atendiam a todos os pré-requisitos legais para tal. Mas a conjugação de esforços do Estado e da
Aracruz Celulose/Fibria expulsou os quilombolas de seu território.
Tudo isso merece e carece de apuração séria e devida, pois, há a possibilidade de
anulação de registros de imóveis, das terras adquiridas ilegalmente, com vícios em sua origem,
sobretudo porque tais ilegalidades não prescrevem, como destaca Pelissari:
68
Se o comprador de terra chegava para os moradores dizendo para ele sair e logo em seguida utiliza terceiro para requerer, além de ter cometido ato simulado, também agiu ilegalmente, conforme previsão do parágrafo 1º, do artigo 121, da Lei Estadual 617/52, que previa aplicação de multa àqueles que fizessem declarações falsas ou emprestassem o nome em requerimento que visasse à compra de terras destinadas a outrem.
Nota-se que a Legislação Estadual foi extremamente branda àqueles que emprestassem seus nomes para esquentar terras para outrem. No entanto, a legislação estadual não era estanque, logo não se encerrava em si mesmo, restando outros dispositivos para, se fosse o caso, serem aplicados. Como é o caso do art. 171 do Código Penal (Estelionato: “Obter para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”). [...]Os depoimentos, relatos e histórias orais apresentadas ao longo deste trabalho são suficientes para apontarmos que as comunidades foram vítimas de esbulho e ato simulado no processo de aquisição de terras iniciado, notadamente, na década de 60, mas que ganhou relevo a partir de 1970. Nesse mesmo sentido, conforme exegese do art. 142, da Lei Estadual nº 617/52, poderia ser considerada posse ilegal o adquirente que ocupasse a terra devoluta desobedecendo às condições por ela impostas, tais como a morada habitual e cultura efetiva, por exemplo.
Tais atos, acaso comprovados, se tornarão suscetíveis de anulação, mesmo passados mais de 30 anos, eis que não se inclinam ao prazo prescricional de 10 anos estabelecido no antigo código civil de 1916, por revestirem-se de atos nulos e imprescritíveis, por tratarem, em sua origem, de terras devolutas. (RTID da comunidade quilombola de São Jorge, pp. 377 e 378, grifos no original)
Por fim, com o abrupto fim da CPI da Aracruz em 2002, muitas questões ficaram por ser
esclarecidas. Muita história ainda está por ser contatada, e fatos por serem apurados. Até que
isso aconteça, as populações locais e, particularmente, os quilombolas travam uma incansável
batalha pela reapropriação do seu território.
II. 3 - CONCENTRAÇÃO FUNDIÁRIA E ÊXODO RURAL: ALGUMAS DAS CONSEQÜÊNCIAS DA EXPROPRIAÇÃO DOS TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS DO SAPÊ DO NORTE Comprovando a eficácia das estratégias utilizadas, no final de 1970, milhares de
famílias quilombolas saíram das suas terras. Grande parte dessa população se deslocou para os
bairros de São Mateus e para os municípios de Vitória e Serra, região metropolitana, iniciando o
processo de formação de favelas junto com outros migrantes vindos do interior do estado em
69
busca dos benefícios oferecidos pela industrialização. Atualmente, há nos municípios de São
Mateus e Conceição da Barra, quase mil famílias dispersas em 32 comunidades quilombolas.26
Para Vainer (2002), os quilombolas, deslocados violentamente para fora dos seus
territórios tradicionais para dar lugar ao plantio de eucalipto, somam-se a outros 10 milhões de
pessoas em todo o mundo, que são deslocadas compulsoriamente para a implementação de
grandes projetos, construção de estradas ou barragens. “Essas populações são o excesso que o
projeto moderno de desenvolvimento não pôde abarcar”. No entanto, dizem Araújo e Vainer
(1992) que, mais do que determinar um conjunto de efeitos negativos, o desenvolvimento em
curso impõe formas modernas de organização regional em detrimento dos laços que
determinam as antigas regionalizações. Por isso, essa lógica desenvolvimentista tem sido um
instrumento “eficaz” de reordenamento territorial (BARCELLOS, 2008).
Nos municípios de São Mateus e Conceição da Barra, a introdução do eucalipto já provocou o êxodo rural e agora dá origem aos aglomerados de sub-habitação. Posseiros ou pequenos proprietários que venderam suas terras nelas empregaram-se como assalariados, com tarefas de corte e manutenção das florestas homogêneas, ganhando salário-mínimo, e passaram a viver em favelas nas cidades. No entanto, apenas parte dessa população permaneceu assalariada do Grupo Aracruz, os demais migraram para outras localidades em busca de melhores condições de vida (MOTTA, 1982, citado por SALOMÃO, 2006, p. 76).
Segundo Salomão (2006), depois de “venderem” as terras, alguns quilombolas foram
para os bairros de periferia das cidades vizinhas – configurando-se em um novo processo de
(re)territorialização. No entanto, muitos continuaram trabalhando na roça, agora como bóias-
frias, agravando ainda mais o seu processo de expropriação: perdeu-se a terra-território,
perdeu-se a comunidade; perdeu-se a autonomia nas relações de trabalho, e esses quilombolas
foram transformados em trabalhadores assalariados, alguns submetidos a uma situação de
semi-escravidão.
Para Ferreira (2009), o “imprensamento” violentamente imposto aos moradores do Sapê
do Norte pelos monocultivos industriais de eucalipto pode ser visualizado pelas séries de dados
a seguir (TAB. 11 e GRAF. 6) referentes aos tamanhos dos estabelecimentos rurais, que revelam
o processo de concentração fundiária na região, principalmente a partir de 1975:
26 Arruti, José Maurício (Coord.), “Quilombolas do Sapê do Norte: as comunidades negras rurais dos municípios de Conceição da Barra e São Mateus ES”, Koinonia, 2005
70
TABELA 11 Grupos de Área Total (estabelecimentos) Conceição da Barra - 1940 a 1996
Área individual (ha) 1940 1950 1960 1970 1975 1980 1985 1996Menos de 10 66 14 122 251 70 78 101 24810 a menos de 100 385 489 1.202 880 486 280 200 234100 a menos de 1.000 28 423 416 300 243 138 46 401.000 a menos de 10.000 10 12 16 21 18 9 510.000 e mais 1 2 2TOTAL 479 936 1.753 1.447 820 516 356 529
Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1940, 1950, 1960, 1970, 1975, 1980, 1985 e 1996. Pesquisa e organização de Simone Batista Ferreira.
GRÁFICO 6 - Grupos de Área Total (estabelecimentos) Conceição da Barra – 1940 a 1996
Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1940, 1950, 1960, 1970, 1975, 1980, 1985 e 1996. Pesquisa e organização de Simone Batista Ferreira.
Escreve Ferreira (2009) que, no município de Conceição da Barra, os estabelecimentos
entre 10 e menos de 100 hectares têm predominado, principalmente na década de 1960. Estes
estabelecimentos entre 10 e menos de 100 hectares, junto daqueles entre 100 e menos de 1.000
hectares, cresceram em número entre 1940 e 1960, e passaram a diminuir a partir de 1970, ano
em que cresceu o número de estabelecimentos menores de 10 hectares. A partir de então, o
número de estabelecimentos com até 1.000 hectares passou a decrescer. Esta série de dados
revela a queda do número de pequenos e médios estabelecimentos, acompanhada da
intensificação das subdivisões da terra camponesa a partir dos anos 70, em decorrência do início
do estabelecimento dos monocultivos industriais de eucalipto (TAB. 12 e GRAF. 7).
0
200
400
600
800
1000
1200
1400
1 2 3 4 5 6 7 8
Períodos - 1940 a 1996
Nú
mero
de e
sta
bele
cim
en
tos
Menos de 10 ha
10 a menos de 100 ha
100 a menos de 1.000 ha
1.000 a menos de 10.000 ha
10.000 hectares e mais
71
TABELA12 Grupos de Área Total (área) – Conceição da Barra – 1940 a 1996
Área individual (ha) 1940 1950 1960 1970 1975 1980 1985 1996Menos de 10 424 65 664 1.431 433 522 610 1.54710 a menos de 100 11.101 20.234 46.247 38.060 22.211 12.193 6.855 6.499100 a menos de 1.000 3.141 85.604 76.074 75.163 62.240 36.399 14.269 11.3351.000 a menos de 10.000 17.956 21.150 38.250 43.788 44.311 34.694 15.51410.000 e mais 10.000 28.106 44.164TOTAL 14.666 123.859 154.135 152.904 128.672 121.531 56.428 79.059
Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1940, 1950, 1960, 1970, 1975, 1980, 1985 e 1996. Pesquisa e organização de Simone Batista Ferreira.
GRÁFICO 7 - Grupos de Área Total (área) - Conceição da Barra - 1940 a 1996
Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1940, 1950, 1960, 1970, 1975, 1980, 1985 e 1996. Pesquisa e organização de Simone Batista Ferreira.
Em relação à área ocupada, verifica-se que os estabelecimentos de 100 a menos de 1.000
hectares sobressaíam até o ano de 1975, seguidos até 1970 pelos estabelecimentos de 10 a menos
de 100 hectares. A partir de 1980, a área ocupada por estes pequenos estabelecimentos foi
superada por aqueles de 1.000 a menos de 10.000 hectares, e em 1996 pelos estabelecimentos
com 10.000 hectares e mais. Assim como em relação ao número, também a área ocupada pelos
estabelecimentos de até 1.000 hectares sofreu diminuição, no mesmo movimento em que crescia
a área dos estabelecimentos com 10.000 hectares e mais.
0
10000
20000
30000
40000
50000
60000
70000
80000
90000
1 2 3 4 5 6 7 8
Períodos - 1940 a 1996
Áre
a (h
ecta
res) Menos de 10 ha
10 a menos de 100 ha
100 a menos de 1.000 ha
1.000 a menos de 10.000 ha
10.000 hectares e mais
72
A relação entre o número de estabelecimentos (qualificados pelo tamanho) e a área por
eles ocupada pode ser melhor visualizada por dados percentuais. Em 1996, em Conceição da
Barra tinha 91,11% de pequenos estabelecimentos (até 100 hectares) ocupando 10,17% da área
do município, enquanto os grandes estabelecimentos (acima de 1.000 hectares) somavam 1,31%
e ocupavam 75,48% da área do município. Estes dados revelam uma altíssima concentração
fundiária27 ditada, principalmente, pelos monocultivos de eucalipto, seguidos da cana-de-
açúcar. Os pequenos estabelecimentos correspondem aos sítios de famílias negras camponesas e
aos 5 assentamentos rurais existentes no município, que se encontram “imprensados” em meio a
estes monocultivos industriais do agronegócio (TAB. 13 E GRAF. 8).
TABELA 13
Grupos de Área Total (estabelecimentos) – São Mateus – 1940 a 1996
Área individual (ha) 1940 1950 1960 1970 1975 1980 1985 1996Menos de 10 528 88 561 448 406 339 541 80410 a menos de 100 2.049 3.533 2.987 2.288 1.483 1.233 1.314 1.368100 a menos de 1.000 134 508 384 417 391 356 283 2521.000 a menos de 10.000 5 13 11 12 12 17 19 1710.000 e mais 1 3 3 3 2TOTAL 2.716 4.143 3.943 3.166 2.295 1.948 2.160 2.443
Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1940, 1950, 1960, 1970, 1975, 1980, 1985 e 1996. Pesquisa e organização de Simone Batista Ferreira.
GRÁFICO 8 - Grupos de Área Total (estabelecimentos) - São Mateus – 1940 a 1996 Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1940, 1950, 1960, 1970, 1975, 1980, 1985 e 1996. Pesquisa e organização de Simone Batista Ferreira.
27 Vale destacar que, no ano de 1996, a concentração fundiária em Conceição da Barra era 67% superior à concentração fundiária no Brasil, que há anos configura entre as mais altas do mundo. Em 1996, os grandes estabelecimentos (acima de 1.000 hectares) no Brasil somava 1,0%, e ocupavam 45,1% da área dos imóveis rurais no país. (IBGE, Censo agropecuária, 1996)
0
500
1000
1500
2000
2500
3000
3500
4000
1 2 3 4 5 6 7 8
Período - 1940 a 1996
Núm
ero
de
esta
bele
cim
ento
s
Menos de 10 ha
10 a menos de 100 ha
100 a menos de 1.000 ha
1.000 a menos de 10.000 ha
10.000 hectares e mais
73
Os dados referentes a São Mateus revelam a diminuição do número de estabelecimentos
entre 10 e 100 hectares, enquanto os menores de 10 hectares e os situados entre 100 e 1.000
hectares praticamente se mantêm. Há diminuição da área ocupada pelos estabelecimentos entre
10 e 100 hectares, acompanhada pelo crescimento dos estabelecimentos acima de 10.000
hectares, seguidos pelos situados entre 1.000 e 10.000 hectares.
Em São Mateus, em 1996 tinha 88,90% de pequenos estabelecimentos (até 100 hectares)
ocupando 21,01% da área do município, enquanto os grandes estabelecimentos (acima de 1.000
hectares) somavam 0,79% e ocupavam 49,7% da área do município, e os médios
estabelecimentos (de 100 a menos de 1.000 hectares) somavam 10,31% e ocupavam 29,26% da
área do município. Embora menos acentuada do que no município de Conceição da Barra, a
concentração fundiária permanece no município de São Mateus, ditada também pelas
monoculturas do eucalipto, da cana-de-açúcar e das pastagens. O número de pequenos
estabelecimentos de São Mateus aproxima-se do número existente em Conceição da Barra,
contudo a área por eles ocupada em São Mateus equivale ao dobro da área que ocupam em
Conceição da Barra. Estes dados derivam da existência de um maior número de comunidades
camponesas e de assentamentos rurais no município de São Mateus (TAB. 14).
TABELA 14 Grupos de Área Total (área) – São Mateus – 1940 a 1996
Área individual (ha) 1940 1950 1960 1970 1975 1980 1985 1996Menos de 10 3.231 534 4.202 2.346 2.773 1.906 2.649 4.22010 a menos de 100 54.774 121.152 111.398 81.679 57.428 47.702 46.937 42.981100 a menos de 1.000 27.703 96.077 82.219 87.988 91.661 88.640 70.398 65.6961.000 a menos de 10.000 7.002 21.140 18.095 16.777 20.755 34.926 45.281 46.31510.000 e mais 10.987 54.737 67.640 97.850 65.299TOTAL 92.710 238.903 215.914 199.777 227.355 240.280 263.115 224.511
Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1940, 1950, 1960, 1970, 1975, 1980, 1985 e 1996. Pesquisa e organização de Simone Batista Ferreira.
74
0
50.000
100.000
150.000
1 2 3 4 5 6 7 8
Períodos - 1940 a 1996
Áre
a (h
ecta
res) Menos de 10 ha
10 a menos de 100 ha
100 a menos de 1.000 ha
1.000 a menos de 10.000 ha
10.000 hectares e mais
GRÁFICO 9 - Grupos de Área Total (área) – São Mateus – 1940 a 1996 Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1940, 1950, 1960, 1970, 1975, 1980, 1985 e 1996. Pesquisa e organização de Simone Batista Ferreira.
Esta concentração fundiária persiste na atualidade, com os monocultivos de eucalipto
ocupando 41,79% da área dos estabelecimentos agropecuários de Conceição da Barra e 24,84%
da área dos estabelecimentos agropecuários em São Mateus. A grande maioria dessas áreas
pertence à Aracruz Celulose (hoje Fibria). Juntas, as monoculturas de eucalipto e cana-de-açúcar
ocupam 51,97% da área dos estabelecimentos agropecuários em Conceição da Barra e 29,43% da
área dos estabelecimentos agropecuários em São Mateus (TAB. 15 e TAB. 16).
TABELA 15 Área de matas naturais e plantios de eucalipto e cana-de-açúcar (%) - município de Conceição da Barra (2006/2008)
Ocupação Área (ha) área total do
município (%)
área total de estabelecimentos
agropecuários do município (%)
Área de matas e florestas naturais(APP e reserva legal)
20.273 17,06% 20,64%
Área de matas e florestas naturais(excluídas áreas de APP e reservalegal)
6.004 5,05% 6,11%
Árvores plantadas (eucalipto) 41.051 34,55% 41,79%Cana-de-açúcar 10.000 8,42% 10,18%Área total de estabelecimentosagropecuários do município
98.240 82,69% 100%
Área total do município 118.800 100%
75
TABELA 16 Área de matas naturais e plantios de eucalipto e cana-de-açúcar (%) - município de São Mateus (2006/2008)
Ocupação Área (ha) área total do
município (%)área total de estabelecimentos
agropecuários do município (%)Área de matas e florestas naturais(APP e reserva legal)
20.173 8,61% 13,64%
Área de matas e florestas naturais(excluídas áreas de APP e reservalegal)
6.714 2,87% 4,54%
Árvores plantadas (eucalipto) 36.743 15,68% 24,84%
Cana-de-açúcar 6.797 2,90% 4,59%
Área total de estabelecimentosagropecuários do município
147.907 63,13% 100%
Área total do município 234.300 100% Fonte: IBGE. Censo Agropecuário 2006; IBGE. Cidades, 2008 (disponível em: http://www.ibge.com.br/ cidadesat/topwindow.htm?1)
O levantamento a respeito do tamanho das propriedades somado aos dados sobre o uso
da terra revela que o processo de implantação das monoculturas agroindustriais, iniciado pelo
eucalipto, deu-se através da destruição do habitat nativo da floresta tropical (veja Capitulo III) e
da profunda concentração da terra nas mãos de poucos. Esta terra e sua floresta foram, por
muito tempo, o habitat de comunidades negras camponesas oriundas da escravidão, que ali
permaneceram após a decadência das fazendas escravocratas produtoras de farinha de
mandioca e café. Neste espaço, que por um determinado período ficou sem receber a
valorização capitalista, estas comunidades construíram seu modo de vida peculiar, através da
apropriação e uso da floresta e do sapê, onde produziam sua mandioca e sua farinha, pescavam
e caçavam, faziam jacás e samburás, teciam renda no bilro, chamavam os ancestrais e outras
divindades para obter acolhida e cura nos rituais das mesas de santo e benzedeiras. O
“imprensamento”, de diversas formas, lhes trouxe a falta da floresta e das águas, a ausência dos
vizinhos e a escassez do alimento e da festa.
II. 4 - O PROCESSO DE RECONHECIMENTO E REGULARIZAÇÃO DOS TERRITÓRIOS
QUILOMBOLAS DO SAPÊ DO NORTE.
Está em curso uma contrarrevolução jurídica em vários países latino-americanos. É possível que o Brasil venha a ser um deles. Entendo por contrarrevolução jurídica uma forma de ativismo judiciário conservador que consiste em neutralizar, por via judicial, muito dos avanços democráticos que foram conquistados ao longo das duas últimas décadas pela via política, quase sempre a partir de novas Constituições. [...] É um entendimento tácito entre elites político-econômicas e judiciais, criado a
76
partir de decisões judiciais concretas, em que as primeiras entendem ler sinais de que as segundas as encorajam a ser mais ativas, sinais que, por sua vez, colocam os setores judiciais progressistas em posição defensiva. [...] A ratificação do território indígena da Raposa/Serra do Sol e a certificação dos territórios remanescentes de quilombos constituem atos políticos de justiça social e de justiça histórica de grande alcance (Boaventura de Sousa Santos).
II. 4. 1 - A Legislação, sua implementação e as ameaças
A regularização dos territórios quilombolas no Brasil se baseia, em primeiro lugar, na
Constituição Federal, especificamente nos artigos 215 e 216, e também no artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), além da Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho – OIT - sobre Povos Indígenas e Tribais.
Para impulsionar o processo de regularização, o governo federal publicou, no dia 20 de
novembro de 2003, o Decreto 4.887 que regulamenta com mais detalhes o procedimento para
identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por
remanescentes das comunidades dos quilombos, comparado com o art. 68 do ADCT, delegando
ao INCRA a responsabilidade deste processo.
O fato de que apenas em 1988 começou-se a garantir os direitos das comunidades
quilombolas a seus territórios, mostra a morosidade do Estado brasileiro em assumir esta
demanda histórica. Ainda assim, entre os anos de 1995 a 2000, somente 19 territórios
quilombolas foram titulados pelo Governo Federal.28 Até setembro de 2009, mesmo com o
Decreto 4.887/2003, apenas 174 das mais de 3.00029 comunidades quilombolas no país tiveram
seus territórios titulados.
Apesar do esforço das comunidades, há diversas forças que buscam impedir um avanço
maior na titulação dos territórios quilombolas, incentivadas principalmente pela bancada
ruralista no Congresso Nacional. Em junho de 2004, o então Partido da Frente Liberal (PFL,
atual DEM) ingressou no Supremo Tribunal Federal (STF) com uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADIN), requerendo a impugnação do Decreto 4.887, “questionando os
critérios adotados para a identificação da condição quilombola, (..) a delimitação do território, bem como o
uso do instrumento da desapropriação”. No entanto, até o momento, esta ADIN não foi julgada.
28 Comissão Pró-Índio (CPI)- São Paulo, “Quilombolas e a Legislação: legislação federal”, www.cpisp.org.br, acessado em 3 de dezembro de 2009 29 Estimativa da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ)
77
Outra tática para anular o Decreto constituiu-se em um Projeto de Decreto Legislativo
(PDL 44/2007) do deputado federal Valdir Colatto (PMDB-SC), alegando também a
inconstitucionalidade do Decreto 4.887/2003. Apesar de ser rejeitado na Comissão de Direitos
Humanos e Minorias, o projeto foi aprovado pela Comissão da Agricultura, Pecuária,
Abastecimento e Desenvolvimento Rural. No momento, o projeto encontra-se na Comissão da
Constituição e de Justiça e da Cidadania.
É importante frisar que tanto a ADIN do PFL, quanto o PDL do deputado supracitado já
foram avaliados como improcedentes por alguns órgãos do Estado brasileiro, como a
Procuradoria Geral da República30. O parecer do Grupo de Trabalho sobre Quilombos, Povos e
Comunidades Tradicionais da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público
Federal, revela o descabimento e a improcedência do Projeto de Decreto Legislativo, pois
considera que não houve exorbitância do poder regulamentar, uma vez que o Decreto
4.887/2003, argumenta o Grupo de Trabalho, não contém os defeitos que lhe são apontados.
Em relação ao Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT),
houve diversas investidas para a interpretação literal do termo “estejam ocupando suas terras”
presente em tal artigo constitucional. No ano de 2006, o INCRA publicou no Diário Oficial da
União o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) do Território Quilombola de
Linharinho, município de Conceição da Barra-ES. Logo após isso, a Secretaria Executiva do
Conselho de Defesa Nacional31 (composta, entre outros, pela Agência Brasileira de Inteligência,
Polícia Federal e representantes do Congresso Nacional) realizou, junto com o Gabinete de
Segurança Institucional da Presidência da República (órgão antes denominado Casa Militar),
“visita técnica” ao estado do Espírito Santo entre os dias 25 a 27 de setembro de 200632, com
reuniões na sede da ABIN no centro de Vitória, na fábrica da Aracruz Celulose e no território
quilombola de Linharinho, conforme informa a Comissão Quilombola do Sapê do Norte.
Mediante esta visita, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), elaborou um relatório
e o remeteu ao INCRA. Na visão dos militares, há uma tendência de aliança entre quilombolas,
indígenas e outros movimentos que pode gerar crises sociais, pois estão pleiteando terras “com
30 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 6 ª Câmara de Coordenação e Revisão – Índios e Minorias, Grupo de Trabalho sobre Quilombos, Povos e Comunidades Tradicionais. Parecer do procurador geral da república Walter Claudius Rothenburg sobre o projeto de decreto legislativo No. 44/2007, da autoria do deputado federal Valdir Colatto, 17/08/2007. 31 Cumprindo o disposto no Art. 8 do Decreto 4887, o INCRA remeteu o RTID de Linharinho, após a publicação, à Secretaria Executiva do Conselho de Defesa Nacional. 32 Gabinete de Segurança Institucional, “Nota SAEI-AP Nor. 287/2006-RF – Interessada: Comunidade de Linharinho/ES”, 31/10/2006.
78
indicativo de pressão governamental e de invasões de terras de particulares o que a médio e longo prazos
pode agravar o cenário de luta pela terra no país”.33
A “visita técnica” do GSI à Comunidade Quilombola de Linharinho ocorreu em um dia
de chuva torrencial com a presença de quilombolas de várias comunidades do Sapê do Norte.
Diversos foram seus relatos sobre sua história, sobre as inúmeras prisões arbitrárias cometidas
pela segurança armada particular da Aracruz Celulose em conjunto com a Polícia Militar, sobre
os variados crimes ambientais e irregularidades na aquisição de terras cometidos pela Aracruz
Celulose. Mas no relatório do GSI estes pontos não mereceram atenção. Nada disso foi
considerado ameaça de qualquer natureza.
O RTID de Linharinho foi analisado pelos visitantes antes de sua viagem e os vícios nas
matrículas, nos registros de muitos imóveis que a Aracruz Celulose se diz ser proprietária são
ali destacados. Contudo, embora ciente de tais irregularidades, o GSI afirma que tais terras,
mesmo adquiridas ilegalmente, não devem ser desapropriadas, pois o “quilombo de Linharinho
não está ocupando as terras que ora pleiteia”, interpretando ainda que a comunidade de
Linharinho deve receber tão somente o título das terras que ocupa atualmente e nada mais. Em
nenhum momento o GSI considera que os quilombolas não as ocupam exatamente porque
foram vítimas de esbulho, porque foram expulsos das terras que ocupavam. O relatório do GSI,
aprovado pelo general Wellington Fonseca, desconsidera que a Aracruz Celulose e o Estado
brasileiro atropelaram os institutos jurídicos consagrados para a aquisição dessas terras nas
décadas de 1960 e 1970 – período no qual não se podia falar em Estado Democrático de Direito.
O relatório trata de prevenção de crises sociais de luta pela terra, mas não aborda quando e por
que esta luta começou. Vejamos abaixo trechos:
A melhor interpretação a ser dada ao artigo 68, visando a máxima efetividade dos atos administrativos na aplicação de ações políticas afirmativas; a autonomia do Poder Executivo na aplicação da referida norma e do Decreto no. 4.887/2003, sem interferência judicial na titulação coletiva à comunidade quilombola; a defesa do Estado Democrático de Direito e de seus institutos jurídicos consagrados e a prevenção de crises sociais de luta pela terra; é, data máxima vênia, é a literal, no sentido de que o território delimitado deve coincidir com a área efetivamente ocupada pela comunidade remanescente de quilombos. [...]No caso do Relatório Técnico de Delimitação e Identificação de área remanescente de quilombo da Comunidade de Linharinho/ES, recomenda-se,
33 Gabinete de Segurança Institucional, “Nota SAEI-AP Nor. 287/2006-RF – Interessada: Comunidade de Linharinho/ES”, 31/10/2006. Extraído do Processo Administrativo n. 54340.000674/2004-14, INCRA-ES, às fls. 2.566 e 2.577.
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então, autorizar a imediata expedição de título coletivo em relação à área
efetivamente ocupada, qual seja: 30 alqueires.34 (grifos no original)
Além do referido relatório, o Ministro de Estado Chefe do Gabinete de Segurança
Institucional da Presidência da República e Secretário Executivo do Conselho de Defesa
Nacional pediu, perante a Advocacia-Geral da União, a edição de interpretação oficial do Art.
68 do ADCT, uma vez que julgou necessária a exata identificação do alcance da expressão
constitucional “estejam ocupando suas terras”. Diante da provocação, o Advogado-Geral da
União Álvaro Augusto Ribeiro Costa aprova o Parecer AGU/MC – 1/2006, cuja interpretação
deve ser uniformemente seguida pelos órgãos e entidades da administração federal, conforme
determina a Lei Complementar 73 de 10 de fevereiro de 1993, em seu Art. 4, incisos X e XI35.
Seguem alguns trechos do parecer aprovado com o máximo de abrangência como corolário da
máxima efetividade constitucional:
A expressão “as terras que estejam ocupando” significa logicamente mais do que a simples dimensão geográfica, atual ou histórica, das comunidades de remanescentes de quilombos, posto que (...) constituem tais terras territórios de habitação permanente, utilizadas para suas atividades produtivas e imprescindíveis para a preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução (presente e futura) física e cultural segundo seus usos, costumes e tradições (grifos no original) (fl. 08).(...) Aliás, assim como para sua identidade, a comunidade e seus integrantes são legalmente os únicos capazes de identificarem as terras que estejam ocupando porque tal definição obedece ao mesmo rigor metodológico e porque a identidade está relacionada com a sua territorialidade (grifos nossos) (fl. 09).(...) Ou em outras palavras, o que a disposição constitucional está a contemplar é uma territorialidade específica cujo propósito não é limitar-se à definição de um dado espaço material de ocupação, mas de garantir condições de preservação e proteção da identidade e características dos remanescentes dessas comunidades assim compreendidas que devem ser levadas em linha de conta na apuração do espaço de reconhecimento da propriedade definitiva (grifos nossos) (fls. 11 e 12).
Contudo, outras ofensivas continuaram acontecendo. Em abril de 2007 foi realizado em
Brasília, na sede da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), o Fórum Agrário
Empresarial, que entre outras atividades, contou com a palestra intitulada “A Questão
34 Gabinete de Segurança Institucional, “Nota SAEI-AP Nor. 287/2006-RF – Interessada: Comunidade de Linharinho/ES”, 31/10/2006. Extraído do Processo Administrativo n.° 54340.000674/2004-14, INCRA-ES, às fls. 2.566 e 2.577. 35 X - fixar a interpretação da Constituição, das leis, dos tratados e demais atos normativos, a ser uniformemente seguida pelos órgãos e entidades da Administração Federal; XI - unificar a jurisprudência administrativa, garantir a correta aplicação das leis, prevenir e dirimir as controvérsias entre os órgãos jurídicos da Administração Federal;
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Quilombola36”, proferida por Carlos Alberto Roxo, diretor de sustentabilidade e relações
corporativas da Aracruz Celulose, além de representante da Associação Brasileira de Florestas
Plantadas (Abraf), e por uma comitiva de produtores rurais de São Mateus, futuro MPC (veja
Cap. II. 4.3.2). Nesse evento o setor agropecuário dá claros sinais de suas futuras articulações a
fim de dificultar ao máximo, ou mesmo impedir, o processo de titulação de territórios
quilombolas, como podemos observar no seguinte documento:
[...] as Comissões Nacionais de Assuntos Fundiários e de Assuntos Indígenas da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) aprovaram em assembléia geral a Carta de Brasília, (..) A Carta de Brasília se destina, especialmente, ao Congresso Nacional, às áreas de decisão do Governo e ao Poder Judiciário, com o objetivo de contribuir na busca de soluções exeqüíveis, que redirecionem as políticas públicas destinadas à normatização das questões fundiária, quilombola e indígena. Várias providências foram incluídas na Carta de Brasília em relação à questão da titulação de terras quilombolas. Entre elas estão: regulamentação, por meio de lei, do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal, para que mantenha a literalidade da letra constitucional; suspensão ou revogação imediata do Decreto 4.887/2003, eivado de inconstitucionalidades. [...] É imperativo, portanto, concluir que o destinatário da norma do artigo 68 do ADCT é uma pessoa que consiga provar, etno-historicamente, que é um remanescente de uma comunidade de quilombo; e que, desde 1888, está ocupando as terras onde atualmente habita, até pelo menos 1988. [...] exigência de que a demarcação se faça por decreto do Presidente da República, como determina a Lei 9.649/98. (CNA, “Carta de Brasília”aprovado no Fórum Agrário Empresarial, 2007).
No entanto, o Parecer n° 1/2006 da AGU/MC rebate a interpretação estreita e literal da
CNA quanto ao conceito de quilombo e demais concepções inerentes a este. Note-se que a AGU
defende a máxima efetividade constitucional:
(...) a identificação das comunidades fica dependente da identificação dos seus integrantes, os quais – estabelece o decreto [n° 4.887/2003] – têm condições de se auto-identificarem pelas características que lhes são próprias e porque juridicamente se lhes garante a capacidade de se auto-reconhecerem tal como garantido pela Convenção n° 169 da OIT (Decreto n° 5.051, de 19 de abril de 2004) por cuja inspiração se pode ter como certo que é a consciência de sua identidade o critério principal para determinar quem sejam os integrantes remanescentes das comunidades ou grupos aos quais se aplicam as determinações do art. 68 do
36 Interessante notar que a empresa na qual o palestrante é diretor, sempre que possível nega a existência de comunidades quilombolas nas áreas onde atua, como se pode observar nas contestações apresentadas pela referida empresa nos processos administrativos de Linharinho e São Jorge.
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ADTC ou de que dele recebam legitimidade para as iniciativas correspondentes (grifos no original).
Conforme a CPI-SP, ainda em 2007 houve uma grande campanha na mídia com a
divulgação de 68 matérias nos diversos meios de divulgação da imprensa, acusando o governo
de ‘exagerar’ na realização dos direitos constitucionais e reconhecer comunidades sem critérios.
Vale lembrar que o critério antropológico da auto-identificação, tão atacado nessa campanha, é
o mesmo que está garantido na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)
sobre Povos Indígenas e Tribais.
Por um lado, especificando e detalhando ainda mais essa regulamentação e, por outro
lado, buscando atender em parte à ‘ofensiva’ da bancada ruralista com apoio de grandes
segmentos da mídia, o próprio INCRA resolveu publicar, no dia 1 de outubro de 2008, no
Diário Oficial da União, a Instrução Normativa (IN) 49, substituindo a IN 20 de 2005, com
procedimentos ainda mais precisos sobre cada passo do processo de regularização das terras
quilombolas. Posteriormente, houve pequenos ajustes que resultaram em diversas
republicações da Normativa, sendo que hoje está valendo a IN 57 de 20 de outubro de 2009.
Embora tal instrumento fosse de “exclusiva” responsabilidade do INCRA, a nova IN foi
forjada por um longo e desgastante processo de discussão de um Grupo de Trabalho
Interministerial – GTI - capitaneado pela AGU, através de seu novo Advogado-Geral José
Tófoli, que deu declarações contrárias ao rito até então vigente. Segundo o Diário Catarinense37,
após audiência com os deputados federais catarinenses Valdir Colatto e João Mattos, o
Advogado Geral afirmou que “todos os processos de demarcação de áreas para remanescentes
de quilombos no Brasil afora estavam suspensos“. Tal declaração não-oficial foi reforçada pela
mídia e difundida por órgãos do governo federal, como a Agência Brasileira de Inteligência38,
ligada ao GSI, da seguinte forma:
37 Edição de 05/03/08, em sua p. 8. 38 Ver site www.abin.gov.br/modules/articles/article.php?id=2187
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Regularização de terras dos quilombolas parou: O governo federal decidiu suspender, por tempo indeterminado, todos os processos de reconhecimento de comunidades de remanescentes de quilombos e chegou ao entendimento de que somente poderão requerê-lo aqueles que já vivem nessas terras. Ou seja, assim que os processos forem retomados, os pedidos de áreas hoje ocupadas por fazendeiros ou por trabalhadores rurais não irão prosperar. (grifos nossos)
Embora tal suspensão jamais tivesse ocorrido - pois, ao contrário do que se
divulgara, tratava-se tão somente de uma discussão do referido GTI sobre a nova IN que estava
sendo formulada - esta notícia oficiosa se propagou e causou muitas dificuldades aos técnicos
do INCRA, já que encontraram resistência em campo para executar seus trabalhos de acordo
com a IN 20 vigente. Cabe também ressaltar que o texto final da nova IN parece contrariar a
interpretação oficial do termo “que estejam ocupando suas terras”, aprovado pelo antecessor de
Tofolli, no Parecer n° 1/2006 da AGU. Não consta que houve outro parecer da AGU negando ou
alterando tal interpretação que deve ser uniformemente seguida pelos órgãos e entidades da
administração federal.
Outro órgão federal que teve papel marcante no GTI foi o já citado Gabinete de
Segurança Institucional. Destaque-se que a Carta de Brasília, anteriormente comentada,
continha “sugestões do setor agropecuário para solucionar os conflitos agrários no campo
brasileiro (...) ao Congresso Nacional, às áreas de decisão do Governo e ao Poder Judiciário”.
A IN 49 de 2008 foi criticada pelo Movimento Quilombola. Por meio do Central Única
dos Trabalhadores (CUT), 10 organizações quilombolas e 12 ONGs apresentaram uma denúncia
junto à OIT, alegando possíveis falhas na aplicação da ‘consulta prévia’ realizada pelo governo
sobre a Instrução Normativa, sendo que o direito à ‘consulta prévia’ é garantida na Convenção
169. Além disso, o Movimento quilombola alega que o direito à auto-identificação foi atingido,
já que a nova norma “condiciona o início do processo de titulação à Certidão de Registro no ‘Cadastro
Geral de Remanescentes de Comunidades de Quilombos’ da Fundação Cultural Palmares [FCP].”
Alegam que isso desrespeita o critério da “consciência de sua identidade”, conforme determina
artigo 1.2 da Convenção 169. Vale lembrar também que, em 2007, a FCP editou uma nova
regulamentação para o Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades dos Quilombos
“sem qualquer discussão pública”. A Portaria FCP 98 de 2007 gera mais burocracia para o processo
de inclusão no cadastro e possibilita a revisão de certidões já concedidas 39.
39 Comissão Pró-Índio (CPI)- São Paulo, “Quilombolas e a Legislação: legislação federal”, www.cpisp.org.br, acessado em 3 de dezembro de 2009
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Num parecer específico sobre a IN 49, a Comissão Pró-Índio de São Paulo afirma ainda
que a nova norma viola outros direitos das comunidades quilombolas40:
• O Art. 11 da nova IN trata da hipótese de o Relatório Técnico de Delimitação e
Identificação concluir pela ‘impossibilidade’ de reconhecimento da área estudada
como terra ocupada por remanescentes de comunidade de quilombo e, ainda,
possibilitar o arquivamento ou solicitação de novas diligências no processo
administrativo. Tais hipóteses, bem como a Portaria FCP 98, afrontam o direito
de consciência da identidade quilombola, conforme estabelecido na Convenção
169 da OIT, pois quando um órgão do Estado se arvora a definir se a população é
ou não quilombola ou considera “impossível” definir seu território, isto não é
auto-identificação.
• A nova Norma amplia as exigências para o relatório antropológico,
complexificando e atrasando a elaboração deste tipo de estudo, exigindo ainda
que fosse usado apenas o quadro de pessoal do INCRA que conta com apenas 40
antropólogos, para 600 processos de titulação em curso;
• A notificação em quatro momentos do processo a outros órgãos governamentais
pode atrasar ainda mais o processo, portanto, trata-se de um número excessivo
de consultas, e
• O aumento do prazo para a análise das contestações, antes 30 dias, aumentou
para 180 dias e pode, portanto, paralisar o processo de titulação por este período.
Conclui-se que, enquanto a demarcação das terras quilombolas já caminha a passos
lentos, as forças contrárias a este processo tentam de todas as formas retardar ainda mais ou até
mesmo dar cabo a um direito constitucionalmente garantido. Trata-se de um fenômeno
comparável com as tentativas de reduzir os direitos dos povos indígenas e de outros grupos
minoritários, considerados ameaças para os interesses do agronegócio, de mineração e de
outros grandes grupos econômicos no país.
II. 4.2 - O processo de regularização dos territórios quilombolas do Sapê do Norte
Como acontece em todo o território brasileiro, também na região do Sapê do Norte a
regularização dos territórios quilombolas, garantida desde 1988 na CF, está sendo efetivamente
40 Chasin, Ana Carolina da Matta e Daniela Carolina Perutti, “Os retrocessos trazidos pela Instrução Normativa do Incra n.o 49/2008 na garantia dos direitos das Comunidades Quilombolas”, Comissão Pró-Índio de São Paulo, 2008.
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implementada apenas nos últimos anos. Vale lembrar que a Assembléia Legislativa do estado
aprovou em 1998 a lei 5.623, posteriormente sancionada pelo governador Vitor Buaiz,
determinando no seu Art.1 que “Fica reconhecida a propriedade definitiva das terras devolutas
ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos no território do Espírito Santo(..)”,
atendendo ao artigo 68 do ADCT da Constituição Federal.41 Com a promulgação dos Decretos
4883 e 4887 em 20 de novembro de 2003, coube ao INCRA a identificação, reconhecimento,
delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades
dos quilombos.
Em 15 de abril de 2004, em audiência pública na Assembléia Legislativa do Espírito
Santo, o INCRA lança o II Plano Regional de Reforma Agrária no Estado do Espírito Santo (II
PRRA-ES), estabelecendo a meta da titulação de 10 (dez) comunidades quilombolas em solo
capixaba para o triênio de 2004-2006. Estiveram presentes o presidente do INCRA, Rolf
Hackbart e o subsecretário de Estado da Agricultura, Wolmar Loss. No mesmo ano firmou-se
um convênio entre o INCRA-ES e a APAGEES (Associação dos Pequenos Agricultores do
Estado do Espírito Santo), com colaboração e acompanhamento da UFES (Universidade Federal
do Espírito Santo), através do Projeto de Extensão Territórios Quilombolas do Espírito Santo,
que envolveu três departamentos do Centro de Ciências Humanas e Naturais, para
cumprimento da meta do II PRRA-ES, com formação de equipes técnicas para a elaboração de
RTIDs (Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação), quando optou-se não pelo
reconhecimento do território global, mas pelo reconhecimento em separado da parcela
pertencente a cada comunidade. Abaixo, segue Mapa de 2007 que mostra a localização das
comunidades.
41 Lei Estadual no. 5.623/98 do estado do Espírito Santo.
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Listamos abaixo os territórios para os quais os processos de regularização já foram iniciados
e a fase em que os mesmos se encontram, conforme os critérios da legislação em vigor.
a) Território de Linharinho
FOTO 1: Casa de estuque em Linharinho (FERREIRA, 2004).
FOTO 2: Tradicional casa de farinha ( SILVA, 2004).
Este território, localizado no município de Conceição da Barra, foi o primeiro no Espírito
Santo a ter seu Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) publicado pelo INCRA
no Diário Oficial da União (DOU) em 13/04/2006 e apontou uma área de 9.542,57 hectares,
sendo cerca de 85% das terras ocupados pela Aracruz Celulose. A portaria de reconhecimento
da área foi publicada no DOU sob o número 78, no dia 16 de maio de 2007.
A Aracruz Celulose, além de apresentar contestação ao RTID, no processo
administrativo do INCRA, optou também por contestá-lo judicialmente, mesmo antes que sua
contestação administrativa fosse apreciada pelo Comitê de Decisão Regional do INCRA. Na
primeira instância, na Justiça Federal do Espírito Santo, a empresa não obteve sucesso. Diante
disso recorreu, em segunda instância, ao Tribunal Regional Federal da 2ª Região, no Rio de
Janeiro (processo nº 2007.50.01004271-6), que no início de 2009 suspendeu o processo de
titulação de Linharinho com o argumento de que a empresa deveria ter sido notificada antes do
início dos trabalhos – exigência que não existia na IN vigente quando a equipe começou a
trabalhar, além de outras justificativas que podem ser vistas ao final do item II. 4.3.1. A decisão
em segunda instância, favorável a empresa, julgou somente a forma como o INCRA agiu, mas
não julgou o mérito de seu trabalho. O INCRA, por sua vez, contestou a decisão no Superior
Tribunal de Justiça (STJ). Por enquanto, este processo administrativo está paralisado.
87
b) Território de Serraria e São Cristóvão
De acordo com o RTID, publicado pelo INCRA em dezembro de 2006, Serraria e São
Cristóvão é uma comunidade remanescente de quilombos composta por estes dois núcleos,
ambos localizados à margem direita do rio Cricaré – próximos ao encontro dos braços norte e
sul deste rio - no município de São Mateus, no norte do Espírito Santo.
Os membros da comunidade identificam Serraria e São Cristóvão como uma única
comunidade, com uma única história, que pode ser estendida ao núcleo de Beira-Rio. Contudo,
a equipe técnica e a comunidade entenderam e respeitaram a ausência de moradores de Beira-
Rio na assembléia em 24/09/2005 (quando se definiu o tamanho do território), deixando tal
núcleo fora do processo de titulação (FÖEGER, 2006, p. 7).
FOTO 3: Casa de Farinha (INCRA/RTID, 2006).
FOTO 3: Trabalho familiar na Casa de Farinha. (INCRA/RTID, 2006).
O RTID deste território, localizado no município de São Mateus, foi concluído,
apontando uma área de 1.219 hectares como território quilombola. Nesta área, não há terras
pertencentes à Aracruz Celulose. A portaria de reconhecimento foi assinada pelo Presidente do
INCRA, os ocupantes do território pleiteado apresentaram suas contestações e estas foram
apreciadas tanto pelo Comitê de Decisão Regional, quanto pelo Conselho Diretor do INCRA.
Neste momento, este processo administrativo aguarda a assinatura do decreto declaratório do
Presidente da República.
c) Território de São Jorge
Você chegava aí e fazia um barraco em qualquer lugar aí, e chamava de dono, chamava de dono. Aí botava uma hortazinha. Não demorava tava com um pé de mandioca, um pé de maxixe, uma abóbora pra comer e lá
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vai. Lavorava e dizia: “Bem, essa areazinha aqui é minha. Aí os maior criaram os olhos” (Morador de São Jorge citado por SILVA, 2005, p. 20).
FOTO 5: Casa de estuque em São Jorge (SILVA, 2005).
FOTO 6: Casa de farinha (SILVA, 2005).
A Comunidade de São Jorge se localiza ao longo da Rodovia ES-315, sentido Boa
Esperança, a cerca de 7 km da BR-101, cujo acesso se realiza pela margem esquerda da BR-101
(sentido São Mateus - Conceição da Barra), no encruzo desta com a ES-315, no bairro Litorâneo,
município de São Mateus – ES.
A Comunidade é formada por cerca de 250 pessoas, distribuídas em torno de 60 famílias
que tem uma longa história de trabalho e permanência na região, constituindo um território e
uma memória étnica com relação ao período da escravidão e de resistência à opressão.
De acordo com Silva (2006), a Comunidade é composta de Núcleos Residenciais que
expressam as formas tradicionais de ocupação ligadas ao parentesco, trabalho e concepções
locais de uso, posse e propriedade. Constituem a Comunidade de São Jorge os Núcleos São
Jorge, Córrego do Airimirim, Morro das Araras, Córrego do Vinho, Sítio Vala Grande, Córrego
do Tapa, Jambeiro, Fazenda Vovô Délio, Córrego do Vinho, Fazenda Boa Vista, Fazenda São
José, Sítio São Benedito, Córrego Sapato I e II, Fazenda Linda Cajazeira e Córrego Roda D’Água.
Os nomes foram dados pelos moradores e variam em alguns casos segundo o interlocutor: por
exemplo, o Sítio São José aparece em alguns momentos como Córrego do Tapa.
Apesar de o RTID ter sido publicado no DOU em outubro de 2006, falta concluir a
notificação dos ocupantes não-quilombolas deste território de 13.074 ha. A maior parte do
território se localiza no município de São Mateus e uma pequena parte em Conceição da Barra.
A Aracruz ocupa parte desta área, como também pequenos e médios fazendeiros. Atualmente
existem neste território quilombola os novos campi da UFES e do IFES (Instituto Federal do
89
Espírito Santo). Contudo, cabe destacar que quando a Prefeitura Municipal de São Mateus
desapropriou esta área, ela o fez após a publicação no Diário Oficial da União do perímetro do
território da comunidade quilombola de São Jorge e após ter sido notificada do processo em
curso.
d). Território de São Domingos e Santana
As comunidades negras rurais de São Domingos e Santana situam-se ao longo das
bacias hidrográficas dos córregos que as nomeiam. Os córregos São Domingos e Santana são
afluentes da margem esquerda do rio Cricaré, que junto ao vale do rio Itaúnas, acolhem
diversas comunidades negras rurais ao longo de seus cursos.
O território por onde se distribuem os moradores de São Domingos e Santana encontra-
se sob a administração dos municípios de Conceição da Barra e São Mateus, cuja fronteira
política é aí traçada. Segundo dados do RTID de São Domingos e Santana (2009), encontram-se
neste território 114 famílias, estando 81 na bacia do São Domingos e 33 na bacia do Santana.
Este território é atravessado pelas rodovias BR-101 e ES- 421, além de outras estradas
vicinais não pavimentadas, intensamente utilizadas pelas empresas produtoras de eucalipto e
cana-de-açúcar para escoar sua produção. Estas estradas servem de eixos para o deslocamento
dos moradores às suas atividades escolares, comerciais, bancárias, festivas, de saúde, etc. Com
exceção da escola situada no Córrego dos Pretos/ Negros e da Agente Comunitária de Saúde de
Conceição da Barra, todos os demais serviços necessitados pelos moradores de São Domingos e
Santana são buscados nos núcleos urbanos próximos, como Conceição da Barra e seu distrito
Braço do Rio, São Mateus e Nova Lima (INCRA/RTID, 2009).
Esta situação é acompanhada pela distância encontrada entre os sítios familiares,
separados entre si por extensos plantios monoculturais de eucalipto e cana-de-açúcar,
implantados a partir da década de 1960. Assim, verifica-se um relativo isolamento entre as
famílias, oriundo de um processo de expropriação de suas condições de vida, como se pode
observar no RTID.
90
FOTO 7: Moradores de São Domingos reunidos na escola da comunidade (FERREIRA, 2009).
FOTO 8: Mapa do território elaborado em oficina pela comunidade (SILVA, 2006).
O RTID de São Domingos e Santana foi concluído e publicado em dezembro de 2009.
Trata-se de uma comunidade que atualmente detém poucas terras e o território pleiteado por
tal comunidade é em grande parte ocupada pelo eucalipto da Aracruz Celulose e Suzano-Bahia
Sul Celulose, e pela cana-de-açúcar, que abastece as usinas sucroalcooleiras locais.
e) Território da bacia do Angelim
Os trabalhos de identificação e delimitação deste território foram iniciados pela
Fundação Cultural Palmares e atualmente tal responsabilidade compete ao INCRA-ES, que
publicou uma ordem de serviço para a conclusão dos trabalhos. Contudo, o RTID caminha a
passos muito lentos, já que o órgão dispõe de uma equipe reduzida de servidores que não se
dedicam apenas a esta atividade. É preciso que o órgão se reestruture.
II. 4.3 - Os principais entraves à regularização fundiária dos territórios quilombolas do Sapê
do Norte
II. 4.3.1 - Contestações administrativas e ação judicial da Aracruz Celulose/Fibria
A empresa Aracruz tem contestado o RTID de Linharinho, cujo território pleiteado
abrange, na sua maioria, terras hoje em posse desta empresa. O perímetro do território
quilombola de São Jorge também inclui terras em detenção da empresa. No caso do território de
Linharinho a empresa contestou o teor do RTID, tanto pela via administrativa quanto pela via
judicial.
91
Os principais argumentos da empresa, apresentados na sua contestação no processo
administrativo42, são:
1. Em relação à notificação, a empresa observa que teria que ter sido notificada antes do
início dos trabalhos, teria que ter tido direito à fiscalização dos trabalhos e considera a
notificação posterior uma ‘condenação prévia’. (contestação Aracruz, fls.1.041 do processo
administrativo - PA)
2. Em relação ao território pleiteado, a Aracruz argumenta que nem a Convenção 169 da
OIT, nem a CF (Artigo 68), fala em desapropriação de terras de terceiros, mas, ao
contrário, em regularizar as áreas já ocupadas pelos quilombolas. (contestação Aracruz,
fls. 982 e 983 do PA)
3. Em relação à constitucionalidade, a empresa alega que o Decreto 4.886 de 2003 é
inconstitucional, considerando também a idéia da auto-identificação da comunidade
quilombola como flagrantemente ilegal: “A pessoa que se auto-declara quilombola negocia as
terras que pertenceram a seus ascendentes e, depois, pede ao Estado que desaproprie terras
privadas e produtivas para atender ao seu exclusivo interesse!!!” (Contestação Aracruz, fls.
1190 do PA)
4. Em relação, especificamente, à autodefinição, a empresa argumenta que o Decreto
4.887/2003 permite a qualquer um dizer que é quilombola e ainda indicar as terras que
quiser, em qualquer lugar do país; a empresa afirma também que a Convenção 169 não
está sendo bem interpretada, já que os quilombolas não são uma ‘tribo’ e não se
diferenciam de outros setores da coletividade nacional, sem costumes ou tradições
próprias (Contestação Aracruz, fls.1.058 do PA, grifo nosso)
5. Em relação ao reconhecimento da comunidade como quilombola pela FCP, a empresa
sugere a falsidade de assinaturas (Contestação Aracruz, fls. 1042-1043 do PA)
6. Quanto à equipe técnica, a empresa acusa a mesma de parcialidade e de conduta pouca
científica, além de acusar um membro de inimizade em relação à empresa, sugerindo
seu impedimento para atuar no processo, já que tem interesse direto nele (Contestação
Aracruz, fls. 1044-1047 e 1083 do PA).
7. Em relação ao Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), ao qual o INCRA está
subordinado, a Aracruz alega que este ministério não teria competência para titular
terras quilombolas, sendo que essa tarefa compete ao Ministério da Cultura e a FCP
(Contestação Aracruz, fls. 1.060-1.061 do PA).
42 INCRA/RTID de Linharinho, n. 54340.0000674/2004-14. Contestação da Aracruz Celulose, 2007.
92
8. Em relação à coleta de dados no RTID, a empresa alega a falta de comprovação da
autenticidade dos depoimentos de pessoas da comunidade (Contestação Aracruz, fls.
1.042 do PA)
9. Em relação ao território pleiteado, a Aracruz se considera o proprietário legítimo, já que
estava na propriedade das terras antes que a CF de 1988 foi promulgada e que o próprio
RTID mostra que os quilombolas antes da CF não estavam ocupando essas terras
(Contestação Aracruz, fls. 10.062 do PA)
10. Em relação aos aspectos históricos, embora o RTID tente demonstrar que Linharinho foi
um quilombo, a empresa nega que existiu um quilombo naquele lugar (Contestação
Aracruz, fls. 1.076-1.077 do PA)
11. Em relação às acusações de esbulho, a Aracruz alega, dentre outros, que tendo
transcorrido 30 anos sem qualquer questionamento judicial seria uma demonstração da
validade dos seus títulos de propriedade (Contestação Aracruz, 1.034 do PA).
12. Em relação aos impactos sócio-ambientais, a Aracruz alega que realizou o plantio de
eucalipto em terras já desmatadas, sobretudo em áreas onde ocorreu a erradicação de
cafezais; que o eucalipto recuperou a manta orgânica da terra e que a aplicação de
‘defensivos agrícolas’ está dentro da lei, não causando nenhum malefício à população
vizinha e aos empregados que aplicam os produtos (Contestação Aracruz, fls. 1.127,
1.154 e 1.157 do PA).
13. Em relação aos aspectos da sociabilidade, a empresa afirma que “O fato de pessoas de uma
mesma comunidade se divertirem juntas (festas e “brincadeiras”) não é o suficiente para permitir
que elas sejam consideradas integrantes de uma comunidade quilombola” (Contestação
Aracruz, fls. 1.168 do PA).
Além da Aracruz Celulose, outro ocupante de terras (Vivaldo Lorenzon) contestou
administrativamente o RTID de Linharinho. Ambas as contestações foram analisadas pela
Coordenação-Geral de Regularização Fundiária de Territórios Quilombolas (DFQ) do INCRA,
que em sua conclusão recomendou “que ambos os pedidos das decisões sejam negados”. Um dos
pontos contra-argumentados pela DFQ é a versão da Aracruz de que os quilombolas só teriam
direito às terras que atualmente ocupa, inclusive em 1988 quando a CF foi promulgada. Para tal,
fez uso do Parecer nº 01/2006 da AGU, citado no Cap. II. 4.1, e do parecer da Dra. Deborah
Duprat, da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão – Índios e Minorias - do MPF:
93
Ao dispor que aos remanescentes das comunidades dos quilombolas que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos, o art. 68 do ADCT não apresenta qualquer marco temporal quanto à antiguidade da ocupação, nem determina que haja coincidência entre a ocupação originária e atual. O fundamento, para fins de assegurar o direito ali previsto, é que de comunidades remanescentes de quilombos se cuide e que, concorrentemente, se lhe agregue a ocupação das terras enquanto tal. Assim, os dois termos – remanescentes de comunidades de quilombos e ocupação de terras – estão em relação de complementaridade e acessoriedade, de tal forma que a compreensão de um decorre necessariamente
do alcance do outro. 43
Em relação à ação judicial, a Aracruz alegou, dentre outros argumentos, que não foram
observados o contraditório e a ampla defesa pelo fato de não ter sido notificada antes dos
trabalhos de campo. O INCRA respondeu da seguinte forma44:
1) “Desde o início dos trabalhos, com a elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação até o presente momento, não foi necessário que o INCRA-ES entrasse em áreas (propriedades ou posses) de não-quilombolas, como atesta a metodologia adotada. 2) Somente numa segunda fase, que antecede a propositura de ação expropriatória, é cabível a notificação prévia, para fins de vistoria e até mesmo avaliação de imóvel, o que não ocorre neste momento processual. 3) Os limites do território identificado são definidos na conclusão do RTID, não sendo possível defini-los a priori. Por conseguinte, não há como realizar notificação prévia de ocupantes e confrontantes se nem mesmo o território está delimitado. 4) O Estado, através do INCRA, é quem faz o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação da área. Ao particular cabe, por óbvio, contestar seus resultados (como fez a ora apelante ao apresentar, por duas vezes, recurso administrativo), mas a norma não prevê a obrigatoriedade de participação do administrado na produção do trabalho, que é competência estatal.”
Ressalte-se que esta ação judicial (mandado de segurança) impetrada pela empresa, foi
julgada em segunda instância no TRF-2ª Região. A decisão condenou a forma de ação do INCRA,
mas não julgou o mérito da questão. Cabe ainda a decisão do STJ.
II. 4.3.2 - O Movimento Paz no Campo (MPC)
Uma parcela do setor agrário empresarial da região do Sapê do Norte e do estado, em
articulação com agentes políticos/públicos e com o aval da mídia regional, têm se contraposto 43 INCRA. Informação Técnica INCRA, referente ao processo n. 54340.000674/2004-14; informações técnicas relativos aos recursos administrativos apresentados pela Aracruz Celulose e Vivaldo Lorenzon.. 18/10/2007 44 INCRA/ES. Informação Técnica à Apelação em Mandado de Segurança – Processo 2006.50.01.007784-2 – TRF – 2ª. Região. 16/05/2008
94
aos direitos constitucionais das comunidades quilombolas do Sapê do Norte. Isso pode ser
constatado com o surgimento, na cidade de São Mateus, do Movimento de Produtores Rurais
(MPR). Posteriormente o MPR é transformado no Movimento Paz no Campo (MPC), com sede no
Sindicato Rural (Patronal) de São Mateus, por se inspirar e se alinhar politicamente, em nível
nacional, com o ‘Paz no Campo’45, com sede em São Paulo, movimento que defende os
interesses de proprietários rurais em detrimento dos direitos de sem-terra, indígenas e
quilombolas, associando tais interesses a um discurso religioso cristão.
Após a publicação dos RTIDs das comunidades quilombolas de São Jorge (outubro de
2006) e de Serraria e São Cristóvão (dezembro do mesmo ano), e das primeiras notificações aos
proprietários ou posseiros, ocupantes ou confrontes dos territórios pleiteados pelas referidas
comunidades, para lhes informar de seu direito à contestação num prazo de 90 dias a partir de
seu recebimento, iniciou-se uma forte oposição ao processo de titulação de territórios
quilombolas. O MPC realizou diversas reuniões em diferentes localidades do município de São
Mateus, nas quais, segundo informações de algumas lideranças campesinas, se distorcia em
demasia a política pública de titulação de territórios quilombolas. Alguns quilombolas relatam
que lhes foi dito que após a titulação eles seriam obrigados a entregar metade de sua produção
à associação quilombola e que não seriam aceitos brancos nos territórios titulados, pois até
mesmo os casamentos entre negros e não-negros seriam desfeitos. Os mentores do movimento
cunharam a expressão “republiquetas negras”.
Outra estratégia do MPC para confundir ainda mais a sociedade mateense e regional foi
ocupação dos meios de comunicação da região, como o jornal mateense Tribuna do Cricaré; o
Canal 26 (TV mateense); o programa de rádio “Ronda da Cidade”, que é o mais ouvido no
município, sobretudo no meio rural; a retransmissora da TV Globo local, a TV Gazeta Norte; e o
jornal de circulação estadual “A Gazeta”. Além disso, o MPC capixaba criou o seu próprio
informativo.
No dia 22 de maio de 2007, um dos fundadores do MPC, o senhor Eliseu Bonomo, atual
secretário municipal de agricultura de São Mateus (Gestão 2009-2012), que possui terras em
Beira-Rio (comunidade vizinha a Serraria e São Cristóvão), apareceu em uma matéria da TV
Globo local (TV Gazeta Norte), afirmando ter sido notificado pelo INCRA e, portanto,
“perderia” suas terras, conforme transcrição abaixo:
45 www.paznocampo.org.br
95
Repórter: [...] Uma nova versão dessa guerra acontece principalmente em São Mateus: a luta dos Quilombolas, os descendentes de escravos, que se dizem donos por direitos de terras ocupadas por antecedentes há pelo menos três séculos. O principal inimigo são os agricultores, gente que tem realmente direito por lei a terras reivindicadas. É uma longa história de luta e que agora ganha agora um novo capítulo: o INCRA não estaria agindo como deveria. Seu Eliseu Bonomo é agricultor do município de São Mateus. Planta macadâmia, mamão e café em 150 hectares. Ele recebeu uma notificação do INCRA dizendo que precisará deixar a terra. O lugar onde seu Eliseu mora foi considerada Terra de Quilombo. Eliseu Bonomo: A gente poderia ter escolhido um outro projeto de vida, poderia ter escolhido uma outra profissão, mas a gente, o que a gente quis fazer foi continuar na terra, continuar plantando, continuar colhendo, e enfim continuar gerando o desenvolvimento no meio rural.
É patente que as distorções dos fatos não são mera ingenuidade. O Sr. Eliseu Bonomo
jamais foi notificado, justamente porque ele não é ocupante e nem ao menos confrontante do
território quilombola identificado e publicado do Diário Oficial da União. E mesmo que o fosse
isto não significa um ato sumário de expulsão da terra pelo INCRA-ES, como querem fazer crer
o Sr. Eliseu Bonomo e o Movimento Paz no Campo, pois o contraditório e a ampla defesa estão
garantidos. Somente no ano de 2008 este fazendeiro comprou terras no perímetro do território
quilombola de Serraria e São Cristóvão.
As manifestações públicas do MPC podem ser caracterizadas por seus ataques a
dignidade individual e coletiva dos quilombolas, distorcendo os fatos e criando um sentimento
de repulsa aos direitos quilombolas no seio da sociedade regional. Em entrevista a um
programa de rádio local, o presidente do recém criado MPR, que originou o MPC, Edivaldo
Permanhane, faz um discurso evocando um ideal de modernidade homogeneizante que rechaça
a existência da diferença por considerá-la um retorno a um suposto passado de pecado e de
atraso.
Então a gente pede a toda autoridade, religiosa, civil, aos donos de lojas de São Mateus, pelo amor de Deus, ajuda a gente a fazer uma corrente social, uma corrente de mãos dadas para defender nossas terras. Que se a gente perder nossas terras, São Mateus vai voltar a 400 anos, vai voltar naquele quitungo de fazer farinha, de pegar dois peixinhos e viver do extrativismo. No mundo moderno hoje não dá pra viver como o INCRA quer, essas ONGs mundiais quer que vivam, que o povo viva, é, voltar às origens, no tempo do candomblé, da parteira, do quitungo. (Entrevista com proprietário de terras Edivaldo Permanhane, veiculada dia 05 de janeiro de 2007, na Rádio Musical FM 105,1, de São Mateus – ES)
Em 31 de Janeiro de 2007 parte da equipe do Serviço de Regularização de Territórios
Quilombolas do INCRA-ES, bem como seu superintendente regional compareceram em uma
96
reunião pública do MPR com chamada por uma rádio mateense. Estiveram presentes nessa
reunião vários representantes políticos e religiosos locais e um público de aproximadamente
100 pessoas. A tônica dos discursos distorceu e desqualificou o processo de titulação, além de
criar e reforçar uma necessária separação entre brancos e negros, como se o fenótipo – cor de
pele, tipo de cabelo etc - fosse um critério único, determinante e excludente para a identificação
e auto-identificação étnica dos quilombolas. Deste modo, desde sua origem, o MPC objetiva
confundir a população quanto ao processo em curso, como bem ilustrado pelas seguintes falas:
Hoje, no social, a gente lança uma semente, né, onde a gente convida cada um de vocês a plantarem a sementinha da paz, da justiça, da verdade, do reconhecimento e do direito, dever, de cada cidadão de São Mateus, né. (...) hoje, encontramos o problema da desapropriação de terras, tanto produtivas quanto improdutivas, terras pequenas e terras grandes, né, não importa se tá gerando 100, 200 empregos, não importa se tá produzindo alimento pra São Mateus, não importa é ..., nada. O que importa é que seja feita a justiça do jeito que o Governo Federal junto ao INCRA querem fazer. (...) Essa é a história que eu ouvi das reuniões com o INCRA e com as comunidades remanescentes. Aí eu disse pra eles o seguinte: quem é que quer voltar a mexer com carro de boi? quem é que quer voltar a capinar? Quem hoje for trabalhar com a enxada, ele não trata nem do papagaio. Hoje é internet, hoje a irrigação tem que ser ligada com um botão (...) Aí o INCRA chegou aqui no São Jorge e perguntou quem queria terra; todo mundo ficou doido, também quero. Eu mesmo, da Vovô Délio (fazenda de propriedade de Edivaldo Permanhane). (...) Então se o INCRA quiser me dar terra, eu também quero. Mas não quero terra de ninguém, eu quero terra do governo, né, se ele quiser dar terra pra gente, daí a gente quer. Aí, é..., o INCRA também teve uma idéia lá dentro da comunidade, isso é os juízes do INCRA, mandado pelo Governo Federal, né, que, é ..., querem buscar o pessoal de fora, que tá no Rio, em São Paulo, Vitória, pra poder acampar aqui, pra poder requerer terra. (...) Nós não podemos aceitar uma minoria que vem aqui a fazer baderna, trazer gente que tá lá em São Paulo pra acampar aqui, e entrar na fazenda de cada um de nós e quebrar tudo, que eles têm coragem, tá. (...)É ..., não é justo que se desaproprie cerca de treze mil hectares, pois este é o tamanho da área que estão reivindicando aos remanescentes dos quilombolas, sendo que eles já ocupam 600 hectares e para piorar a situação, sequer tiram o seu sustento da terra, porque não têm muito conhecimento técnico.” Edivaldo Permanhane (presidente do MPR) Bom, é, por falar no INCRA, gostaríamos de agradecer a presenças de funcionários (do INCRA) que a gente ta vendo aí. É um prazer, sejam bem vindos. Que vocês nos ouçam realmente e que mudem de idéia, pelo menos em parte. (...)O decreto (4887 de 2003), ele vem trazendo uma série de distorções a esse artigo (Artigo 68 do ADCT, regulamentado pelo decreto 4887). Ele permite que uma pessoa se auto-defina como quilombola sem que tenha qualquer história, qualquer comprovação mínima de genealogia de realmente ter vindo de um quilombola. Ele permite que essas pessoas, esses ditos remanescentes de quilombolas, eles detenham uma área, né. Então a pessoa do INCRA vai lá e fala assim, olha, você é um quilombola?, [...] ah, e qual é a área que você ocupava aqui? Ah, eu ocupava daqui mais três quilômetros pra cá, mais 2 quilômetros pra lá. E é isso que eles vão tá
97
colocando e definindo como correto. (...) O interesse deles (do INCRA e do Governo Federal) é criar uma nova história, é criar novos conceitos. É mudar tudo aquilo que a gente acredita, que a gente tem como correto, que a lei nos deu. A lei deu pras pessoas o direito de propriedade, que eles tão querendo tirar. A lei deu pras pessoas o conhecimento das coisas e eles tão querendo mudar o que a gente conhece como correto. Eles tão querendo dizer que terra que era de brancos era de negros. Eles tão querendo dizer que terras que foram vendidas, foram tomadas. (...) Porque hoje nós vivemos em conjunto, nós vivemos em comunidade. Os negros do São Jorge trabalham com os proprietários que estão querendo que [?] sejam desapropriados. (...) A lei, como tá colocada no decreto (...) ela não vai fazer justiça, ela vai criar um problema muito maior, essas pessoas ..., quem tá acostumado a ser empregado, não pode ser patrão. Largar aquela profissão pra poder cuidar do que é deles, eles já não cuidam. Não vão conseguir. Não é por incapacidade; eu sou advogada, se mandar fazer um serviço de [?], eu não vou saber, se me mandar fazer um serviço de engenheiro, eu não vou saber. Então cada pessoa, ela tem a atividade que lhe cabe, que lhe compete, que lhe é mais fácil. É isso que acontece. (...)Essa questão de se auto-intitular é muito complicado, porque existem pessoas que são assim da minha cor e tão aí dizendo que é remanescente de quilombola, então é complicado, né. Se alguém se auto-intitula quilombola, eu também devo ter um descendente de negro na minha família, então eu também vou me auto-intitular [?] e dizer que eu tenho direito a alguma terra, se é tão fácil assim. E as coisas não são assim. (Léslie Mesquita - advogada e membro do MPR) (...) Então, na verdade é de Conceição da Barra até Santa Maria, todas as terras o INCRA tá considerando que são território quilombola e que os brancos que estão ali dentro têm que sair. É como se criasse uma república dos negros dentro do Brasil. Agora os negros não pediram isso, porque pelo que consta (...) o Brasil não é a África e o Brasil não é o Europa. O Brasil tá sendo construído, não é ..., é uma construção nova. Nós temos, daqui há..., os antropólogos chegam a falar, daqui há uns 200 anos, não tem mais o branco e não tem o negro no Brasil. A maior parte da população é uma população mestiça. (...) Porque Brasil está sendo construído, um outro Brasil, uma mistura de culturas, um caldeirão cultural está sendo construído. Quando vem o governo dizer que aqui vai ser um território quilombola, e que aqui tem que reconstruir toda a cultura do negro e tirar todos os brancos que moram aqui dentro [?]. Será que os negros estão sabendo que é isso, que essas pessoas do INCRA estão falando, é isso que está se pretendendo? Então, é um questionamento pra gente fazer. (...)Eu li todos os relatórios, só faltou eu ler o de Serraria, pra entender, mas sempre o discurso é esse, de que a terra, todas essas terras eram dos negros, e que os negros precisam dessas terras pra fazer ..., pra reimplantar sua cultura. Como se a cultura brasileira, no conjunto, é ..., fosse uma coisa diferente, né. (...) Então a gente não sabe até agora o que que tá por trás dessa intenção que esses técnicos do governo têm, né, de fazer essa coisa. Agora uma coisa eu vou colocar aqui novamente pros proprietários: os negros não pediram, não, pelo menos ..., não pediram isso, não pediram isso. Quando a gente conversa com os mais velhos, eles ficam até preocupados, perguntando. Agora, é claro que eles estão animados. (...) Chapa branca, o nome INCRA, e dizendo que ele tem direito a tantos alqueires de terra, é claro que ele vai querer. (...) Quem que não quer? É um prêmio de loteria. [Eliezer Nardoto – historiador do município de São Mateus e coordenador do MPR-MPC].
98
(transcrição da reunião pública, chamada por uma rádio local; estiveram presentes o prefeito da cidade de São Mateus e o Bispo emérito Dom Aldo. A cópia transcrita desta reunião encontra-se no INCRA-ES).
Vale ressaltar que este movimento conta com uma forte articulação com representantes
políticos tanto em âmbito regional quanto estadual ou nacional, como podemos constatar nos
trechos a seguir:
Câmara Municipal de São Mateus expressa seu VOTO DE CONGRATULAÇÃO, a todos os componentes do Movimento de Produtores Rurais de São Mateus – MPR, pelo trabalho de conscientização, mobilização e articulação da sociedade mateense em defesa dos produtores rurais que estão sendo ameaçados de desapropriação pelo INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, que está considerando mais de 70% do território do município de São Mateus como área de remanescente de comunidades de quilombos.” (OF. SA/CMSM/ES 190/2007, Moção nº 026/2007, tal Moção foi aprovada, na sessão ordinária do dia 29 (vinte e nove) do mês de maio do ano de 2007, no Plenário desta Casa de Leis)
E segundo o Jornal local Tribuna do Cricaré:
“proprietários rurais mateenses estabelecidos em áreas abrangidas pelos relatórios técnicos do INCRA, que identificam e delimitam territórios quilombolas, obtiveram apoio do senador eleito (pelo Espírito Santo) Renato Casagrande para uma audiência com o presidente nacional do INCRA, Rolf Hackbart. (...) De acordo com Edivaldo (presidente do MPR) e Léslie (advogada do MPR), Renato Casagrande comprometeu-se também em intervir junto ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, em Brasília, e à Superintendência Estadual do INCRA para buscar apoio aos proprietários rurais mateenses. Leslie acrescentou que Casagrande elogiou a iniciativa dos proprietários: “Ele garantiu apoio e representatividade em Brasília. Também se colocou disposto a contatar a bancada ruralista federal para que os proprietários possam contar com apoio dela.” Ainda nesta edição do jornal lê-se: “Elcio Álvares (Deputado estadual eleito pelo então PFL) também apoiou o movimento.” (Tribuna do Cricaré, São Mateus, ES, sábado, 13 de janeiro de 2007, p. 3)
Segundo o informativo do próprio MPC, “os senadores Renato Casagrande, Magno
Malta e os deputados federais Luiz Paulo Veloso Lucas, Camilo Cola, Rita Camata, Suely
Vidigal e Lelo Coimbra também receberam os produtores de São Mateus e garantiram apoio.”
(Manifesto do Movimento Paz no Campo, São Mateus, Espírito Santo, Agosto de 2007, p. 04)
No dia 26 de junho de 2007 “O governador Paulo Hartung recebeu a comissão diretora
do MPC no Palácio da Fonte Grande e garantiu apoio aos produtores rurais em sua luta contra
a desapropriação de suas terras para implantação do território quilombola.” Participaram desta
reunião em demonstração de apoio ao MPC, o prefeito de São Mateus, Lauriano Zancanella e
seu secretário municipal de agricultura, o então secretário de Estado da agricultura César
Colnago, representantes da Federação de Agricultura do ES (FAES), e os deputados estaduais,
99
Ataíde Armani, presidente da Comissão de Agricultura da Assembléia Legislativa, José
Eustáquio de Freitas, Cacau Lorenzoni e Marcelo Coelho.” Nesta ocasião:
O governador conversou com os produtores por uma hora e meia, ouviu os relatos históricos da região; tomou conhecimento da força e importância do agro-negócio de São Mateus e disse que está ao lado dos produtores, pois considera “um gol contra do governo federal” a idéia da desapropriação das terras de quem está nelas produzindo. O governador foi muito enfático em dizer que está unido com os deputados e senadores para tomar atitudes junto ao governo federal visando impedir tais ações desapropriação. (Manifesto do Movimento Paz no Campo, São Mateus, Espírito Santo, Agosto de 2007, p. 09)
Em 09 de novembro de 2007, o MPC organiza uma carreata para Vitória para entregar
uma ‘Carta-Manifesto em defesa da agricultura e do homem do campo’. Na carta, dirigida ao
governador, o presidente do MPC, Edvaldo Permanhane, e seu coordenador e articulador,
Eliezer Ortolani Nardoto, alertam para o ‘abandono em que se encontra o homem e a mulher do
campo’, e reclamam que são penalizados pelos ‘funcionários dos órgãos fiscalizadores do governo’.
Continuam que ‘a pior das perseguições é aquela patrocinada pelo INCRA e pelas ONG´s que querem
destruir o agronegócio do Brasil para implantar uma agricultura de subsistência, nos moldes do que
existiu no Brasil em meados do século passado’. Afirmam ainda que as ONGs estão ‘satanizando’ o
agronegócio e ‘sacralizando’ os territórios quilombolas, e que essas ONGs ‘são patrocinados por
organismos internacionais e se infiltram nos movimentos populares para destruir a paz no campo’ e as
acusam de ‘manipulação dos negros’. Por fim, afirmam: ‘Não podemos, jamais, aceitar demarcação de
territórios, nem indígenas e nem quilombolas, pois isso representa a volta do domínio dos territórios dos
estados para a União’.46
O efeito intimidador do MPC tem sido grande nas comunidades quilombolas (como
pode ser visto com mais detalhes no Cap. IV. 3) e até mesmo atingido o trabalho do INCRA. Em
Julho de 2008 foram notificados todos os presumíveis ocupantes do território quilombola de São
Domingos e Santana, a fim de que se identificasse a malha fundiária deste território e sua
situação dominial para que se publicasse o RTID em Diário Oficial, abrindo o prazo de 90 dias
de contestação. Duas equipes do INCRA estiveram realizando o trabalho de delimitação de
cada posse ou propriedade dentro do referido território. Este trabalho, embora fosse respaldado
legalmente, causou nova reação do MPC. Ao bloquear a BR 101 Norte no Km 60 (trevo do
bairro Litorâneo) no dia 28 de julho de 2008, integrantes do MPC se atiraram na frente de uma
46 Paz no Campo, “Carta ao Governador”, http://www.paznocampo.org.br/blogfaoro/blogfaoro.asp, acessado em 04/12/2009
100
das viaturas do INCRA. Segundo os servidores do órgão destacados para aquele trabalho, os
discursos do MPC em uma rádio mateense foram agressivos. Diante disso, as equipes do
INCRA decidiram se distanciar de São Mateus naquele dia, obrigando a paralisação temporária
do trabalho e o deslocamento, no dia seguinte, do superintendente regional do INCRA à
delegacia de Polícia Federal no município de São Mateus, para garantir a segurança dos
servidores federais.
Uma das últimas iniciativas do MPC foi a audiência pública realizada, no dia 10 de
dezembro de 2009, em São Mateus pela Comissão de Agricultura da Assembléia Legislativa do
Espírito Santo, a pedido do deputado estadual Freitas (PSB/ES), com o objetivo de discutir a
questão quilombola. O deputado, em seu site na internet, argumenta que “a questão provoca
insegurança e preocupação na região norte do Estado. A população rural vive em constante instabilidade,
temendo a desapropriação e a invasão de terras pelos quilombolas”, complementando ainda que
“qualquer pessoa pode dizer que é quilombola” 47. Mesmo assim, frisa que “O nosso papel é o papel de
mediar”.48
Na audiência, o pleito das comunidades quilombolas foi considerado legítimo pelo
superintendente do INCRA e pelo bispo de São Mateus, Dom Zanoni. Ainda assim, segundo o
site do deputado Freitas, o evento aprovou:
“a criação de uma Comissão para tentar buscar apoio da bancada federal capixaba a anulação do decreto presidencial 4.887/2003. A Comissão será composta pelos deputados mateenses Freitas e Paulo Roberto e pelos representantes da Federação dos Agricultores do Estado, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São Mateus, da Secretaria Municipal da Agricultura, do Movimento Paz no Campo, da Federação de Agricultura, do Centro de Cultura Negra do Norte e Nordeste do Espírito Santo, do Movimento Quilombola e pelo
bispo do Norte e Noroeste do Espírito Santo, Dom Sanoni (sic).”49
A Comissão Quilombola do Sapê do Norte não participou desta audiência e, muito
menos, participaria de uma comissão formada para anular um decreto que vem justamente
regulamentar a titulação de territórios quilombolas. Ao contrário disso, a assinatura do Decreto
4887 em 2003 representou uma conquista do movimento quilombola nacional, após anos de
articulação para tal.
Em 01 de março de 2010, ocorreu na Assembléia Legislativa do Espírito Santo, nova
audiência pública, coordenada pelo deputado Ataíde Armani (DEM), a fim de que os
“interessados” fossem ouvidos pela bancada federal capixaba, representada na ocasião por seu
47 www.deputadofreitas.com.br, “Freitas faz audiência pública para falar de quilombolas em São Mateus”, 04/12/2009 48 www.deputadofreitas.com.br, “Desapropriação em favor de quilombolas é tema de debate”, 11/12/2009 49 www.deputadofreitas.com.br, “Desapropriação em favor de quilombolas é tema de debate”, 11/12/2009
101
coordenador, o deputado federal Camilo Cola. Os depoentes foram os deputados estaduais
Freitas (PSB) e Paulo Roberto (PMN), líder do governo na Assembléia, os membros do MPC
Eliezer Nardoto e Edivaldo Permanhane e o presidente da Federação de Agricultura do Espírito
Santo, Júlio Rocha. Todos estes atacaram o Decreto 4887/2003 e solicitaram apoio da bancada
federal para interpelar a cúpula do governo federal a fim de que se paralise o processo de
titulação de territórios quilombolas no Sapê do Norte. Estava presente o senhor José Luiz
Demouner, diretor técnico do IDAF (órgão estadual de terras que, entre outras atribuições, é
responsável pela identificação de terras devolutas ou vícios na aquisição destas). Contudo, os
depoentes isentaram por completo os órgãos estaduais de qualquer responsabilidade no
processo, sobretudo no atual governo estadual.
O procurador da república no município de São Mateus, Júlio de Castilhos, também foi
chamado a se pronunciar e de início lamentou que não tivesse sido garantida a presença de
quilombolas no evento. Em relação ao Decreto 4887, o procurador ressaltou que não se pode
afirmar que tal instrumento é inconstitucional, pois embora haja uma ADIN sobre tal assunto,
esta ainda não foi julgada no STF e, portanto, o Decreto goza de legalidade. Ainda destacou que
independentemente da legalidade ou não do Decreto, se houver provas de que a terra é
quilombola, esta será titulada como tal – e quem atesta isto é um órgão técnico, baseando-se,
sobretudo, no trabalho de um antropólogo que, segundo o procurador, é o profissional mais
indicado para tal definição. Após citar o Artigo 173 da CF, que trata da função social da
propriedade - critério inexistente nas constituições anteriores - o procurador encerrou sua
participação, afirmando que se as terras devolutas nos territórios pleiteados já estivessem
identificadas, o processo de titulação já estaria mais adiantado. O representante do IDAF
presente ali, o diretor técnico José Luiz Demouner, manteve-se calado.
A audiência chegou ao fim com a fala do deputado federal Camilo Cola (PMDB), citando
que a atual bancada federal capixaba já esteve em reunião no gabinete da presidência do
INCRA em Brasília para tratar da questão. O deputado ponderou acerca da necessidade de se
aprender a administrar os conflitos e apontou a possibilidade do uso de “indenizações de
algumas áreas” para solucioná-los.
Para reforçar a ofensiva nacional contra a regularização dos territórios quilombolas no
Brasil, o MPC se aliou à Aracruz Celulose/Fibria em pelo menos um evento público: o Fórum
Agrário Empresarial (encontro promovido pela CNA, já comentado anteriormente no item II.
4.1). Na ocasião, uma comitiva do então MPR (Movimento dos Produtores Rurais), futuro MPC
(Movimento Paz no Campo), formada por Welington Secundino, então secretário municipal de
102
agricultura de São Mateus, por Eliseu Bonomo, atual secretário municipal de agricultura de São
Mateus (gestão 2009-2012), por Edivaldo Permanhane, presidente do MPC e por Eliezer
Ortolani Nardoto, coordenador do MPC, se fez presente no evento. Estes dois últimos
proferiram juntamente com Carlos Alberto Roxo, diretor da Aracruz Celulose, a palestra “A
Questão Quilombola50”. O MPC voltou a se manifestar sobre o tema ao divulgar e distribuir o
livro intitulado “A Revolução Quilombola51”, de autoria de Nelson Ramos Barretto e
participação do coordenador do MPC capixaba Eliezer Nardoto num capítulo somente sobre
São Mateus. A tônica da publicação apoiada pelo Movimento Paz no Campo é a guerra no
campo.
As articulações e manifestações do MPC são todas no sentido de desqualificar e
deslegitimar os pleitos das comunidades quilombolas. Não por acaso, Silva (2008), afirma que:
“(...) embora o artigo 68, bem como o decreto 4887 de 2003 seja parte de uma Política Pública de Estado - ou seja, seu efeito administrativo é idêntico à abolição dos negros escravizados, à política de distribuição de terras a imigrantes europeus, à isenção de impostos para exportação, aos eternos créditos para o latifúndio e às políticas industriais do governo estadual -, os efeitos democráticos de sua aplicação reacendem as brasas de um país racista acostumado ao trabalho servil e à desigualdade. Para chegar a esta conclusão é preciso desconstruir o imaginário de uma sociedade pacífica, não violenta, na qual impera a ordem. É preciso também desconstruir a forma com que a história da região do Sapê do Norte foi contada até o momento, submetendo as populações negras oriundas da escravidão a um silêncio e a uma invisibilidade institucional que desafia qualquer razão menos democrática. Ao mesmo tempo é necessário considerar que o que uns chamam de paz, milhares já experimentaram como escravidão”.
II. 4. 3. 3 - A questão das terras devolutas
Outro entrave importante para o avanço da regularização fundiária no Sapê do
Norte são as dificuldades, ou a falta de vontade política, em torno da discriminação das terras
devolutas, sendo que muitas destas se localizam dentro de territórios quilombolas identificados,
como é o caso do território de Linharinho.
A tarefa da discriminação das terras devolutas é atribuição do estado do Espírito Santo,
mais especificamente do Instituto de Defesa Agropecuária (IDAF). Para que isso ocorra, o
INCRA encaminhou à Procuradoria Geral do Estado (PGE), no ano de 2006, provas em relação
50 Fonte: Cartilha do MPC, p. 02 e http://www.canaldoprodutor.com.br/node/5188 51 O livro pode ser adquirido após acesso e cadastro em http://www.paznocampo.org.br
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às irregularidades na aquisição de imóveis rurais no Território de Linharinho, sem conseguir
obter resposta.
Para tentar avançar na questão, o INCRA tentou fechar convênio de cooperação técnica e
financeira com o IDAF em relação a este tema, o que garantiria que o órgão estadual realizasse a
discriminação das terras devolutas, além da identificação de títulos viciados (que apresentam
ilegalidades na sua aquisição). O processo administrativo para tal empreitada tramita entre os
dois órgãos e abrange os territórios quilombolas de Linharinho, de São Jorge e de Serraria e São
Cristóvão. Caberia ao INCRA realizar o pagamento de indenizações pelas benfeitorias
(plantações, construções etc) nesses casos. A desapropriação, quando além das benfeitorias
também se paga a terra nua, somente ocorre quando o título é legítimo.
Numa audiência pública promovida pelo Ministério Público Federal, no município de
São Mateus, em 23 de outubro de 2008, o técnico do IDAF, Vailson Schineider, ao apresentar um
mapa (MAPA 4) sobre o território quilombola de Linharinho afirmou que:
[...] Nem toda terra registrada é legítima [...], a terra legítima é a terra que saiu do estado, ou que foi feito um processo de usucapião sobre ela, e o juiz emitiu um parecer mandando que ela fosse registrada. Essa é a terra legítima na ótica do estado: a terra registrada do estado ou feita pelo processo de usucapião [...]. O processo de Linharinho chegou ao IDAF mais ou menos em agosto ou setembro de 2006, portanto há dois anos, e a nossa obrigação era justamente identificar o que era legítimo [...], porque o devoluto seria encaminhado, para que o INCRA procedesse para aquilo que é atribuição do INCRA [...]. Feito esse relatório, nós chegamos à conclusão preliminar: o que é cinza e amarelo pertence à Aracruz Celulose, então a Aracruz Celulose possui 5.736 hectares identificados de plantinhas e processos no estado; são áreas legítimas. E a Aracruz possui 2.390 [ha] de áreas não identificadas, não posso dizer que é devoluta [...] Então, entre terrenos da Aracruz e terrenos particulares de áreas não identificadas nós temos quase três mil hectares dentro do território quilombola de Linharinho que nós não encontramos processos de legitimação do estado [...] Este mapa foi gerado no final do ano passado em 2007. Nós tivemos duas diretrizes depois que nós chegamos nessa conclusão enquanto Linharinho: a primeira é que nós encaminhamos uma correspondência para a Aracruz solicitando que ela prove a propriedade dentro da área amarela, que está dentro da propriedade dela, ela não respondeu (SCHINEIDER, 2008, grifos nossos).
104
MAPA 4
A falta de iniciativa do Estado em suas atribuições legais nessa questão é patente,
sobretudo da PGE. Já o IDAF, embora tenha iniciado um trabalho a este respeito, caminha a
passos lentos e sem explicações convincentes para esta morosidade, pois o convênio de
cooperação técnica com o INCRA está há anos tramitando sem ações efetivas e até hoje a
Aracruz Celulose não respondeu a provocação do órgão sobre a falta de provas da legitimidade
das terras que se diz ser proprietária.
No processo administrativo do INCRA-ES sobre o território quilombola de Linharinho
se encontra o Espelho do Imóvel Rural, sob o código 503.029.263.117-5, da Aracruz Celulose,
denominado Bloco 01, com área medida de 28.056,10 hectares. Neste espelho, baseado em
informações concedidas pela empresa (o cadastro de imóveis rurais do INCRA se fia nas
declarações dos proprietários), encontram-se diversas matrículas de imóveis, todas registradas
no Cartório de Conceição da Barra. Contudo, há também informação de Área de Posse, na qual
se apresentam diversas áreas que variam de 4,80 a 722,70 ha. O somatório dessas áreas de posse
105
é de 1.492,20 hectares, ou seja, a própria Aracruz Celulose declara que ocupa áreas sem
registros.
No ano de 2005, no dia 20 de novembro, o juiz de direito Antonio Carlos Facheti, da
Segunda Vara Criminal da Comarca de São Mateus-ES, proferiu decisão, através de um
Interdito Proibitório requerido pela Aracruz Celulose contra os quilombolas Altiane Blandino,
Jorge dos Santos e Outros52 (veja Anexo III), a fim de que estes não praticassem atos de esbulho
nos imóveis da Aracruz Celulose com denominação interna de Bloco CB, com 36.000 (trinta e
seis mil) hectares na região de Conceição da Barra. Em 2007, quilombolas de muitas
comunidades do Sapê do Norte se uniram aos quilombolas de Linharinho e ocuparam uma área
deste território à beira da rodovia ES 010, à jusante do córrego São Domingos. A escolha
daquela área não foi a esmo, pois, segundo a Comissão Quilombola do Sapê do Norte, ali vivera
Joventino dos Santos e sua família, que foram expulsos depois de terem sua casa incendiada,
área que em pouco tempo se tornou em mais um plantio de eucaliptos. Em 2007, diante da
ocupação quilombola dessa área a Aracruz Celulose ingressou na Justiça mais uma vez e o que
antes era Interdito Proibitório passou a ser Ação Possessória para o mesmo BLOCO CB. Ao
acatar o pleito da empresa, em nenhum momento o juiz solicitou que a empresa apresentasse
a matrícula registrada em cartório daquela área específica de aproximadamente um hectare.
Preferiu o juiz se basear na “vasta documentação trazida” pela empresa e em sua argumentação
de ser proprietária de um imóvel rural genérico de 36.000 (trinta e seis mil) hectares, composto
por vários imóveis.
Contudo, se as documentações da empresa são vastas, grandes também são as
imprecisões e variações de tais informações, causando confusão para o julgamento do mérito.
Na declaração que a Aracruz Celulose faz ao INCRA-ES, como vimos no espelho de imóvel
rural, há o Bloco 01 de 28.056,10 hectares, dos quais quase 1.500 são de posse, no município de
Conceição da Barra. No Interdito Proibitório e depois na Ação Possessória a empresa apresenta
a informação do Bloco CB de 36.000 hectares no mesmo município e em seu site na internet
afirma ser proprietária de 35.404,3 hectares em Conceição da Barra (veja tabela 9 do Cap.I).
Acrescenta-se nessa análise as informações levantadas pelo IDAF de que, apenas no
território quilombola de Linharinho, a Aracruz possui 2.390 [ha] de áreas não identificadas, sem
processos de legitimação do estado, sem que a empresa tenha provas desta propriedade. Mesmo assim a
52 Nas palavras do juiz: “A presente decisão é extensiva a todos os movimentos de pessoas que estão ligadas aos requeridos citados, bem como de outros movimentos, que se intitulam “QUILOMBOLAS”, cuja pretensão é a de praticar atos de esbulho nos imóveis da requerente localizados no município e comarca de Conceição da Barra, bem como seus simpatizantes ou apoiadores que de alguma forma tentem invadir as áreas”.
106
decisão judicial foi cumprida por um efetivo de mais de cem policiais e cães do Batalhão de
Missões Especiais. Ou seja, o Estado não apenas foi partícipe na expropriação do território
quilombola do Sapê do Norte quando a Aracruz Celulose se instalou, conforme já descrito
anteriormente, como continua sendo agente da manutenção desta expropriação.
Diante disso, é fundamental que se faça a discriminação das terras devolutas, que inclui
também a averiguação dos registros irregulares de imóveis rurais, pois se tais registros e suas
matrículas não chegam à origem, não demonstram quando e como foi feito o destaque do
patrimônio público, os registros não são legítimos. Segundo o IDAF “a terra legítima é a terra que
saiu do estado, ou que foi feito um processo de usucapião sobre ela”. Portanto, ainda se tratam de terras
devolutas. Enquanto este procedimento não for adotado e concluído, isto será mais um
empecilho para a garantia dos direitos territoriais quilombolas e para a regularização fundiária
dos territórios quilombolas no Espírito Santo. (ver ANEXO I, que trata das terras devolutas em
território quilombola).
II. 5 - CONSIDERAÇÕES
Este capítulo mostra de forma detalhada as irregularidades e ilegalidades envolvendo a
Aracruz Celulose na expropriação dos territórios das comunidades quilombolas do Sapê do
Norte. Apesar de todo esforço para recuperar estes territórios através dos processos de titulação
em curso de várias comunidades, enfrentando diversos obstáculos, desde as mudanças na
legislação até as manifestações do MPC, a gravidade das irregularidades e ilegalidades
apontam para a necessidade da apresentação de ações judiciais que, segundo as informações
coletadas, ainda não têm sido movidas contra os responsáveis por esses atos.
É preocupante que esses atos cometidos a partir dos anos de 1970 nunca tenham sido
empecilhos para a empresa Aracruz Celulose conseguir suas licenças e outros certificados que
autorizam e legitimam suas atividades sobre as terras que outrora pertenciam às comunidades
quilombolas. Por isso, é urgente que o Estado brasileiro reveja a forma como efetiva a
mensuração dos impactos que grandes empreendimentos, a exemplo da Aracruz Celulose, vêm
causando, incluindo uma avaliação dos impactos sobre direitos territoriais, constitucionalmente
e internacionalmente garantidos.
Insta registrar que a não-efetivação do direito ao território das comunidades
quilombolas garantido na Convenção 169 da OIT, na Constituição Federal e no Decreto
107
4.887/2003 integra o rol das violações dos direitos humanos. A Comissão Especial de
Acompanhamento e Apuração de Denúncias Relativas à Violação do Direito Humano à
Alimentação Adequada (DHAA)53 afirma que “o direito de acesso ao território das comunidades
quilombolas que vivem em Sapê do Norte está sendo gravemente violado devido à ocupação dos territórios
quilombolas do Sapê do Norte pela monocultura de eucalipto.” A violação é demonstrada também
pelo “não cumprimento por parte do Estado da [sua] obrigação de garantir o processo de titularização dos
territórios”. Mais ainda, o relatório observa que o acesso à terra pelas comunidades quilombolas
apresenta-se como condição fundamental para ampliar as possibilidades de trabalho,
principalmente no que se refere à agricultura, e que a geração de renda por meio da produção
do artesanato, por exemplo, depende substancialmente das recuperações territorial e ambiental.
Por fim, diversas políticas públicas para as comunidades quilombolas do Sapê do Norte
têm sido suscitadas e algumas poucas têm sido implementadas, como reforma de casa de
farinha, instalação de telefone público e melhorias sanitárias, entre outras. Contudo, há o risco
de garantir um pacote de políticas, no qual nem menos se discuta a questão territorial, ou ao
discuti-la se restrinja a titulação apenas das terras hoje ocupadas pelos quilombolas, detendo-se
àquilo que lhes sobrou, ocultando todo o processo de expropriação. Chama-se atenção para isto,
pois já houve há aproximadamente cinco anos, um fórum de discussão sobre políticas públicas
para as comunidades quilombolas do Sapê do Norte capitaneado pela Delegacia Regional do
Trabalho, envolvendo diversos outros órgãos governamentais, lideranças quilombolas e a
Aracruz Celulose/Fibria. Quando se lê as atas das reuniões fica patente o esforço da empresa em
negar a discussão sobre território e identidade quilombola, sem que houvesse contestação dos
demais presentes.
Entende-se que os quilombolas do Sapê do Norte têm o direito de sair das situações de
“imprensamento”, voltando a ocupar o território que ocupavam até a década de 1960, com
políticas públicas que lhes garantam a reprodução física, social, econômica e cultural.
53 Comissão Especial de Acompanhamento e Apuração de Denúncias Relativas à Violação do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), “Relatório da Comissão Especial de Acompanhamento e Apuração de Denúncias Relativas à Violação do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) nas comunidades quilombolas Sapê do Norte no Estado do Espírito Santo”, Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, 2009.
108
III – A QUESTÃO AMBIENTAL NO TERRITÓRIO QUILOMBOLA DO SAPÊ DO NORTE: IMPLICAÇÕES SOCIOAMBIENTAIS DO PLANTIO HOMOGÊNEO DE ÁRVORES EM LARGA ESCALA.
O processo de destruição da Mata Atlântica no Espírito Santo foi constituído por
diferentes eventos. Um deles foi o ciclo da madeira, ocorrido na primeira metade do século XX,
quando algumas espécies da floresta tropical eram extraídas e escoadas pelos rios Itaúnas e
Cricaré. A partir de meados do mesmo século, com a abertura da BR-101, houve um forte fluxo
migratório em direção ao norte do Espírito Santo, na continuidade da exploração madeireira
voltada ao crescimento urbano-industrial do Centro-Sul (BECKER, 1973): construção civil e
produção de carvão vegetal. O deslocamento geográfico do eixo do desenvolvimento produziu
o esvaziamento do litoral que, até então, era a região aglutinadora das atividades econômicas
do Estado. Registra o silvicultor Armando Navarro de Andrade, resgatado por Ruschi (1964), a
mudança drástica da paisagem ocorrida na região a partir daquele período:
Encontramos o município de Linhares extremamente devastado, não só pela intensa extração de madeira como pelas queimadas subseqüentes. O trecho entre a lagoa Juparanã e o Parque Sooretama, na antiga estrada de rodagem que percorrêramos em 1948, está quase irreconhecível: onde há 15 anos encontráramos extensas matas virgens existem, hoje, regiões completamente devastadas pelo homem e pelo fogo. Sem medidas que proíbam e impeçam, de modo efetivo, tal destruição, teremos dentro de pouco tempo, um deserto espírito-santense; as famosas matas do vale do Rio Doce serão somente recordações históricas (RUSCHI, 1964, p. 1).
O processo de interiorização do desenvolvimento e as ações de urbanização do território
capixaba geraram forte pressão sobre os ecossistemas regionais e locais, acelerando o
movimento em curso de destruição da Mata Atlântica. No entanto, segundo a Associação dos
Geógrafos Brasileiros (2004), a maior parte da região norte do Estado era ainda coberta pela
Mata Atlântica.
No final da década de 1960, com a chegada dos grandes projetos de desenvolvimento ao
território capixaba - particularmente da agroindústria de celulose, e, em meados da década de
1970, do Programa Nacional do Álcool (Pró-Álcool), instituído pelo Decreto nº. 76.593, de 14 de
novembro de 1975, do então presidente Ernesto Geisel - a Mata Atlântica passa a ser substituída
pelos extensos monocultivos e chega à década de 1980 com pouco mais de 13% da sua área
original (aproximadamente 4 milhões de hectares, distribuídos ao longo do litoral brasileiro).
No fechamento da atual década, o Espírito Santo conta com apenas 7% do seu território coberto
por Mata Atlântica, em áreas distribuídas em fragmentos, situação que tem impossibilitado as
109
condições necessárias à sua autorregeneração. A continuar do jeito que está, a extinção da Mata
Atlântica em curso deve se consumar nas próximas décadas (GRAF. 10).
GRÁFICO 10: Evolução do desmatamento no bioma Mata Atlântica
Fonte: IPEMA. Conservação da Mata Atlântica no Espírito Santo. Vitória, março/2004.
No Norte do Estado, no final da década de 1960, a destruição da floresta foi realizada
pelo “correntão”, engrenagem construída com dois tratores de esteira e uma grossa corrente, que
derrubava as árvores e, com ela, a sua fauna. Entrevista concedida por Anaílson de Oliveira a
Simone Ferreira, em outubro de 2005:
Mas quando a Aracruz chegou aqui, era um correntão. Pegava um aqui, e outro lá no córrego com trator. (...) Aí eles (...) juntava aquela madeira, madeira de lei, que hoje é Cibá, Peroba, Braúna, Moíba, Sapucaia, e hoje uma tora de braúna vale 150, 200 real. (...) Se tivesse num dia de neblina como hoje, botava óleo diesel pra poder queimar a madeira. Queimaram tudo! Tudo! Aí a madeira não queimava, botava amanhã outra vez. (...) Ninguém aproveitava nada. A não ser quando a pessoa olhava, decidia ficar como dono do terreno. Se quiser aproveitar, aproveita, se não vamos tirar tudo. (...) Mas a maior parte, o fogo destruiu tudo.
Outra entrevista concedida por Ângelo Camillo (vulgo Caboquinho, 61 anos) a Simone
Ferreira em maio de 1999, reafirma a mesma história:
Como é que ela [Aracruz] começava a trabalhar no terreno ? Ah, o primeiro que veio foi o desmatamento, né. Mas os terrenos que a Aracruz comprou, tinham mata também, tinha
terreno de mata nativa, de floresta?
110
Mata nativa ! Tinha ! Mata nativa ! Quebrava, quebrava tudo ! Até hoje eu sinto uma falta, uma revolta tão grande... Você passava daqui pra Conceição da Barra, aqui já você passava por cada uma mata na beira dessa estrada ! ... Mata purinha ! Aí ela pegava com o correntão e quebrava tudo! E a gente, quando eles chegava assim, era paca, era tatu, era veado, era tudo, os bicho ficava entocado tudo, fazia dó, preguiça! Um dia, tava num lugar, cheio de ave chorando ! Malvadeza ! Eu vi isso demais aí, ó ! Mas o que que vai fazer, né?
E essas madeiras da mata, ela fazia o que com elas? Queimava.
A destruição deste ambiente da Floresta Tropical de Tabuleiros para dar lugar aos
plantios homogêneos de árvores em larga escala degradou a elevada diversidade biológica local
e o lugar da vida das comunidades quilombolas. Além da perda de alimentos e utensílios, a
destruição destas espécies significou a perda de um vastíssimo banco genético cujo potencial
permanece pouco conhecido.
FOTO 9 - O “correntão” habita o pesadelo da destruição da floresta presente na memória dos moradores mais antigos. Alguns de seus elos ficaram perdidos pelas áreas devastadas. Comunidade São Domingos. (Simone Ferreira, outubro/ 2005).
FOTO 10 - Testemunho das queimadas da floresta tropical para a implantação da monocultura do eucalipto no Município de Pinheiros/ES. (Simone Ferreira,1999).
111
A destruição da floresta tropical e sua substituição pelos monocultivos de eucalipto
produziram profundas alterações nos usos da terra, como a queda do número de
estabelecimentos ocupados por lavouras temporárias e suas áreas, acompanhada pelo
crescimento vertiginoso das áreas ocupadas pelas “matas plantadas”. Estas alterações podem
ser testemunhadas pelas séries de dados a seguir, referentes aos municípios de Conceição da
Barra e São Mateus (TAB. 17):
TABELA 17 Uso da terra (estabelecimentos) - Conceição da Barra – 1960 a 1996
1960 1970 1975 1980 1985 1996
Lavoura permanente 771 589 140 352 290 265Lavoura temporária 1.449 1.201 606 432 316 296Pastagem natural 658 630 693 418 241 286Pastagem plantada 860 925 54 211 50 74Matas naturais 1.467 732 191 268 113 226Matas plantadas 213 14 5 9 8 26Terras em descanso 36 90 66 120Terras não-utilizadas 482 605 307 142 199 32Irrigação 8 2 9TOTAL 1.753 4.696 2.032 1.924 1.292 781
Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1960, 1970, 1975, 1980, 1985 e 1996. Pesquisa e organização de Simone Batista Ferreira.
0
200
400
600
800
1000
1200
1400
1600
1 2 3 4 5 6
Períodos - 1960 a 1996
Núm
ero
de
esta
bele
cim
ento
s
Lavoura permanente
Lavoura temporária
Pastagem natural
Pastagem plantada
Matas naturais
Matas plantadas
Terras em descanso
Terras não-utilizadas
GRÁFICO 11 - Uso da terra (estabelecimentos) – Conceição da Barra – 1960 a 1996 Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1960, 1970, 1975, 1980, 1985 e 1996. Pesquisa e organização de Simone Batista Ferreira
A partir desta série de dados, pode-se observar que em 1960, o número de
estabelecimentos ocupados pelas lavouras temporárias e matas naturais sobressaía em relação aos
demais usos, seguidos pelas lavouras permanentes e pastagens. As matas naturais sobressaíam
muito em área nos anos 60, enquanto as lavouras temporárias, permanentes e pastagens sempre
112
ocupavam pequenas áreas. A partir de 1975, houve um grande decréscimo do número de
estabelecimentos com lavouras permanentes e temporárias - que representam a produção agrícola
de alimentos, tradicionalmente camponesa – em decorrência da implantação dos monocultivos
do eucalipto em larga escala, mas concentrado em poucos estabelecimentos – como revelam os
dados referentes às denominadas “matas plantadas”. O crescimento da área das “matas plantadas”
é acompanhado proporcionalmente por uma grande diminuição da área e do número de
estabelecimentos com matas naturais, expressando o intenso processo de desmatamento ocorrido
principalmente a partir dos anos 70. Enquanto em 1960, as matas naturais estavam presentes em
83,68% deles e ocupavam 55,82% da área do município, em 1996, elas haviam sofrido uma
queda vertiginosa de 54,75% no número de estabelecimentos e de 42,95% na área ocupada,
restando em apenas 28,93% dos estabelecimentos e ocupando somente 12,87% da área do
município. Destaca-se, ainda, o grande aumento das áreas ocupadas pelas pastagens naturais em
1975, dado que pode ser combinado a este primeiro momento após o desmatamento (TAB. 18 e
GRAF. 12).
TABELA 18 Uso da terra (área/ha) - Conceição da Barra – 1950 a 1996
1950 1960 1970 1975 1980 1985 1996Lavoura permanente 1.751 8.241 2.419 1.027 1.237 1.108 2.231Lavoura temporária 4.555 9.113 6.289 7.328 6.714 10.200 12.559Pastagem natural 5.802 15.037 13.395 75.447 20.961 5.056 7.078Pastagem plantada 9.692 22.784 69.361 5.385 30.416 6.898 5.441Matas naturais 92.252 86.039 45.398 13.064 19.975 11.011 14.485Matas plantadas 790 2.660 2.112 11.510 30.910 14.609 33.685Terras em descanso 349 1.045 832 732Terras não-utilizadas 8.052 9.279 11.516 13.059 3.350 3.532 636Irrigação 188 14 896TOTAL 154.135 152.904 128.672 121.531 56.428 112.495 Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1950, 1960, 1970, 1975, 1980, 1985 e 1996. Pesquisa e organização de Simone Batista Ferreira.
0
10.000
20.000
30.000
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50.000
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90.000
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1 2 3 4 5 6 7
Períodos - 1950 a 1996
Área (
hecta
res)
Lavoura permanente
Lavoura temporária
Pastagem natural
Pastagem plantada
Matas naturais
Matas plantadas
Terras em descanso
Terras não-utilizadas
GRÁFICO 12 - Uso da terra (área) – Conceição da Barra – 1950 a 1996 Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1950, 1960, 1970, 1975, 1980, 1985 e 1996. Pesquisa e organização de Simone Batista Ferreira.
113
Logo abaixo seguem os dados referentes ao município de São Mateus (TAB. 19 e
GRAF.13):
TABELA 19 Uso da terra (estabelecimentos) – São Mateus – 1960 a 1996
1960 1970 1975 1980 1985 1996Lavoura permanente 2.573 1.087 886 1.602 1.835 1.988Lavoura temporária 2.930 2.267 1.905 1.496 1.671 850Pastagem natural 827 1.957 1.959 1.075 1.316 832Pastagem plantada 2.087 771 247 605 419 889Matas naturais 3.197 1.893 334 1.028 914 875Matas plantadas 463 21 7 20 20 70Terras em descanso " 956 84 222 189 303Terras não-utilizadas 486 " 1.501 557 431 232TOTAL 3.943 3.166 2.295 2.443
Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1960, 1970, 1975, 1980, 1985 e 1996. Pesquisa e organização de Simone Batista Ferreira.
0
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1.500
2.000
2.500
3.000
3.500
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Perídos - 1960 a 1996
Nú
mero
de e
sta
bele
cim
en
tos
Laoura permanente
Lavoura temporária
Pastagem natural
Pastagem plantada
Matas naturais
Matas plantadas
Terras em descanso
Terras não-utilizadas
Gráfico 13: Uso da terra (estabelecimentos) – São Mateus – 1960 a 1996 Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1960, 1970, 1975, 1980, 1985 e 1996. Pesquisa e organização de Simone Batista Ferreira
Em São Mateus, o número de estabelecimentos ocupados por matas naturais, lavouras
permanentes e temporárias sobressaía entre os demais usos na década de 1960. As áreas de matas
naturais sobressaíam nos anos 1950 e 1960, enquanto as lavouras e pastagens ocupavam
pequenas áreas. A partir de 1970, o número de estabelecimentos ocupados pelas lavouras
permanentes e temporárias começa a decrescer, sendo que as permanentes decrescem até 1975,
quando voltam a ter um crescimento, e em 1996 sobressaem em relação aos estabelecimentos
com lavouras temporárias. Estes dados indicam a diminuição dos estabelecimentos com
produção de alimentos tradicionalmente camponesa e o início de outros cultivos permanentes
realizados pela agricultura capitalista, como a macadâmia e o coco. Da mesma maneira se dá
em relação ao aumento da área ocupada pelas pastagens plantadas, referentes à criação de gado
114
de alguns fazendeiros, que em 1996 sobressaía em relação aos demais usos da terra. Quanto às
áreas de matas naturais, que ocupavam 81,08% dos estabelecimentos e 48,78% de área, tiveram
uma grande redução a partir de 1975, restando em apenas 35,81% dos estabelecimentos, onde
ocupam somente 11,15% da área do município. Este decréscimo vem acompanhado do
crescimento das áreas ocupadas pelas “matas plantadas”, num pequeno número de
estabelecimentos, dados que indicam a consolidação dos monocultivos industriais de eucalipto
sobre grandes áreas anteriormente ocupadas pela floresta e desmatadas. Também aqui,
sobretudo nos anos 1975 houve um grande aumento das áreas ocupadas pelas pastagens
naturais, o que parece revelar este primeiro momento após a derrubada da floresta (TAB. 20 e
GRAF. 14).
TABELA 20 Uso da terra (área) – São Mateus – 1950 a 1996
1950 1960 1970 1975 1980 1985 1996
Lavoura permanente 13.266 14.492 6.170 5.282 13.899 17.825 21.901
Lavoura temporária 15.284 13.523 13.085 10.218 11.020 23.439 5.141
Pastagem natural 13.495 22.456 64.028 88.772 59.680 59.610 28.998
Pastagem plantada 43.578 40.420 30.328 28.330 41.194 27.841 72.272
Matas naturais 121.890 104.852 56.404 13.959 31.285 34.795 25.037
Matas plantadas 908 9.497 560 36.535 54.134 74.867 52.162
Terras em descanso 23.285 490 2.264 3.173 2.644
Terras não-utilizadas 26.127 5.870 " 35.371 16.365 9.285 8.489
TOTAL 214.914 199.977 227.355 262.841 250.835 224.512
Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1950, 1960, 1970, 1975, 1980, 1985 e 1996. Pesquisa e organização de Simone Batista Ferreira.
0
50.000
100.000
150.000
1 2 3 4 5 6 7
Períodos - 1950 a 1996
Áre
a (h
ecta
res)
Lavoura permanente
Lavoura temporária
Pastagem natural
Pastagem plantada
Matas naturais
Matas plantadas
Terras em descanso
Terras não-utilizadas
GRÁFICO 14 - Uso da terra (área) – São Mateus – 1950 a 1996 Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1950, 1960, 1970, 1975, 1980, 1985 e 1996. Pesquisa e organização de Simone Batista Ferreira.
115
A diversidade desta Mata Tropical dos Tabuleiros – devastada, sobretudo, a partir dos
anos de 1970 - foi testemunhada pelo pesquisador Augusto Ruschi (1976), que listou 240
espécies de árvores de grande porte, 478 espécies de aves, 70 de mamíferos, 41 de répteis, 31 de
anfíbios e 37 espécies mais significativas de insetos. Dados do IPEMA – Instituto de Pesquisas
da Mata Atlântica (2004) atualizam estas pesquisas acerca da diversidade biológica do bioma
Mata Atlântica como um todo (Tabela 21):
TABELA 21 Diversidade de espécies e endemismos1 presentes no bioma Mata Atlântica
Quantidade de espécies Quantidade de espécies endêmicasPlantas vasculares 20.000 6.000Aves 620 73Mamíferos 261 160Répteis 200 60Anfíbios 280 253Total 21.361 6.546 Fonte: IPEMA. Conservação da Mata Atlântica no Espírito Santo. Vitória, março/2004.
A diversidade faunística de determinado ambiente pode ser mensurada conforme a
biomassa animal produzida. Sua diminuição após a implantação da monocultura do eucalipto
em larga escala pode ser ilustrada pelos dados oriundos de pesquisa feita por Augusto Ruschi
(1976). Ao comparar a produção de biomassa animal em ambientes diferenciados, o pesquisador
concluiu que a biomassa animal produzida pelo ambiente da monocultura do eucalipto chega a
ser bem inferior à biomassa produzida pelo ambiente dos desertos (TAB. 22):
TABELA 22 Biomassa animal produzida em diferenciados ambientes (kg/ km²/ ano)
Mamíferos AvesFloresta 400 900
Eucalipto Austrália (nativo) 600 210Desertos 100 (mamíferos e aves)
Eucalipto plantado (exótico) 20 8 Fonte: RUSCHI, Augusto. Boletim do Museu de Biologia “Prof. Mello Leitão”. Santa Tereza, 1950 e 1976.
A redução da biodiversidade pode também ser verificada pela diminuição do manto
orgânico outrora formado com os detritos da floresta. O manto orgânico é responsável pelo
retorno de nutrientes ao solo e pelo armazenamento de umidade superficial. Ao comparar a 1 Endemismo: referente à ocorrência de determinadas espécies em ambientes específicos e exclusivos.
116
floresta nativa com a monocultura do eucalipto, Ruschi afirma que na floresta nativa, o manto
orgânico varia de 60.000 a 90.000 kg/ha/ano, enquanto que no eucaliptal chega somente a 15.000
kg/ha/ano, o que reflete a diminuição da diversidade biológica e o empobrecimento dos solos.
Ainda em relação à fertilidade do solo, a monocultura do eucalipto solapa a produtividade
biológica por meio de dois processos mais acentuados em regiões áridas. Um deles é a grande
necessidade de nutrientes que o eucalipto requer para o seu crescimento rápido; o outro se
refere às propriedades alopáticas presentes em “retardadores químicos” de suas folhas, que são
tóxicos para os organismos e microorganismos – como a minhoca e outros decompositores -
responsáveis pela porosidade e permeabilidade do solo, pela decomposição da matéria orgânica
e o conseqüente retorno dos nutrientes minerais, como discutem Vandana Shiva e
J.Bandyopadhyay (1991):
Os escassos resíduos folhosos do Eucalipto não são efetivamente transformados em matéria orgânica decomposta porque o Eucalipto é tóxico para os organismos do solo que constituem as cadeias alimentares de decomposição. (...) Através dessa poluição invisível do solo, os plantios de Eucalipto destroem os recursos vivos que são elementos fundamentais da cadeia alimentar que mantém o ciclo de nutrientes. (SHIVA; BANDYOPADHYAY, 1991, p.91)
A perda de fertilidade do solo é observada empiricamente pela comunidade local e pode
ser testemunhada pela entrevista concedida por Ângelo Camillo (Caboquinho) a Simone
Ferreira, em maio de 1999:
— Eu fico olhando, depois que plantar o eucalipto, vai passar um tempo
que o eucalipto não vai dar mais, e o que vão fazer com essa terra nativa, hein ? Vai chegar um ponto que a terra não vai resistir mais, né ? (ÂNGELO)
— Por que você acha ? — Ah, ela cansa, né. Será que vai ficar abandonada ?... Ah, mas deve de
criar uma outra coisa, porque é muita terra, né ? Muita terra ela tem... O que eu sei é que vai chegar num ponto que o eucalipto não vai dar mais, não ! Já tem partes por aí mesmo que ele já tá fraco. (...) Ele já não engrossa mais. Só vara. Então, já tá começando, é sinal de que já tá começando, mesmo.
Segundo Gilsa Barcellos (2008, p. 238), “avalia-se que o atual plantio de eucalipto constitua-se
na sétima geração de árvores plantadas desde a chegada da empresa, entre rebrota e plantio, tomando
como base o ciclo de crescimento entre seis e sete anos para o corte, sem que se tenha dado qualquer
intervalo de descanso à terra entre um plantio e outro”. Esse procedimento produziu o esgotamento
do solo. O uso intensivo da terra por uma única espécie exótica, que remove os nutrientes
117
armazenados do solo e não os devolve na mesma proporção; a utilização de maquinário pesado
para o corte da madeira; o desaparecimento dos mananciais, e outras intervenções da Aracruz
Celulose/ Fibria na terra extraem as oportunidades de recomposição do solo, produzindo a
destruição de sua estrutura e composição orgânicas.
As plantações, assim como as florestas, compõem-se de árvores, mas ambas são radicalmente diferentes. Uma floresta é um sistema complexo, que se auto-regenera e que possui solo, água, microclima, energia e, ainda, ampla variedade de plantas e animais em mútua regeneração. Uma plantação comercial, ao contrário, é uma área cultivada, cujas espécies e estrutura foram dramaticamente simplificadas para produzir somente alguns produtos [...] requerem uma constante e ampla intervenção humana (MOVIMENTO MUNDIAL PELAS FLORESTAS TROPICAIS-WRM, citado por BARCELLOS, 2008, p. 239).
Corroborando essa leitura, segundo Ferreira (2002 e 2009), a vida biológica do solo também
é destruída pela grande quantidade de agrotóxicos e herbicidas utilizados no manejo da
monocultura do eucalipto, principalmente no período de plantios e rebrota, quando a planta
ainda é jovem. Destruindo a diversidade biológica, as monoculturas em larga escala também
destroem cadeias alimentares que respondem pelo equilíbrio do ecossistema, o que pode
resultar em superpopulações de algumas espécies que ficam sem predadores, como é o caso das
formigas e cupins. No caso das monoculturas de espécies exóticas, como o eucalipto, ficam mais
suscetíveis às pragas, uma vez que não possuem defesas adaptadas ao ambiente onde estão
inseridas. Na época do corte, ocorre a invasão de cupins nas construções e roças de mandioca. A
ausência de predadores naturais ao cupim, devido à destruição da diversidade da fauna,
permitiu que se desenvolvesse uma superpopulação, que passa a ter como alimento o eucalipto
e assim, a ser “controlada” através de grandes doses de insumos químicos. No período de corte
e em alguns meses subseqüentes, até que as árvores ganhem biomassa, não há alimento para o
cupim, e então ele migra para outras terras, causando grande destruição e prejuízos aos
moradores locais.
Estes fatores respondem pelo intenso uso de inseticidas, herbicidas e fungicidas para o
controle de doenças e pragas nas monoculturas em larga escala O uso desenfreado destes
insumos químicos pelas monoculturas contamina o solo, destruindo microorganismos, insetos e
raízes responsáveis por sua aeração, porosidade e decomposição dos detritos orgânicos. Desta
forma, mais fertilidade natural é perdida, uma vez que a contaminação do solo inviabiliza a
formação de húmus.
No solo, outro impacto provocado é de ordem estrutural, aumentando a sua
suscetibilidade à erosão: os troncos lisos do eucalipto, combinados a uma cobertura restrita –
118
menos estratos que a floresta tropical - contribuem para que a precipitação atinja o solo mais
intensamente e mais rapidamente. Aumentando a erosão do solo, produz-se o assoreamento
dos cursos d’água. Este processo erosivo foi intensificado ainda mais pelas obras estruturais
construídas para dar sustentação à implantação da monocultura e seu escoamento: aterros,
estradas e a substituição das pontes de madeira por manilhamentos. Podemos verificar tais
informações na entrevista concedida por Umberto Batista do Nascimento a Simone Ferreira, em
setembro de 1999:
— A terra que eles araram, aí a chuva batia e acabou com o leito dos córrego (UMBERTO).
— Por quê? — Porque jogou o barro tudo dentro do córrego. — Eles tiraram a mata que tinha em volta dos rios? — Tiraram. Pois é, aí é o barro descia, né, e vinha indo, foi indo, foi
secando, foram fazendo aterro no meio dessa estrada aí, como era tudo ponte antigamente, nessa estrada pra chegar na Barra, esses correguinho era tudo ponte. Então, o córrego passava por baixo, né. Aí jogaram aquele buero, né, fazia aquele buraquinho, jogava terra pra cima do córrego, tampou.
— De quando é esse aterro aí ? — Ah, isso aí, isso aí tem uns...20 e poucos anos, já, que acabaram com eles,
essas...as pontezinha. — Mas foi a Aracruz que fez o aterro ? — Prefeitura, né, e a Aracruz veio e...a Aracruz tirou as ponte, veio e jogou
terra.
FOTO 11 - Córrego do Conrado (afluente do São Domingos) no trecho à beira da rodovia ES-010, onde pode ser observado o represamento, a erosão e deposição de sedimentos da estrada e, ao fundo, o plantio de eucalipto em suas margens. Comunidade Linharinho. Coordenadas E0417305 W 7953517. (Simone Ferreira, novembro/ 2004).
Em entrevista concedida a Gilsa Barcellos em dezembro de 2009, uma liderança da
comunidade quilombola de Linharinho relata as transformações provocadas nos cursos d’água
pelas obras realizadas na estrada (atual ES-010), direcionadas à circulação das carretas
transportadoras de eucalipto:
— Essa estrada aqui foi feita por quem? — Pelo Estado. Aqui era uma ponte de madeira e depois a Aracruz
precisava transportar o eucalipto e a ponte era muito fraquinha, aí eles
119
colocaram manilha e manilharam o rio e fizeram a estrada. (LIDERANÇA).
— A área que a Aracruz ocupa aqui é de quem? — É toda da comunidade, é toda da comunidade. Mas o que tinha ali era
pontes de madeira., mas, depois, com o monte de eucalipto, tinha muitas carretas, aí a Aracruz veio, foi tirando as pontes e colocando manilhas nos córregos. Aí matou os córregos mais ainda. Eles aterraram muito pra ir colocando as manilhas e isso prejudicou os córregos mais ainda. Porque a água chegava e não tinha passagem suficiente pelas manilhas e isso foi acabando ainda mais com os córregos. Na região aqui, a seca é gritante mesmo. Aqui você não consegue plantar mais por causa da seca. Quando chove um pouco [tem água], mas a água seca logo. Quando a mandioca começa a crescer, ela pára porque não tem água suficiente. Quando ela consegue crescer, aparece o cupim que vem do eucalipto e come a mandioca toda. É um cupim transgênico e aí você não consegue produzir nada. Se não abrir uma área nas comunidades mesmo, é muito complicado pra você produzir.
Na rodovia ES-010, após as obras direcionadas ao transporte das toras de eucalipto da
Aracruz Celulose, os córregos perderam suas pontes de madeira e alguns poucos receberam
pontes de concreto sobre seus leitos. O córrego São Domingos é um dos poucos que recebeu
pontes, devido à extensão de sua área de inundação, que não comporta aterros e nem
manilhamentos. Destas pontes, podem-se avistar as más condições deste córrego, onde se
destaca seu escasso volume de água e a perda de espécies de peixe, conforme relatado da
liderança quilombola da comunidade de Linharinho, em entrevista concedida a Gilsa Barcellos
(2009):
— Como é o nome desse rio? — É o Córrego São Domingos. Ele desemboca no Rio Cricaré. — Esse rio, olha as condições de como ficou esse rio. — Este rio aqui era muito forte. Aqui nem as crianças podiam tomar banho
porque era fundo e a água era muito forte. A gente pegava o bote e pescava muita raça de peixe, colocava a rede pra pegar peixe e deixava no máximo dois dias e a rede ficava cheia de peixe.
— A gente pescava Traíra, Jundiá, Morobá, Piabanha, Piau. Tinha muita Piabanha. Hoje a Piabanha tá extinta. Até siri você pegava nesse rio. Hoje, praticamente você encontra algumas trairinhas. Praticamente acabou o rio. Isso aqui, se não der uma chuva aqui em janeiro e fevereiro, você vai topar o rio seco de novo. De uns tempos pra cá, quando demora chover, o rio seca.
120
FOTO 12 - Ponte de concreto construída sobre o Córrego São Domingos, na rodovia ES-010, trecho entre Conceição da Barra e Itaúnas. (Winfridus Overbeek, dezembro/ 2009).
FOTO 13 - Da ponte construída sobre o Córrego São Domingos, pode-se observar seu escasso volume de água. (Winfridus Overbeek, dezembro/ 2009)
FOTO 14 - Córrego São Domingos, na comunidade de Linharinho. Winfridus Overbeek (dezembro/ 2009).
A situação hídrica do córrego São Domingos é resultante, também, das alterações
sofridas pelos pequenos córregos que nele deságuam, como o córrego Água Branca, cuja
situação é relatada por uma liderança da comunidade de Linharinho, em entrevista concedida a
Gilsa Barcellos (2009):
— Que córrego é este aqui? — Córrego da Água Branca. A água dele era tão branquinha que a maioria
do pessoal da comunidade pegava água aqui. A gente brincava muito, as
121
mulheres lavavam a roupa, porque a água dele era muito branquinha. A gente tomava banho também aqui. Quando eu era criança, eu e as crianças da comunidade brincava muito aqui. Ele tinha muita água, mas muita erosão foi aterrando ele aí e aí ficou do jeito que tá (LIDERANÇA)..
— Quando o córrego começou a ser degradado? — Foi mais ou menos em 70, com o desmatamento, foi muito grande na
região e o plantio de eucalipto, os córregos começaram a secar. Ele só tem água quando chove muito, aquela enxurrada mesmo, mas com dois ou três dias, ele tá seco de novo. A partir da década de 70 pra cá, as coisas foram mudando, né, o desmatamento foi muito grande aqui. Aqui a gente não tem água mais [...]. Na cabeceira dos córregos, nas nascentes, você pode ir lá em cima que tá tudo tomado de eucalipto. Aí mata a cabeceira lá, aqui pra baixo... Mata o córrego aqui embaixo. Se for olhar... olha que monte de terra que vem. Ela só tem areia.
Em toda sua extensão, da nascente até desaguar no São Domingos, o córrego da Água
Branca apresenta uma gama de alterações provocadas pela implantação dos plantios industriais
de eucalipto: desmatamento na cabeceira; barramento, manilhamento e assoreamento
provocados pela estrada ES-010 (conforme verificado nas fotos seguintes).
FOTO 15 - Cabeceira do Córrego da Água Branca, onde se nota a ausência da vegetação nativa e a presença de árvores de eucalipto. Comunidade Linharinho. (Gilsa Barcellos, dezembro/ 2009)
FOTO 16 - Córrego da Água Branca, com plantios de eucalipto em sua margem e represamento provocado pela ES-010. Comunidade Linharinho. (Simone Ferreira, novembro/ 2004).
122
FOTO 17 - Córrego da Água Branca, lado direito sentido Conceição da Barra-Itaúnas, Comunidade Linharinho, com acúmulo de sedimentos (assoreamento). (Winfridus Overbeek, dezembro/ 2009)
Além do córrego da Água Branca, diversos outros afluentes do São Domingos
encontram-se bastante impactados, como é o caso do córrego do Caboclo, cujas cabeceiras
encontram-se profundamente alteradas pelos monocultivos industriais de eucalipto da Aracruz
Celulose/ Fibria (conforme verificado nas fotos seguintes).
FOTOS 18 e 19 - Cabeceira alimentadora do Córrego do Caboclo, afluente do São Domingos, onde se observa o plantio de eucalipto submerso em cerca de 1 metro na água (dezembro/2001). Em outro momento (janeiro/ 2003), os troncos de eucalipto cortados e rodeados de água, devido ao afloramento do lençol freático por ocasião das chuvas, que testemunham o plantio anterior. Coordenadas: E 0415436 W 7947647 . (Simone Ferreira, dezembro/ 2001 e janeiro/ 2003)
123
FOTOS 20 e 21 - Canal de drenagem construído à jusante de zona alagadiça que corresponde à cabeceira alimentadora do Córrego do Caboclo, onde foi plantado o monocultivo do eucalipto. Estas obras são feitas visando à drenagem e o escoamento desta água para as zonas de menor altitude e, assim, a continuidade dos plantios nestas áreas de cabeceira. Coordenadas: E 0414851 W 7947405. (Simone Ferreira, outubro/ 2003, e Sandro Silva, outubro/ 2003).
Estas alterações profundas na cabeceira do córrego do Caboclo e de outros córregos
interferem no comportamento hídrico do São Domingos, conforme testemunha Ledriando
Manoel Maria, liderança da comunidade de São Domingos, em entrevista concedida a Gilsa
Barcellos (2009):
— Qual o nome deste rio, Ledriando? — Este é o Córrego São Domingos. (LEDRIANDO). — E as condições de córrego hoje? — Á água dele vinha aqui onde nós tamos. Aconteceu que secou tudo. Tá
com essa aguinha aí que é provisória. Deu essa chuvinha na cabeceira e veio essa aguinha que tá aí e que é provisória, mas você não pode beber essa água; tomar um banho ainda você pode tomar, mas beber, tomar ela, você não pode.
124
FOTO 22 - Córrego São Domingos, na comunidade de São Domingos. (Winfridus Overbeek, dezembro/
2009).
— O que alterou o rio, Ledriando? — A partir do desenvolvimento, do crescimento do eucalipto, que foi
crescendo. Esse córrego aqui, nós aprendemos a nadar aqui. Isso aqui era tudo água, aí, isso aí que você tá vendo aí, eu cansei de pegar peixe pra passar a semana todinha, hoje não tem mais. Pegava a rede, armava a rede daqui e ia até naquele canto, porque você não pode botar a rede no meio da correnteza; quem pesca sabe disso. Eu colocava na beira do mato, então no outro dia você encontrava Piau, Traíra, Curumatã. Coloca hoje? Hoje, você não pesca nada, às vezes, uma Traíra, às vezes um Morobá, mas ele é um peixe muito sabido. Hoje ele tá com essa aguinha aí,olha a grota aí, o normal dele era essa barreira aí.
FOTO 23 - Córrego São Domingos, na comunidade de São Domingos. (Winfridus Overbeek, dezembro/ 2009).
— Quantos córregos foram comprometidos aqui em São Domingos? — Não dá pra contar, não dá pra contar. Aqui tem vários. Eu tive até com a
Simone, já mostrei vários. Ali no Córrego dos Pretos tem umas quatro vazantes que já secaram. Daqui... pra amenizar a conversa, daqui até São Mateus, no Rio Cricaré, são vazantes e corguinhos, despejando um no outro. Daqui até o Rio Preto, a mesma coisa, vazantes e corguinhos, tá tudo seco. Sem contar as lagoas, as lagoas que eram muito grandes, era aquela imensidão de água, tá tudo seco, não tem mais nada. Depois da chegada do eucalipto, secou tudo.
125
Assim como o São Domingos, numerosos outros córregos do Sapê do Norte encontram-
se profundamente alterados pelo manejo realizado pelas empresas - não só nos plantios
industriais de eucalipto, mas também de cana - como é relatado por uma liderança da
Comunidade de Roda D’Água, em entrevista concedida a Gilsa Barcellos (2009):
— Que córrego é esse? — É o Córrego da Pindoba. Aqui tinha uma represa, mas pocou. Olha lá
onde era o corguinho. Menina, deu uma enchente aqui, eles aterraram o córrego e colocaram um cano aqui, e aí deu uma enchente aqui e foi quebrando tudo. (LIDERANÇA)
— Quem aterrou o córrego? — Foi a Disa. Eles aterraram tudo e usaram o aterro como estrada. Depois
veio a enchente e acabou com o aterro todo, mas o córrego acabou. Ele aqui era uma nascente, saía de baixo da terra, mas agora acabou tudo, secou. Essa água era tão alvinha, as crianças brincava nele. Aqui perto era tudo roça. Meu pai, meus irmão faziam roça aqui perto, era mandioca, banana, era muita plantação.
— O Córrego Piaba passar por onde? — Ele vem de lá de cima dessas comunidades, pra lá muito desse asfalto, lá
pra cima, desce e aí ele esgota no rio Santana. — Então, este aqui foi manilhado. E as outras duas represas, por que elas
existem? — As outras represas... Eles represaram também, os outros córregos
também foram represados. — Quem represou? — A Aracruz represou pra molhar o eucalipe. Eles eram limpinhos. — Quais eram os córregos? — Um foi o Córrego Fundo e outro era o Córrego da Pindoba. — Há quanto tempo foi feita a represa? — Tem mais de 20 anos, tem uns 20 anos por aí que eles fizeram.
FOTO 24 - Córrego da Pindoba, na comunidade de Roda D’Água. (Winfridus Overbeek, dezembro/
2009).
126
FOTO 25 - Córrego da Pindoba, na comunidade de Roda D’Água. (Winfridus Overbeek, dezembro/ 2009).
Muitas vezes, o represamento dos cursos d’água resulta da construção das estradas
destinadas à circulação de carretas transportadoras de eucalipto e cana, que não oferecem
manilhamentos satisfatórios à vazão dos cursos d’água. Em outros casos, as represas são
construídas pelas empresas visando à captação de água para molhar e aplicar agrotóxicos nos
plantios. Assim relata uma liderança da Comunidade de Roda D’Água, na entrevista concedida
a Gilsa Barcellos (2009):
— E este córrego aqui, qual o nome? — Esse é o Córrego Fundo. Ele escorre até aquele córrego onde a gente
tava. Ele tá secando. Eles represaram aqui pra pegar água. O pessoal da Aracruz bota aqui um caminhão, bota aqui um tanque, bota um motor e fica aqui tirando água, tirando água pra molhar o eucalipe lá, a água boa pra gente molhar uma roça, molhar uma horta. Antigamente era um corguinho e tinha uma pinguela e a gente atravessava pro lado de lá. Depois, a Aracruz aterrou e fez essa estrada aqui. A água só passa por essa manilha fina aí (LIDERANÇA).
— Essa mata aqui é mata original? — Não, isso é acácia. Ela tirou toda a mata em volta do córrego e depois,
muito tempo depois, plantou esse monte de acácia aí. Por que não plantou uma fruta, uma goiaba, coisas que a comunidade podia usar? Eles plantaram essa acácia aí. Essa represa secou duas vezes. Depois que plantou eucalipto, ela secou.
127
FOTO 26 - Represamento do Córrego Fundo, na comunidade de Roda D’Água. (Winfridus Overbeek, dezembro/
2009).
FOTO 27 - Represamento do Córrego Fundo, na comunidade de Roda D’Água. (Winfridus Overbeek, dezembro/ 2009).
FOTO 28 - Represamento do Córrego Fundo através da estrada construída pela Aracruz Celulose, na comunidade de Roda D’Água. (Winfridus Overbeek, dezembro/
2009).
— Antigamente aqui tinha um córrego fundo e a água ia até lá em cima e ela tocava a roda da água da casa de farinha. A gente plantava dois alqueires de plantação de mandioca. Era muita farinha que dava. E todo
128
mundo ia lá relar a farinha. Toda a comunidade usava a casa de farinha. Enquanto um fazia farinha, outro fazia beiju. A gente vendia era muita farinha, muita, muita farinha. Depois que a Aracruz chegou, a casa de farinha acabou.
FOTO 29 - Manilhamento do Córrego Fundo sob a estrada construída pela Aracruz Celulose, na comunidade de Roda D’Água. (Winfridus Overbeek, dezembro/
2009).
FOTO 30 - Situação do Córrego Fundo à jusante do manilhamento sob a estrada construída pela Aracruz Celulose, na comunidade de Roda D’Água. (Winfridus Overbeek, dezembro/ 2009).
No Córrego São Domingos e em diversos outros cursos d’água, os impactos oriundos do
manejo dos plantios industriais de eucalipto somam-se ao comportamento biológico das
espécies plantadas na escala dos monocultivos e nos curtos ciclos de corte, evidências
estampadas no meio físico e reforçadas pelos depoimentos das comunidades locais. A escassez
hídrica é uma delas. Segundo Simone Ferreira (2002), a vivência da seca produzida nos
ecossistemas onde o eucalipto foi plantado em larga escala e em curtos períodos de corte é
relatada em algumas pesquisas. Shiva et al. (1991) afirmam que o eucalipto possui sistemas
radiculares bem abrangentes, que são responsáveis por sua “estratégia esclerofítica”:
Esta estratégia esclerotífica do Eucalipto, de dar continuidade a altas taxas de transpiração mesmo durante períodos de tensão temporária da umidade, é um perigo ecológico, pois permite ao Eucalipto crescer sob condições nas quais
129
outra vegetação, com necessidades hídricas similares, pararia de demandar os escassos recursos de água (SHIVA et al., 1991, p.74)
Esta argumentação é reforçada por Augusto Ruschi, citado por Medeiros (1995),
segundo a qual o “consumo monumental de água” realizado pela monocultura do eucalipto é
responsável pela deficiência hídrica verificada nas localidades do Espírito Santo onde se
estabelece:
Como já explanei em outras palestras, a fisiologia de algumas espécies, como o Eucalyptus saligna, o mais plantado no Espírito Santo, exige um consumo monumental de água. [..] a partir do terceiro ano de vida uma planta desta espécie consome por ano 19,6 milhões de litros de água, e um hectare com 2.200 árvores consome 49,6 bilhões de litros de água, dando esse total uma equivalência pluviométrica de 4.000 mm de chuva por ano. Se considerarmos que na região dos eucaliptais da Aracruz Celulose e da CVRD ou Flonibra a precipitação anual chega em média a 1.400 mm/ano de chuva, a diferença necessária de mais de 2.000 mm é retirada do solo e subsolo, tanto pela função osmótica como pela função de sucção das raízes. (RUSCHI citado por MEDEIROS, 1995, p.60)
Neste sentido, a observação do crescimento rápido e interrupto da monocultura do
eucalipto, mesmo durante períodos com carência de chuvas, indica que o consumo hídrico
continua a ser realizado pela planta jovem, seja no nível mais superficial do solo ou em
profundidades maiores, o que sustenta a argumentação sobre as “estratégias esclerofíticas”. Dessa
maneira, ao ser plantado ao redor de corpos d’água, o eucalipto passa a consumir a umidade
local de forma intensa, não desempenhando a função de proteção das matas ciliares.
Quando a vegetação é retirada dos cursos d’água, os deixa diretamente expostos ao calor
e evaporação, fato que consuma a morte de nascentes e cabeceiras que alimentam os córregos e
rios maiores. Este processo é agravado pelos curtos ciclos de corte da monocultura do eucalipto,
uma vez que esta periodicidade não permite que a árvore adulta diminua seu consumo hídrico
e nem devolva umidade ao ambiente. Nos municípios de Conceição da Barra e São Mateus,
diversos córregos encontram-se cobertos pelos plantios de eucalipto, o que resulta na
diminuição de sua quantidade de água, conforme testemunhado na entrevista concedida por
Ledriando Manoel Maria a Simone Batista Ferreira, em outubro de 2005:
- Hoje, quase num chove mais, mas na época que chovia, aqui tudo corria peixe, isso aqui, ó, animal atolava, você pode ver aqui, aí ó, você tá vendo, ela foi embora, parou aí. Será que eles têm como provar que isso aqui não é a vazante do rio que esgota no Córrego dos Pretos? Isso aqui, ó, num precisa 50, não, 20 anos atrás isso aqui corria água direto! Isso aqui, ó, é local da água. Vem aqui e corta um pé desse, de eucalipto, que vem a VISEL e fala, e prende o
130
cara, dizendo que num tá tendo respeito. Qual respeito que tá tendo aqui? (LEDRIANDO)
FOTO 31 - As nascentes do Córrego dos Pretos/ Negros, afluente do São Domingos, foram ocupadas pela monocultura do eucalipto da empresa Aracruz Celulose S.A. A ausência da mata ciliar faz com que a nascente não consiga armazenar e fazer fluir a água que ainda brota. Comunidade São Domingos. Coordenadas: E 0405660 e W 7948487 .
(Simone Ferreira, outubro/ 2005)
FOTO 32 - Cabeceira do Córrego do Ricardo (afluente do córrego do Angelim), coberta pelo plantio de eucalipto e aflorando água em decorrência das chuvas abundantes. Coordenadas: S 18° 28’28.3” e W 39° 46’46.7”. (Simone Ferreira, fevereiro/ 2001).
Também na Comunidade Angelim 1, Terezino Trindade relata que a degradação
provocada no Córrego do Angelim que alterou profundamente seu modo de vida, em
entrevista concedida a Gilsa Barcellos (2009):
— Que córrego é este, Terezino? — Córrego Angelim. Ele passa lá na Angelim Disa, Córrego do Macuco,
vem descendo, passa por diversas comunidades e aqui é a última comunidade antes de eles desaguar no Rio Itaúnas. Aqui tá bem perto da foz do córrego. Ele sofreu muitos impactos, não só da Aracruz, mas de todo os grandes negócios que tiveram aqui na região. Em 97... 95, teve uma grande quantidade de morte de peixe, morreu muito peixe com veneno da Disa na água que desceu das enxurradas. Morreu muita quantidade de peixe. Foi uma coisa impressionante. Hoje a gente vê a situação do córrego, a gente não vê aquela quantidade de peixe que tinha, a gente não vê nada. Esses barrigudos aí voltou há poucos dias. Até os barrigudos morreram. Foi um tempo aqui que não tinha nem Piaba. A própria natureza é que tenta se recuperar, apesar dos adubos químicos que as empresas usam (TEREZINO).
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FOTO 33 - Córrego do Angelim, na comunidade de Angelim 1. (Winfridus Overbeek, dezembro/ 2009).
— Essas mudanças, de que forma afetam a vida de vocês? — Afeta muito, né, porque o córrego que nós tinha, era uma referência pra
segurança alimentar. Se faltava alguma coisa em casa, nem chegava a faltar, porque a gente sabia onde procurar, onde recorrer, então não era assim: hoje eu não tenho um alimento, porque você podia contar que você tinha. Sem falar na água que os animais bebiam. Hoje bebe, mas não é uma água sadia, nem pra fazer as coisas assim mal, mal, às vezes tem que deixar dar uma chuvada pra limpar, porque tem uma água mais preta, tem que dar aquela chuvada pra descer pra água, pra poder usar e ter uma forma de lavar uma roupa. Então, isso afeta diretamente a comunidade, a gente vê a questão mesmo da alimentação, a escassez, não tem mais a quantidade de peixe e isso faz até com que as pessoas desista de morar na roça porque não tem um peixe, não tem caça (TEREZINO).
FOTO 34 - Córrego do Angelim, na comunidade de Angelim 1. (Winfridus Overbeek, dezembro/
2009).
— A água que vocês consomem vem da onde? — Da cacimba. Usa a água do poço pra tudo. A verminose sempre ataca, em
geral, os adultos (TEREZINO). — Este rio era maior, mais profundo? — Era profundo, tinha um volume de água muito maior (TEREZINO). — De dois anos pra cá ele secou muito (ANTÔNIO). — Ele tava bem mais seco, mas depois desceu uma água aí, choveu, aí
aumentou a quantidade de água. Quando ocorre uma seca, ele fica com
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bem pouca água, só quando chove é que ele aumenta o volume de água (TEREZINO).
— Tem que começar a fazer alguma coisa agora, é urgente e em todo o território quilombola. Tem que fazer um trabalho nas nascentes, tem muita nascente que foi aterrada, que plantaram muito eucalipto. Tem que recuperar os córregos começando pelas nascentes (ANTÔNIO).
— Aqui há outros córregos? — Tem outras nascentes que foram bastante afetadas (TEREZINO). — Eles plantaram eucalipto no entorno da nascente, Terezino? — Do outro lado tem bastante eucalipto plantado, né (TEREZINO). — E o Ibama ou o Iema fizeram alguma coisa para impedir isso? — Não, nunca fizeram nada (TEREZINO). — Eu vim aqui e tava seco. Agora tem água porque choveu muito.
(ANTÔNIO) — Tava seco, só tinha um pouquinho de água. Aqui é uma nascente que
deságua lá no Angelim. Mas vai pouco porque a água foi represada (TEREZINO).
— Tem aterro, Terezino? — Tem um aterro ali na frente da Aracruz. Aí tem um aterro que não deixa
a água escoar com facilidade. Só no período de corte do eucalipto, aflora a água. E quando chove é que tem água. Porque quando tem o eucalipto aí, a nascente seca porque o eucalipto suga muita água (TEREZINO).
FOTO 35 - Represa construída pela Aracruz Celulose na nascente de um afluente do Córrego do Angelim, na comunidade de Angelim 1. (Winfridus Overbeek, dezembro/ 2009).
Além da água, estes corpos d’água constituíam referências de alimento às comunidades
negras rurais do Sapê do Norte, como era a Lagoa do Castelo, segundo Vermindo dos Santos,
da Comunidade de Linharinho, em entrevista concedida a Simone Batista Ferreira, em
novembro de 2004:
— E essa lagoa aqui, do Castelo, você falou que ela era bem grande, né? — Era bem grande, era rica de peixe essa lagoa. Eu conheci aqui, eu tinha
uns 12 anos, mais ou menos...não, acho que eu era mais novo, mas eu conheci aqui, tinha, depois que a Aracruz plantou o eucalipto, o pessoal plantaram o eucalipto, assim mesmo ela continuou ela aqui, foi acabando aos pouco, né, eu conheci ainda ela aqui, com eucalipto assim mesmo, mas tinha bastante água, bastante peixe, traíra dava era muito aqui! (...) Deságua no Córrego da Lora. (VERMINDO)
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— Então, faz quanto tempo que ela tá seca assim? — Ah, tem muito tempo, né, depois que o eucalipto pegou, que eles
plantaram o primeiro corte do eucalipto aqui, depois de uns 10 ano que eles plantaram o primeiro corte, aí a lagoa foi só acabando... e acabou. Tem muito tempo, já, que tá assim.
FOTO 36 - Vista da Lagoa do Castelo, sem água e rodeada pelo plantio de eucalipto. Dela desponta a cabeceira de um córrego que deságua no Córrego da Lora, Comunidade Linharinho. Coordenadas S 0413227 W7950489. (Simone Ferreira, novembro/ 2004).
Além da Lagoa do Castelo, diversas outras se encontram em estado de degradação, em
função da ausência de matas ciliares, substituídas pelos monocultivos industriais de eucalipto
da Aracruz Celulose/ Fibria – como, por exemplo, a Lagoa do Mulato, do Serra, do Engenho, do
Edísio, dos Gracianos, dentre outras (conforme registrado pelas fotos a seguir).
FOTO 37 - Lagoa do Mulato, com plantio de eucalipto em suas margens e água em decorrência de chuvas intensas. Comunidade Angelim. Coordenadas: S 18° 26’ 02.07” e W 39° 43’ 49.9” . (Simone Ferreira, novembro/ 2004).
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FOTOS 38 e 39 - Lagoa do Serra (Bacia do São Domingos), rodeada pelo plantio de eucalipto (novembro/ 2004) e em momento posterior ao corte (2001). Coordenadas: S 18º 34’ 51.8” e W 39º 51’ 56.5” (Simone Ferreira, novembro/ 2004 e 2001).
FOTO 40 - Lagoa do Engenho represada pela estrada, rodeada pelo plantio de eucalipto, com pouca quantidade de água e muita vegetação em seu interior. Comunidade Linharinho. Coordenadas: E 0416666 W 7948536. (Simone Ferreira, novembro/ 2004)
— Aqui era a Lagoa do Engenho. Essa lagoa, a gente vinha com a rede de arrasto, ia pra lá, umas duas, três vezes, quando voltava, tava com um saco de peixe! E hoje, você encontra aí, tá tudo seco, tudo acabado! (VERMINDO, 2004).
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FOTO 41 - Lagoa do Edísio (Cabeceira do Córrego Angelim), com plantio de eucalipto em suas margens e seu interior. (Simone Ferreira, novembro/ 2004)
FOTO 42 - Lagoa dos Gracianos (bacia do São Domingos), rodeada pelo plantio de eucalipto. Comunidade São Domingos. Coordenadas: E 0406407 W 7948585 (Simone Ferreira, outubro/2004)
Segundo Ferreira (2009), várias lagoas foram aterradas e deram lugar aos plantios de
eucalipto. Isto reflete no déficit hídrico da própria lagoa e também dos córregos, uma vez que
algumas delas funcionam como zonas de recarga hídrica, responsáveis pelo abastecimento de
outros cursos d’água superficiais e subterrâneos, conforme bem observa Seu Benedito Bernardo
Serafim, 64: “a Aracruz fez sangria das lagoas, para ganhar mais terra, e agora a água das chuvas desce
direto, não enche as lagoas” (09.09.2005). Ou seja, para aumentar sua área de plantio, a empresa
ARACRUZ CELULOSE S.A. abriu canais de drenagem nas lagoas, diminuindo seu espelho
d’água e aterrando as áreas próximas às margens. Este fato também é relatado por Seu
Domingos Ayres de Farias, 68, ao relembrar a destruição da fartura de outrora, em entrevista
concedida a Simone Batista Ferreira, em outubro de 2005:
— É, as lagoa, como tinha antigamente, que tinha muita criação, era gado, era de tudo! Porco, animal cavalar, tinha muito bicho que bebia água, naquelas lagoa, entonce agora acabou, porque a Aracruz tomou conta, as firma foi tomando conta, acabando, aterrando, por causa daqueles lixo que jogava, daqui a pouco a gente nem não acha mais o lugar, que ela aterrou tudo! Virou tudo aquela floresta. De eucalipto. Aquelas caça, muito jacaré, irerê, qualquer passarinho tinha, era bando de fazê nojo! (...) E hoje acabou isso tudo! E hoje a pessoa tá vivendo, num tem jeito,
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mas tudo apertado por causa dessa firma. Acabou peixe, acabou tudo. Esses brejo, aí, como eu vi, mesmo, que a gente ia lá por esses brejo que tem aí, qualquer hora, vinha aqueles nojo de peixe, que água abaixo, água acima, que se quisesse matar, era de repente, matava ali um, uma moqueca que dava uns 20 quilo, uns 15 quilo, que você ficava satisfeito, que num pescava direto, né, era só quando queria mesmo comer um peixe, era rapidamente. Quer dizer que isso aí acabô. Né, num tem mais. Secô, aterrô, né... Tem lugar que a gente via, que era fundo, hoje, qualquer uma criança passa, porque acabô, o aterro com essas ponte, essas valeta que eles abriram no morro, só dá puxada da água e levar aquele lixo pro meio do brejo. Que plantaram eucalipto na beirinha da varge do brejo, naquele lugar, quase na lama, né, então aí já tá chão duro, num tem jeito mais de colocar mato (DOMINGOS).
FOTO 43 - Lagoa do Braga, que alimentava o Córrego São Domingos, era habitada por uma grande quantidade de jacarés, irerês e peixes, e hoje se encontra aterrada: “Era enorme. Hoje em dia, acabou tudo. Tudo.” Comunidade São Domingos. Coordenadas: S 0402996 W 7946612.. (Simone Ferreira, novembro/ 2005).
Outras lagoas encontram-se bastante degradadas e cobertas de vegetação, o que revela a
pequena quantidade de água e a baixa oxigenação, como a Lagoa dos Gracianos, a Lagoa do Zé
Vicente, a Lagoa do Sossego, dentre outras. Seu Domingos Ayres de Farias, 68, também
testemunha os aterros e drenagens que foram feitos ao redor das lagoas, para inserir a
monocultura de eucalipto, em entrevista concedida a Simone Batista Ferreira, em outubro de
2005:
— E aqui vocês também pegavam, vocês caçavam, pescavam? — Não, pescar num pescava, não. Que era mata, né. Na mata. Era bom, aí o
véio Milton morava lá, aquele eucalipto véio lá era o veio Milton Esteves. Rumo com nóis, também. Rumo com meu avô, com esse povo, né. Aí tinha essa lagoa aqui, do Zé Vicente. Agora, ela vazou muito, porque a firma cavou uma vala de lá até lá embaixo pra sair a água. É, cavou uma vala. Depois, foi tudo aterrado, a vala (DOMINGOS).
— Quando que foi feita essa vala? — Ah, já tem na base de uns, uns dois ano. — Foi a DISA que fez isso ou foi a Aracruz? — Não, aí a vala, quem fez, já foi a DISA, né. Já a Aracruz só foi
empurrando, assim, e jogando terra lá dentro. — A Aracruz foi empurrando...
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— É, a Aracruz só veio empurrando, assim, aterrando, pra poder plantar eucalipi.
Juntos, comportamento biológico e manejo efetuado nos monocultivos de eucalipto
respondem pela deficiência hídrica produzida na região de Conceição da Barra e São Mateus.
Qualquer comparação entre o ambiente deste monocultivo e a floresta tropical originária
demonstrará uma extrema diferença entre seus balanços hídricos. A floresta produz mais
umidade através da evapotranspiração e armazena mais devido à presença de um manto orgânico
espesso que cobre seu solo, além das matas ciliares que protegem as cabeceiras e cursos d’água.
O monocultivo de eucalipto armazena menor umidade, pois seu manto orgânico é menor e
bastante degradado pelos agrotóxicos, e as cabeceiras de córregos e rios encontram-se
descobertas da vegetação ciliar. Ademais, o momento do corte do eucalipto acontece quando a
árvore é ainda jovem – por volta de cinco anos – e grande consumidora de água e nutrientes,
não possibilitando que parte deste consumo retorne ao ambiente, em sua fase adulta. Neste
sentido, a relação entre produção, consumo e armazenamento de umidade pelo monocultivo de
eucalipto resulta num balanço hídrico negativo.
Outro impacto sofrido por estas áreas refere-se à extração de areia para a manutenção das
estradas. De substrato podzólico, as muçunungas são ricas em areia e muitas vezes se
transformam em jazidas exploradas pelas empresas produtoras de eucalipto e cana,
principalmente no período de corte, quando as estradas são intensamente utilizadas. Esta
extração mineral produz mais um impacto no comportamento hídrico das lagoas, conforme
apontado por Seu Ledriando Manoel Maria, 53, em entrevista concedida a Simone Batista
Ferreira, em outubro de 2005:
— Não, isso aqui era uma lagoa. Aqui tinha morador vizinho, distanciado
de 5 km, 3,4, mas na beirada dela, não, ela era um deserto, assim. (...) Tinha a pastagem dos animais. Todo mundo, na época, criava os animais solto. Aí era bebedor d’água de animal... (LEDRIANDO)
— E o senhor chegou a ter cria de animal? — Aqui? Os meus antepassado tiveram, né. É que na época, eu era ainda
menino. E depois, quando eu já fiquei adulto, também, eu alcancei isso aqui. Foi na época, depois do devastamento, de 70 pra cá, mas e a área era muito grande, que os animais que pastavam aqui era os animais de mais perto. Dos morador mais próximo. A gente já, os animais ficava pra lá.
— E o senhor chegou a pescar nessa lagoa, vir aqui? — Não, não. Eu passei aqui de passagem. Tinha passagem. — Mas, tinha água nessa época, ainda, ou o senhor já pegou ela seca? — Tinha! A gente passava a cavalo aqui, se o animal fosse baixo,
molhava. Tinha que levantar os pés, outras vez molhava até no meio
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da cela ou da cangalha, molhava. Se o animal fosse alto, a gente, com um pé no estrivo, ou pendurado...
— Dava pra seguir... — Dava pra seguir, aí molhava só os pés. Tinha água, aqui!
Aliadas à memória de Seu Ledriando, as fotos da Lagoa dos Paus testemunham o
processo de degradação dos recursos hídricos. A Lagoa dos Paus era bebedor de água de
animais e para atravessá-la a cavalo, molhavam-se os pés. Atualmente, a presença de água
encontra-se abaixo da superfície do solo (Foto).
FOTO 44 - Extração de areia da Lagoa dos Paus (bacia do São Domingos), onde se pode observar seu espelho d’água e o plantio de eucaliptos jovens em sua margem. Comunidade São Domingos. Coordenadas: S 0407631 W 7952442. (Simone Ferreira, outubro/ 2005).
Da mesma maneira que comprometem a quantidade da água no Sapê do Norte, os
plantios industriais de eucalipto para a produção de celulose vêm danificando a qualidade
desta água. A aplicação indiscriminada de agrotóxicos no solo atinge o leito dos rios, córregos e
lagoas, contaminando suas águas, principalmente nos períodos de chuva. Assim relata uma
liderança da comunidade de Linharinho ao se referir ao Córrego São Domingos, em entrevista
concedida a Gilsa Barcellos (2009):
— Por que a água está escura assim? — Olha, este rio sempre foi um rio muito bom, muito peixe que dava. E
hoje, se você observar, você vai ver que ele tá todo aterrado. Então, antes não tinha nada disso e hoje quando chove não tem nada que segura a água lá em cima. A água vem, a enxurrada que vem, vem trazendo toda a sujeira pra dentro do rio, e aí vai matando o rio, vai matando a qualidade da água, aquela sujeira vai entrando pra dentro do rio. Com tantos remédios que vem do mato, que eles colocam nos eucalipto lá, a sujeira vai tudo pra dentro das águas, e a água vai modificando a cor, é um água escura, e não tem mais qualidade essa água.
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FOTO 45 - A escassa e escura água do Córrego São Domingos, na comunidade de Linharinho. (Winfridus Overbeek, dezembro/ 2009).
FOTO 46 - Córrego São Domingos, na comunidade de Linharinho. (Winfridus Overbeek, dezembro/ 2009).
Também na comunidade de Roda D’Água uma liderança relata a situação de
contaminação do Córrego da Piaba, em entrevista concedida a Gilsa Barcellos (2009):
— Por que o rio Piaba ficou assim? — Antigamente a gente tinha todo conforto da roça, do córrego, água boa,
tomava banho, bebia, antigamente. Hoje em dia tá mais pior, hoje dia a gente não pode tomar banho, tomar uma água do córrego. Se tomar um banho, adoece, se dar banho numa criança numa água dessa aí, o corpo dela, no outro dia, amanhece tudo empolado o corpo. Fica tudo empolado com aqueles caroço que sai. Foi o eucalipe que estragou tudo, depois que chegou o eucalipe, estragou tudo. Aí veio, plantou as manilhas todo, botou manilhas no córrego, aterraram. Botaram aterro na cabeceira dele, que atravessa daí e sai lá no asfalto. Aí eles aterraram lá. Tem época que tá sequinho aqui. Agora tem água porque choveu, aí tem esse pouquinho de água aí (LIDERANÇA).
— E essa cor escura da água? — Isso aí é poluição, adubo e veneno que eles usam. Quando chove, o
veneno vem da plantação pra água. — Além do eucalipto, a cana-de-açúcar também afeta? — Afeta demais, porque eles jogam a mesma coisa, jogam veneno, jogam
adubo, aí vai afetando os córregos.
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FOTO 47 - Córrego da Piaba, na comunidade de Roda D’Água. (Winfridus Overbeek, dezembro/
2009).
FOTO 48 - A cor escura do Córrego da Piaba, na comunidade de Roda D’Água. (Winfridus Overbeek, dezembro/
2009).
A contaminação das águas dos rios, córregos e lagoas provoca a mortandade de peixes e
outros animais que as consomem, sejam os silvestres, sejam os de criação, conforme já vivenciou
Seu Domingos Ayres de Farias, 68, relatado em entrevista concedida a Simone Batista Ferreira,
em outubro de 2005:
— Nóis tinha pra mais de umas 300 cabeça de porco! Então, os porco saiu, escapuliu, que a manga tinha um buraco na cerca, saía, né. Aí, a roça mais longe, aí a gente só viu eles beber aquela água, assim, da chuva, que eles tinha botado veneno, né. Aí os porco danou a morrer, dava aquela, aquela caganeira nos porco, e foi morrendo. ....aquela água lá, né. Mas morreu foi muito! Nóis fiquemo sem nada de porco! Agora tem aí são uns doizinho. (DOMINGOS)
— O senhor, agora, usa água de cacimba? — Não. Nóis pega lá num córrego que fica rente à Cricaré, né.
A mortandade de porcos do Seu Domingos significou, para ele, a prova da
contaminação da água existente no entorno da monocultura do eucalipto, forçando-lhe a buscar
a água do consumo num outro córrego mais distante de seu sítio. Uma grande maioria dos
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moradores abandonou o uso da água dos córregos e os poços e cacimbas despontam como
principais fontes de água consumida na região, como relata Luzinete Brandino, em entrevista
concedida a Simone Batista Ferreira, em maio de 2000:
— É..., a gente tem medo porque eles joga muito veneno nesse ocalipto, né.
Aí a gente tem medo porque muitas vezes, quando chega essa... num chove, aí aquele veneno fica acumulado na terra. Quando a chuva bate que aquela água corre tudo pra esses lugar...que era os córrego que secô. Aí enche, mas a água fica com uma cor feia, aí ocê num pode tomar banho, ocê num pode lavar uma roupa, ocê num pode usar aquela água. (...) Pra nada, aquela água num serve pra nada. Tem a água lá no rio, mas pra gente é mesmo que não ter.
FOTO 49 - Aplicação de agrotóxico em cabeceira da Bacia do Angelim num período chuvoso, o que intensifica a contaminação dos cursos d’água. (Simone Ferreira, dezembro/ 2000)
FOTO 50 - A contaminação das águas é um risco que está também presente durante o abastecimento dos caminhões-pipa para posterior dissolução dos agrotóxicos em pó, conforme foi verificado no Córrego do Meio, Comunidade Linharinho. (Sandro Silva, novembro/ 2004).
Em entrevista concedida a Simone Batista Ferreira, em outubro de 2005, Ledriando
Manoel Maria relata:
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— Essa água aí mesmo, ó, ninguém pode usar ela pra beber. [...] Porque
essa água tá tudo parada, e tá contaminada de produto que eles usa pra, pra, pra combater os inseto. [...] Vê a covardia... a água é represada e corre limitada. Tá vendo? É controlada do jeito que eles querem. Você vê que é uma água escura, enferrujada. Quem é que pode tomar essa água? Antigamente, todo mundo bebia dessa água aqui, ó (...) Peixe dá, mas só que é um peixe escuro, aquele peixe da escama mais dura, resiste. É Traíra, é Morobá, Beré, aquelas lá da cor mais escura. Aquele peixe branco, ali ele não fica. Mas não é aquele peixe natural que tinha antes, não.
FOTO 51 - Represa no Córrego Jueirana (afluente do São Domingos) em más condições ambientais. Comunidade São Domingos. (Simone Ferreira, novembro/ 2005).
A contaminação dos cursos d’água é uma observação constante entre outros moradores
do Sapê do Norte, para os quais nem mesmo a água das nascentes está totalmente protegida,
como relatam Berto Florentino, 65, e Joana Cardozo Florentino, 56, da Comunidade de São
Domingos, em entrevista concedida a Simone Ferreira, em outubro de 2005:
— É, mesmo, que ali, aquele córrego de Santana ficou num ponto que podia plantar um pé de árvore dentro da água do córrego. Secou todinho, todinho, todinho! E a Aracruz plantava o eucalipi, plantava até beirando a água! Aí não tinha córrego que num secava! Que o eucalipi chupa água mais que qualquer outra coisa... [...] Que esse veneno, ele escorre muita água pra margem do córrego, e esses veneno brabo que a Aracruz bota assim, aquilo prejudica a vista das pessoa. Isso é pra muita gente, aqui. Um corguinho igual esse nosso aqui num é tanto porque o córrego nosso aqui é nascente dentro do terreno. [...] (BERTO)
— Mas cai de lá pra cá, é a mesma coisa, aquela água... (JOANA) — É, dá aquela enxurrada, aquela água que lava por dentro do eucalipto,
vem tudo pra dentro do córrego da gente! (BERTO) — Num faz mal porque é poço, né, tem um poço de puxar água pra cá, se
não fosse isso... Mas de primeiro, sofria. Acho que até causou muito problema, assim, que nem eu tava falando pra você, de doença. Quer dizer que de primeiro nós não tinha o poço e apanhava aquela água assim, que tava chovendo, nós tinha que escolher lá aquele lugarzinho,
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assim, que tava limpinho, pra por aquelas vasilhinha pra colher, trazer água (JOANA).
Outras denúncias a respeito de doenças vêm da família de Berto Florentino e
especialmente de seu pai, Manoel Florentino, o “Coxi” (antigo morador do Córrego da Água
Boa, falecido em fevereiro de 2006 com 86 anos). Junto de seus dois irmãos e sua esposa, Coxi
ficou cego após a implantação dos monocultivos de eucalipto da Aracruz Celulose numa área
contígua e muito próxima de sua morada, conforme registrado pelo jornalista Rogério
Medeiros, da revista digital Século Diário:
Manoel Florentino está praticamente cego há 12 anos, assim como cegos também ficaram seus irmãos Liberi (já morto) e Mário, que tinham propriedade ao lado dele. A cegueira também atinge a sua mulher, Matilde Florentino. A constatação de que a cegueira dos três irmãos Florentino vem do uso abusivo do agrotóxico entre os eucaliptos da Aracruz Celulose está na convicção do próprio Manoel Florentino. "Quando batem os veneno nos eucaliptos, o vento traz para cima da gente. Fica um mês do seu vapor aqui em cima das nossas propriedades. Dói a vista de todo mundo aqui em casa. Eu fico a imaginar que os filhos, que ainda moram comigo, possam, como eu, também ficar cego" (MEDEIROS, 19.02.2003).
A este relato soma-se a denúncia do envenenamento e morte de duas crianças e um rapaz
na Comunidade de São Jorge, que ingeriram castanhas contaminadas por agrotóxicos aplicados
nos monocultivos de eucalipto localizados próximo a suas moradias, à igreja e à escola da
comunidade. Dona Estela Valentim, quilombola da comunidade de São Jorge, perdeu um filho,
um irmão e um primo por envenenamento, e no caso do irmão, atestaram que ele morrera
devido ao alcoolismo. Ela lembra com desespero a ausência dos meninos, conforme registrado
por Sandro Silva, em 2005:
— Sabe o que eles estão fazendo? Eles estão comendo o dinheiro nosso! Estão comendo o nosso dinheiro! Eu estou dando entrada [na justiça] à toa. À toa! Já pegaram o laudo do meu menino de novo. Você sabe quantos meses nós ficamos aqui desde que o menino morreu? Eles [Aracruz Celulose] queriam tirar nós daqui! Só não fui por causa dela aqui (a mãe, Maria Euzébio) (...) eles queria jogar nós para lá. Eu disse “eu não vou”! “Porque é causa de morte, eu não vou porque isso é causa de todo mundo”. A Aracruz é o bicho! É o bicho! É o capeta! Nunca vi uma firma desgraçada que nem esse satanás que está aí, ó! Esta peste que
está aí, ó! Ela é miserável, ela é miserável. (ESTELA) 2.
2 Extraído de SILVA, S. J. (coord.). RTID do Território Quilombola de São Jorge. INCRA-ES, 2006.
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FOTO 52 - Dona Estela Valentim, quilombola de São Jorge. (SILVA, 2009).
— A Aracruz é o bicho porque nós estamos aí, de cara pra cima. Meu filho,
vai fazer o que? Já fez dez anos de morto. O bichinho botava sangue pisado! Vomitava, vomitava. O sangue, aquele sangue talhado. Talhado do veneno. E eu sem saber o que era. [...] É a minha revolta é isso aí. [...] Ela caía [a castanha] sem saber que tava contaminada. Só descobriram por causa do meu menino, meu menino! [...]
Outros depoimentos denunciam danos à saúde dos trabalhadores das empresas
terceirizadas que prestam serviços à Aracruz Celulose S.A., como é o caso da Plantar, que
realiza o manejo dos plantios. Jorge Francelino, 57, trabalhou 1 ano e 2 meses na Plantar,
realizando o serviço da “capina química”. Em decorrência do intenso contato com uma
diversidade de fortes agrotóxicos, passou a sofrer distúrbios na saúde e foi demitido, sem
sequer receber pagamento por insalubridade. Denuncia ele que esta situação ocorre com vários
trabalhadores, alguns dos quais chegam à morte no próprio campo. O depoimento de Jorge,
concedido a Simone Ferreira em fevereiro de 2002, traz informações acerca do total desrespeito
destas empresas em relação aos trabalhadores que emprega, cujo cotidiano é marcado pela
doença:
— O primeiro desmaio veio com uns... 4 meses eu senti, o primeiro desmaio, lá na Bahia. E o pior que nós tava novo, ninguém censurou nada, mas nós tinha batido veneno em dois talhão, e tava almoçando no meio dos dois talhão que tinha batido o veneno. [...] Aí, meu amigo me puxou pra sombra, pegou o chapéu, ficou me abanando, até que, com uns 10 minuto eu recuperei outra vez; aí trabalhei a tarde toda! Passado uns dois, três meses, outra vez eu dei outro desmaio! No campo também! O corpo ficou todo dolorido, aí [...] pá, caiu, daqui a pouco eu me arrastei pra sombra, fui pra baixo do carro, fiquei a tarde toda com o corpo todo quebrado, senti o estômago embrulhado, o estômago ficou dias todo revoltado. E nisso, fui trabalhando até que o encarregado disse que eu não servia mais e que tinha que me mandar embora, como mandou! (JORGE)
— Por que ele disse que você não servia mais?
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— Porque disse que eu não estava dando produção. [...] Eu estava fazendo tratamento. Aí pedi a ele que esperasse, que eu tava, ia fazer uns exames, mas ele disse que não, que a firma não tinha nada com isso. [...] Eu falei com ele que não ia assinar aviso, que eu estava doente. [...] então, ele mesmo bateu o carimbo, no aviso, ele mesmo assinou! Eu não assinei aviso, só que venceu os trinta dias, eu tive que sair, que eles não me queria no serviço! [...]
— E eles pagam insalubridade? — Também não. Dizem que é por causa dessas coisas que eles dão; a
touca, a luva, a máscara, diz que é por isso que não paga insalubridade.
Ao apresentar os primeiros sintomas físicos da contaminação de seu organismo pelos
agrotóxicos, Jorge Francelino foi obrigatoriamente dispensado, sem a garantia de quaisquer
direitos e nem pagamento de insalubridade. Sua negativa em assinar o aviso prévio foi
solucionada com a assinatura do encarregado de campo, forçando sua dispensa, procedimento
que revela absoluto desacato à legislação trabalhista. Este desacato estende-se às condições da
higiene e proteção dos trabalhadores do eucalipto. A entrevista continua:
— [...] E o pessoal trabalha, a máscara que eles dão não ajuda, ela não ajuda na respiração, ela abafa. As pessoas não agüenta, tem que tirar. (JORGE)
— O que mais usa pra proteção? — Uma touca, mas a touca, também, quando tira da cabeça, parece que o
mundo abre! — E a roupa? Como é que é a roupa? — A roupa, trabalha com uma calça jeans, um macacão, o dia todo, e a
botina no pé. Meus dedos dos pés adormeceram, do produto que caía em cima da botina, adormeceu os dedos do pé. E outra, aquela roupa, pra você ter uma idéia, aquilo vem pra casa! Aquilo não era pra ir pra casa de ninguém! [...] Porque aquela roupa só fica contaminada!
— E você traz pra casa pra lavar? — Não, pra voltar no outro dia, com ela, pra trabalhar, que não tem roupa
pra trocar todos os dias. [...] — E quantas horas por dia vocês mexiam com veneno? — A gente levanta 4h30, apanha o carro 5h10, vai pro campo e no campo
pega aí, dependendo, 7h, 7h30, e vai até 4h40. — Pára pra almoçar no campo mesmo? — No campo mesmo. — Não troca de roupa pra almoçar? — Também não. Tem dia que não tem água pra lavar a mão!
Segundo o entrevistado, os trabalhadores permanecem um grande tempo diariamente
expostos aos venenos (cerca de 9 horas diárias), sob carência absoluta de condições de higiene e
saúde. Esta situação é agravada no horário da alimentação, que acontece no campo, um
ambiente completamente contaminado pelos agrotóxicos. Estes produtos são ingeridos seja na
hora da aplicação com a bomba, seja na hora do almoço ou de beber água no campo, seja na
146
própria moradia, que recebe a roupa contaminada. Dessa maneira, a contaminação se estende
aos demais familiares. Quando o processo da contaminação se inicia, geralmente os
trabalhadores desmaiam durante o contato com os agrotóxicos, e daí pra frente passam a sentir
outros sintomas, como a dormência nos dedos dos pés, dores na cabeça e “olhos colados”.
— Trabalhei com Mirex, trabalhei com Scout, trabalhei com herbicida, trabalhei com Amarelão. O Amarelão, a gente trabalhava, à tarde tomava banho, deitava pra dormir, amanhecia no outro dia com o olho colado e dor na cabeça. (JORGE)
— E os outros? Scouth, Mirex... — Esses daí, só o que acontece é que teve pessoas que desmaiou com ele,
né. [...] O eucalipto que tá pra cortar, eles não querem brotação, eles aplicam um tal de Shop, com trinta dias o pé de eucalipto tá morto.
Com o aprofundamento do estágio da contaminação, os distúrbios da saúde se agravam,
conforme relatado por Jorge Francelino um ano após ele começar a sentir os primeiros sintomas.
Além de se queixar de dores na coluna – atribuídas ao peso de 16 quilos da bomba de veneno,
suportado diariamente nas costas – e acidentes sofridos no campo, ele aponta outros problemas
que se tornaram permanentes em seu cotidiano:
— [...] às vezes vê meu corpo, tudo bem, às vezes não sabe o que eu tô sentindo na cabeça. Uma dor na cabeça, não é dor de cabeça; dor de cabeça passa com comprimido. Mas a minha é DOR na cabeça. A cabeça fica anestresiada, me dói muito na testa, me dá pesos no nariz... tem dia que até o nariz fica como se tá entupido, só que não sai nada...Ouvido, um dia fica, amanhece um ouvido surdo, outro dia tem o outro que tá surdo. A laringe me dói. [...] E hoje, também, tô com as duas pernas inchadas! As pernas incha.
Em entrevista concedida a Gilsa Barcellos, em dezembro de 2009, Alexandre, da
comunidade de Roda D’Água, relata:
— Quem trata pra Aracruz é a Plantar. Eu trabalhei mais de um ano pra
Plantar na área da Aracruz aplicando veneno, depois eu senti dor nas costas aí eu parei. Eu trabalhei um ano e quatro mês. (ALEXANDRE)
— Quanto você recebia? — Eles pagava o salário mínimo. Aí eu senti uma dor assim e o médico
pediu para eu tirar um raio X. Aí eu levei pro médico da Plantar e ele disse que não era nada. Aí eu levei pro médico particular e ele disse que meu pulmão tava inchado. Aí eu conversei com o encarregado e eu mudei de trabalho, e depois eu pedi demissão.
— Que veneno é? — Scouth e Mirex. — A empresa pagava para você adicional de insalubridade?
147
— Pagava não.
Em alguns casos, esta contaminação provoca a morte de trabalhadores, como ocorreu
com Aurino dos Santos Filho, que faleceu em abriu de 2001, aos 34 anos, dentro dos
monoculivos de eucalipto da empresa Aracruz Celulose e com a bomba de veneno nas costas,
enquanto realizava a “capina química” para a empresa Plantar:
Caiu fulminado no segundo período do trabalho, que consistia em lançar veneno sobre a vegetação, que brota em volta dos pés de eucalipto. [...] Os companheiros voltaram ao seu setor de trabalho e já o encontraram morto. Embora tivessem sugerido ao encarregado da empresa para chamar a perícia, ele ordenou que pegassem o corpo de Aurino e o colocassem no ônibus. O corpo foi assim transportado para a sede de campo da empresa e de lá entregue à família para o sepultamento. (SÉCULO DIÁRIO, 11 fev.2003)
A morte de Aurino também é lembrada por Ledriando Manoel Maria, conforme
entrevista concedida a Gilsa Barcellos em dezembro de 2009:
— Eles aplicam veneno, ficam com aquela bomba nas costas aplicando veneno. Aqui já teve companheiro nosso daqui, conterrâneo nosso com bomba na costa e morreu. Eles passaram o rodo... o pessoal não correu atrás também. Era um tal de Aurino Junior. E o outro, que foi uma questão que até hoje não saiu nada, foram as três crianças que morreram envenenada lá em São Jorge, que até hoje não deu em nada. Aurino morreu foi... em 2002.
Embora o corpo de Aurino tenha sido encaminhado por sua família e amigos à perícia
para averiguar as causas de sua morte, o laudo médico atestou, sem maiores detalhes, “parada
cardíaca”: “Só que quando apanhou ele daqui na Barra, que levou pra Linhares, o médico da firma já
estava lá, aguardando. E aí foi que alegaram que era infarte” (JORGE FRANCELINO, 57, em 27
fev.2002). O absoluto desacato à legislação trabalhista conta, portanto, com o aval de
profissionais da medicina como forma de escamoteamento. Convém destacar que esta
contaminação vem provocando um extermínio lento e silencioso de um grande número de
trabalhadores que são, em sua grande maioria, afrodescendentes originários do Sapê do Norte,
como Jorge e Aurino:
Segundo a irmã, antes de morrer Aurino andava se queixando de dores no peito e de constantes tonteiras. Havia pedido a Plantar para faltar ao serviço e ir ao médico. Não conseguiu e continuou trabalhando em precárias condições de saúde. [...] o Aurino tinha medo de acontecer com ele o que acontecia todos os dias com algum colega: cair desmaiado com a bomba nas costas. Eram cinco,
148
seis, todos os dias. Segundo a irmã, não houve inquérito policial para apurar a morte do irmão e muito menos apareceu o Ministério do Trabalho para olhar o caso. (SÉCULO DIÁRIO, 11 fev. 2003)
A impunidade na apuração destes casos caminhava para uma investigação através do
processo aberto no Ministério Público do Trabalho no ano de 20013 (cópia deste processo
constitui o ANEXO II do presente relatório) quando a Procuradora Daniele Corrêa Santa
Catarina Fagundes iniciava as primeiras audiências acerca das condições de trabalho nos
monocultivos de eucalipto da empresa Aracruz Celulose. No entanto, embora vários
depoimentos de trabalhadores e testemunhas tenham sido realizados, o processo não obteve
continuidade4, evidenciando as fortes articulações destes setores do capital com o Poder
Judiciário, que Jorge Francelino define como “a lei do eucalipto”:
— Aqui trabalho é desse jeito, com veneno nas costas o dia todo. Quem entra sabe que vai sair doente ou morto. Mas que jeito para um pai de família? Veja o caso do Aurino. Morreu como se fosse de morte natural. [...] Essa é a lei do eucalipto. (JORGE FRANCELINO, 57. SÉCULO DIÁRIO, 11 fev. 2003)
Entretanto, por seu turno a empresa Aracruz Celulose/ Fibria mantém seu discurso a
respeito de princípios de uma sustentabilidade que orientaria suas atividades produtivas – a
preservação ambiental e a relação estabelecida com seus funcionários e com as comunidades
situadas em sua área de atuação:
Queremos garantir que a estratégia de crescimento da Aracruz esteja sempre alinhada com princípios e práticas sustentáveis [...]”, explica o diretor de Sustentabilidade e Relações Corporativas, Carlos Alberto Roxo. Segundo o diretor, trabalhar em sintonia com o conceito de sustentabilidade é essencial para o sucesso no longo prazo da companhia. Por conta disso, a Aracruz Celulose atua de forma a preservar a biodiversidade, a disponibilidade da água e a qualidade do solo que ocupa, além de desenvolver projetos voltados para geração de renda e oportunidades nas comunidades em que está presente. (disponível em: www.aracruz.org.br)
3 Processo n.° 0114/2001. 4 Informações posteriores afirmaram que a Procuradora Daniele Corrêa S. C. Fagundes, recém-chegada do sul do país ao estado do Espírito Santo no final do ano 2000, foi transferida após a abertura deste processo.
149
III. 1 - AVALIAÇÃO DOS IMPACTOS SOCIOAMBIENTAIS À LUZ DE ALGUNS INSTRUMENTOS JURÍDICOS
A produção dos impactos socioambientais aqui apresentados destruiu ecossistemas,
sítios ecológicos, históricos e arqueológicos – como no caso dos lugares onde se praticavam os
rituais das Mesas de Santo, as lagoas e rios utilizados como fontes de alimento, espaços de
higiene e lazer. Ainda hoje, concretizam a restrição às possibilidades de se exercer determinado
modo de vida. Assim sendo, infringem as determinações da Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais (1989); os direitos garantidos pela
Constituição Federal Brasileira (1988); os parâmetros de proteção ambiental apontados pelo Novo
Código Florestal (Lei 4.771, de 15.09.1965); as orientações da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei
6.398, de 31.08.1981); e os apontamentos da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605, de 12.02.1998).
A Constituição Federal Brasileira (1988) estabelece no seu Art. 225 que:
Art. 225 - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º – Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao poder público: I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; [...] IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; [...] VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade [...] § 3º – As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
Por ser de atribuição concorrente (Federação, estados e municípios) a Constituição do
Espírito Santo estabelece na Seção IV, art 186, atribuições similares a estas:
Art. 186. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente saudável e equilibrado, impondo-se-lhes e, em especial, ao Estado e aos Municípios, o dever de zelar por sua preservação, conservação e recuperação em benefício das gerações atuais e futuras. Parágrafo único. Para assegurar a efetividade desse direito, além do disposto na Constituição Federal, incumbe ao Poder Público competente: [...] III - proteger a flora e a fauna, assegurando a diversidade das espécies, principalmente as ameaçadas de extinção, fiscalizando a extração, captura,
150
produção e consumo de seus espécimes e subprodutos, vedadas as práticas que submetam os animais a crueldade; IV - estimular e promover o reflorestamento com espécies nativas em áreas degradadas, objetivando, especialmente, a proteção de encostas e de recursos hídricos, bem como a manutenção de índices mínimos de cobertura vegetal; V - promover o zoneamento ambiental do território, estabelecendo, para a utilização dos solos, normas que evitem o assoreamento, a erosão e a redução de fertilidade, estimulando o manejo integrado e a difusão de técnicas de controle biológico; VI - garantir o monitoramento ambiental com a finalidade de acompanhar a situação real e as tendências de alteração dos recursos naturais e da qualidade ambiental; VII - garantir a todos amplo acesso às informações sobre as fontes e causas da poluição e da degradação ambiental; VIII - promover medidas judiciais e administrativas de responsabilidade dos causadores de poluição ou de degradação ambiental; IX - estimular o desenvolvimento científico e tecnológico.
Já no momento de sua implantação, os plantios industriais de eucalipto realizados no
Sapê do Norte constituíram infração ao Novo Código Florestal (Lei n.º 4.771/ 1965), muitas
vezes não respeitando as Áreas de Preservação Permanente, assim definidas:
Art. 2.° - Consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito desta lei, as florestas e demais formas de vegetação natural situadas: a) ao longo dos rios ou de qualquer curso d’água desde seu nível mais alto em faixa marginal [...]; b) ao redor das lagoas, lagos ou reservatórios d’água naturais ou artificiais; c) nas nascentes, ainda que intermitentes e nos chamados ‘olhos d’água’, qualquer que seja a sua situação topográfica, num raio mínimo de 50 metros de largura; [...]. Art. 4.° A supressão de vegetação em área de preservação permanente somente poderá ser autorizada em caso de utilidade pública ou de interesse social, devidamente caracterizados e motivados em procedimento administrativo próprio, quando inexistir alternativa técnica e locacional ao empreendimento proposto (alterado pela MP-002.166-067-2001)
A relevância das APPs na preservação dos recursos hídricos foi, ainda, enfatizada pelo
Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA, em sua Resolução 004 (18.09.1985), ao
considerá-las como Reservas Ecológicas. Estes dois documentos afirmam que todos os cursos
d’água, de sua nascente à foz, devem permanecer protegidos por suas coberturas vegetais
naturais, que lhes garantem a continuidade de fluxo. A retirada e substituição desta vegetação
por outra, ao acarretar desequilíbrio ambiental, também fere instrumentos jurídicos. Assim,
constata-se que no momento de sua implantação, as monoculturas infringiram leis e resoluções
151
de cunho federal. O desacato a estas determinações é considerado contravenção penal pelo
Novo Código Florestal (Lei n.º 4.771/ 1965):
Art. 26. Constituem contravenções penais, puníveis com três meses a um ano de prisão simples ou multa de uma a cem vezes o salário-mínimo mensal, do lugar e da data da infração ou ambas as penas cumulativamente: a) destruir ou danificar a floresta considerada de preservação permanente, mesmo que em formação ou utilizá-la com infringência das normas estabelecidas ou previstas nesta Lei; b) cortar árvores em florestas de preservação permanente, sem permissão da autoridade competente;[...] g) impedir ou dificultar a regeneração natural de florestas e demais formas de vegetação; [...] o) extrair de florestas de domínio público ou consideradas de preservação permanente, sem prévia autorização, pedra, areia, cal ou qualquer outra espécie de minerais; [...].
Também a Política Nacional de Meio Ambiente (Lei 6.398, de 31.08.1981), determina
punições àqueles responsáveis por atividades causadoras de degradação ambiental:
Art.3.° IV – [...] pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividades causadoras de degradação ambiental; [...] § 1.º - [...] é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade.[...]
Os danos causados pelas monoculturas ao “meio ambiente” e aos “terceiros” - como se
constituem, neste caso, os agrupamentos negros rurais que vivem em meio aos plantios
industriais - devem, pois, ser indenizados ou reparados. Esta discussão foi retomada pela Lei de
Crimes Ambientais (Lei n.º 9.605, de 12.02.1998), que dispões sobre sanções derivadas de
condutas lesivas ao ambiente. Dentre estas condutas, a Seção II trata dos Crimes contra a Flora:
Art. 38 – Destruir ou danificar floresta considerada de preservação permanente, mesmo que em formação, ou utilizá-la com infringência das normas de proteção [...]. Art. 48 – Impedir ou dificultar a regeneração natural de florestas e demais formas de vegetação [...]. Art. 53 – Nos crimes previstos nesta Seção, a pena é aumentada de um sexto a um terço se: I – do fato resulta a diminuição de águas naturais, a erosão do solo ou a modificação do regime climático; [...]
Toda a degradação socioambiental dos plantios industriais de eucalipto, ainda presente
e verificável no campo (conforme testemunham as entrevistas e a documentação fotográfica
152
georreferenciada), pode ser analisada à luz da Lei de Crimes Ambientais, uma vez que vêm se
perpetuando ao longo dos ciclos de plantio e corte, que continuam a ser licenciados pelos
órgãos ambientais.
Ao considerar estes remanescentes da Mata Atlântica ainda preservados, observa-se,
também, a presença de populações tradicionais que, com o manejo do meio que desenvolvem,
são as responsáveis por sua conservação. Estas formas de manejo envolvem saberes
ancestralmente construídos, cujo intuito principal é a continuidade das atividades de
subsistência, conforme pode ser verificado com as comunidades quilombolas do Espírito Santo.
Neste sentido, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos
Indígenas e Tribais (1989) estabelece no seu Art. 4 que os “Estados nacionais deverão adotar
medidas especiais que sejam necessárias para salvaguardar as pessoas, as instituições, os bens, as culturas
e o meio ambiente dos povos interessados”. Estabelece ainda, no seu art. 7 que:
Art. 7 - Os governos deverão zelar para que, sempre que for possível, sejam efetuados estudos junto aos povos interessados com o objetivo de se avaliar a incidência social, espiritual e cultural e sobre o meio ambiente que as atividades de desenvolvimento, previstas, possam ter sobre esses povos. Os resultados desses estudos deverão ser considerados como critérios fundamentais para a execução das atividades mencionadas; os governos deverão adotar medidas em cooperação com os povos interessados para proteger e preservar o meio ambiente dos territórios que eles habitam.
A Convenção 169 também estabelece, no seu Art. 15, que “Os direitos dos povos interessados
aos recursos naturais existentes nas suas terras deverão ser especialmente protegidos. Esses direitos
abrangem o direito desses povos a participarem da utilização, administração e conservação dos recursos
mencionados”.
Ademais, os elementos relativos às manifestações culturais afro-brasileiras estão
inseridos no corpo permanente da Constituição Federal Brasileira (1988), enquanto patrimônio
que deve ser protegido pelo Estado:
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§ 1o O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
153
I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
Ao determinar como uma das ações do Estado a proteção das manifestações culturais
afro-brasileiras e definir como patrimônio cultural também “os modos de criar, fazer e viver”, os
artigos 215 e 216 permitem a abertura para a discussão do patrimônio constituído pelos
“remanescentes de quilombos”, relacionado ao seu “modo de viver” específico, que implica na
reprodução material, simbólica e afetiva de sua existência. Para que este “modo de viver” seja
preservado, é de suma importância que o ambiente onde se realiza também esteja - as terras e
demais recursos ambientais considerados necessários à preservação do viver quilombola devem
ser garantidos. No caso das comunidades quilombolas do Sapê do Norte, conforme já
assinalado, esta relação era de grande proximidade com os diferentes ecossistemas do bioma
Floresta Tropical Pluvial – a denominada Mata Atlântica. Enquanto sustentáculos de modos de
vida peculiares de populações tradicionais são elementos fundamentais para a garantia de
preservação do patrimônio composto por estes costumes e tradições, bem como de sua
transmissão às gerações seguintes.
Este trabalho objetivou abrir espaço para a voz aos impactados, que conjuntamente a
outros dados oriundos de pesquisas, vêm dar visibilidade à contestação da prática, do discurso
e da imagem veiculados massivamente pelas empresas de celulose. Os relatos aqui expostos por
Antônio, da Comunidade de Nova Vista, em entrevista concedida a Gilsa Barcellos em 2009,
retratam um momento de um processo ainda em curso:
— Aconteceu a mesma coisa com o Córrego do Engenho, Córrego de Santana. Há um tempo atrás, a gente podia pegar água e beber... Chega um período que você fala que ele secou, aí quando chove um pouco, ele reaparece. Se você for fazer a avaliação dos córregos do Sapê do Norte, você vai ver que foi depois que a Aracruz chegou que eles foram desaparecendo. Isso aconteceu porque eles tiraram a vegetação (mata ciliar), levou ao assoreamento, aterro, as matas que foram tiradas. Antigamente eles plantavam eucalipto até dentro do brejo; agora, depois dessa luta que a gente tá fazendo, mudou um pouco a realidade. Mas precisa voltar muito a biodiversidade pra voltar os rios do jeito que era antes. São quarenta anos e mais de 40 córregos secou.
154
Neste sentido, alimentamos a esperança acerca das possibilidades práticas e políticas de
reversão destes impactos sofridos não só pelas comunidades quilombolas, mas também pelos
povos indígenas e demais povos, com a reconstrução de seus territórios de vida digna.
155
IV - TRABALHO, ALIMENTAÇÃO E CRIMINALIZAÇÃO
Na experiência quilombola do Sapê do Norte, as questões trabalho, alimentação e
criminalização estão profundamente imbricadas; a inexistência de um é a causa do outro, ou seja,
não é possível entender o processo de criminalização enfrentado, atualmente, por integrantes
das comunidades sem se compreender os aspectos relacionados ao trabalho e à segurança
alimentar.
IV. 1 - IMPACTOS SOBRE O DIREITO AO TRABALHO
A Constituição brasileira, no seu art. 6, estabelece que “São direitos sociais a educação, a
saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à
infância, a assistência aos desamparados, na forma dessa Constituição.” Na mesma linha, seguem
tratados e pactos internacionais dos quais o Brasil é signatário. Estes buscam assegurar o
trabalho como um direito, a exemplo do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais (PIDESC), ratificado pelo Brasil, que em seu art. 7, contempla o seguinte texto:
Os estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de gozar de condições de trabalho justas e favoráveis, que assegurem especialmente:
a) Uma remuneração que proporcione, no mínimo, a todos os trabalhadores:
i) Um salário eqüitativo e uma remuneração igual para um trabalho de valor igual, sem nenhuma distinção, devendo, em particular, às mulheres serem garantidas condições de trabalho não inferiores àquelas de que beneficiam os homens, com remuneração igual para trabalho igual;
ii) existência decente para eles próprios e para as suas famílias, em conformidade com as disposições do presente Pacto;
b) condições de trabalho seguras e higiênicas [...].
A Observação Geral nº 18 (OG 18) do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
da ONU, que esclarece o conteúdo normativo do direito ao trabalho garantido pelos artigos 6, 7,
8 do PIDESC, reafirma que o direito ao trabalho é essencial para a realização de outros direitos
humanos e constitui uma parte inseparável e inerente da dignidade humana. Segundo a OG 18,
toda pessoa tem o direito a trabalhar para viver com dignidade. “O direito ao trabalho serve, ao
mesmo tempo, à sobrevivência do indivíduo e de sua família e contribui também, na medida
em que o trabalho é livremente escolhido e aceito, para a sua plena realização e o seu
156
reconhecimento no seio da comunidade” (citado pela FIAN, 2008).1
Constatou-se ao longo da realização desta investigação que a perda do território em
função da implantação das monoculturas, sobretudo do eucalipto, teve uma grande repercussão
sobre as diversas formas de trabalho até então praticadas pelas comunidades quilombolas do
Sapê do Norte e, conseqüentemente, sobre as condições materiais e simbólicas para a
reprodução do seu modo de vida.
Antes da chegada das monoculturas de eucalipto e cana, as famílias quilombolas
sobreviviam de uma série de atividades que dependiam dos recursos naturais existentes em
todo o seu território: florestas, rios, córregos e uma flora e fauna bastante diversificadas. Por
isso, os quilombolas mais velhos, quando lembram dessa época, usam muito a palavra “fartura”,
resumindo bem a sua percepção daquele tempo.
Entrevista concedida por uma liderança da comunidade de Roda D’Água a Gilsa
Barcellos, em dezembro de 2009:
— Nós tinha roça e não tinha cercado, não. A gente plantava com fartura e as criação comia. Relava muita mandioca, fazia beiju. Então, antigamente, era fartura. Meu pai botava roça nas capoeiras, né. Aí, ele ia lá e botava aquela roça, colhia e deixava inundar de novo. Aí, depois ele ia lá limpava de novo e tornava plantar e quando pensava que não, tava dando tudo já.
Segundo Ferreira (2009b), as principais atividades produtivas antes da chegada do
eucalipto eram as seguintes:
1. O cultivo de culturas permanentes, sobretudo frutíferas, e culturas temporárias,
como mandioca, feijão, milho e abóbora. O cultivo era praticado por um
determinado tempo, seguido por uma fase de pousio ou descanso, aproveitando a
fertilidade natural da terra.
2. O processamento de vários produtos destas culturas, como a mandioca para fazer a
farinha e o beiju, o urucum para fazer o corante, a palma africana para fazer o óleo
de dendê.
3. A criação de animais de forma solta, como porcos, gado, galinhas e cavalos.
4. A caça, aproveitando uma diversidade de 70 mamíferos, identificados na mata
1 FIAN et al: “Os agrocombustíveis no Brasil: informe da missão de investigação sobre os impactos das políticas públicas de incentivo aos agrocombustíveis sobre o desfrute dos direitos humanos à alimentação, ao trabalho, ao meio ambiente, das comunidades campesinas e indígenas e dos trabalhadores rurais no Brasil”, FIAN, 2008. FIAN quer dizer "FoodFirst Information & Action Network" (Rede de Ação e Informação "Alimentação primeiro").
157
atlântica em estudos do ambientalista Augusto Ruschi (1976).2
5. A pesca nos rios e córregos, aproveitando uma abundância de peixes.
6. Atividades extrativistas. A extração de cipós e outras matérias primas para
fabricação de ferramentas e utensílios usados em casa e em outras atividades
produtivas, como as armadilhas para a pesca. O material produzido também era
comercializado. Além disso, praticavam a coleta de outros produtos, como plantas
medicinais. Na comunidade de São Domingos e Santana, a equipe técnica do INCRA
identificou 111 espécies de ervas. Nessa comunidade, os quilombolas conhecem
também 23 medicamentos à base de origem animal.3
Também, de acordo com Ferreira (2009a e 2009b), a maioria dessas atividades de
trabalho era dividida entre homens e mulheres e era condicionada às fases da lua e a outros
ciclos naturais, como as chuvas e épocas secas. Também havia uma complementaridade mútua
entre as atividades, contribuindo, no seu conjunto para uma segurança alimentar e auto-
sustentação das comunidades. Com a implantação das monoculturas, cada atividade acima
citada sofreu graves impactos devido às mudanças provocadas no ambiente. Citamos algumas
das principais mudanças:
1. O trabalho agrícola sofreu um forte impacto em função da perda do território,
reduzindo e, às vezes, extinguindo a área de plantio. Além disso, a mudança geral no
uso da terra na região do Sapê do Norte impactou negativamente a produtividade e,
conseqüentemente, a renda familiar, ou seja, houve o que os quilombolas chamam de
‘ressecamento’ da terra, o que comprometeu significativamente a quantidade e
qualidade da produção. Por exemplo, nas comunidades de São Domingos e Santana, das
19 variedades de mandioca, hoje restam apenas algumas variedades consideradas de
rápida produção, ou seja, que produzem no ciclo de um ano, diferente das variedades
antigas que poderiam ficar até três anos na terra. Essa nova prática revela a falta de
terras. O segundo plantio mais importante é o feijão. O arroz, que é considerado um
alimento importante pelas comunidades, não pode mais ser plantado, porque não é mais
permitido usar o brejo para esta finalidade por ser considerado área de preservação
permanente. Hoje, o que restou da diversidade de cultivos permanentes (principalmente
2 Citado por Ferreira (2009b). 3 FERREIRA, 2009b.
158
frutíferas como banana, manga, abacate, caju, etc.) concentra-se nos quintais das
casas, ‘imprensadas’ e/ou ilhadas pelo eucaliptal.4
2. Com o comprometimento da produção de mandioca, a quantidade de farinha reduziu
significativamente. Hoje, das 26 casas de farinha na comunidade de São Domingos e
Santana, seis não estão sendo usadas e a grande maioria necessita urgentemente de ser
reconstruída ou reformada5. Vale ressaltar que as casas artesanais são fabricadas com
madeiras de lei, antes existentes em abundância e hoje quase extintas no território. Para
construir casas de farinha de alvenaria necessitam adquirir matéria prima de fora e para
tanto é preciso dispor de recursos financeiros.
3. A criação de animais de médio e grande porte (porcos, gado e cavalos), antes feita de
forma solta e aproveitando os brejos e áreas de córregos, ficou inviável devido às
proibições impostas pelos órgãos ambientais, pela Aracruz Celulose e pelas usinas de
álcool. Com isso, predomina hoje a criação de galinhas, o único animal possível de ser
mantido de forma solta em volta das casas. A criação de porcos só é possível usando
chiqueiros.
4. A caça é totalmente proibida pelos órgãos ambientais, buscando, segundo eles,
“proteger” a pouca fauna que sobrou depois da chegada do eucalipto e da cana, porém,
acabando de vez com uma fonte importante de alimento das famílias. Os órgãos
ambientais que atuam na região não têm a mesma tolerância com quilombolas que têm
com a Aracruz Celulose (Fibria) e com as usinas de álcool, por isso, qualquer tentativa
de caça é respondida com prisão e multa.
5. A pesca nos córregos e rios é uma atividade que não sofre do mesmo grau de
perseguição comparada com as atividades de caça e extração de madeira. Mesmo assim,
a pesca artesanal é proibida em certas épocas, bem como o uso de certos utensílios como
redes.6 Além disso, com o represamento de muitos rios, para garantir a irrigação dos
eucaliptais, o manilhamento de córregos por todo o território para a construção de
estradas, o assoreamento devido à destruição das matas ciliares, substituídas pelo
eucalipto, e a contaminação da água com agrotóxicos aplicados nas monoculturas de
eucalipto e cana, a grande diversidade e abundância de peixes de antigamente ficaram
reduzidas à presença de algumas espécies. Insta registrar que os quilombolas atribuem à
4 FERREIRA, 2009b. 5 FERREIRA, 2009b. 6 FERREIRA, 2009b.
159
redução da quantidade de água nos rios e córregos também ao consumo de água do
eucalipto, uma árvore de rápido crescimento.
Entrevista concedida por uma liderança da comunidade de Roda D´Água a Gilsa Barcellos, dezembro de 2009:
— Por que o rio Piaba ficou assim? E essa cor escura da água?
— Isso aí é poluição, adubo e veneno que eles usam. Quando chove, o veneno vem da plantação pra água. (LIDERANÇA)
— Além do eucalipto, a cana-de-açúcar também afeta?
— Afeta demais, porque eles jogam a mesma coisa, jogam veneno, jogam adubo, aí vai afetando os córregos.
— Que peixe vocês pescavam?
— Pescava Jundiá, cará, morobá, traíra, tudo tinha nesse córrego. Agora o que existe aí é esse morobá que é um peixe muito duro. Tem aquele cascudinho que é também muito duro. Quando seca, eu acho que eles desovam aí e aí, quando chove eles tornam a reproduzir. Mas os outros o veneno matou. Tinha vez que a gente chegava aqui a gente via aqueles peixe boiando, tudo paradinho, tava morrendo por causa da poluição.”
6. A coleta de madeira ficou inviável em função do desmatamento praticado pelas
empresas, bem como pela proibição por parte dos órgãos ambientais de tirar madeira
das poucas áreas de floresta que ainda restam. Quem ousa tirar uma vara de madeira
sofre com a perseguição da empresa de segurança da Aracruz/Fibria (antes, VISEL e
hoje, GARRA), bem como da polícia ambiental e do IBAMA. A falta de madeira implica
diretamente num custo maior para as famílias construírem suas casas de moradia e de
farinha. Os quilombolas ainda coletam matéria-prima para artesanatos, como cipós e
palhas, confeccionando produtos como cestas e vassouras, apesar das matérias-primas
não serem mais encontrados em abundância como antes.
Todas essas mudanças contribuíram para que, na atualidade, os trabalhos realizados pelas
pessoas da comunidade sejam bastante distintos daqueles desenvolvidos outrora, além de
resultar em condições de vida mais precárias.
Em relação às políticas implementadas pela empresa no campo da geração de trabalho e
renda para as comunidades quilombolas, pôde-se observar que a mesma desenvolveu ações
pontuais, divulgadas em relatórios anuais. Em seu Relatório Social e Ambiental de 2003, consta
a realização de um mutirão na comunidade de Coxi para o cultivo de pimenta-malagueta
destinada à indústria de alimentos. Segundo ela, a iniciativa envolveu a doação de serviços e
insumos agrícolas para o tratamento de dois hectares de terras, objetivando a produção de 40
toneladas/ano por ha. (ARACRUZ CELULOSE, Aspectos Econômicos e Sociais, Ação
160
Social/Comunidades 2004, p.1). No entanto, segundo a Comissão Quilombola, o projeto não
deu certo e, por isso, foi paralisado.
Em seu Relatório de Sustentabilidade de 2004, a empresa divulgou a implantação de uma
horta comunitária em São Jorge e o início da reforma das instalações e maquinários da Casa de
Farinha de Linharinho. De acordo com uma liderança da comunidade de São Jorge, o projeto
de horta comunitária em São Jorge nunca aconteceu. No entanto, lideranças de Linharinho
confirmam a reforma da casa de farinha destinada a quatro pessoas de uma mesma família.
Também, no seu Relatório de 2004, consta a realização de um convênio via Prefeitura de
Conceição da Barra para a coleta de ponta e galhos de eucalipto para comercialização e geração
de renda, envolvendo todas as comunidades. Este convênio, de acordo com Gonçalves Correia
(2006), ocorreu por exigência das comunidades, no entanto, ela envolve as comunidades
localizadas em Conceição da Barra e apenas uma comunidade no município de São Mateus: São
Jorge.
A Aracruz Celulose registra novamente, em seu Relatório de 2004, o seu apoio ao projeto
de pimenta malagueta na comunidade de Coxi; da implantação de horta comunitária em São
Domingos. Esta última atividade, a comunidade diz desconhecê-la, enfatizando que isso nunca
aconteceu. Divulga ainda, neste mesmo relatório, que uma de suas metas é a continuidade do
apoio às comunidades negras rurais:
Metas e objetivos: Implantar projetos de geração de renda que contribuam para o desenvolvimento das comunidades de Coxi, Roda d’Água, Linharinho, Angelin II, Sayonara e São Domingos, através do Projeto de Geração de Renda das Comunidades Negras da região norte do Espírito Santo, em parceria com associações de pequenos produtores rurais locais.
Hoje, conforme a tabela abaixo, na Comunidade quilombola de São Domingos e Santana, o
“facho” constitui a atividade principal para 34,8% das pessoas, seguido pela atividade de roça
(15,4%) e empregado assalariado (6,7%)7. Mais recentemente, aparentemente por causa da
recuperação da crise financeira, a Plantar, empresa terceirizada da Aracruz/Fibria, tem
novamente contratado quilombolas para fazer serviços no eucalipto, sobretudo para a aplicação
de veneno, um trabalho perigoso que tende a causar problemas de saúde.
Entrevista concedida por uma liderança da comunidade de Roda D’Água à Barcellos:
— Agora, minha filha, pra sobreviver, nós temos esse carvão. Muitos tão fazendo carvãozinho aí. Muitos agora, por causa da necessidade, porque tá crescendo a família, muitos carecendo de trabalho, alguns
7 FERREIRA, 2009b.
161
tão empregados na Aracruz. Eu mesmo tenho parente que tá trabalhando, jogando veneno pra matar formiga, com a bomba nas costa, com a bomba, jogando veneno nas formigas, porque limpar eles não limpa mais. Antigamente eles capinavam o mato e era bem melhor, porque não prejudicava, hoje eles jogam veneno pra matar o mato. Agora muitos falam que não pode trabalhar nem dois anos, três anos, porque vai ser prejudicado por causa daquele veneno. (LIDERANÇA)
— Há quanto tempo o seu parente trabalha? Ele tem problema de saúde?
— Ele tá quase um ano. Ele reclama de dor nas costas, sente uma dor nas costelas. Quando ele chega em casa ele fala que sente muita dor.
— Ele recebe o salário e mais o quê?
— Ele recebe só o salariozinho e nada mais.
Chama atenção nas tabelas abaixo (TAB. 23, 24 e 25) que na principal atividade de
trabalho (facho) na comunidade de São Domingos e Santana, 62,5% das pessoas são homens,
diferente das atividades de roça, mais divididas entre homens e mulheres. Isso significa que as
mudanças nos trabalhos produtivos das comunidades implicam também em impactos
diferenciados sobre homens e mulheres.
TABELA 23
Ocupação principal
Ocupação Base % Facho 104 34,8 Estudante 84 28,1 Roça 46 15,4 Empregado assalariado 20 6,7 Aposentado 19 6,4 Do lar 12 4,0 Desempregado 09 3,0 Outros 05 1,7 Total 299 100
Fonte: RTID das Comunidades Quilombolas dos córregos São Domingos e Santana (INCRA, 2009).
162
TABELA 24
Ocupação principal por faixa etária
Ocupação Idade por faixa-etária Facho Roça Estu-
Dante Aposen-tado
Assala- riado
Outros Do lar
Desem-pregado
Total
0 a 11 anos - - 44 - - - - - 44 12 a 18 anos
05 06 36 - 01 - - - 48
19 a 24 anos
32 05 03 - 05 01 07 02 55
25 a 34 anos
28 03 - - 09 01 03 04 48
35 a 44 anos
21 05 - - 01 01 - - 28
45 a 59 anos
09 21 - 03 02 02 02 - 39
60 anos ou mais
01 04 - 16 01 - - - 22
Total 96 44 83 19 19 05 12 06 284 Fonte: RTID das Comunidades Quilombolas dos Córregos São Domingos e Santana (INCRA, 2009).
TABELA 25
Ocupação principal por sexo
Sexo Ocupação Feminino Masculino
Total
39 65 104 Facho 37,50% 62,50% 100% 24 22 46 Roça 52,20 47,80 100% 35 48 83 Estudante 42,20% 57,80% 100% 13 06 19 Aposentado 68,40 31,60 100% 06 14 20 Assalariado 30% 70% 100% 01 04 05 Outros 20% 80% 100% 12 - 12 Do lar 100% 100% 01 06 07 Desempregado 14,30% 85,70% 100% 131 165 296 Total 44,30% 55,70% 100%
Fonte: RTID das Comunidades Quilombolas dos Córregos São Domingos e Santana (INCRA, 2009).
Em relação às pessoas que mantêm uma atividade secundária de renda em São
Domingos e Santana, o facho aparece na tabela abaixo (TAB. 26) como principal atividade
secundária com 79,4%, diferente da roça que fica com 5,9%.
163
TABELA 26
Ocupação secundária
Segunda ocupação Base % Facho 27 79,4 Estudante 04 11,8 Roça 02 5,9 Venda de Vassoura 01 2,9 Total 34 100
Fonte: RTID das Comunidades Quilombolas dos Córregos São Domingos e Santana (INCRA, 2009).
A coleta do facho, galhos que sobram depois do corte dos eucaliptos realizado pela
Aracruz/Fibria, sempre foi uma atividade proibida pela mesma, mas ocorria, mostrando a
contínua disputa pelo território entre as comunidades e a empresa. Os quilombolas coletam o
facho para fazer o carvão, o que se tornou mais popular a partir de 2003, quando o preço do
carvão pago pela indústria siderúrgica começou a subir. Por isso, começaram a intensificar essa
atividade e, com isso, obrigaram a empresa a ceder áreas para os grupos fazerem a coleta. Isso
inclusive atraiu antigos moradores. Os dados divulgados pelo INCRA (2009) revelam que os
moradores de São Domingos e Santana foram as que mais se envolveram nessa atividade.
Nessas comunidades, foi criada uma associação para organizar a coleta do ‘facho’, denominada
Associação dos Pequenos Agricultores e Lenhadores de Conceição da Barra (APAL-CB) 8. O
processo que levou à criação da APAL-CB é explicado mais a frente por Gonçalves Correia
(2006).
Outro aspecto observado pelo presente estudo é a chamada “cultura carvoeira” que
começa a se consolidar junto à nova geração quilombola. É mais comum do que se imagina
quando se pergunta a uma criança ou a um adolescente o que quer ser quando crescer, obter
uma resposta imediata: “carvoeiro como o meu pai”. O relato do sr. Arisvaldo de Jesus,
morador da comunidade quilombola de São Jorge, exemplifica bem a questão: seu filho de sete
anos construiu, ao lado do forno que utiliza para a produção de carvão, um pequeno forno onde
ele mesmo produz “um carvãozinho” e comercializa dentro da comunidade: “O pessoal quando
vai fazer churrasco, vai lá em casa comprar carvão dele” Observa-se um profundo incômodo do sr.
Arisvaldo ao relatar o fato, porque, segundo ele, a atividade é muito sofrida e causa danos à
saúde. Ele prefere que o seu filho estude e “seja alguém na vida”. Sr. Arisvaldo perdeu um dos
8 FERREIRA, 2009b.
164
seus cinco filhos, um cunhado e um primo de sua esposa Estela por motivo de
envenenamento. Para ele, a culpa das mortes é da Aracruz e da empresa terceirizada, na época,
para aplicação de agrotóxicos nos monocultivos de eucalipto. Ainda assim, ele mesmo já
trabalhou na aplicação de veneno para a Plantar, outra que pratica a capina química nos talhões
de eucalipto.
Tal questão desvela que as alterações culturais advindas da perda da terra e a
impossibilidade de realização dos trabalhos tradicionais levam a nova geração a incorporar,
como naturais e possíveis de serem reproduzidas por eles, práticas de trabalho que se dão em
condições subumanas.
Atualmente, a fabricação do carvão perdeu terreno para a simples coleta e venda direta
do “facho” que é usado como lenha pelas olarias na região de Campos. Um dos trabalhadores
no facho avalia que a coleta do facho não terá muito futuro já que a Aracruz pretende acabar
com essa atividade ao introduzir uma máquina que é capaz de deixar apenas 5 cm da ponta de
eucalipto, enquanto as mais antigas deixavam 2,8 a 3,0 m. Além disso, cada vez mais pessoas
têm se envolvido no facho, reduzindo também a renda dos trabalhadores e das trabalhadoras.9
Uma liderança de Roda d´Água também comenta o assunto (entrevista concedida a Barcellos,
em dezembro de 2009):
— Vocês pegam o facho com o consentimento da Aracruz?
— O que eles deixam a gente pega, antes eles cortava e deixava muita ponta, mas agora, eles mudaram o tipo de máquina e eles não deixam nada pra trás. Pra juntar um carro de madeira. Aí só aproveita mesmo aqueles que quebra, aqueles seco, né, Eles não tão deixando mais, não.
Os dados apresentados pelos Relatórios de Identificação e Delimitação (RTID) dos
Territórios Quilombolas do Sapê do Norte, publicados entre os anos de 2006 e de 2009, os
depoimentos de membros das comunidades quilombolas, as pesquisas de caráter acadêmico
ocorridas na região (SILVA, 2008; FERREIRA, 2002 e 2009a; GONÇALVES CORREIA, 2006,
entre outros), de organizações não governamentais (FASE, 2002), bem como o trabalho de
campo para a realização do presente estudo, comprovam a explícita violação do direito humano
dos remanescentes de quilombos do Sapê do Norte ao trabalho digno (Toda pessoa tem o direito a
trabalhar para viver com dignidade - OG 18) e denunciam o Estado brasileiro por seu papel ativo
no processo de expropriação territorial, ocorrido a partir da década de 1970, e por ter
fragilizado as formas tradicionais de vida desta população.
9 FERREIRA, 2009b.
165
O presente relatório observa que o acesso à terra pelas comunidades quilombolas
apresenta-se como condição fundamental para ampliar as possibilidades de trabalho,
principalmente no que se refere à agricultura; que a geração de renda por meio da produção do
artesanato depende substancialmente das recuperações territorial e ambiental.
IV. 2 - IMPACTOS SOBRE O DIREITO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA E DIREITOS AFINS: O RELATÓRIO SOBRE O DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA (DHAA)
A perda de terras e o plantio da monocultura de eucalipto afetaram significativamente a
produção de alimentos das famílias quilombolas, comprometendo a sua segurança alimentar.
Estes fatos levaram, em 2008, a Comissão Especial de Acompanhamento e Apuração de Denúncias
Relativas à Violação do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) para a região do Sapê do
Norte. Trata-se de uma Comissão Especial, oficialmente constituída pela Resolução 12, de 2005,
do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, órgão vinculado à Secretaria Especial
dos Direitos Humanos da Presidência da República. A Comissão Especial visitou as
comunidades de São Jorge e São Cristóvão e realizou audiências com diversos órgãos públicos,
além de consultar o relatório do Seminário sobre Segurança Alimentar e Nutricional nas
comunidades quilombolas, realizado pela Comissão Quilombola, pela Federação de Assistência
Social e Educacional (FASE) e pelo Fórum Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional.
Após o trabalho de campo, a Comissão Especial concluiu que “O modelo regional de
desenvolvimento, implantado a partir dos ditatoriais anos 70, baseado na monocultura em larga
escala de eucalipto de rápido crescimento trouxe um grave conjunto de impactos sociais,
econômicos, culturais e ambientais para as famílias quilombolas do Sapê do Norte”. 10 Revelou
ainda que:
A ocupação dos territórios quilombolas do Sapê do Norte pela monocultura de eucalipto foi apontada como a principal causa de insegurança alimentar e nutricional das comunidades, pois a monocultura do eucalipto tem provocado um intenso processo de desestruturação do seu modo de vida tradicional e do sistema de produção agroextrativista, o qual anteriormente garantia alimentação diversificada às famílias.[...]. Segundo os quilombolas, o quadro de insegurança alimentar teria ficado ainda mais dramático pelo alto nível de desemprego provocado pela monocultura de eucalipto que é altamente mecanizado.
10 Comissão Especial de Acompanhamento e Apuração de Denúncias Relativas à Violação do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), “Relatório da Comissão Especial de Acompanhamento e Apuração de Denúncias Relativas à Violação do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) nas comunidades quilombolas Sapê do Norte no Estado do Espírito Santo”, Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humano, 2009.
166
As questões levantadas pela comissão são reafirmadas pelas entrevistas realizadas
durante o trabalho de campo para a elaboração do presente relatório. Os entrevistados
garantem que antes da chegada da monocultura de eucalipto as comunidades dispunham de
segurança alimentar já que havia fartura e diversidade de alimentos. Entrevistas concedidas à
Barcellos em dezembro de 2009:
A gente aqui na roça, a gente... quando, antigamente, nos só ia na rua comprar o sal e roupa só, o resto era tudo daqui da roça. Era cana, tinha cana, moía cana, bebia café de calda. Tinha café, criava porco, galinha, porco ficava solto nesse brejo aí de meu Deus. Aí, chegava de tarde, meu pai chamava, e vinha os porcos tudinho. (LIDERANÇA, Comunidade de Roda d’Água)
Dentro da roça de mandioca, plantava de tudo. Plantava roça de
mandioca, ali dentro eles plantavam feijão, plantavam milho, plantava batata, plantava abóbora, cana, tudo isso, e aí a mandioca também como servia para fazer a farinha, como criava criação, porco, galinha, tudo era a base da própria mandioca, então o pessoal tinha tudo, tinha galinha a vontade, tinha porco, tinha gado, não era todos que tinham, mas a maioria dos pessoal tinha, tinha animal (...)hoje não tem mais lugar para criar os animais. Aqui no brejo você podia criar porco à vontade. (LUZIA, Comunidade de São Domingos).
Aqui a gente produzia tudo. O forte da região era mandioca, mas tinha
café, tinha laranja, tinha muitas laranja, banana, tinha muita, muito abacaxi. As famílias ia mais na Barra pra comprar o sal e a querosene. Tinha cana-de-açúcar, o pessoal passava a semana toda moendo cana pra fazer açúcar, porque tinha engenho. E hoje você tem que comprar é tudo, né. Colhia comida o ano todo e não faltava nada. (LIDERANÇA, Comunidade de Linharinho)
Por outro lado, depois da chegada da monocultura de eucalipto, plantar, caçar e pescar,
atividades principais para a garantia dos alimentos, ficaram muito mais difíceis. Em alguns
casos, impossíveis de serem praticadas. Entrevistas concedidas à Barcellos (2009):
Eu acho que o eucalipe vai chupando a água da terra porque tá muito
seco. Pode chover uma semana, quando dá três dias a senhora pode capinar e tá tudo seco. Antigamente, quando chovia, a gente plantava e ficava molhadinho direto. Agora não, a gente planta, mas não dá de jeito nenhum. Eu tenho uma hortinha, aí eu molho de manhã e de tarde e parece que você nem jogou água. (LIDERANÇA, Comunidade de Roda D’Água)
Foi a maior desgraça como se diz na popularidade da gíria que o povo
fala, mas é a realidade: foi a maior desgraça, não só para mim, para tudo mundo, e principalmente para os jovens. Na década de 70, isso aqui ó, era tudo córrego, isso aí você passa aí e já tava lá dentro da água. A terra era toda molhada, você pegava enxada. Você pode plantar, aqui já colhi
167
banana, já colhi feijão, já colhi mandioca, tudo aqui. Quanto à hoje, não dá nada. (LEDRIANDO, Comunidade de São Domingos).
Porque a caça também sumiu, mas não foi porque o povo matava, sumiu
porque acabava as matas, o lugar onde ela ficava, e também muito veneno né? Porque o pessoal encontrava muita caça morta. Bate o veneno no eucalipto, aí, quando bate a chuva aquilo vem tudo pros córregos, por isso, acabou. Isso que matou os brejos. (LUZIA, Comunidade de São Domingos)
A Comissão Especial alertou que o programa de distribuição de cestas básicas do
Governo Federal feita pela CONAB abrange apenas sete das mais de 30 comunidades
quilombolas, “embora as 32 comunidades não atendidas [...] também estejam em situação de
insegurança alimentar e nutricional”. E mesmo para as sete comunidades incluídas no Programa
as cestas não vêm com regularidade e nem todas as famílias as recebem. Conforme lideranças
ouvidas durante a realização deste estudo (Barcellos, dez. 2009):
Hoje, em Linharinho, 45 famílias recebem cesta básica do Governo Federal. Não há regularidade. A entrega da cesta acontece, em média... Uma cesta vem de dois em dois meses (LIDERANÇA, Comunidade de Linharinho)
Quantas famílias recebem cesta básica da Conab aqui em Angelim I,
Terezino? (ENTREVISTADORA) Umas 20 famílias. Mas não chega todo mês. É daquele modelo, né.
Quando eles mandam serve de complemento para alimentação (TEREZINO, Comunidade de Angelim I).
A Comissão Especial acrescenta que “Da mesma forma, nenhuma medida estruturante vem
sendo realizada junto ao programa e permanecem as principais violações ao direito humano à alimentação,
como a falta de acesso à terra e à água, desemprego, degradação ambiental, aos serviços de saúde, entre
outros.”
A Comissão Especial constata que “não existe atendimento médico nas comunidades, mesmo
as prefeituras recebendo um aporte em dobro de recursos por terem comunidades quilombolas em seus
territórios”. Em relação à alimentação escolar, a Comissão afirma que “foi relatado que a
alimentação oferecida nas escolas não respeita a sua cultura alimentar e tem colaborado com o processo de
desvalorização da cultura alimentar tradicional”.
A Comissão Especial toma como referência três instrumentos jurídicos, dois internacionais e
um nacional, e conclui que:
a) Há violação ao Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), considerando a Lei
Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional – LOSAN – nº 11.346/2006, que no seu
168
art. 2 considera que “A alimentação adequada é direito fundamental do ser humano (..)”, e
“devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e
garantir a segurança alimentar e nutricional da população”.
b) Há a violação do art. 11 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais pelo fato de o Estado brasileiro não garantir a proteção do direito à
alimentação adequada com dignidade.
c) Há a violação do Comentário Geral 12 do Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais que afirma que “o acesso físico e econômico aos recursos produtivos, inclusive o
acesso à água e à terra, assegurado juridicamente, é condição essencial para a realização do direito
a se alimentar”.
A partir das visitas às comunidades de São Jorge e São Cristovão, a Comissão Especial
deixa claro que o que embasa o DHAA na população quilombola é “a posse definitiva da terra”.
Junto com a falta de espaço para plantar e criar animais para a subsistência, as poucas
oportunidades de emprego e geração de renda, a situação de insegurança alimentar e
nutricional comprometem mortalmente a realização do DHAA nas comunidades.
Outra questão identificada pela Comissão foi a violação do direito à água, garantido na
Constituição Federal, na Lei 9.433/97, na Convenção contra todas as formas de Discriminação e
Tortura contra a Mulher de 1979 (ratificado pelo Brasil em 1984) e na Convenção sobre os
Direitos da Criança de 1989 (ratificado pelo Brasil em 1990). O Sistema Interamericano de
Direitos Humanos tem o art. 11 do Protocolo de São Salvador como instrumento deste direito. A
Comissão constatou “a violação do Direito à Água das Comunidades Quilombolas de Sapê do Norte,
pois as famílias não têm acesso à água em quantidade e qualidade suficientes para o consumo humano e
produção de alimentos”.
IV. 3 - O PROCESSO DE CRIMINALIZAÇÃO E OS CONSTRANGIMENTOS ENFRENTADOS PELOS QUILOMBOLAS DO SAPÊ DO NORTE
Desde a chegada da Aracruz Celulose S/A (ARCEL) e das usinas de álcool ao seu
território, a população quilombola do Sapê do Norte tem travado uma batalha cotidiana para se
manter, espremida, em fragmentos de terra cercados por eucalipto e cana-de-açúcar. Sem
quaisquer condições para desenvolver a agricultura e a pesca, muitos buscam trabalho fora de
suas comunidades em empresas e comércios de regiões próximas. No entanto, em decorrência
da discriminação racial existente na região somada ao processo de desmoralização dessas
169
populações desencadeado por fazendeiros ligados ao Movimento Paz no Campo (MPC),
Aracruz Celulose (Fibria), mídia local e até mesmo por algumas autoridades públicas, um ou
uma quilombola possui pouca ou nenhuma chance de ser inserido(a) no mercado de trabalho
das cidades onde vive ou em regiões próximas. Benedita Cassiano, 51 anos, em entrevista
concedida a Antônio Rodrigues de Oliveira e a Joice Nascimento Cassiano, em março de 2009,
desabafa: “Sou muito criticada e marginalizada por ser uma professora negra e quilombola. Fico triste
pelo fato de não termos as nossas terras, pois os nossos jovens estão deixando as roças para ir para a cidade
em busca de emprego”. Outro relato que fala da discriminação é o da Senhorinha Pereira Martins
de Oliveira, de 57 anos, mãe de nove filhos, da Comunidade Quilombola de Chiado, localizada
no município de São Mateus, em entrevista concedida a Oliveira e a Cassiano, em janeiro de
2009: “Fiquei triste, pois chegou uma pessoa até a mim e disse que os quilombolas são todos preguiçosos e
ladrões de terra”. Afirma que sofreu ameaças há mais ou menos um ano, mas não denunciou o
caso à Polícia, porque não confia nela; que se sente decepcionada com os acontecimentos que
buscam impedir que os quilombolas tenham acesso à terra que lhes é de direito.
Diante das dificuldades e escassez impostas, muitos(as) chefes de família encontraram
como única forma de subsistência a coleta de resíduos de eucalipto – denominados de facho –,
para a produção de carvão, que é comercializado na região. Até o ano de 2004 a empresa
permitiu que quilombolas e/ou carvoeiros pegassem os resíduos de madeira para a produção de
carvão. No entanto, alegando que tal atividade lhe traz problemas de ordem tributária e
trabalhista, decidiu suspender as “doações de resíduos”. De acordo com informações da Aracruz
Celulose11, as carvoarias da região se utilizavam de mão-de-obra infantil, falta de equipamentos
de proteção individual e desrespeito às práticas de segurança, sujeitando-a a ações judiciais por
co-responsabilidade, levando-a a pagar indenizações trabalhistas na ordem de R$400 mil, com o
risco de pagamento de mais R$ 600 mil. Atualmente, a empresa só permite a retirada do
resíduo pela APAL-CB (Associação dos Pequenos Agricultores e Lenhadores de Conceição da
Barra), associação cuja fundação foi estimulada pela Aracruz. Esta associação é composta, em
sua maioria, por membros de comunidades quilombolas da região, todavia, institucionalmente,
não pode ter qualquer vínculo a questão quilombola, segundo critérios da própria empresa.
Sobre essa questão, escreve Jefferson Gonçalves Correia, em sua monografia defendida em 2006:
Até o início do ano de 2003, uma empresa terceirizada pela Aracruz Celulose realizava o trabalho de coleta de resíduos de eucalipto. Mesmo tendo suas
11 www.aracruz.com.br/doc/pdf/rs2004.pdf
170
comunidades circundadas por talhões de eucalipto, os quilombolas eram oficialmente excluídos desse processo. No entanto, alguns destes, no município de Conceição da Barra, insistiam em colher o “facho” por sua conta e risco, até que houve, na comunidade São Domingos, a prisão de cinco quilombolas, acusados pela empresa de invasão de propriedade e furto, causando a reação imediata daquela comunidade, que se aglomerou na porta da delegacia. O reflexo disso foi a intervenção do prefeito e de um vereador, que atuaram como mediadores entre empresa e quilombolas. O argumento de um dos líderes do movimento, Domingos Firminiano dos Santos, o Chapoca, foi o seguinte: “Estamos apenas reivindicando o que é nosso, porque essa empresa tomou nossas terras”.
Como a empresa exigiu que somente negociaria com um grupo associado, os quilombolas daquele município fundaram a Associação das Comunidades Rurais Quilombolas de Conceição da Barra, da qual Chapoca foi eleito presidente. A empresa exigiu que para negociar com a recém criada entidade, o termo quilombola deveria ser retirado. Como não houve acordo, a empresa incentivou a criação de uma outra entidade, já citada e hoje em atuação: APAL-CB, que cadastrou oito comunidades de Conceição da Barra e duas de São Mateus, que apresentaram suas demandas, sendo umas delas a comunidade São Jorge que compõe, a partir disso, uma entidade de outro município. Tal feito pode ser considerado um grande negócio para a Aracruz Celulose, pois se esquivou de reconhecer oficialmente a existência de quilombolas em sua área de atuação (GONÇALVES CORREIA, 2006, p. 31-32).
Em resposta à nova estratégia de sobrevivência das comunidades, a Aracruz
Celulose/Fibria, por meio de suas empresas de segurança terceirizadas, juntamente com o
Movimento Paz no Campo (MPC), contando o apoio das polícias (civil, militar/ambiental) e do
poder judiciário local (a exemplo do ocorrido no dia 11 de novembro de 2009, questão abordada
logo abaixo), estabeleceram um forte controle das áreas no entorno das comunidades
quilombolas. Ao mesmo tempo, buscaram desenvolver ações criminais contra aqueles que
insistem na coleta do facho e não integram a APAL-CB, levando a um processo de
criminalização de diversas de lideranças e trabalhadores(as) quilombolas. Seguem alguns
relatos que testemunham os acontecidos no Sapê do Norte.
Sebastião Nascimento, 57 anos, quilombola da Comunidade de São Cristóvão, relata,
em entrevista a Gilsa Helena Barcellos, em janeiro de 2009, que participa já algum tempo do
movimento que busca retomar o território quilombola e que esta é uma luta que incomoda.
Pessoas do entorno que conviviam com moradores da comunidade, diziam-se amigas,
desenvolviam parcerias de trabalho com membros da comunidade, se afastaram e, atualmente,
ameaçam quilombolas por terem medo de perder suas terras e fazendas quando o território for
demarcado. Ele já recebeu convite do fazendeiro Edis Bonomo para uma reunião, mas não
aceitou, porque acha que a questão não se resolve numa conversa entre duas pessoas. Na sua
visão, o fazendeiro tem que discutir a sua situação com o INCRA, que tem a responsabilidade
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de demarcar e regulamentar a terra quilombola, bem como, fazer as indenizações
necessárias. Segundo ele, as mais ameaçadas são as lideranças da comunidade: ele, seu irmão,
Antônio do Nascimento, Adilson Sobrinho dos Santos, Nilson Modesto, Joanilson Nascimento e
Clemilson Modesto Nascimento. As ameaças iniciaram em 2006 (período em que foi realizado o
RTID das Comunidades de São Cristóvão e Serraria pelo INCRA) e partem, especialmente, dos
fazendeiros que integram o Movimento Paz no Campo (MPC) “O meu irmão teve uma conversa
séria com o proprietário”. As ameaças, segundo o seu Sebastião, interferiram no processo de
organização e mobilização comunitária. Todos ficaram receosos e com medo devido às
represálias. Na última reunião da Associação de São Cristóvão, criada pela comunidade, em
2006, compareceram apenas 23 pessoas, sendo que residem ali 32 famílias e 175 pessoas. Depois
das ameaças, seu Sebastião parou de freqüentar determinados estabelecimentos comerciais,
porque não se sente mais bem-vindo e não vai às festas fora da comunidade. Também evita
andar à noite com medo de uma abordagem surpresa. O entrevistado disse se sentir angustiado,
sobrecarregado e com medo de viajar para longe de casa e ficar em lugares isolados; tem receio
de vingança ou retaliação.
Eu trabalho desde os nove anos. Meu pai sempre me ensinou a respeitar o direito dos outros, a viver honestamente, mas também me ensinou para que eu lutasse. Estou dentro da luta por um direito que foi sonegado. É uma luta por um direito que eu não quero abrir mão. A gente queria que a Justiça e os Meios de Comunicação olhe pra gente. Hoje, a gente tá cercado igual num curral. O governo colocou a gente nessa situação e a gente luta sem parar; que seja uma luta com menos dor e menos sofrimento. Os jovens querem sair para procurar emprego, vão para São Mateus e Vitória. Muitos jovens que se formaram em escola agrícola vão para a cidade. Noventa por cento dos jovens aqui estudam em escola família. Depois se formam, infelizmente, aqui não há trabalho e na cidade não tem emprego, porque estudaram em escola família (NASCIMENTO).
Outro morador de São Cristóvão, Antônio Nascimento, 66 anos, relata em entrevista a
Kátia Santos Penha, em janeiro de 2009, que tem medo de assinar alguns tipos de documentos;
tem medo dos representantes do MPC e das suas ofensas, que chama os quilombolas de
vagabundos. Por ser uma liderança da comunidade, tem medo de ser alvo dos fazendeiros,
porque está na luta pelo território. Segundo ele, já foi constrangido várias vezes pelos
representantes do MPC. Em 2008, sofreu ameaças de uma de suas lideranças. Em São Cristóvão
e Serraria não há terra da Aracruz Celulose/Fibria, o que há são fazendeiros que praticam o
fomento florestal e são protagonistas do MPC.
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Wellington Ayres Valentim, 29 anos, pai de cinco filhos, morador de São Jorge,
relata, em entrevista concedida a Penha, em janeiro de 2009, que já foi preso: “Motivo é que
peguei uma lenha da Aracruz e eles me prenderam. Quando a Visel chegou e disseram que a lenha era da
Aracruz, a Visel ligou para a polícia e me levou para dar depoimento. Quando chegamos, o delegado fez
perguntas e me deu voz de prisão”. Ele ficou dois dias preso. Isso aconteceu em novembro de 2008.
“Esse processo continua aberto, porque temos que todos os meses ir até São Mateus [nos apresentar]”.
Quando perguntado se já havia sofrido ameaças antes de 2008, ele respondeu: “Sim e se hoje eu
estou no facho é porque não consegui emprego”. Depois de 2008, passou a sentir medo, desconfiado
de tudo, sente medo de multidão e lugares públicos. Por causa disso, recebe acompanhamento
psicossocial.
José Geminiano Francisco (vulgo Zé do Leite), 53 anos, também quilombola da
Comunidade de São Jorge, relata em entrevista a Barcellos, em janeiro de 2009, que sofreu
ameaças: “Foi uma ameaça para desanimar a luta pelo território. A pessoa ameaçou dizendo que eu
estava correndo risco de vida; que ele não andava armado, mas que outras pessoas estariam armadas e
poderiam atirar em mim. A Aracruz não ameaça, os fazendeiros fazem isso por ela”. José conta que
houve disseminação de boatos que assustaram as pessoas da comunidade. Diziam, segundo o
entrevistado, que os quilombolas que saíram da terra iam voltar e que tudo o que fosse
produzido por um agricultor seria destruído. Ele sofre pressão para vender o seu pedaço de
terra. Conta que o seu pai tinha 60 alqueires, mas seus irmãos venderam. Ele foi o que
conseguiu ficar com seis alqueires de terra. Relata ainda que em uma das famílias de São Jorge,
dois membros trabalhavam na Aracruz, mas foram demitidos por causa da luta. Vivem numa
casa com três famílias. O pai trabalha fora e os outros membros têm que fazer carvão para
sobreviver. “Existe muita miséria e dificuldade de trabalho e de conseguir alimento. Recebem uma cesta
básica da CONAB mas não é suficiente”. Segundo José, “[...] outras pessoas da comunidade São Jorge
foram ameaçadas e presas por causa da Aracruz Celulose”. Depois das ameaças, tem receio de andar
sozinho pelas estradas e de viajar para longe de casa. José fala da importância da construção de
três casas de farinha em São Jorge:
Isso permitiria a produção e a venda da farinha. Os jovens saem da comunidade, porque não têm trabalho e terão que enfrentar a polícia da Aracruz. Precisa ter terra para os meninos. Os jovens que vão para a cidade ficam sujeitos à situação difícil, como o uso e venda de drogas. É preciso também pensar alternativas para as mulheres, que não têm fonte de renda.
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Além disso, José Geminiano Francisco é citado no livro publicado pelo MPC, “A
Revolução Quilombola”, de forma bastante depreciativa.
Ezaques Aires de Faria, 26 anos, de São Jorge, entrevistado por Penha em janeiro de 2009,
relatou que ele e outro colega estavam coletando resíduos de eucalipto na área que foi
desmatada para passar o gasoduto da Petrobrás (ver relatório sobre a ação da Petrobrás no
território quilombola -ANEXO VI), quando foram abordados por um chefe da Aracruz
Celulose, o Tadeu. Este ligou para a Visel e para a Polícia Militar, que abordaram os dois
quilombolas e os levaram dizendo que era para dar apenas um depoimento, mas acabaram
presos por 24 horas no DPJ de São Mateus. Ele e o parceiro foram liberados, mas não ficaram
sabendo se iria ter processo contra eles.
Antônio Trindade Alves, 39 anos, de Angelim I, em entrevista a Oliveira e a Cassiano,
relatou que ocorreu um incêndio em uma área de plantio de eucalipto e se estendeu para a mata
nativa (Parque de Itaúnas). Trindade se refere ao incêndio que destruiu 30 hectares de
vegetação nativa do Parque de Itaúnas, ocorrido em outubro de 2008. Segundo ele, há
evidências que o gerente do parque denunciou a comunidade de Angelim I como uma das
responsáveis de ter ateado o fogo: “[...] sem ter nenhuma prova, só pelo fato da gente estar num
processo de retomada do nosso território quilombola, o promotor foi logo falando que ele poderia prender
nós, deixar nós presos pelo menos três meses na cadeia. Isso nos causou um grande constrangimento, pois
não somos bandidos”.
Terezino Trindade Alves, 23 anos, de Angelim I, em entrevista a Oliveira e Cassiano,
em janeiro de 2009, relata que foi preso pela polícia militar e encaminhado para a Promotoria de
Conceição da Barra sob suspeita de ter incendiado um talhão de eucalipto da Aracruz Celulose.
“A própria justiça acusando os quilombolas e defendendo a empresa. Fui ameaçado diretamente por um
espião da empresa cujo nome é Sr. Samuel, presidente de uma falsa associação de reabilitação de aves de
rapina na Vila de Itaúnas. Segundo o entrevistado, ele foi levado de viatura policial para a
delegacia de Conceição da Barra, onde queriam forçá-lo a assumir a autoria do crime. Depois,
foi indiciado e passou a responder processo. Não sabe como está o andamento do processo.
Terezino é uma das principais lideranças quilombolas jovens que integram à Comissão
Quilombola Sapê do Norte.
Alves também faz outros relatos sobre acontecimentos mais recentes (entrevista
realizada em fevereiro de 2009, por Gilsa Barcellos). Alves afirma que os quilombolas querem
demarcar o seu “território para resgatar a nossa dignidade, a nossa identidade, recuperar as nossas
matas, os nossos rios. A realidade de Angelim I está no contexto de toda a realidade do Sapê do Norte. A
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realidade das comunidades é a mesma, por isso lutamos, nos organizamos para recuperar o nosso
território, para recuperar a nossa dignidade”. Fala das dificuldades sofridas em decorrência da
destruição ambiental ocorrida na região: “Tem mais de três meses que não chove na nossa região. A
gente não tem um apoio político para desenvolver a agricultura quilombola, de base familiar, que atende a
todo sustento da família. A nossa comunidade está muito fragilizada porque sente o impacto da seca. E
além de não ter a terra para produzir, não tem chuva, não tem apoio político para dar incentivo, suporte a
comunidade, então a vida fica muito difícil. E continua:
Depois que a Aracruz apareceu, a solução que apareceu com a escassez da terra, a forma de sobreviver, a alternativa de sobreviver principal na nossa comunidade é fazer o carvão, assumir o trabalho da carvoeira. A gente vê muito jovem na atividade do carvão, muito jovem saindo da comunidade. Então, cada dia que passa, só aumentam as dificuldades, a depressão e o desemprego. Com a perseguição da empresa de vigilância [da Aracruz], que inibe, ameaça, invade a comunidade, leva a polícia, agride as pessoas, essas coisas vão entristecendo, desanimando a comunidade. Como aconteceu no último dia 14 (14 de janeiro), do mês passado a gente teve uma situação muito constrangedora, a polícia invade a comunidade à procura de uma pessoa que não estava lá, invade uma casa, constrange a família. Então, isso aconteceu na comunidade. Essas coisas acontecem de vez em quando e a situação fica cada vez mais grave. A gente sabe que isso é conseqüência da chegada da Aracruz no nosso território. A gente vive tomando pancada, mas a gente continua na luta porque a gente precisa reconquistar o território para os nossos filhos, para os nossos netos.
Claudentina Trindade Alves, 60 anos, mãe de Terezino e Antônio, em entrevista a
Oliveira e Cassiano em janeiro de 2009, falou do seu sofrimento ao presenciar seus filhos serem
presos:
Em decorrência dos fatos acontecidos, na questão dos incêndios que
ocorreu no período da seca, eu me senti muito mal com aquela situação, pois na idade que estou nunca vi uma cena daquela: meus filhos sendo levado na viatura policial, como se eles fossem bandidos. No desespero eu também entrei na viatura da polícia. Fiquei muito constrangida com o que o promotor disse pra nós. Ele disse que era pra nós desistir de lutar, porque a empresa é muito poderosa e não tem ninguém que pode com ela. Ele disse também que todos os incêndios que teve na região, nós da comunidade vamos ser apontados como culpados. É muito difícil pra nós da comunidade sendo visto passar dentro de uma viatura. Isso está denegrindo a nossa imagem. Isto tem denegrido a imagem do movimento. Queremos que parem de nos marginalizar.
Ela nunca denunciou os constrangimentos sofridos, porque não confia na Justiça local.
Desde o acontecimento relatado, Dona Cladentina Alves se sente angustiada, com medo,
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desconfiada das autoridades públicas. Tem medo que haja qualquer retaliação por parte da
empresa contra os seus filhos.
Auzerina Baptista, 62 anos, da Comunidade Angelim I, em entrevista a Oliveira e
Cassiano, em janeiro de 2009, relatou:
Fui abordada e ameaçada quando as polícias invadiram a comunidade com suas viaturas. Foi muito triste quando ameaçaram de me processar por tirar madeira. Foi muito constrangedor para mim, uma mulher da minha idade ser acusada de entrar na área da Aracruz e tirar madeira. Foi uma situação muito chata. Ficamos muito assustados ao ver tantas armas nas mãos daqueles homens todos que estavam a mando da Justiça, que vive oprimindo as comunidades e acusando de incendiar áreas de eucalipto.
Baptista, ao entrar em uma das áreas de plantio de eucalipto no entorno de sua
comunidade ficou surpresa ao ser abordada pela polícia. Ficou sem reação, pois nunca tinha
visto isso acontecer antes. Era muito comum ela caminhar pela região, quando existia mata,
para tirar lenha para o seu uso doméstico. Atualmente tem receio de andar ao redor da
comunidade de Angelim I, se sente insegura e com medo.
Bárbara dos Santos, 45 anos, de Angelim II, em entrevista a Oliveira e Cassiano, em
janeiro de 2009, relatou as dificuldades que tem para ter acesso à matéria-prima para a
produção do artesanato: “Fiquei muito triste, pois fomos barrados de tirar o cipó que usamos para fazer
nossos artesanatos para utilização doméstica. O meu cunhado foi abordado pela Visel, quando tirava o
cipó. Além das agressões verbais, a Visel levou o único meio de transporte dele, a bicicleta”.
Jorge de Jesus Carvalho, 38 anos, Roda D’Água, em entrevista a Oliveira, em março de
2009, relatou que sofreu uma ameaça quando ganhou uma madeira do seu irmão, Zélio Alves
Carvalho, vigia da Disa, em uma das usinas de álcool existentes na região:
[...] então, ele pediu pra mim fazer uma limpeza no local onde estava a madeira, pois eles iam plantar cana [...]. No momento que estava empilhando as madeiras chegou o tratorista e o ajudante da Disa para me ajudar a fazer a limpeza e depois carregamos o caminhão e o motorista pediu pra mim levar o caminhão até Santana. Quando cheguei em Santana dois carros da Visel me seguiram e me abordaram. Estava todos dois armados e me pediram a nota e eu apresentei a nota que estava no nome do Luiz, do Canto Mineiro, então, me acusaram de falsificação de nota. Então, eu fui levado até a delegacia, logo seu Luiz apareceu para esclarecer que a nota era verdadeira, mas eles ficaram afirmando que a nota era falsa e me deixaram preso dezoito dias. Foi quando me senti ameaçado e oprimido, quando o guarda da Visel disse
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que se eu resistisse à prisão, que ele ia me dar um tiro na cara. Essas palavras saíram do guarda chamado Robson. No entanto, eu fiquei muito chateado, não pelo fato de estar sendo preso, mas pelo fato da lenha não ser roubada e ele ter falado que ia me dar um tiro na cara e na cara do meu parceiro, que é o Zé Barulho.
Carvalho diz que sempre é chamado para depor e que se sente triste com os
acontecimentos na região, não gosta de ficar em lugares isolados e teme por novas retaliações.
Luiz Carlos Pereira dos Santos, 32 anos, também morador de Roda D’Água, em
entrevista a Oliveira e Cassiano, em março de 2009, relata que existe um processo de acusação
contra ele por furto de madeira. Segundo ele, em nenhum momento, foi encontrada madeira
com ele, mas pelo fato de a polícia ter encontrado três motosserras dentro da sua pequena
propriedade, se sentiu no direito de deixá-lo nove dias presos sem quaisquer provas de que ele
havia furtado ou cortado eucalipto. “O prejuízo foi ter ficado esses dias sem trabalhar, ao mesmo
tempo, sendo difamado e caluniado”. Atualmente, encontra-se em liberdade provisória e
aguardando julgamento. Relata que sempre sofreu ameaças da Visel e, por várias vezes, foi
constrangido e perseguido por ela. Nunca denunciou os abusos à polícia, porque todas às vezes
que ligou para a polícia pedindo ajuda não foi atendido.
Domingos Firmiano dos Santos, 49 anos, uma das principais lideranças quilombolas do
Sapê do Norte, em entrevista a Barcellos em janeiro de 2009, relatou que já sofreu vários
constrangimentos. “Uma vez chegou um cara dizendo que se eu não parasse de lutar, eu ia morrer. Isso
tem uns três anos mais ou menos”. Numa outra vez, segundo Domingos, foi um menino da
comunidade que o avisou. “Ele falou que numa das reuniões que ele esteve o meu nome foi citado:
‘Tem que apagar aquele negão’. Era uma reunião de fazendeiros. É o pessoal que hoje organiza o
Movimento Paz no Campo (MPC). Eles me têm como uma grande liderança, um articulador”. Continua
Domingos: “Eles me processaram quando o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) parou as
carretas. Aí, eles me processaram, mas o processo foi arquivado e mesmo assim apareceu o número do
registro na Justiça Eleitoral [Domingos foi candidato a vereador pelo município de Conceição da Barra].
Ele tentou impedir a minha candidatura a vereador”. Diz ainda Domingos: “Circulam muitos boatos,
criticam os quilombolas, discriminam, acusam de ter vendido terras, mas são boatos criados, produzidos.
Uma vez eu vim no ônibus com uma pessoa e ela me xingou de nego fedorento. Já ouvi uma série de
coisas. Essa pessoa é ligada à direita”. Também registra que fez um boletim de ocorrência, quando
o MPC soltou um folder discriminando a raça negra e os quilombolas. “Isso tem um ano e meio
mais ou menos”. Ele não soube informar quais foram os desdobramentos da sua denúncia
acusando o MPC de racista. Domingos defende maior presença dos Direitos Humanos na luta
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dos quilombolas por seu território. “Porque a gente vive é um apartheid por grupos econômicos. É
uma situação difícil, não tem rumo, não tem saúde, educação e sustentabilidade econômica. Tudo se deu
devido à perda dos recursos naturais como as matas, os animais silvestres, plantas e raízes, artesanato,
comidas típicas e religião”. Depois de todos esses acontecimentos, Domingos relata que tem fortes
dores no estômago em decorrência de uma úlcera. Também começou a fazer tratamento para
pressão arterial. Domingos também denuncia a Indústria produtora de álcool na região: a Disa.
Segundo ele, ela produz mau cheiro, polui o ar e o meio ambiente como um todo. “Há muita
mosca quando param de moer a cana. O vinhoto e o bagaço atraem muitos insetos”. Também, segundo
ele, há muita prostituição, em especial, em Braço do Rio e Sayonara no período do corte da
cana-de-açúcar. “Muitos homens vêm em busca de trabalho e depois retornam para os seus locais de
moradia, deixando meninas grávidas”.
De acordo com a Cartilha “Mulheres e Eucalipto”, publicada em 2007, pelo
WRM, a Promotoria da Vara da Infância e Juventude do Espírito Santo afirma que o
extremo norte do Espírito Santo, local onde vivem as comunidades quilombolas, é onde
se registra o maior número de prostituição infantil do Estado.
Os fatores que mais contribuem para a questão são a pobreza, produzida, em especial, pela monocultura de eucalipto e de cana-de-açúcar, e o trabalho temporário dos cortadores de cana, que vêm de regiões distantes e ficam pouco tempo na região. Isso se agrava ainda pelo fato de a região ser cortada pela BR 101. Cada vez mais surgem notícias de mães adolescentes e mulheres contaminadas por DSTs/Aids.” (BARCELLOS; FERREIRA, 2007, p.38)
Segue o depoimento de uma moradora da comunidade de São Domingos sobre a questão:
— Na nossa região, esse ano, foi o que mais cresceu [ela refere-se à prostituição]. As empresas de cana traz as pessoas de outra região, estão trazendo pra cá. Aqui tem uma que chama Sayonara. A gente teve até uma reunião em Conceição da Barra com o prefeito, umas três pessoas de Sayonara e tinha umas dez das comunidades. Aí a gente falamos sobre isso, porque eles trazem o pessoal para cá. Depois, aqui, eles não quer saber da saúde, polícia... não tem segurança. Aí está dando o maior problema na região, porque o pessoal de menor começa a se envolver muito. Em Conceição da Barra, também, o pessoal colocou que tá tendo demais.” (MARIA GORETI, citada por BARCELLOS; FERREIRA, 2007, p. 38)
Benedito Alves Nascimento, 21 anos, morador de Angelim I, em entrevista a Oliveira e
Cassiano, em janeiro de 2009, relatou que foi abordado pelo guarda da Aracruz Celulose S/A e
pela Polícia Militar ao mesmo tempo.
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Ao entrar na comunidade com tantas viaturas, logo a notícia se espalhou e, aí, começaram os constrangimentos de pessoas nos acusando de ladrões de madeiras e incendiários e até falaram que nós das comunidades deveríamos ir para a cadeia. Fomos ameaçados por estar coletando resíduos de lenha seca em área de reconhecimento quilombola ocupada pela Aracruz.
José Alexandre Santos da Silva. 31 anos, Angelim I, em entrevista a Oliveira e Cassiano,
em janeiro de 2009, relatou que foi ameaçado pela Visel, que puxou uma arma para atirar no
pneu da carroça que ele estava utilizando para carregar pontas de galhos secos. “Uma coisa que
me chamou a atenção é que estávamos pegando os restos de resíduos deixados pela Associação de
Lenhadores. Então, por este motivo, nós resistimos. Não jogamos a lenha no chão”. Há também outras
ocorrências:
Um outro fato que aconteceu recentemente é que estávamos retirando madeira seca para a nossa sobrevivência e cozinhar os nossos alimentos. De repente, nos assustamos com a presença da Polícia Militar, que estava na comunidade. Minutos depois ficou mais assustador com a presença do grupo de operações, com um armamento super pesado.
Alexandre diz que tais acontecimentos alteraram o modo de vida da população e ele,
particularmente, se sente angustiado com toda essa situação de opressão vivida pelos
quilombolas. Também teme pelos seus familiares diante de tanta violência.
Geraldo Alacrino Maria, 26 anos, de São Domingos, em entrevista a Kátia Santos Penha,
em janeiro de 2009, relatou que, há quatro anos, foi constrangido pela Polícia Militar por causa
de resíduos de eucalipto. A sua cambona12 foi presa com dois metros de madeira e foi paga uma
multa de R$1.000,00 (hum mil reais) para liberar o veículo. A madeira desapareceu e nunca
mais foi devolvida. Ele foi processado e não contou com qualquer apoio jurídico. Aconteceu a
primeira audiência em Conceição da Barra, mas a segunda audiência foi cancelada e o processo
ficou parado. Até hoje não sabe em que pé está o processo. Depois desses acontecimentos,
sente-se angustiado. O processo de nº. 015.05.001307-5 – em tramitação – no qual o Ministério
Público é autor. Vigoram, no mesmo processo, como réus: Geraldo Alacrino Maria e Ledriando
Manoel Maria e, como vítima, a Empresa Aracruz Celulose.
Altiane Bladino dos Santos, 39 anos, residente da Comunidade São Domingos, relatou,
em entrevista concedida a Kátia Penha em 2009, o intenso processo de perseguição que está
sendo submetido desde que integrou a luta pela retomada territorial. Altiane relata que sofre
ameaças desde 2005 e que numa dessas visitas inesperadas a “Visel junto com a Polícia Militar
12 Carroceria metálica adaptada ao trator para carregamento de cargas.
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chegou à carvoaria onde estava. O comando da Polícia era de São Mateus”. Elas o abordaram e ele
foi constrangido e processado. Altiane identifica o “Lima”, funcionário da Visel, como o autor
das ameaças. Outros dois processos movidos contra ele são da Aracruz Celulose, que o acusa de
roubar madeira. O outro foi pela retomada de Linharinho. O terceiro foi pela ocupação do
antigo cemitério quilombola, realizado pelas comunidades. Ele foi identificado como um dos
mentores do movimento. “A Aracruz sempre que move uma ação contra os quilombolas vem sempre o
meu nome citado. Eu já estou com seis processos [contra mim] na justiça e não sei quanto mais irá vir
esse ano. Nenhum processo meu foi arquivado. Nós do movimento quilombola temos que ter nossos
advogados, quando vai uma pessoa presa injustamente esse advogado estaria lá para nos ajudar”.
Continua Altiane: “Eu não tenho medo da Aracruz, as famílias têm que sobreviver e como sustentar
nossas famílias se emprego não tem? O que nos resta é tomar a nossa terra de volta”. Há mais outros
três processos que tramitam contra ele: um em São Mateus e dois em Conceição da Barra. Ao
todo, são seis processos contra Altiane. Ele não fez denúncias das perseguições e nem registrou
boletim de ocorrência, porque não sabia que podia fazê-lo: “A gente não sabia que poderia fazer um
boletim de ocorrência até porque se nós quilombolas fosse procurar uma delegacia para fazer o boletim,
não seríamos ouvidos pelo delegado que aceita tudo que a Aracruz Celulose faz”. Sobre o desfecho dos
processos, reponde o entrevistado: “Desfecho de quê? Ainda não sei como vai ficar esses processos
todos, eu só sei de uma coisa, vou continuar derrubando eucalipto nas terras devolutas para sustentar
minha família”. Depois dos acontecimentos, Altiane teve que ter acompanhamento psicossocial e,
na atualidade, faz uso de Gardenal, um remédio controlado. Ele recebeu Interdito Proibitório
emitido pelo Juiz Antônio Carlos Facheti, da Comarca de São Mateus, impedindo-o de ter
acesso à área Bloco 01-CB, sob pena de incidir na multa diária de R$ 3.000 – ANEXO III deste
relatório).
Antonio Blandino, 44 anos, de São Domingos, em entrevista a Penha, em janeiro de
2009, denunciou a perseguição dos quilombolas por parte da Polícia Militar, Ambiental e Visel:
“Motivo que a Visel alega é que foi roubo de madeira grossa, onde a polícia fez ocorrência, mas não
prendeu ninguém. Quando a polícia chegou e viu que não constatava de roubo, o juiz disse que era até
feio, porque este povo estava lutando pela sobrevivência’”. De acordo com o entrevistado, até hoje
responde a processos e o juiz ainda não chamou para depor. “Depois do ano de 2004, temos ainda
três processos abertos: tenho um na Comarca de São Mateus e dois processos, em Conceição da Barra.
Nesses três processos, todos são contra mim, até porque, neste último que citaram o meu nome sem eu
estar no mato trabalhando. Eu estou muito chateado com isso”.
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Marcos Blandino Gonçalo, 35 anos, de São Domingos, entrevistado por Penha, em
janeiro de 2009, informou que tem dois processos que correm contra ele. “Tenho dois processos,
uma na Comarca de Linhares e outro em Conceição da Barra. A causa de todos esses foi por causa de
madeira, não temos terra para plantar, o que nos resta é brigar com a Aracruz. Ainda pago advogado sem
ter dinheiro. A última vez que fiquei preso, fiquei quase dois meses, porque não tenho dinheiro”.
Prossegue ele: “Para nós quilombolas é muito ruim ficar processado, porque tudo que vamos fazer
estamos presos por causa disso. Eu não sei até quando isso vai continuar”. Marcos relata outros
acontecimentos: “Tem outras ameaças: a Visel coloca que eu sou chefe da turma dos quilombolas. Outro
dia, estava no mato e os guardas da Visel parou e disse no dia que colocar a mão em mim, eu vou pagar
por tudo”. Diz que não faz denúncias, porque o delegado é contra os quilombolas. Sobre o
desfecho da situação, ele responde: “Não, até acho que nunca vai dar desfecho, até porque tem
interesse muito grande nisso tudo. A Aracruz por mais que ela esteja passando por crise econômica [ele se
refere à crise financeira mundial de 2008], ela nunca vai deixar os quilombolas trabalhar”. Depois de
todos esses acontecimentos, Marcos se diz inseguro: “Eu fico com medo porque todo mundo sabe
como a Justiça é, para o grande não faz justiça, agora para o pequeno...”.
Domingos Blandino dos Santos, 42 anos, de São Domingos, entrevista a Antônio
Rodrigues de Oliveira, em março de 2009, relatou sobre as ações da Polícia Militar contra ele:
Estava coletando pontas de galhos, quando chegou o Batalhão de choque, com todo o armamento, gritando que nos deveria ir para a cadeia. Pegaram alguns companheiros e saíram arrastando. Teve outros momentos aqui na comunidade que eu fui abordado pela Visel, só pelo fato de estar pegando lenha para colocar no forno para fazer o beiju. Sempre eles chegava dizendo que era para sair da área ou eles chamariam a polícia para me prender.
Desabafa Santos: “Não queremos mais ser tratado como vagabundos. Estamos sendo
pressionado pela empresa, que usa de todas as formas de agressão contra a comunidade”. O entrevistado
afirma que reconhece aqueles que o ameaçam: “É a milícia da empresa”. Ele estava, juntamente
com outras pessoas, coletando resíduos no município de Linhares (evento que será tratado mais
abaixo) e por causa disso sofreu criminalização juntamente com outras 82 pessoas.
Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que ocorrem situações sistemáticas de
criminalização dos quilombolas, a Aracruz/Fibria edita o projeto “Bons Vizinhos” que, segundo
ela, tem como objetivo estabelecer um canal de comunicação entre a empresa e as comunidades
próximas de suas áreas plantadas. E mais, o projeto “Bons Vizinhos” prevê encontros para
181
discussão de temas relacionados à proteção florestal e conservação de recursos naturais,
como o uso racional de água nas propriedades e o controle da caça de animais silvestres.
Projeto Bons Vizinhos: a finalidade do Programa é aproximar a empresa dos pequenos proprietários rurais e moradores das regiões situadas nos limites de seus plantios de eucalipto e reservas nativas. Através de visitas à empresa ou da ida dos técnicos da Aracruz às comunidades, assuntos de interesse comum são expostos e debatidos bem como assuntos de interesse abordados pelas comunidades (disponível em: http://www.viaes.com.br/site4/exibir/6351/Atra%C3%A7%C3%B5es)
A experiência empírica das comunidades quilombolas comprova que o projeto não
produziu alterações da postura empresarial dentro do Sapê do Norte e que constitui uma
estratégia de marketing, buscando divulgar uma imagem positiva a despeito dos conflitos que
ocorrem na região.
IV. 3.1 - Os acontecimentos no município de Linhares envolvendo quilombolas
No ano de 2006, a Empresa Aracruz Celulose, após colheita de um talão de eucaliptos no
Córrego Farias, em Linhares, propôs aos moradores da região que fizessem a cata dos restos de
madeira (o facho), mas estes não se interessaram. Desta forma, levaram ao conhecimento da
comunidade quilombola de São Domingos que havia aquela área sido liberada para a cata do
facho, o que levou toda a comunidade e outras pessoas não quilombolas a fazerem a busca de
tal material. No entanto, numa ação, ao que parece planejada, a empresa registrou ocorrência
por furto daquela madeira, levando a criminalização de 82 pessoas, sendo a maioria
quilombola. Ressalta-se que já havia uma decisão, em um Interdito Proibitório, do qual os
quilombolas desconheciam, que impedia que os mesmos adentrassem aquela área, por isso, a
Ação que se deu neste momento foi por crime de desobediência.
Neste sentido, pela dificuldade de deslocamento destes até Linhares, Comarca onde
aconteceria a audiência para o julgamento dos acusados, o PPDDH/ES levou ao Tribunal de
Justiça proposta de realizar o ato na Comunidade São Domingos, atendida prontamente pelo TJ.
O resultado da Audiência foi a Transação Penal, culminando na extinção da Punibilidade sem o
julgamento do Mérito, tendo os quilombolas se comprometido de, em mutirão, com os
materiais cedidos pela Prefeitura, construírem uma sala de atendimento odontológico e creche,
182
na própria comunidade. Este processo já está arquivado em definitivo. Abaixo, seguem
relatos dos quilombolas sobre os acontecimentos em Linhares.
Domingos Blandino dos Santos estava, juntamente com outras pessoas, coletando
resíduos no município de Linhares, por causa disso, sofreu criminalização juntamente com
outras 82 pessoas, que, para dar cabo na ação sem julgamento do mérito, acabaram por aceitar
uma transação penal em que se obrigaram a construir, com material cedido pela prefeitura, a
creche e o posto de saúde na comunidade de São Domingos. Desde os acontecimentos, diz que
sente medo de vingança ou retaliação por parte da Visel e da Polícia, além de sentir medo da
possibilidade da morte.
Denilson Cardoso dos Santos, 24 anos, São Domingos, entrevistado por Kátia Santos
Penha em janeiro de 2009, relatou: “Aconteceu que nós estávamos no Córrego Faria, no município de
Linhares, quando as polícias de Vitória, o batalhão de choque chegaram e nos levaram para Linhares. Ao
chegar à delegacia de Linhares, foram pegos os nossos nomes, por isso, eu fui citado no processo, que ainda
está aberto”. Completa Denilson: “Acho que ainda está, porque, até hoje o posto de saúde, que está para
construir ainda não terminou por falta de material”. Denilson se refere à transação penal coletiva
proposta pela Justiça aos processados que estavam em Linhares: a construção de um posto de
saúde e uma creche em São Domingos, com o material fornecido pela Prefeitura de Conceição
da Barra. Por causa dos constrangimentos sofridos, o entrevistado diz que se sente angustiado,
com medo, desconfiado, medo de viajar para longe de casa, medo de ficar em lugares isolados.
Altemir Blandino Gonçalo, 26 anos, São Domingos, entrevistado por Kátia Santos Penha
em janeiro de 2009, diz: “Neste ano, fomos até a região de Linhares, Córrego Farias, quando estávamos
recolhendo pedaços de madeira, quando a Visel e a Polícia Militar chegaram e prenderam a gente”.
Depois, “Houve o julgamento de 80 processados que estavam no Córrego Farias naquele dia. Até agora a
nossa pena [a transação penal em que foi feita no processo] não foi cumprida devido à falta de material que
o prefeito se comprometeu em colocar no local”. De acordo com Gonçalo, depois desses
acontecimentos, não mais conseguiu um trabalho. Por causa disso, sente-se angustiado, ansioso,
desconfiado, com medo de lugares isolados.
Arlle Jerônimo, de São Domingos, entrevistada por Kátia Santos Penha em janeiro de
2009, relata que foi processada porque em 2008 estava, juntamente com outras pessoas,
coletando resíduo de madeira em uma área de propriedade da ARCEL, no município de
Linhares. Eles foram abordados pela Visel e pela Polícia Militar. Foram filmados e fotografados
pela imprensa local, que os denunciou de estarem portando armas (facões velhos para o corte
dos resíduos). Foram levados presos e “fichados pela polícia”. Por isso, passaram a responder
183
processo. Desde então, o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos
começou a atuar em prol dos processados, resultando em um acordo com o Ministério Público
Estadual, numa audiência coletiva, com a presença de 80 processados. “O resultado não sabe ao
certo, mas participei da audiência que teve na Comunidade São Domingos e foi feito um acordo: que seria
construído um posto médico e uma creche e, com isso, os processos seriam arquivados”. A mão de obra
utilizada para a construção dos equipamentos comunitários será a dos processados. Arlle
acredita que desde a audiência, a questão ficou resolvida e que já não tem mais qualquer
pendência com a Polícia e a Justiça. Desde o ocorrido, Arlle se sente angustiada e com medo de
ficar em lugares isolados
Amilton dos Santos, 31 anos, São Domingos, entrevistado por Kátia Santos Penha em
janeiro de 2009, integra o grupo que foi pegar os resíduos de madeira no município de Linhares.
Também foi processado pela ARCEL. Não sabe se o processo contra ele ainda tramita na justiça
ou se já foi encerrado. Relata também que já foi constrangido e ameaçado pelos guardas da
Visel, mas nunca denunciou por medo da justiça, da polícia e da Visel/ARCEL. Depois desses
acontecimentos, sente-se angustiado. Responde a uma ação penal (015. 04. 000066-1) em que
figura como vítima a ARCEL; neste processo, responde com mais sete pessoas: Altiane Blandino
dos Santos, Antônio Blandino dos Santos, Aldecir Blandino dos Santos, Antônio Marcos
Blandino Gonçalves, José Carlos Soares Donato, Alessandro dos Santos Cardoso e Anagildo dos
Santos. Ressalta-se que com o nome do Amilton dos Santos aparecem vários processos.
Aldeci Blandino, 37 anos, São Domingos, entrevistado por Kátia Santos Penha em
janeiro de 2009, integra o grupo que foi pegar os resíduos de madeira no município de Linhares.
Também foi processado pela ARCEL. Acredita que em decorrência do acordo feito em 2008,
numa audiência pública ocorrida na Comunidade de São Domingos, o processo tenha sido
encerrado. A transação penal se deu com a proposta de construção de uma creche e um posto
de saúde. Relata também que já foi constrangido e ameaçado pelos guardas da Visel, mas nunca
denunciou por medo da Justiça, da Polícia e da Visel/ARCEL. Neste momento, responde a dois
processos em Conceição da Barra. Nunca buscou ajuda ou fez qualquer denúncia contra a
empresa, porque, segundo ele, por não confiar nos órgãos locais, que deveriam tomar
providências e fazer valer os direitos das comunidades quilombolas Depois desses
acontecimentos, sente-se angustiado. Responde a uma ação penal, 015. 04. 000066-1, na qual
figura como vítima a Aracruz e ele a responde com mais sete pessoas: Altiane Bladino dos
Santos, Antônio Bladino dos Santos, Amilton dos Santos, Antônio Marcos Blandino Gonçalves,
José Carlos Soares Donato, Alessandro dos Santos Cardoso e Anagildo dos Santos.
184
Claudemar Blandino Gonçalo, 22 anos, São Domingos, entrevistado por Kátia
Santos Penha em janeiro de 2009, também integra o grupo que pegou resíduos de madeira no
município de Linhares e foi processado pela ARCEL. Acha que o processo foi arquivado em
decorrência do acordo feito para a construção de uma creche e de um posto médico na
comunidade de São Domingos. Sabe que o caso foi acompanhado pelo advogado do PPDDH no
ES. Sofreu criminalização juntamente com outras 82 pessoas, que, para dar cabo na ação sem
julgamento do mérito, acabaram por aceitar uma transação penal em que se obrigaram a
construir, com material cedido pela prefeitura, a creche e o posto de saúde na comunidade de
São Domingos.
Antonio Marcos Blandino Gonçalo, 31 anos, São Domingos, em entrevista a Kátia dos
Santos Penha em janeiro de 2009), afirma que estava em uma área para tirar resíduos para a
produção de carvão no município de Linhares. Apesar de ter sido autorizada a retirada pela
ARCEL, foram abordados pela Polícia, constrangidos e criminalizados. Antonio relata também
que já foi constrangido anteriormente pela Visel. Se sente angustiado com a sua situação, de
seus familiares e comunidade. Atualmente, segundo ele, responde a dois processos: um no
município de Conceição da Barra e outro, no município de Linhares.
Luzinete Serafim Blandino (conhecida como Luzia), 50 anos, São Domingos,
entrevistada por Kátia Santos Penha em janeiro de 2009, relata que ela e outros quilombolas
estavam em uma área para tirar resíduos para a produção de carvão no município de Linhares.
Apesar de ter sido autorizada a retirada pela Aracruz Celulose, foram abordados pela polícia,
constrangidos e processados. A entrevistada relata também que já foi constrangida várias vezes
pela Visel por andar em áreas de plantio de eucalipto, que ficam no entorno de sua casa. Se
sente angustiada e com medo de andar em lugares isolados, mesmo aqueles próximos da sua
casa. Está preocupada com a sua situação, de seus familiares e da comunidade como um todo.
Atualmente, segundo ela, responde um processo na Comarca de Linhares.
Anagildo do Santos, 27 anos, São Domingos, entrevistado por Kátia Santos Penha em
janeiro de 2009, relata que foi processado porque pegava facho junto com outros quilombolas
no município de Linhares. Também responde a outro processo, em Conceição da Barra, por
pegar resíduos de eucalipto para fazer carvão. Não tem informações sobre o desdobramento
dos processos.
Joelton Serafim Blandino, 25 anos, São Domingos, entrevistado por Kátia Santos Penha
em janeiro de 2009, relata que recebeu ameaças por causa da retirada de resíduos de madeira,
no entanto, acha que as ameaças e constrangimentos vividos pelas comunidades quilombolas
185
são uma resposta da empresa, apoiada pela polícia, à sua organização e luta pela retomada
do seu território tradicional. De acordo com ele, “[...] estava muito difícil, porque não tava tendo
emprego para nos sustentar e sustentar a nossa família”. A cata de resíduos, segundo ele, era a única
fonte de renda. Joelton comenta o fato ocorrido em Linhares e os seus desdobramentos:
“Quando fomos agredidos lá em Linhares, nosso processo estava como roubo de lenha. Acho que ainda não
se fechou este processo, mas em [nove de] julho de 2008, fomos julgados e a minha pena foi ajudar a
construir o posto de saúde e a creche escolar [em São Domingos], mas o prefeito não conseguiu o material,
por isso, eu acho que estamos ainda com o processo aberto”. Continua Joelton: “Essa ação movida contra
mim foi a partir de quando saímos daqui para o Córrego da Farinha, em Linhares. Aqui estava difícil a
negociação com a Aracruz, onde ela diminuiu o diâmetro da madeira. Lá era uma área onde o MPA já
tinha interrompido o plantio de eucalipto com protesto por ser área de conservação ambiental. E, nem
assim, eles pararam de cortar. Aqui nós ficamos sabendo que tinha muita madeira caída e que a Aracruz
não estava pegando, estava deixando no chão. Eu não sou ladrão, só estou lutando pela minha
sobrevivência e da minha família”. Diz que se novamente sofrer agressões e constrangimentos, irá
denunciar: “Mas se hoje eu receber ameaças, eu procuro meus direitos. Não mudo e nem vou mudar
minha rotina na minha comunidade”.Tivemos uma audiência e fizemos uma transação penal nos
obrigando a construir um posto de saúde e uma creche na comunidade de São Domingos.
No total, oitenta e duas pessoas, entre estes entrevistados e outros, responderam ao
processo 047.08.002666-0, que, depois de transitado em julgado e cumpridas as obrigações, foi
arquivado.
FOTOS 53 e 54 - Registram os acontecimentos em Linhares, em 2006 (Sandro Silva, 2006)
186
FOTOS 55 e 56 - Registram os acontecimentos em Linhares, em 2006 (Sandro Silva, 2006)
FOTO 57 - Registra os acontecimentos em Linhares, em 2006 (Sandro Silva, 2006)
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FOTOS 58 e 59 - Registram os acontecimentos em Linhares, em 2006 (Sandro Silva, 2006)
A população local já denunciou as perseguições sofridas para os órgãos públicos
competentes e organismos de direitos humanos, no entanto, apesar de os seus clamores por
justiça, o Estado capixaba, inclusos os poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, ignora essa
dramática realidade, continuando a desenvolver ações que corroboram as situações de
constrangimentos, perseguições, criminalizações de quilombolas.
IV. 3. 2 - Outros acontecimentos relatados
Sobre as perseguições sofridas, relata Gelson Cassiano, morador da Comunidade de
Linharinho, que, depois da chegada da Aracruz Celulose na região onde mora, a comunidade
não pode mais andar no seu território. Depois da perda a terra e do plantio de eucalipto sobre
ela, os quilombolas sequer podem se aproximar dali para catar gravetos/resíduos para usar
como lenha, segundo ele. Gelson Cassiano já foi preso por realizar a cata de gravetos nas áreas
de posse da Aracruz. Conforme entrevista concedida a Oliveira e Cassiano em março de 2009,
ele relata:
Estamos passando por momentos muitos difíceis, de muitos constrangimentos, onde estamos passando por falta d’água, pois estamos cercados de eucalipto, onde estamos sendo acuados, pois não podemos nem passar por perto da área de eucalipto, onde, se nós passarmos por dentro da área, corremos riscos até de ser presos, depois que a Aracruz chegou, acabou com nossos rios, córregos, com as caças, com as matas e com a nossa paz, tranqüilidade. Já fui abordado pelos guardas da Visel só por estar passando na estrada próximo da área da Aracruz.
188
Escreve Ferreira (2009) que o processo de expropriação territorial aconteceu tanto para
aqueles que forçosamente abandonaram a terra, como para os que permaneceram sob o
ordenamento espacial do “imprensamento”, porque estes últimos circulam no território sob os
olhares atentos, determinando, muitas vezes, os movimentos de idas e vindas dos quilombolas
na região. Relata Seu Benedito Graciano, 57, morador do Córrego da Água Boa (entrevista
concedida a Francieli Marinato em novembro de 2005, citada por FERREIRA, 2009b, p. 369)
[...] A pessoa não pode fazer roça aí, né? (GRACIANO)
Por que não pode?
Porque tem terra do Ibama aí, né.
Onde?
No Brejo. Eles não deixam você tirar um pau. É uma multa sacudida. Pra tirar um pau pra fazer uma barraquinha dessa aqui, tem que ir lá tirar licença, tem que pagar essa licença e eles ainda tem que vir, no dia que eles estão com boa vontade, para mostrar a madeira que pode cortar. A gente aqui tá vivendo porque tá vivo, mas é imprensado. Eles não querem que tire um cipó, que tire um palmito, que pesque. Nesses dias mesmo, essa turma da Visel encurralou um rapaz ali no aterro botando uma rede, atropelaram ele ali e tinha pego uns peixes. Deixaram ele passar porque ele disse que era neto de Floro. Mas acompanharam ele até a cancela para ver se era de lá.
Se ele não fosse neto de Floro?
Eles iam tomar a rede e os peixes.
O que eles falam?
Ele te leva preso e tem que pagar multa.
Embora as comunidades não sejam as responsáveis pela massiva destruição ambiental
do Sapê do Norte, suas práticas tradicionais de agricultura e extrativismo vegetal e animal vêm
sendo interpretadas como ameaças ao meio. Por isso, soma-se à ação da vigilância privada da
empresa a fiscalização ambiental, que incide com muito rigor sobre as comunidades locais. A
articulação com o Estado na incorporação do papel de fiscalização ambiental é estrategicamente
utilizada pelas empresas para reafirmar seu controle sobre o território, dificultando a circulação
e também a permanência das pessoas. A fiscalização ambiental com freqüência resulta na
criminalização de pessoas das comunidades. Assim ocorreu com Berto Nascimento, 58,
morador do Córrego de Santana, em março de 2004, quando extraía palmito e foi preso pela
Visel. Na Delegacia de Polícia, “foi autuado pela Polícia Ambiental, e multado pelo IBAMA em R$
1.500. E mais: logo depois era condenado pela Justiça, tendo que se apresentar mensalmente em juízo. Não
189
pode, ainda, sair da Comarca sem avisar a Justiça” (SÉCULO DIÁRIO, 24.03.2004, citado por
FERREIRA, 2009b, p. 369)
Dessa maneira, uma atividade extrativista e costumeira na garantia do alimento é
transformada em crime ambiental, que implica em multa e vigilância judicial. Por outro lado, a
derrubada deste mesmo palmito é feita pela empresa (ver depoimento abaixo), porém
permanece impune perante os órgãos ambientais e a Justiça – o que se pode caracterizar como
racismo ambiental. Assim afirma Domingos Firmiano dos Santos, “Chapoca”, da Comunidade
Angelim Disa:
Domingos Firmiano do Santos afirma que a Aracruz Celulose derruba, freqüentemente, os palmitos nativos que conseguem sobreviver no meio dos talhões de eucalipto, na época do corte desta planta exótica. Lembra que os quilombolas mais antigos, que viveram a fartura que existia antes da tomada de suas terras pela Aracruz Celulose, têm o costume de cortar palmitos para comer. [...] Ele diz que os quilombolas ainda vivem como escravos. E são submetidos a humilhações pela Aracruz Celulose. Os quilombolas têm procurado mostrar à Justiça que devem ser tratados de modo diferente [...]. (SÉCULO DIÁRIO, 24.03.2004, citado por FERREIRA, 2009, p. 369)
Aldir da Silva Costa, 26 anos, morador de ao Domingos, em entrevista a Penha em 2009,
relata que há três anos, devido ao fato de coletar facho para carvão, sofreu agressão dos guardas
da Visel e foi processado pela Polícia Ambiental. A atividade de coletar resíduos, segundo ele, é
o que garante o sustento mínimo da sua família. Desde o ocorrido, ele não pode mais se
ausentar da cidade de Conceição da Barra: “Todos os meses eu tenho que ir até o Fórum. Para eu
viajar, tenho que pedir autorização da justiça”. Costa relata que não sabia que podia também
denunciá-los pelas arbitrariedades sofridas: “Se eu soubesse que, mesmo sendo acusado de algo que
eu não fiz, eu iria fazer um boletim de ocorrência. Como eu não sabia...”. Atualmente responde,
juntamente com Edinaldo Conceição Silvares, o Processo n. 015.04.000893-8 – Ação Penal – em
tramitação – figurando a Aracruz/Fibria como vítima.
Edinaldo Conceição Silvares, por retirar resíduo de eucalipto para fazer carvão, foi
preso pela Polícia Ambiental. Ele ficou preso durante oito dias, quando foi ofendido
verbalmente, levou chutes e tapas. Ele foi processado e teve que pagar uma multa para ser
liberado. Ele não pode, por decisão judicial, sair do estado do Espírito Santo sem ordem judicial.
Em entrevista a Kátia Penha, em janeiro de 2009, diz-se ansioso porque acha que pode ser
chamado pelo juiz a qualquer momento. O processo está tramitando e ele não sabe qual será o
resultado. Relata que também já recebeu, de forma inesperada, a visita da Visel em sua casa,
quando foi constrangido e ameaçado. Depois desses acontecimentos se sente angustiado, com
medo, desamparado/desprotegido, com medo de viajar para longe de casa ou de ficar sozinho
190
em lugares isolados. Atualmente consome remédios antidepressivos e se sente angustiado
porque precisa alimentar sua família e não consegue trabalho e não tem de onde tirar recursos
já que não pode mais catar resíduos para fazer carvão. Responde pelo mesmo processo que
Aldir da Silva Costa, Processo n. 015.04.000893-8 – Ação Penal – em tramitação (ANEXO IV
deste relatório).
Num outro Processo de Ação Criminal13 os dois, Silvares e Costa são denunciados por
terem sido flagrados pela Visel no dia 25 de julho de 2004, “transportando 11 metros cúbicos de
varões de eucaliptos, furtados da plantação de eucaliptos da referida empresa”. Por isso, foram
intimados a comparecer periodicamente ao Fórum de Conceição da Barra e ficam proibidos de
sair do município sem permissão judicial e de permanecer fora de casa após as 22h.
Observa-se que a ação sintonizada, envolvendo órgãos, funcionários públicos (fiscais,
policiais etc) e as empresas que atuam na região, comprometendo o direito de ir e vir da
população local, gerando constantemente situações de constrangimentos, ameaças e
criminalização ferem frontalmente a Convenção 169 que, no seu art. 3, estabelece que: os povos
interessados deverão gozar plenamente dos direitos humanos e liberdades fundamentais, sem obstáculos
nem discriminação; que não deverá ser empregada nenhuma forma de força ou de coerção que viole os
direitos humanos e as liberdades fundamentais dos povos interessados [...]. E propõe a adoção de
medidas especiais que busquem proteger os indivíduos, as instituições, os bens, as culturas e o
meio ambiente desses povos. Alerta, ainda, para que tais medidas não firam os seus desejos
expressos livremente. E, por fim, O gozo sem discriminação dos direitos gerais da cidadania não deverá
sofrer nenhuma deterioração como conseqüência dessas medidas especiais. Estas evidências empíricas,
presentes e de memória, constituem testemunhos da degradação socioambiental provocada
pelos plantios monoculturais de eucalipto da empresa ARACRUZ CELULOSE S.A. nos
municípios de Conceição da Barra e São Mateus.
O antigo território da fartura hoje é caracterizado pela escassez: perdeu-se a floresta,
perdeu-se a água, perdeu-se o alimento farto e a vida da roça; perderam-se os medicamentos e
as práticas comuns; perdeu-se o direito de ir e vir .
Para quem tem interesse no assunto não é difícil encontrar registros na Internet, acerca
dos acontecimentos envolvendo quilombolas, polícia e outros órgãos governamentais. Muitos
quilombolas envolvidos nos conflitos buscaram apoio junto ao Centro de Defesa dos Direitos
Humanos.
13 Processo n.°5.178/2004 (015.04.000893-8).
191
Também, o PPDDH/ES, após perceber o recorrente discurso, mesmo entre as
autoridades, de que os quilombolas cometem inúmeras violências, e são estes que furtam a
madeira da Empresa Aracruz Celulose/Fíbria, solicitou por diversas vezes, da Secretaria de
Estado da Segurança Pública e Defesa Social – SESP, levantamento que apontasse a relação de
todas as ocorrências registradas nas Comunidades Quilombolas, tendo esta Secretaria, após
solicitação feita também pelo Ministério Público Federal, respondido, apontando 23 registros
nos últimos cinco anos, sendo que destes, apenas três pessoas residem nas comunidades
quilombolas do Sapê do Norte, e as demais residem em áreas urbanas, além de não estabelecem
qualquer relação com os quilombolas.
A chamada no site: <www.ciranda.net/spip/article1829.html?lang=en>: “Quilombolas
sob ataque no Espírito Santo”, em 15 de novembro de 2007, busca relatar a situação vivenciada
pela população quilombola. “Ao norte do estado, tiros e cães usados contra a comunidade
Roda D’Água [...] Na tarde de uma quarta-feira (14/11/2007), a PM abriu fogo contra a
comunidade quilombola de Roda D’água, no Sapê do Norte, ferindo com um tiro no pé um
membro da comunidade, Izaque Carvalho. Ele ficou internado no hospital [...] ” (SILVA, 2007).
Sobre isso, relata Izaque Caldeira Carvalho, em entrevista concedida a Penha em janeiro de
2009:
Primeiro eles prenderam os meninos, lá na área já perto da comunidade. Um grupo foi olhar os meninos presos, havia três carros da Polícia Militar. Quando eles chegaram de carro e começaram a efetuar disparos. Nesse momento, eu estava passando com criança para ir ao colégio estudar. Nesse momento, eu estava passando em frente à viatura, aí, eles mandaram parar, foi quando eu senti que eu levei um tiro por trás. Aí eu ouvi um policial gritando: “Vamos embora que eu acertei um”. Foram embora sem prestar socorro, me deixando no chão, caído e sangrando. O Carlos Alexandre fez o socorro me levando para o hospital de Conceição da Barra.
Depois disso, Carlos Alexandre, que testemunhou os acontecimentos, foi ao MPE, onde
conversou com a promotoria de justiça. Em seguida, seguiu para a Polícia Civil, onde prestou
queixa e deu um depoimento em favor de Izaque, contando os fatos ocorridos. Continua
Izaque: “Depois desse fato, ainda somos perseguidos pela Visel, independente do que estamos fazendo. A
gente sofre, somos presos, processados, mas a Visel fica sempre impune. Nós queremos que ela pague por
tudo que nos fez”. Desde o dia em que foi baleado, sente medo: “Entrei com uma ação contra a
polícia por causa do que fizeram , mas até hoje não tivemos resposta, nem para sermos ouvidos”.
192
Outro evento que marca a postura arbitrária do Poder Executivo estadual ocorreu
quando da concessão da reintegração de posse em Linharinho à Aracruz Celulose/Fibria, em
2007, período em que foi usado um efetivo de 120 homens do pelotão de choque e dezenas de
cachorros.
FOTOS 60 e 61 - Ocupação de Linharinho (Zélia Siqueira, 2007)
FOTO 62 - Ocupação de Linharinho FOTO 63 – Ocupação Linharinho ( Zélia Siqueira, 2007) (Fausto Oliveira, 2007)
193
FOTO 64 - Polícia na área para realizar a desocupação da área em Linharinho (Fausto Oliveira, 2007)
Várias audiências públicas já denunciaram a situação de violência, mas não houve até o
momento nenhuma providência para conter a violação dos direitos daquela população local, à
exceção do Ministério Público Federal, que foi acionado pelo Movimento Nacional de Direitos
Humanos e pelo INCRA. Durante a ocupação de Linharinho em 2007, as procuradoras federais
Renata D’Ávila e Anne Henrique, ambas do INCRA de Brasília, estiveram presentes na
comunidade de Linharinho e no mesmo dia tiveram uma audiência com o então procurador da
república no município de São Mateus, André Pimentel, para discutirem a Ação Possessória
movida pela Aracruz. Na ocasião, tanto o INCRA quanto o MPF entraram com ações
contestando o argumento da empresa.
Em 11 de novembro de 2009, nova ação da polícia foi realizada no Sapê do Norte. A
ação deu por volta das 8h, quando cerca de 130 policiais militares aportaram na Comunidade
de São Domingos municiados com armas pesadas, cães e cavalos e com o argumento de que
possuíam um mandado, adentraram as casas e prenderam 39 pessoas, algumas foram
conduzidas algemadas, inclusive um deficiente visual e um senhor de 83 anos, que veio a
falecer 3 meses depois. Também apreenderam várias ferramentas de trabalho, sendo facões,
motosserras, tratores, além de certa quantidade de madeira. As curiosidades ficam pela forma
da ação; primeiro, a Autora da Ação foi a Companhia de Polícia, ou seja, a Polícia Militar se fez
parte Processual; segundo, iniciaram a Ação Policial às 8h, alegando cumprir um mandado
judicial. Entretanto, este mandado só se daria a partir das 12h daquele dia, uma vez que este é o
194
horário de abertura do Fórum, e o pedido fora protocolado após a abertura daquele;
terceiro, o mandado era de busca e apreensão de produtos provenientes de furto, e não de
prisão, o que aconteceu sem qualquer motivo flagrante; e, por fim, após prenderem e
algemarem “aqueles negros do quilombo”, passaram no Centro de Operações da Aracruz
Celulose/Fibria, no trevo de Conceição da Barra, para pegarem comida, como se estivessem
prestando conta, antes de levá-los para a Delegacia.
Os acontecimentos são denunciados por Berto Florentino, registrados em vídeo por
Sandro Silva em novembro de 2009:
― O que aconteceu aqui, seu Berto?
― Sou dos quilombolas. Aí chegou aqui, aí eu tava aqui batendo um barro no forno aí as polícias chegou, mais de 100 polícias, chegou aí pediu para botar as mãos na parede. Eu botei a mão na parede, aí me revistou todinho. E eu fechei as pernas, me arrumou o sapato no pé pra poder abrir as pernas. Eu abri as pernas, ele mirou. Aí depois: “Eh, eu vou entrar dentro de casa que eu vou revistar a casa, mas o senhor acompanha também”. Aí foi revirou a geladeira, pegou o meu guarda-roupa lá e abriu tudo, tirou a roupa tudo, jogou no chão, por cima da cama, subiu em riba do guarda-roupa tirou o chapéu da brincadeira14, tudo a força, tirou a roupa branca, abriu aquilo revirou tudinho. Veio aqui olhou esse guarda-roupa do meu filho aí. Aí chegou os outros meninos, meus filhos, foi chegando de um a um aí foi mandando botar a arma em cima. Aí eu tenho um menino cego da vista que não é brincadeira, ele é meio medroso. Aí, ele foi correr e aí meteram o revólver no bichinho: Encosta! Encosta! Aí o menino agarrou com a mãe dele: Ah, mamãe, eles vão me matar, mamãe!. Aí ela falou assim: Se matar você, vai matar eu também. Aí ele agarrou com ela. Aí as crianças chegou e agarrou com ela, os meninos falaram: Vai matar a mamãe! Vai matar a mamãe! Aí eles soltou o menino e mandou botar a mão na parede e o menino botou. Os três menino chegou, foi chegando de um a um, até os meninos que trabalha aí foi botando a mão na parede. Eles mirou, não tinha nada. Aí foi panhou os três menino meu, até o cego que não enxerga, algemou o bichinho, o bichinho caiu porque a algema tava muito apertada, caiu, gritando, chorando. O mais velho, sabe. Aí saiu chorando: “Me solta! Tá doendo, tá doendo”. Aí a menina da polícia ainda disse assim: “Tá doendo porque você fica mexendo, se você ficar quieto ela não aperta”. Nesse dia eu me revoltei e eu não deixei entrar nem de jeito nenhum. Aí, com pouco eu olhava pra lá, incendiou de polícia aí. Foi o mês passado, acho que não tem nenhum mês isso. Aí veio polícia, polícia. Pegou daí era três horas e saíram daqui era sete da noite. Mas ficou de polícia, polícia, polícia, polícia. Eu digo: “Aqui dentro de casa vocês não entra, não. Vocês entra só se me matar ou se passar por riba de mim”. E não entraram, não. Aí foram embora. Passou esses dias tudo, quando chegou agora eles vieram que esbagaçaram aí. Entrou tanta polícia que... cada um armamento que aquilo faz até medo. Cada um com aquela metranca assim, quando ia falar com um já metiam aquele troço em riba. Eu
14 Berto é, há mais de quarenta anos, congo no Ticumbi de São Benedito de Conceição da Barra.
195
disse assim: “Vige!”. Pra mim aquilo me dá uma revolta tão grande mesmo que não sei como uma pessoa não morre do coração. (silêncio). A menina disse assim: “Não, é porque a minha mãe ta caída aí”. Aí ela disse assim: “Ta caída aí? Não é a minha mãe”. É que a mulher sente problema de coração e desmaia. A mulher caiu seca aí no chão e a menina gritando: “Vem cá vê. vem cá vê”. Mas eles não deixaram eu vim. (FLORENTINO)
― Que sensação é esta de estar sendo preso na frente do filho, da esposa?
― Num revolta? Pega o pai e leva primeiro. Os filhos levou por derradeiro, algemou Eu eles não algemou, não, mas Roberto e Sabino eles levou algemando. O bichinho chegava lá: “Folga aqui algema que tá cortando o braço”. Aí eles vinha metia a chave e destrancava. O menino correu lá dentro das plantas, eles meteram o cavalo em riba. Aí cercou o menino, pegou pelo colarinho e trouxe pra cá. Aquilo me deu uma revolta tão grande. Eu podia (incompreensível). Eu tô me recuperando mais. São Benedito acomoda o nervo da gente (FLORENTINO).
A imagem do policial montado em um cavalo acompanhado por um cachorro remete
a acontecimentos longínquos e traz à memória dos remanescentes de quilombos as histórias
contadas pelos seus antepassados sobre quando chegava o capitão do mato, buscando capturar
os “negros fujões” para retorná-los à senzala (FOTOS 65, 66, 67, 68 e 69 - Invasão policial na
comunidade de São Domingos, no dia 11 de nov. de 2009 - Sandro SILVA, 2009).
196
FOTO 70 – Quilombolas machucado pela ação policial FOTO 71 – Polícia na entrada da cidade (Sandro Silva, 2009)
197
Em entrevista a Penha em janeiro de 2009, Berto Florentino já havia relatado
constrangimentos vividos devido à ação da Polícia Militar na região. Relata que a Polícia alegou
que havia recebido uma denúncia anônima acusando-o de porte ilegal de armas. A sua casa foi
invadida, revirada e os policiais nada encontraram, mesmo assim foi processado. Não sabe se o
processo ainda corre contra ele. Ele também relata que já foi constrangido pelos guardas da
Visel. Depois desses acontecimentos, sente-se angustiado, com medo, inclusive de ficar só em
lugares isolados. Atualmente Berto Florentino responde juntamente com Domingos Jerônimo,
Waltemir Andrade Santana, Marlene Santos e Valdete Jerônimo por um processo impetrado
pela Aracruz Celulose, em tramitação sob o nº 047.07.005497-9, que se refere uma Ação de
manutenção de posse (para proteger-se de potencial ocupação por terceiros). Florentino
respondia ainda a outro processo, de nº 015.07.000945-9, cujo requerente era o delegado de
polícia de Conceição da Barra, mas desde o ano de 2008 está arquivado.
Ledriando Manoel Maria, 56 anos, liderança da Comunidade de São Domingos,
também preso em 11 de novembro de 2009, relata os acontecimentos daquele fatídico dia,
conforme entrevista concedida a Barcellos em dezembro de 2009:
― Que dia foi a ação da polícia?
― Foi no dia 11 do mês passado [11.11.2009]
― E como é que foi? Quem acionou a polícia?
― Olha, não sei, fui pego de surpresa. [...] eu olho assim à direita, quando eu olhei assim pra minha direita, vi a viatura da polícia. Chegaram dois carros. O tal de major Marcos e um outro cabo, não sei quem que... eu esqueci o nome dele. Passou igual a um cavalo, um jeitão mal educado que... Chegou, passou, falou com ninguém, desceu e “Ah peão, ah peão, de quem é isso aqui peão?” Os outros continuaram quieto. Tava Minga, Pedro e um outro menino, não sei o nome dele. Távamos em cinco. Aí, quando foi lá e voltou: “O que é isso aqui?” Eu falei assim: “Em primeiro lugar, bom dia”. Ai ele perguntou: “Como é que é seu nome?” Eu falei meu nome. E perguntei: “Como é que é o seu?”. Não deu a mínima pra mim e saiu. Aí o outro falou: “Ah, ele tá nervoso, não sei o que é e tal”. Eu disse” “Isso aí não é nervosismo. Se ele veio fazer ocorrência, ele tem que explicar, ele tem que se comunicar, porque ele tá fazendo, qual é o objetivo, ele tem que ser mais educado” Daí a pouco, bateu naquela porteira lá, tava mais de 50 homem.
― Armados?
― Isssh, tudo armado. Na mesma hora que estava lá, nem consegui trocar de animal. Chegou um carro com dois caras, cada um com uma arma e meteram em cima de mim.
― Qual polícia que era?
― Todo policial militar, federal, não. Era militar, não sei se tinha algum da civil. Era mais militar, alguém do ambiental também. Quando eu abri a
198
casa aí, um me acompanhou, eu disse “Não, pode ficar aqui fora!”. Ele me disse: “Não, mas eu tenho aqui meu mandado, não sei o que...”. Eu disse: “Não, mas não precisa”. Ele: “Fique aí que eu entro aqui”. Entrou lá e pegou dois motor. E em cima do armário tinha uma espingarda velha que era do meu sogro, do pai dela aqui (aponta para a esposa) que já tinha falecido. Eu peguei ela, mas não uso ela pra nada. Tava lá em cima, tava até abandonada. Ele pegou, ele bateu a poeira da bicha (da espingarda) aqui fora, pegou, olhou, não tinha nada, e levou essa espingarda Então, pegou essa espingarda querendo me incriminar, me processar por causa dessa espingarda... e pegaram meu irmão, meu filho e, na estrada, tentaram agredir eles. Teve um que tentou dar um tapão no meu menino, ali veio um outro pra cima dele...
― Você sabe o nome do comandante deles?
― O Comandante é o tal de major Marcos. Tem um documento com o nome daquela peça. Agora eu não sei, era Marcos Antônio ... era um nome assim. Acho que na A Gazeta tem o nome dele...
― E aí, Ledriando, o que eles fizeram depois?
― Pegaram a prender e algemar. Teve gente que ficou algemado daqui até lá, não foi só eu, não, foi umas 20 pessoas que foram algemadas daqui até São Mateus dentro da viatura e dentro do ônibus.
― Quantas pessoas?
― Nos távamos em sete. Eu, meu irmão, meu filho, mais quatro pessoas. E o pior de tudo, quando pararam no Centro de Operações ali da antiga Aracruz no trevo [Centro de Operações da Fibria]... Aí pararam empolgado, todos empolgado, pararam e foram lá pegar almoço, pegaram lanche. Outros voltaram lá e pegaram mais. E os outros continuaram em cima com as armas em cima da gente.
― E o que eles alegaram para prender vocês?
― O major falou que era formação de quadrilha e furto de madeira. Aí falei com ele: “Não usa essa palavra. Vamos acabar com essa palavra aqui, porque ninguém furtou nada aqui. E vocês plantaram eucalipto aqui aonde?” Eu falei. “De quem é o território? A briga da comunidade não é por madeira, é pelo território, é pela retomada do território, pela demarcação do território”.
― Quantas pessoas foram presas ao todo?
― Mais ou menos umas 35 pessoas. Uns foram para Barra, depois para São Mateus. Aí, depois que chegou lá, ficamos algumas horas lá na delegacia, em cima, no alto, do lado do presídio. Depois fomos pro outro lado para prestar depoimento.
― Eni [esposa do Ledriando] tava junto?
― Tava junto... quer dizer ela não tava junto comigo não, ela tava trabalhando, e quando eles chegaram no caso do Berto... Eles fizeram a primeira ação lá no Berto. Só que na hora que eles tavam na casa do Berto, a esposa do Berto desmaiou, ela é de idade, tem problema de pressão alta, um bocado de problema, ela desmaiou e ela15 [Eni] prestou o primeiro
15 Eni Alacrino é Agente Comunitária de Saúde na Comunidade São Domingos.
199
socorro para ela, para a esposa do Berto e acompanhou ela até o hospital. [...].
― E os equipamentos de trabalho de vocês continuam todos presos?
― Todos, não só os meus. Eu tenho duas motosserras, um facão e essa espingarda e o trator... com cambona [pequena carroça que é presa ao trator para transportar materiais]. E outros... tem mais trator, tem mais cambona.
― A polícia ambiental estava também junto?
― A polícia ambiental tava junto e tava multando. Inclusive multou Berto, multou a minha irmã. Me multaram, mas só que não assinei. Mas eu tenho uma multa que eu recebi em 2008.
Ledriando Maria é outro que já foi processado pela Aracruz. Em entrevista a Penha em
2009, denuncia que já foi constrangido pelas polícias Militar e Ambiental que o acusaram de
estar roubando madeira. Segundo ele, tinha uma carroça cheia de lenha, por isso, foi multado e
processado pela Polícia Ambiental. Teve que pagar uma multa de R$1.000,00 (hum mil reais)
para ter a carroça de volta, mas sem a madeira. Não sabe em que pé se encontra o processo.
Depois do ocorrido, sente-se angustiado, com medo, desconfiado e depressivo. Teve que passar
por tratamento médico e atualmente faz uso de remédio para controle de pressão. Atualmente
responde a dois processos movidos pela Polícia Militar e pela Polícia Ambiental. Situação do
processo de nº. 015.05.001307-5 – em tramitação – Autor Ministério Público – figura neste
processo como réus: Geraldo, Alarico, Maria, Ledriando e Manoel; como vítima: Empresa
Aracruz Celulose.
Outra moradora quilombola, Eni Alacrino, relata, em entrevista concedida a Gilsa Barcellos
em dezembro de 2009, a ação policial em São Domingos no dia 11 de novembro de 2009:
― Diz ela [advogada do Balcão de Direitos] que 9 horas já estavam dentro da comunidade, já prendendo o pessoal. O processo saiu depois que eles já estavam aqui, prendendo. O pessoal já tava preso. Eles chegaram dizendo que essa operação saiu 4 horas da manhã de Vitória. Era pra eles chegar bem cedo aqui. A vinda deles era para eles chegar cedo na comunidade, para eles fazer tipo uma surpresa, e foi uma surpresa (ENI).
― E o que aconteceu na delegacia? (ENTREVISTADORA)
― Então, ele [delegado do DPJ de São Mateus] falou assim: “Daqui a alguns dias... hoje trouxemos homens, mas daqui a alguns dias, nos vamos trazer as mulheres quilombolas. “O que vocês fizeram tá dentro da lei?” Aí ele falou: “vocês foram roubar lenha... Pois é, as mulheres quilombolas são mais valentes que os homens. Na próxima vez, nos vamos prender as mulheres quilombolas”. Aí eu falei assim: “Vai prender as mulheres quilombolas. Antes disso, nos já denunciamos
200
você para a Corte Americana, você com toda a sua tropa. Vai ser bonito”.
Depoimento de Antônio Rodrigues de Oliveira, da Comunidade Quilombola de Nova
Vista, concedido a Barcellos em 2009:
― Eles fizeram todo este movimento lá mais para tentar criminalizar o
movimento quilombola. A imprensa tava dizendo: quilombolas são presos por roubo de madeira. Isso fica aí, e a polícia fazendo essa ação aí a favor da empresa.
O processo de criminalização de lideranças e comunidades organizadas, como já foi
citado anteriormente, vem ocorrendo há algum tempo e não constitui uma ação isolada. Assim
como acontece no Espírito Santo com os quilombolas, outros movimentos sociais em várias
partes do país vêm enfrentando processos de criminalização, a exemplo do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra, que tem buscado, sistematicamente, denunciar, nacional e
internacionalmente, a questão. A cartilha recém publicada pela Via Campesina intitulada “A
ofensiva da direita para criminalizar os movimentos sociais no Brasil’, 2010, afirma que o
objetivo da criminalização é criar as condições legais e, se possível, legítimas perante a
sociedade para impedir que os trabalhadores tenham conquistas econômicas e políticas;
restringir, diminuir ou dificultar o acesso às políticas públicas; isolar e desmoralizar os
movimentos sociais junto à sociedade; e, ainda, buscar criar as condições legais para a repressão
física aos movimentos sociais. Divulga ainda a cartilha que:
Os porta-vozes dessa política de criminalização são, geralmente, os parlamentares ainda associados ao latifúndio improdutivo, com respaldo em histórias de violência e de crimes cometidos contra os trabalhadores rurais. Essa bancada ruralista não hesita em levantar as bandeiras mais atrasadas, anti-sociais e de depredação ambiental. Já a bancada do agronegócio, se preserva diante dos olhos da sociedade, aparecendo sempre como mais racional, menos violenta e mais sensível aos apelos da sociedade e aos problemas ambientais. Ambas as bancadas são duas faces da mesma moeda: defendem o modelo agrícola do agronegócio e estruturam ainda mais o domínio de uma elite brasileira tão bem caracterizada por Florestan Fernandes ao defini-la como anti-social, anti-nacional e antidemocrática (VIA CAMPESINA, 2010, p.7).
A Via Campesina ressalta que o comportamento histórico das elites brasileiras e em
todos os países capitalistas, em relação às classes subalternas, sempre foi a de contemporizar ou
ignorar os movimentos sociais, em especial quando estão surgindo; de cooptar lideranças e de
reprimir as suas manifestações. Observa ainda que:
201
Conflito social é diferente de violência política: a política é o exercício permanente de relações de disputa, em torno do poder real na sociedade, em todas suas esferas; o conflito político, e entre as classes, faz parte natural do funcionamento de uma sociedade de classes; a violência ocorre na ausência de poder político- é o uso da força bruta para impor a sua vontade; a violência não é expressão do conflito.
O processo de criminalização dos movimentos sociais e dos trabalhadores pelas elites: a violência é a agressão física. É o atentado à vida; a criminalização é uma tentativa política de induzir, tentar transformar as ações resultantes do conflito em crime; as práticas de crime pelas elites são, no entanto “crimes”, diferente do processo de criminalização; a ação de “ criminalizar” por parte das elites, visa objetivamente deslegitimar, tirar “o direito” dos trabalhadores, sem usar a violência física, bruta, de seu aparato policial. E com a criminalização querem tirar a moral e o direito dos subalternos fazerem ações políticas; usam todos os mecanismos que a classe dominante tem no estado (VIA CAMPESINA, 2010, p. 15).
A conjuntural atual trouxe novos atores nesse processo de tentativa de criminalização dos
movimentos sociais, afirma a Via Campesina, buscando inverter os papéis de instituições públicas
que foram criadas para proteger direitos:
a) O Ministério Público Federal e estaduais: foram criados pela constituinte para ajudar os mais pobres e desorganizados perante a lei, porém, hoje alguns setores entre eles, os mais identificados ideologicamente com a classe dominante partem para a ofensiva e usam as leis, para criminalizar os movimentos; b) O Poder Judiciário: hoje, setores do STF tem sido o orientador de toda ação do poder judiciário nas diferentes instâncias e entre todos operadores do direito; c) O Parlamento: Os setores conservadores do parlamento vêm utilizando as ações legislativas para tentar “enquadrar” os trabalhadores. Isso vem acontecendo em especial a partir de 2003, quando perderam espaço no executivo. Os ruralistas se articulam na luta política externa ao parlamento e depois repercutem no parlamento. O parlamento tenta ser a caixa de ressonância do que eles querem fora. As CPIs visam por outro lado inibir os servidores públicos e os setores do poder executivo que estiverem ao lado dos trabalhadores. Exemplos são as ações contra os quilombolas, povos indígenas, sem terra, etc. As ações no TCU também têm essa motivação. São os setores reacionários da direita incrustados no legislativo protegendo seus interesses de classe; d) Ações na CGU: há também iniciativas da classe dominante que através da controladoria do executivo vão inibindo as ações dos servidores públicos (VIA CAMPESINA, 2010, p. 16).
Para a Via Campesina, a intensificação do processo de criminalização no Brasil se deve a
duas razões básicas: primeiro, sinaliza que os movimentos sociais estão ativos; segundo, porque
a classe dominante brasileira necessita conter o seu avanço. No caso do Sapê do Norte parece
que a última razão se encaixa bem nos acontecimentos locais. Ou seja, a postura por parte dos
poderes públicos estaduais e locais, da empresa de celulose, na tentativa de acuar, prender,
202
processar etc, não lhes dando a chance e nem tempo de se recomporem diante das inúmeras
e insistentes investidas de criminalização, soa como uma boa estratégia para impedir a
continuidade da luta pela retomada do território. Desta forma, o Estado-nação brasileiro
desconsidera aquilo que há de mais importante na Declaração Universal dos Direitos Humanos
que destina dez dos seus 30 artigos para tratar do respeito à dignidade humana e do direito à
liberdade como um direito humano fundamental. Vejamos: no seu art. 2 determina que “Toda
pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção
de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem
nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”. Questão retomada pela
Constituição Federal brasileira, quando esta, no o inciso XLII do art. 5º da CF estabelece, por
exemplo, que a prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito a pena
de reclusão, nos termos da lei”. O questionamento que emerge quando se discute os
acontecimentos no Sapê do Norte e, particularmente, o processo de criminalização, é: não
estariam o Estado brasileiro e a agro-indústria de celulose praticando atos sistemáticos de
racismo contra as comunidades quilombolas?
A Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, adotada
pelas Nações Unidas em 21 de dezembro de 1965 e ratificada pelo Brasil em 27 de março de
1968, estabelece que a discriminação racial é uma distinção, baseada na raça, cor, descendência ou
origem nacional ou étnica, que implica na restrição ou exclusão do exercício de direitos humanos e
liberdades fundamentais, nas mais diversas áreas, objetivando ou tendo como efeito a anulação ou
restrição do exercício, em igualdade de condições, dos direitos humanos e das liberdades
fundamentais. Os Estados-partes da Convenção, ao condenar a discriminação racial,
comprometem-se a adotar, por todos os meios apropriados, uma política de eliminação da
discriminação racial e promoção da igualdade. A Convenção é enfática ao condenar a
segregação racial e o apartheid, determinando aos Estados-partes que eliminem em seus
territórios todas as práticas dessa natureza. Toda propaganda e todas as organizações que se
inspirem em teorias racistas são também condenadas pelos Estados-partes da Convenção, que
devem proibir qualquer incitamento ao ódio e discriminação raciais, punindo a difusão de
idéias baseadas na superioridade racial.
A questão da criminalização também é observada pelo relatório elaborado pela
Comissão Especial de Acompanhamento e Apuração de Denúncias Relativas à Violação do Direito
Humano à Alimentação Adequada (DHAA), quando esteve no Sapê do Norte, em 2009. Segundo
203
ela, ouviu relatos de lideranças quilombolas sobre “um processo de criminalização das
lideranças quilombolas”, observando que há:
[...] sérios indícios de que as famílias que vivem em Sapê do Norte estão sendo criminalizadas injustamente por preconceitos que se evidenciam com ação da Promotoria de Conceição da Barra que teria solicitado a busca dos quilombolas para interrogatório, que relatam terem sidos pressionados pela promotoria a assumir a culpa por algo que não fizeram sem ao menos ter sido feita a investigação dos fatos.16
Os depoimentos acima contidos somam-se aos outros eventos que explicitam a violação
dos direitos humanos. No que tange às prisões e aos processos desferidos contra os quilombolas
buscando criminalizá-los, a Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma que “Ninguém
será arbitrariamente preso, detido ou exilado”. No seu art. 3 a Declaração evoca que “Toda pessoa tem
direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. No art. 6, que “Toda pessoa tem o direito de ser, em
todos os lugares, reconhecida como pessoa perante a lei [..] e têm direito, sem qualquer distinção, a igual
proteção da lei”. Estabelece ainda que:
Art. 11 - 1. Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa; 2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Tampouco será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso. Art. 12 - Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques. Art. 13 - 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado; 2. Toda pessoa tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar.
Para João Batista Herkenhof17 como direitos humanos são, modernamente, entendidos
aqueles direitos fundamentais que o homem [e a mulher] possui pelo fato de ser homem [tb.
mulher], por sua própria natureza humana, pela dignidade que a ela é inerente. São direitos que
não resultam de uma concessão da sociedade política. Pelo contrário, são direitos que a sociedade política
16 Comissão Especial de Acompanhamento e Apuração de Denúncias Relativas à Violação do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), “Relatório da Comissão Especial de Acompanhamento e Apuração de Denúncias Relativas à Violação do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) nas comunidades quilombolas Sapê do Norte no Estado do Espírito Santo”, Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humano, 2009. 17 Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4836
204
tem o dever de consagrar e garantir. No entanto, a inversão de lugares – a vítima se
transformando no réu – fragiliza a possibilidade de realização dos direitos humanos no norte do
Espírito Santo.
Uma das questões que se coloca na contemporaneidade para os que conhecem e/ou
vivenciam a realidade do Sapê do Norte: se é tarefa do Estado coibir práticas racistas e garantir
os direitos das comunidades locais, por que ele, por meio de funcionários e agentes públicos,
constitui-se protagonista na violação dos direitos humanos quilombolas? Os relatos obtidos por
meio de entrevistas dos/as criminalizados/as revelam diversos tipos de impactos produzidos
pelo processo de criminalização e perseguição promovido pela Aracruz Celulose – em parceria
com o MPC e com apoios de agentes do Estado – sobre a existência dessas comunidades: a
restrição de liberdade na sua vida cotidiana, o seu adoecimento físico-psíquico e a redução da
sua auto-estima. A relação entre quilombolas, negros com a criminalização reforça
profundamente o racismo na região e amplia as condições subjetivas de maus-tratos e outras
práticas racistas, afetando a auto-imagem dessa população, o que é extremamente danoso para
todos e, particularmente, para crianças, adolescentes e jovens. O processo de resistência
construído por esse povo busca não somente retomar o território, mas, sobretudo, recuperar
valores e referências de identidade e alteridade quilombola.
205
CONCLUSÕES
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, instituída em 1948, teve como princípio
universalizar os direitos humanos, e para isso, determinou que esses direitos deveriam
pertencer a todo ser humano, independente da sua nacionalidade, raça, credo/religião, sexo,
entre outros; que deveriam proteger e garantir a dignidade humana; que deveriam humanizar
as relações dentro de uma sociedade. E mais, determinou que os Estados-Partes deveriam
garantir as condições para a efetivação dos direitos humanos em seus territórios. Todavia, há
um grande hiato entre o que foi estabelecido não só pela Declaração, mas pelos tratados e
pactos internacionais que vieram depois, além de marcos jurídicos nacionais, e o que acontece
na prática no Brasil, país que ratificou vários destes tratados e pactos, além da própria
Declaração Universal. Isso pode ser observado no presente relatório, resultante de uma
investigação acerca da relação entre desenvolvimento econômico e Direitos Humanos, e que
tomou como referência empírica a relação estabelecida nos últimos 40 anos pelo projeto
agroindustrial da Aracruz Celulose com as comunidades quilombolas do Sapê do Norte, no
litoral norte do estado do Espírito Santo.
Observa-se que a inclusão e o respeito aos direitos humanos não são inerentes ao tipo de
desenvolvimento que se tornou hegemônico no mundo; tampouco que a versão brasileira deste
tipo de desenvolvimento, que foi se intensificando a partir de meados do século XX, tenha como
princípio respeitar modos de vidas que não se coadunem com o padrão imposto. A experiência
das comunidades quilombolas do Sapê do Norte constitui uma flagrante denúncia de que os
projetos de desenvolvimento tendem a subordinar a dinâmica da vida local aos seus interesses
econômicos. Suas ações produzem alterações materiais e simbólicas profundas no modo de vida
local e comprometem, substancialmente, o futuro das populações que vivem nos territórios
onde esses projetos são instalados.
O caso do projeto agroindustrial da Aracruz Celulose/Fibria e a sua relação com as
comunidades quilombolas do Sapê do Norte desvelam um gama de impactos sociais,
ambientais, econômicos e culturais, que foram constatados pelo estudo realizado:
� A perda territorial levou a um processo de expulsão de grande parte dos que viviam ali.
Os que conseguiram permanecer tiveram que se espremer em pequenos fragmentos de
terra; se viram na urgência de lidar com transformações radicais na paisagem, nas suas
relações familiares e de trabalho, nas suas práticas culturais, nas relações sociais, nas
suas formas de expressão e em seus modos de criar, fazer e viver. O que demorou
206
gerações para se constituir e se estabelecer como patrimônio cultural brasileiro, foi e está
sendo drasticamente alterado sem a proteção do Poder Público, como está previsto
constitucionalmente no Art. 216 da CF. A perda do território não foi a única perda;
porém, constituiu-se numa das mais importantes porque, para esse povo, é no território
que reside a possibilidade de produção e reprodução do seu modo de vida.
� O plantio do monocultivo de eucalipto em larga escala levou à destruição da Mata
Atlântica, à desertificação do solo e ao comprometimento dos rios e córregos da região.
Numerosas cabeceiras estão comprometidas em sua dinâmica hídrica pela ausência de
mata ciliar, que foi substituída pelos monocultivos de eucalipto. Da mesma maneira
aconteceu com as lagoas e zonas de recarga hídrica, aterradas e preenchidas com os
plantios exóticos. Com a construção de estradas para o transporte da matéria prima e a
implementação sistemática dos talhões de eucalipto sem considerar as características
naturais das bacias hidrográficas, muitos rios e córregos foram represados, aterrados ou
manilhados. Ademais, o uso intenso de agrotóxicos no eucalipto produziu o
envenenamento da fauna e das águas, levando ao desaparecimento de animais silvestres
e peixes, além de prejudicar a saúde dos moradores.
� Para sobreviver, essa população - que pouco pode contar com a agricultura por falta de
terras - recorreu à cata de resíduos de eucalipto e à fabricação de carvão. Diante disso, a
Aracruz Celulose/Fibria e a empresa de vigilância armada que lhe presta serviço
aprofundaram ações para coibir a cata. Tais práticas foram reforçadas por ações de
órgãos policiais e fiscalizadores do Estado e estas ações, em seu conjunto, estabeleceram
um processo de perseguição e criminalização sistemática dos/as quilombolas, resultando
em violência física, constrangimentos, prisões e ameaças. Ressalta-se, entretanto, que o
processo de criminalização não está vinculado apenas à cata do facho, mas sobretudo ao
fato de os quilombolas reivindicarem e desenvolverem lutas para reaver o seu território
expropriado pela empresa.
� Outra atividade de sobrevivência que resta a esta população é o trabalho nas empresas
que realizam a manutenção dos monocultivos de eucalipto, sobretudo na “capina
química”. Há denúncias de que esta atividade é realizada sem as devidas medidas de
segurança contra contaminação e vem gerando diversos casos de danos à saúde dos
trabalhadores e comunidades, inclusive, de mortes que permanecem sem apuração,
como já citados neste relatório.
207
� O estudo também constatou que essa população não tem acesso aos instrumentos legais
que poderiam proteger os seus direitos. Embora o Ministério Público venha sendo
acionado, todavia, há casos onde o Ministério Público Estadual aparece como o
denunciante de lideranças quilombolas, contribuindo para o processo de criminalização.
Corroborando isso, a Comissão Especial de Acompanhamento e Apuração de Denúncias
Relativas à Violação do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), em 2008, tomando
como referência os documentos aos quais teve acesso e diante das informações obtidas
durante a visita ao Sapê do Norte, constatou a violação do direito humano das
comunidades quilombolas a ter acesso à Justiça e ao tratamento igualitário perante a
Justiça. Tal direito está resguardo o pelo art. 7º da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, que estabelece que “todos os seres humanos são iguais e têm direitos iguais perante
a lei”.
[...] a Comissão constata que os quilombolas que vivem na região estão submetidos a diferentes e sistemáticas violações de direitos humanos. Essas violações são produzidas pela conjugação entre atuação e especialmente omissão de diferentes agentes estatais, no âmbito dos três níveis de poder, em suas três esferas, constituindo-se em impeditivos a uma vida com dignidade das comunidades quilombolas.1
� Insta registrar que o estudo realizado observou impactos diferenciados sobre homens e
mulheres, revelando que há um importante componente de gênero a ser considerado
quando se analisa a relação desenvolvimento econômico e Direitos Humanos. No caso
quilombola do Sapê do Norte, as mulheres vivenciaram diversas transformações nas
suas relações de trabalho e nas suas relações familiares: mulheres, agricultoras e donas
de casa, são transformadas em trabalhadoras assalariadas pelas empresas terceirizadas
da Aracruz/Fibria e atuam na aplicação de veneno nas plantações de eucalipto.
Conforme os depoimentos contidos neste relatório, elas sentem os impactos dessa
atividade na sua saúde. Há relatos de mães que acompanham o processo de
envenenamento de seus filhos e têm consciência dos impactos de tais atividades, mas
não vislumbram alternativas de trabalho, já que a família precisa da pequena renda
recebida para a sua subsistência. Mulheres, quando não são criminalizadas, têm que
1 Comissão Especial de Acompanhamento e Apuração de Denúncias Relativas à Violação do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), “Relatório da Comissão Especial de Acompanhamento e Apuração de Denúncias Relativas à
Violação do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) nas comunidades quilombolas Sapê do Norte no Estado do
Espírito Santo”, Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, 2009.
208
lidar com o processo de criminalização de seus filhos e companheiros, causando-lhes
profundo sofrimento e a sensação de impotência diante do poderio econômico. No
mais, são elas que têm que lidar com a escassez e o envenenamento da água para
continuar a preparar o alimento e lavar as roupas; são elas que têm que “fazer milagre”
para que a família possa chegar ao final do dia alimentada. Em anexo (ANEXO V) a este
relatório está um estudo produzido pelo Movimento Mundial de Defesa das Florestas
Tropicais (WRM), de autoria de Gilsa Barcellos e Simone Ferreira e em 2007, que trata
especificamente dos impactos da monocultura de eucalipto sobre mulheres indígenas
Tupiniquim e Guarani e quilombolas do Sapê do Norte).
� Observou-se também que as comunidades não assistiram a sua expropriação de braços
cruzados, pois estabeleceram um forte processo de resistência e vêm travando suas lutas
desde a década de 1970. No entanto, findando a primeira década do século XXI, ainda
não conseguem visualizar concretamente a possibilidade de demarcação de seus
territórios. As comunidades do Sapê do Norte já foram reconhecidas pela Fundação
Cultural Palmares como remanescentes de quilombos (como determina o Art. 68 do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias - 1988), relatórios de identificação e
delimitação territorial já foram elaborados pelo MDA/INCRA (como determina o
Decreto 4887/2003), mas nada ainda foi demarcado e regularizado. Essa demora do
Estado Brasileiro em demarcar e titular o território quilombola tem contribuído
fortemente para o processo de discriminação racial e criminalização no qual essa
população foi envolvida. A ausência de decisão política e institucional por parte do
governo Lula, em decorrência da pressão dos setores latifundiários - fazendeiros e
empresas, como a Aracruz/Fibria – e de determinados representantes no Legislativo e no
Executivo – como os deputados estaduais Eustáquio Freitas (PSB), Paulo Roberto
Ferreira (PMN) e Athayde Armani (DEM), os deputados federais Lelo Coimbra (PMDB),
Luiz Paulo Veloso Lucas (PSDB) e Rita Camata (até recentemente PMDB e há pouco no
PSDB), os senadores Renato Casagrande (PSB) e Gerson Camata (PMDB), o prefeito de
São Mateus, Amadeu Boroto (PSB) e o governador do estado, Paulo Hartung (PMDB) -
tem afetado substancialmente a vida desse povo, comprometendo ainda mais seu
cotidiano e seu futuro. Nesse sentido, todos esses mandatários públicos são responsáveis
pela não efetivação dos direitos humanos quilombolas do Sapê do Norte.
� Também foi observado pelo estudo que existem outras intervenções no território
quilombola: os usineiros de álcool, responsáveis pela monocultura de cana-de-açúcar no
209
norte do Espírito Santo; a Petrobras, responsável pelo Gasoduto Gasene Cacimbas-Catu,
que corta o território quilombola sem a consulta apropriada, como previsto na
Convenção 169, dos moradores e sem qualquer contrapartida (ANEXO VI); o aterro
sanitário que está sendo instalado dentro do perímetro do território pleiteado pela
comunidade de São Jorge (publicado do DOU em outubro de 2006), mais
especificamente na cabeceira do Córrego do Sapato, junto às moradias do Morro da
Arara, tendo como responsável o consórcio entre governo estadual e municipalidades
do norte capixaba.2 Tais ações se caracterizam como práticas de injustiça e de racismo
ambiental. Sobre as práticas de racismo ambiental na região, Jô Brandão comenta:
Também pudera! Com tanto silêncio por parte do governo, os senhores e capatazes gritam: quem vai falar por eles? Quem são esses quilombolas pra terem direitos? Que tal reunirmos nove municípios e construirmos uma grande obra para limpar nossas cidades? Claro, vamos construir um grande aterro sanitário e onde vai ser? Na comunidade quilombola de São Jorge; assim realizamos também uma “limpeza étnica” mais eficiente, já que o veneno da Aracruz Celulose só conseguiu matar três crianças (BRANDÃO, CONAQ, citada por COIMBRA, 2008).
Um território feito de diversidade biológica e cultural é transformado em um grande
deserto verde onde impera a monocultura. A realidade do Sapê do Norte explicita o
esmagamento de uma racionalidade de respeito à natureza, na sua complexa e imensa
diversidade, para dar lugar a uma racionalidade capitalista, onde prevalecem os interesses de
acumulação de riquezas e lucro. Já disse Marcuse que no desenvolvimento da racionalidade
capitalista, a irracionalidade se converterá em razão: “[...] razão como desenvolvimento
frenético das forças produtivas, conquista da natureza, ampliação da riqueza de mercadorias;
mas irracional, porque a produtividade superior, a dominação da natureza e a riqueza social se
tornam forças destrutivas.” (MARCUSE citado por BARCELLOS, 2008, p. 184).
A partir de extensas pesquisas documental e de campo - entrevistas com lideranças
quilombolas locais e nacionais e com várias pessoas das comunidades localizadas no Sapê do
Norte, da leitura dos Relatórios produzidos pelas agências de estado tais como INCRA, MDA,
SEPPIR, encontros públicos para apresentação dos resultados da pesquisa e aquiescência dos
quilombolas sobre os resultados e recomendações do mesmo - o presente relatório conclui que :
2 AMBITEC é a empresa responsável pela instalação de aterros sanitários, conforme planejado pelo Governo Estadual no chamado Plano “ES-2025”.
210
1. o Estado brasileiro tem um imenso passivo com as comunidades quilombolas do Sapê
do Norte;
2. as agências de governo federal, estadual e municipal não reconhecem os estatutos
jurídicos dos Povos e Comunidades Tradicionais no Brasil, nos quais se incluem os
quilombolas;
3. as agências de governo não promovem a paz, a justiça e os Direitos Humanos nas
comunidades quilombolas do Sapê do Norte;
4. as agências de governo como SEPPIR e Fundação Cultural Palmares responsáveis pela
proteção dos direitos quilombolas têm atuado de maneira muito tímida na defesa dos
direitos das comunidades quilombolas do Sapê do Norte e, em alguns casos, têm até
mesmo retrocedido nesses direitos, como no princípio da auto-atribuição;
5. a Secretaria Nacional de Política Para Mulheres não desenvolveu nenhuma ação na
região para efetivar políticas públicas para a promoção dos direitos humanos das
mulheres quilombolas do Sapê do Norte;
6. o Ministério da Justiça não designa Promotor Público no município de Conceição da
Barra para garantir os Direitos Humanos das Comunidades Quilombolas no Sapê do
Norte;
7. o Ministério da Justiça não investiga os abusos das delegacias de polícia de São Mateus e
Conceição da Barra na sua atuação junto às comunidades quilombolas no Sapê do Norte;
8. o Ministério Público Federal tem atuado de forma frágil como PROMOTOR dos Direitos
Humanos das comunidades quilombolas nas situações de conflito étnico/racial e defesa
do patrimônio cultural afro-brasileiro;
9. o INCRA e o MDA não têm quadros técnicos e administrativos suficientes para
promover os Direitos Humanos através da identificação e titulação dos territórios
quilombolas;
10. o Ministério do Trabalho não tem criado alternativas sustentáveis ao trabalho dos
quilombolas nas carvoarias no Sapê do Norte;
11. o Ministério do Meio Ambiente não desenvolve ações que garantam a sustentabilidade
nas comunidades quilombolas do Espírito Santo;
12. os institutos ambientais federais e estaduais (IBAMA, IEMA e IDAF) cessem a
criminalização das atividades econômicas quilombolas e proponham ações que
garantam a produção e reprodução social, econômica e cultural nas comunidades
quilombolas do Espírito Santo;
211
13. as empresas estatais, como Petrobras, desrespeitam os Direitos Humanos das
comunidades quilombolas no Espírito Santo ao instalarem grandes empreendimentos
sem a observação dos direitos das comunidades quilombolas;
14. as linhas de financiamento do PRONAF não têm beneficiado as famílias quilombolas,
reduzindo as expectativas de inclusão social e auto-sustentabilidade;
15. os projetos da FUNASA têm beneficiado muito pouco as famílias quilombolas,
agravando as condições sanitárias nas comunidades quilombolas;
16. o dinheiro público, BNDES e BANDES, tem servido de aceleradores e promotores da
violação dos Direitos Humanos, quando financiam o plantio de eucalipto e cana;
17. o dinheiro público, BNDES e BANDES, tem servido de barreira à proteção e implantação
dos Artigos constitucionais 215 e 216, relativos à proteção do patrimônio da cultura afro-
descendente, em face dos investimentos no agronegócio;
18. o dinheiro público, BNDES e BANDES, tem servido de barreira e proteção ao Artigo 68
da ADCT, relativa aos direitos territoriais das comunidades quilombolas, em face dos
investimentos no agronegócio;
19. o dinheiro público, BNDES e BANDES, tem servido de promotor do êxodo Rural das
Comunidades Quilombolas no Sapê do Norte, em face dos investimentos no
agronegócio;
20. o dinheiro público, BNDES e BANDES, tem servido de incentivo a projetos de
manutenção da discriminação racial e desqualificação das identidades quilombolas tais
como o projeto “Bons Vizinhos”;
21. o dinheiro público, BNDES e BANDES, tem servido de financiador de empresas de
vigilância que agem como milícias armadas, VISEL e GARRA, que promovem a violação
de Direitos Humanos nas Comunidades Quilombolas no Sapê do Norte;
22. o dinheiro público, BNDES e BANDES, tem servido de fomentador do envenenamento
dos trabalhadores quilombolas com agrotóxicos nas plantações de eucalipto, cana-de-
açúcar e fruticultura;
23. o estado do Espírito Santo promove a manutenção de violação dos direitos Humanos
das comunidades quilombolas ao não atender às solicitações de documentação pública
relativa à titulação dos territórios quilombolas;
24. o estado do Espírito Santo corrobora a ação da Polícia Militar com suas investidas
violentas contra as comunidades quilombolas;
212
25. o estado do Espírito Santo não promove os Direitos Humanos nas comunidades
quilombolas ao não estender a estas os benefícios de políticas e financiamentos públicos
como o faz com outros setores do campo;
26. as prefeituras de São Mateus e Conceição da Barra não promovem os Direitos Humanos
nas comunidades quilombolas ao não estender a estas as políticas e os benefícios de
financiamentos públicos como o faz com outros setores do campo;
27. as prefeituras de São Mateus e Conceição da Barra não promovem os Direitos Humanos
nas comunidades quilombolas ao não implantar a proteção sanitária, educacional e
patrimonial nas comunidades quilombolas;
28. o Movimento Paz no Campo incita a desordem pública ao promover publicamente o
racismo contra as comunidades quilombolas e desqualificar os institutos jurídicos do
Estado brasileiro como a Constituição Federal, convenções internacionais e decretos
presidenciais;
29. o Movimento Paz no Campo incita a desordem pública ao promover publicamente
ameaças aos servidores públicos nos atos de garantia dos territórios das comunidades
quilombolas no Espírito Santo.
Todas estas conclusões indicam que várias ações devem ser tomadas para promover os
direitos humanos e coibir as ações contra as comunidades; que medidas urgentes devem ser
tomadas para que as comunidades quilombolas possam sair de uma condição de profunda
opressão.
213
RECOMENDAÇÕES PARA O ESTADO BRASILEIRO NAS SUAS DIVERSAS ESFERAS E NÍVEIS
Este relatório, em consonância com as reivindicações apresentadas pelas
comunidades quilombolas à equipe de pesquisa ao longo deste estudo, recomenda ao Estado
Brasileiro (nas suas diversas esferas e níveis):
� Para o Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA):
� Identificação e delimitação de todos os territórios quilombolas do Sapê do Norte.
� Demarcação dos territórios já identificados, em caráter imediato, e sua titulação.
� Para os Ministérios do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e do
Trabalho
� Criar a Comissão Estadual de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades
Tradicionais, correlata à Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável
dos Povos e Comunidades Tradicionais, criada em 13 de julho de 2006 e
presidida pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, por
meio da Secretaria de Articulação Institucional e Parcerias, cabendo ao
Ministério do Meio Ambiente, por meio da Secretaria de Políticas para o
Desenvolvimento Sustentável, as atribuições de Secretaria-Executiva. O objetivo
é que a Comissão Estadual possa acompanhar a realidade das comunidades
tradicionais do Espírito Santo e, particularmente, a situação das comunidades
quilombolas.
� Garantir aos quilombolas o direito ao trabalho digno.
� Garantir atividades de geração de renda para homens, mulheres e jovens. Para tanto, são
necessárias políticas de incentivo por parte do Estado (subsídios, apoio técnico, oficinas
de capacitação, garantia de escoamento dos produtos produzidos).
� Estimular as atividades que lhes garantam autonomia nas relações de trabalho.
� Estimular e garantir as condições para que possam retomar as atividades na agricultura
quilombola.
214
� Reconstruir as casas de farinha.
� Realizar um diagnóstico sobre as condições dos/as trabalhadores/as das empresas
contratadas pela Aracruz para fazer os tratos culturais nos monocultivos de eucalipto,
particularmente no que se refere àqueles/as que trabalham na aplicação de venenos nas
plantações.
� Para o Ministério do Meio Ambiente e para a Secretaria Estadual do Meio
Ambiente e Recursos Hídricos, por meio do Instituto Estadual do Meio
Ambiente e Recursos Hídricos (IEMA):
� Iniciar o processo de recuperação dos rios e córregos comprometidos pela ação da
ARCEL e das alcooleiras.
� Recuperar as florestas que foram destruídas para dar lugar ao eucalipto e à cana-de-
açúcar.
� Recuperar, em caráter imediato, as matas ciliares (definidas como Áreas de Preservação
Permanente pelo Novo Código Florestal): acabar com o eucalipto plantado nas
cabeceiras dos cursos d’água e nas margens dos rios.
� Retirar os aterros e os manilhamentos feitos pela Arcel para a construção de suas
estradas, buscando desobstruir os rios e córregos através de pontes.
� Monitorar o uso de agrotóxico nos monocultivos de eucalipto da Aracruz Celulose.
� Ministério da Saúde e Secretaria Estadual de Saúde do Espírito Santo
� Construir, em caráter emergencial, poços artesianos nas comunidades quilombolas, bem
como cisternas para a captação e armazenamento da água das chuvas.
� Investigar as condições de saúde dos/as quilombolas que trabalham ou já trabalharam
nas empresas terceirizadas como a PLANTAR.
� Investigar a morte de quilombolas por envenenamento por agrotóxicos.
� Para o Ministério da Educação, Secretaria Estadual de Educação e secretarias
municipais de educação de São Mateus e Conceição da Barra
215
� Dar continuidade a Arca de Leitura nas comunidades quilombolas do Sapê do Norte,
garantindo um conteúdo que vá ao encontro das aspirações e da história dessas
comunidades.
� Melhorias da estrutura física e/ou ampliação das escolas nas comunidades quilombolas.
� Implantar escolas nas comunidades quilombolas com recorte étnico/quilombola.
� Criar o CEAFRO nos municípios.
� Cumprir a Lei 10.639/2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional,
para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática
"História e Cultura Afro-Brasileira".
� Garantir, na alimentação escolar das crianças quilombolas, produtos/alimentos da
cultura culinária tradicional quilombola e da agricultura familiar (cumprimento da
Resolução 455/2009)
� Construção de escolas comunitárias agrícolas no território do Sapê do Norte para
atender crianças de 5ª à 8ª séries
� Para a Secretaria Especial de Políticas Para as Mulheres
� Fazer um monitoramento das políticas públicas para as mulheres quilombolas do Sapê
do Norte.
� Implementar atividades que possibilitem as mulheres desenvolver atividades de auto-
sustentação.
� Implementar políticas que possibilitem as mulheres quilombolas a retomar as suas
práticas tradicionais no campo da saúde.
� Estimular ações que possibilitem o resgate e a valorização do saber tradicional das
mulheres quilombolas.
� Para o Ministério da Justiça e Ministérios Públicos
� Acompanhar todos os processos que envolvem os interesses quilombolas que tramitam,
atualmente, no Judiciário, particularmente os que se referem aos seus direitos territoriais
e aos casos de envenenamento.
� Aplicar os institutos jurídicos de proteção socioambiental e de consulta pública
apropriada em razão da construção do aterro sanitário, que está sendo instalado dentro
do perímetro do território pleiteado pela comunidade quilombola de São Jorge
216
(publicado no DOU em outubro de 2006), na cabeceira do Córrego do Sapato, junto às
moradias do Morro da Arara (São Mateus).
� Aplicar os institutos jurídicos de proteção socioambiental em razão da construção do
Gasoduto Gasene Cacimbas-Catu nos territórios quilombolas do Sapê do Norte, já
reconhecidos como tal pelo Governo Federal, através da Fundação Cultural Palmares e
do MDA/INCRA.
� Encaminhar os casos de envenenamento de quilombolas para o Fórum Nacional de
Combate aos Impactos dos Agrotóxicos, para a Coordenadoria Nacional de Defesa do
Meio Ambiente de Trabalho (CODEMAT), do Ministério Público do Trabalho e para a
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), que está avaliando um
determinado grupo de agrotóxicos cujo uso é liberado no Brasil, porém, é questionado
por outros países.
� Para o Ministério Público especificamente, que tem o papel proteger os
interesses sociais (relevantes para a sociedade como um todo), difusos
(considerados indivisíveis, como paz, meio ambiente e segurança) e
individuais intransponíveis (aqueles dos quais ninguém pode abrir mão, como
a saúde e a vida); que tem o dever de garantir o respeito às leis nacionais, aos
tratados internacionais e a observância dos princípios e normas que garantem
a democracia, propõe-se:
� Discutir as ações do Ministério Público no estado do Espírito Santo, bem como seu papel
na proteção dos direitos das populações tradicionais, na garantia da permanência e do
direito à propriedade coletiva da terra das comunidades quilombolas; na demarcação,
titulação das terras tradicionalmente ocupadas. E mais, o seu papel na implantação e
garantia de políticas de saúde e educação e preservação cultural.
� Posicionar-se frente ao silêncio da PGE sobre as denúncias de irregularidades na
aquisição de terras e à extrema lentidão do IDAF em identificar as terras devolutas e
aquelas adquiridas ilegalmente.
� Constituir Câmaras Técnicas para mediar os conflitos relativos aos direitos quilombolas,
na perspectiva da garantia desses direitos ;
� Instituir a Ouvidoria Estadual dos Conflitos Agrários para a prevenção e mediação das
tensões sociais no campo.
217
� Constituir um Grupo de Trabalho Interministerial para efetivação, implantação,
fiscalização e promoção das políticas pública relativas às comunidades quilombolas.
� Instituir a Comissão de Acompanhamento de Povos e Comunidades Tradicionais para
implantação, fiscalização e promoção das políticas pública relativas às comunidades
quilombolas.
� Para a Comissão Permanente de Direitos Humanos da Câmara Federal
� Investigar, por meio de uma comissão especial, a situação de violação dos direitos
humanos dos quilombolas por parte do Estado, por parte da ARACRUZ/FIBRIA e do
Movimento Paz no Campo - MPC.
� Realizar audiências públicas – no Espírito Santo e em Brasília – para ouvir as
testemunhas dos impactos e violações de direitos humanos contidos no presente
relatório
� Intervir no processo de criminalização dos quilombolas, buscando cessar as situações de
constrangimentos e de violência policial, buscando garantir-lhes o direito de ir e vir.
� Para o Movimento Nacional de Direitos Humanos:
� Denunciar, em fóruns nacionais e internacionais, a violação sistemática dos direitos
humanos das comunidades quilombolas do Sapê do Norte.
� Denunciar, em fóruns nacionais e internacionais, a destruição ambiental promovida pela
ARCEL no Sapê do Norte.
� Denunciar o envenenamento de quilombolas: ainda acontece na atualidade,
principalmente de mulheres jovens.
Para finalizar o presente relatório, tomando como referência os últimos 40 anos de
experiência com o monocultivo de eucalipto, registra-se a compreensão das comunidades
quilombolas acerca do DESENVOLVIMENTO.3.
3 Em uma dinâmica realizada pela Equipe do EIDH/RIDH com lideranças quilombolas de diferentes comunidades quilombolas do Sapê do Norte, em dezembro de 2009, foi perguntado aos/às participantes, tomando como referência a sua relação com o projeto agroindustrial da AracruzCelulose/Fibria, o que é o desenvolvimento?
218
O QUE É O DESENVOLVIMENTO?
FOME
DESEQUÍLIBRIO AMBIENTAL
MISÉRIA
DOENÇAS
MUITA DESTRUIÇÃO
ENGANO
INSETO (CUPINS QUE SE ALOJAM NO EUCALIPTAL)
IMPACTO PSICOLÓGICO
PERDA DE IDENTIDADE
DESTRUIÇÃO DAS MATAS, DA FLORA, DAS NASCENTES, DOS RIOS, DOS
CÓRREGOS E DA SAÚDE
DESESTRUTURAÇÃO ECONÔMICA, CULTURAL E RELIGIOSA
DESRESPEITO
PERDA DAS TERRAS
DEPRESSÃO
DESORGANIZAÇÃO E DESTRUIÇÃO DAS FAMÍLIAS QUILOMBOLAS
INVASÃO DA POLÍCIA MILITAR NAS COMUNIDADES; EXPULSÃO DOS JOVENS,
DESEMPREGO, FALTA DE TRABALHO E TRABALHO SEMI-ESCRAVO
INSUSTENTABILIDADE
USURPAÇÃO
POLUIÇÃO
DESTRUIÇÃO DA VIDA
VIOLAÇÃO DE DIREITOS
O DESENVOLVIMENTO É DESUMANO!
219
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ANEXO I - O processo de grilagem de terras envolvendo a Aracruz Celulose, com análise de algumas cadeias dominiais. (Extraído da Tese de Doutorodo de Simone Batista Ferreira, 2009)
A participação do Estado neste processo de des-territorialização iniciou-se com a
institucionalização das formas de acesso à terra, por meio de normas específicas que passaram a
classificar os ocupantes como “posseiros”, “requerentes” ou “proprietários”, que ocupavam
determinada posição numa escala hierárquica de legalidade. Neste sentido, o Estado define um
caminho obrigatório de legalização da ocupação da terra, onde a situação ideal a ser almejada é a de
“proprietário”; assim era imposta a ordem da propriedade privada capitalista em oposição às
formas costumeiras de apropriação da terra e demais atributos da natureza, que associavam
parcelas familiares e uso comum.
No entanto, a legalização da ocupação da terra pelo Estado, que se faz obrigatória, dá-se sob
formas diferenciadas para os camponeses e para o capital. Para o campesinato negro do Sapê do
Norte, havia um longo processo de requerimento que deveria ser feito junto ao Departamento de
Terras e Cartografia – DTC da Secretaria de Agricultura do Estado do Espírito Santo e que
envolvia o trabalho de demarcação e registro nos cartórios de imóveis, processo muitas vezes
inviabilizado devido aos seus custos. Para a expropriação destas terras ao grande capital, grandes
facilidades foram geradas pelo Estado do Espírito Santo - que também podem ser denominadas de
“incentivos fundiários” e fundamentaram o mecanismo da grilagem. A grilagem efetivou a
expropriação jurídica destas terras - apropriadas e usadas de forma comum, foram classificadas
como devolutas e, portanto, de propriedade do Estado – e as transformou em grandes propriedades
privadas capitalistas, consubstanciando a des-territorialização legalizada e institucionalizada. Embora
solicitada institucionalmente pelo INCRA e exigida pelos movimentos sociais, ainda hoje, a
discriminação das terras devolutas do Espírito Santo permanece nos arquivos obscuros do
Instituto de Desenvolvimento Agroflorestal – IDAF.
A “indistinção entre o público e o privado” característica da formação social brasileira
(PORTO-GONÇALVES, 2003) faz-se presente neste imenso processo de grilagem legalizada que
efetivou a particularização de grandes áreas devolutas em latifúndios, através de uma rede com
vários agentes e estratégias. A primeira delas configura o que se poderia chamar de “tentativa de
sedução” para o abandono da terra, empenho de diversos agentes identificados como agrimensores,
que procuravam convencer os moradores de que a vida na cidade seria melhor, principalmente
para os filhos. Assim relata Dona Durmelina Rodrigues da Silva, 78, que permaneceu em sua terra
situada no Córrego do Borá, e seu filho Cleres, morador do Córrego São Domingos:
Dona Durmelina - Aqui, nego vinha aqui pra vender e nós “não, não”. Seu Valzim. Aí eu falei com Chico “ô, você num deixa seu Valzim vim aqui não, se não, eu vou jogar água quente nele, hein!”
- O que ele falava, o Valzim? Dona Durmelina - Pra vender a terra. Vender e nós tirar os filhos porque aqui nós não podia criar os filhos, pra vender, e nós não quisemos. - E quem era esse Valzim, e ele era de onde? Dona Durmelina - Era lá de São Mateus. - E ele trabalhava pra alguma empresa? Cleres - Trabalhava pra Aracruz, ele era tipo um corretor. Ele vivia igual você, chegava pra mim é dizia “ê, você quer vender sua terra?” Eu dizia: “não”. Ele: “rapaz, vende, vende”. Se eu fosse na história dele, eu vendia, agora se eu não fosse... - Ele tentava convencer vocês a vender a terra. Dona Durmelina - Alguns eles convenceu, e venceu. Mas nós, não. Cleres – [...] Ele chegava pra você: “rapaz, você não quer vender sua terra, não? Um camarada está pagando um bom dinheiro, vou te arranjar uma boa condição pra você criar seus filhos e tal, tal, tal...” Aí se você fosse ou eu fosse nesta conversa, tudo bem, mas se eu dissesse “não, essa daqui eu estou, sou posseiro e não tem negócio”, aí não tinham jeito, né, não tinha como você insistir. (entrevista realizada por Sandro Juliati e Simone Batista Ferreira em 02.10.2004)
Estes agrimensores e seu saber-poder incorporado sobre a medição das terras tinham como
objetivo vender as terras às empresas que chegavam à região para implantar monoculturas de
eucalipto. Dentre eles, são citados com freqüência Valzinho, José Miranda e Quidinho, cujas
investidas somavam-se às de Pelé e de Tenente Merçon. Assim, as tentativas de sedução vinham
envolvidas pelo poder de pressão do saber técnico, do parentesco e da farda do exército, que
muitas vezes tomavam tom imperativo, conforme testemunhado por Elda Maria dos Santos, 45, a
“Miúda”, moradora da Comunidade de Linharinho:
Miúda – [...] Meu pai estava puxando roda, um dia, eles chegaram falando assim: “Ó! O senhor vai sair daqui”. “Não!” “O senhor vai sair daqui e ir embora!” Então, meu pai dizia: “Mas pra onde é que eu vou com esses filhos todos aqui? Não!”“O senhor tem que sair! Tem que ir! Tem que ir.” Ele respondeu: “não vou, não!” “Então, o senhor vai ficar aqui? [...] Aqui não tem colégio bom pra seus filhos, não, lá vai ter.” (entrevista realizada na oficina do Projeto Cartografia Social, na Comunidade Quilombola de Linharinho, em 19.08.2006)
História semelhante foi vivenciada por Seu Domingos Aires de Farias, 68, da Comunidade
de São Domingos: “Eles pelejaram pra me tirar dali. Aí eu falei ‘eu, ir pra onde? Aqui nós tamo no
costume. Parado eu não fico’. Aí eu fiquei ali” (15.10.2005). Fracassando as tentativas de
convencimento para a saída da terra, os agrimensores apelavam para a imposição de seu
conhecimento técnico específico e sobre a antiga terra de uso camponesa, mediam e demarcavam
grandes áreas que seriam disponibilizadas ao latifúndio, conforme testemunha Umberto Batista,
54, da Comunidade do Angelin 1:
Umberto – [...] Aí eles requereram, depois veio um agrimensor lá, ladrão, chegou, meteu requerimento por fora. Requereu tudinho. O pai balabutou com ele, foi no Secretário de Agricultura, tudo, com o Juiz, não teve jeito. - Mas esse agrimensor requereu pra quem? Umberto – Pra ele! Passou a mão, vendeu pra Aracruz, foi aonde entrou esse eucalipi! [...] Vendeu. O agrimensor vendeu. E nós aí, nós tinha direito a 10 alqueire, que tinha, vinhemo ter direito a 4 alqueire. - Mas por que tinha direito a 10? Umberto – Porque era... era legalizado 10 alqueire daqui... essa, esse rumo era tudo vazado na estrada [...] porque todos agricultor tinha um direito a 10 alqueire, mas [...] no caso do agrimensor, nós tivemo direito só a 4. Porque se nós fosse... aí já ia entrar em justiça, ia entrar em questão, então não deu pra gente tirar os 10 alqueire. (entrevista realizada por Simone Batista Ferreira em 27.09.1999)
O relato de Umberto revela que, embora seu pai já tivesse requerido a terra, prevaleceu o
requerimento que o “agrimensor ladrão meteu por fora”. As tentativas de recorrer aos poderes
instituídos do Executivo e Judiciário não tiveram resultado favorável e a família foi expropriada do
direito que tinha a 10 alqueires de terra, ficando somente com 4 alqueires e perdendo 6 alqueires,
que foram negociados com a empresa Aracruz Florestal. Outra forma usada, conforme o relato de
Seu Angenor Evangelista, 88, antigo morador do Angelin do Meio: o agente que requeria ou
comprava terras dos moradores locais para passar à empresa, media o alqueire na corda ou na
corrente, e quando a terra era “retombada” – ou seja, passava por nova medição feita por
agrimensor, constatava-se que a área comprada era bem maior. “A corrente rouba a terra”, diria
Marolina Ayres da Vitória, 51, moradora da Comunidade de São Domingos (22.10.2005).
Assim, a expropriação era consumada tanto na transação de compra de terras dos “donos”,
como na dominação de outras que não se encontravam em uso. Quando a terra não tinha
documento, comprava-se o “direito de posse” dos “donos” por meio de uma negociação particular de
indenização. Segundo Clóvis dos Santos, 71, morador do Córrego Santana, comprar o “direito de
posse” era comprar as “plantas” da terra para depois requerê-la ao Estado (24.10.2005). Se houvesse
recusa do morador em vender seu “direito de posse”, a terra era requerida diretamente ao Estado
pela empresa. Desta maneira, poucas opções se apresentavam aos “donos” das terras, como relata
Ângelo Camilo, xx, o “Caboquinho”, antigo morador da Comunidade do Angelin 1:
Caboquinho – Quando chegou a arrecadação, aí quem teve, teve, quem não teve, perdeu tudo! - Por causa de imposto? Caboquinho – Não, de terra, né? Porque as firma foi chegando, foram comprando de todo mundo e... aí, quem teve, vendeu, quem não teve, não vendeu, quem tinha direito de posse, pagar o direito de posse ela pagava, e tomava conta também. [...] - Mas, e se você não quisesse sair? Caboquinho – Agora, aí Simone, se você não quisesse sair, eles tinham que meter aquele terreno em requerimento, pra requerer tudo, legalizar tudo direitinho... E o outro gostava do
dinheiro, como se gosta do dinheiro, e “ah, não, me dá tanto, tá bom”, e tal. É isso aí! Isso foi passando demais aqui. Demais mesmo! - E a Aracruz negociava com as próprias pessoas que estavam no terreno? Caboquinho – Negociava! [...] Mas falta documentação, essas coisa assim, então “vamo fazer o seguinte: vou te indenizar, vou te dar tanto, tá bom?” (entrevista realizada por Simone Batista Ferreira em 04.05.1999)
Cabe assinalar que neste momento da “arrecadação” de terras devolutas pelo Estado, a
grande maioria dos moradores não possuía documento da terra, portanto era “dono” pelo uso e
apropriação que dela fazia há gerações, mas não reconhecido como “proprietário” pela nova ótica
de valorização capitalista. Assim, uma outra estratégia utilizada pelas empresas era a cobrança, em
alqueires, pelo requerimento da documentação da terra camponesa – e portanto, sua legalização,
conforme relata Paulo Florentino, 39, e seu pai Manoel Florentino, 85 (falecido em 2006),
moradores do Córrego Água Boa:
- [...] O senhor falou que não tinha dinheiro para requerer do Estado. O que acontecia? Paulo - A firma Cricaré, por exemplo, pegava uma parte da terra para poder dar o documento da outra. - A firma do Cricaré era quem mesmo? Paulo - Ângelo Coutinho, filho do Henrique Coutinho. A pessoa não tinha o dinheiro para requerer, então ele pegava uma quantia de terra pra poder requerer a outra parte e vendia. - Você já estavam aqui há muito tempo? Paulo - Só não tinha o documento. [...] - Ele fez isso com o senhor, seu Coxi? Coxi - Fazia, era pobre e não tinha dinheiro. - Ele fez isso com os irmãos do senhor? Paulo - Fez com o Mário e com o Roxo, um outro vizinho que tinha aqui. - O Mário tinha muita terra também? Paulo - Tinha 6 alqueires, na verdade tinha mais terra. Mas só requeriu 6 e o resto foi o Ângelo que ficou. O Liberi também tinha 8 alqueires, mas também tinha mais que 8. - O Mário tinha quanto mais de 6? Paulo - Ele tinha mais ou menos uns 10 alqueires. Ele ficou com 4 e requeriu 6. - E o Liberi tinha muito também? Paulo - Ele tinha na faixa de 12 a 13 e requereu 8. - Quanto tempo o Angelo demorou pra vender pra Aracruz? Paulo - Mais ou menos uns 15 anos, porque ficou aqueles eucaliptos tudo passado aí, porque era muito grosso. Ele só plantou e deixou assim. Depois ele vendeu tudo pra Aracruz, essa área todinha daqui a São Mateus era tudo do Ângelo. A Aracruz só tinha terra da BR pro lado de cima. Lá pra Barra era tudo do Ângelo. Linharinho, Itaúnas, tudo era do Ângelo. - Depois ele mesmo diretamente vendeu e negociou com a Aracruz? Paulo - Ele mesmo negociou, ele nunca cortou. - Quem tinha 12, para requerer 8 vendeu 4 alqueires. Paulo - E meu pai, para requerer 6, vendeu na faixa de 3 alqueires. (entrevista realizada Por Francieli Marinato em 05.11.2005)
Desta maneira, expropriava-se novamente o direito camponês ao requerimento de 10
alqueires de terra: não possuindo recursos para a legalização de sua posse e sua transformação em
proprietário como exigia o Estado, o campesinato negro forçosamente cedia parte de sua terra de
direito em troca da documentação do restante. Pode-se observar, então, que diversificadas
estratégias foram elaboradas para efetivar a expropriação destas terras do campesinato negro do
Sapê do Norte. Quando havia possibilidades de negociação com os moradores locais, roubavam-se
pedaços de terra na medição, no fornecimento da documentação e na ocupação das terras “sem
dono”. Quando havia resistência à negociação, requeria-se toda a terra por cima dos sítios locais.
Para efetivar a “arrecadação” das terras devolutas, no início da década de 1970 o estado do
Espírito Santo realizaria um levantamento e mapeamento das terras e seus ocupantes situados na
região norte1. Realizado pela Secretaria de Agricultura, este documento registrou a presença de
numerosos e antigos moradores – cujas terras, em sua grande maioria, encontravam-se em
processo de requerimento ou eram posses, bem como das empresas que para ali passavam a
adentrar. Este levantamento permitiu o registro das terras sem proprietários e, portanto,
disponíveis à negociação com as empresas produtoras de eucalipto. Assim, paradoxalmente,
acabou registrando, também, os processos fraudulentos de aquisição de terras por estas empresas.
Um destes casos refere-se aos requerimentos de terra feitos em nome de Manoel Florentino e seus
filhos Mário Florentino e Liberi Florentino, que se encontravam tramitando no Departamento de
Terras e Cartografia – DTC da Secretaria de Agricultura. Segundo este documento (Mosaico Folha
n.° 21 – município de Conceição da Barra, fichas n.° 33, 34 e 35), no ano de 1972 Manoel requeria
27,70 hectares, Mário requeria 25,50 hectares e Liberi requeria 34,40 hectares - áreas que
correspondem, respectivamente, aos cerca de 6 e 7 alqueires que sobraram da negociação da
documentação com a Reflorestadora Cricaré, de propriedade da família Coutinho, conforme
relatado anteriormente por Paulo Florentino e Manoel Florentino. As terras que serviram de
pagamento à documentação são confrontantes ao sul das terras da família Florentino e mapeadas
como parte da propriedade privada capitalista da empresa, que se estendem pelos municípios de
Conceição da Barra e São Mateus:
Tabela: Terras sob domínio da Reflorestadora Cricaré - 1974
N.° Mosaico/
Folha
N.° Ficha
Referência de localização Área (hectares)
Documentação
8 1 C. das Piabas (S.Mateus) 240,90 Não consta 21 29-A C. Caboclo / C. Borá (C. Barra) 163,00 Não consta 21 29-A C. Angelin / C. São Domingos /
C.Santana / C. Piabas / Roda D’Água / C. do Serra / C. do Cazuza / C. do Caboclo / C. Deodato (C.Barra)
5.160,00
4.708,30 com documento
(1969 a 1972)
1 SECRETARIA DE AGRICULTURA DO ESPÍRITO SANTO– Departamento de Aerofotogrametria e Interpretação. Fotomosaico de propriedades agrícolas e seus ocupantes. Vitória, 1974. (mimeo)
21 65 C. Santana / C. Piabas (C. Barra) 69,30 1972 21 79 Porto Grande / C. Alexandre (C.
Barra) 106,4 1970 e 1971
TOTAL 5.739,60 4.884,00
Faz-se necessário observar que, dentre estas propriedades apresentadas, não consta
documentação de terra referente à primeira, à segunda e parte da terceira, o que soma 855,60
hectares (que corresponde a 178 alqueires). Ademais, dentre aqueles apresentados como
vendedores de terras à Reflorestadora Cricaré, não constam os nomes de Manoel Florentino e seu
filho Mário, mas consta o nome de Henrique Coutinho (um dos donos da Reflorestadora Cricaré),
que teria vendido à empresa o total de 793,60 hectares de terra (que corresponde a cerca de 165
alqueires), entre os dias 19 e 21.08.1970. Neste sentido, evidencia-se a máscara do processo da
grilagem efetivado, onde o pagamento feito por moradores locais à família Coutinho em troca da
documentação da terra requerida não aparece como parte da transação, mas já como propriedade
adquirida e repassada à empresa no ano de 1970 - enquanto os processos referentes aos
requerimentos dos moradores datam de 1972. A cadeia dominial destas terras aponta que em
09.10.1978, Liberi Florentino vendeu à empresa 10 hectares de terra (cerca de 2 alqueires), dentre os
8 alqueires que haviam sido documentados.
Neste mesmo levantamento feito pelo Estado do Espírito Santo2, consta o mapeamento de
várias porções de terra cuja localização é denominada “Sapê do Norte”, no distrito de Itauninhas,
município de São Mateus. Segundo o documento, estas terras totalizavam uma área contínua de
8.494,86 hectares e encontravam-se sob domínio da empresa Aracruz Florestal. No entanto,
conforme atesta escandalosamente o próprio Estado, delas “não foi possível obter dados referentes a
documentação”. Na tabela a seguir, estas propriedades são apresentadas e localizadas:
Tabela: Terras da Fazenda “Sapê do Norte” sob domínio da Aracruz Florestal S.A. e sem documentação – 1974 3
N.° Mosaico / Folha
N.° Ficha
Referência de localização Área (hectares)
Documentação
6 113 C. Honorato / C. Santaninha 2.041,05 Não consta 6 179 C. São Domingos 229,68 Não consta 6 207 C. São Domingos / Rio São Mateus / C.
Quitério / C. Taboa 1.583,34 Não consta
6 209 C. São Domingos / C. Santana / C. Quitério / C. Taboa / C. Cabeló / C. Três Barras
4.119,06 Não consta
6 248 C. Honorato / C. Santana 521,73 Não consta
2 Idem. 3 Um fluxograma referente à Cadeia Dominial das terras da Fazenda “Sapê do Norte” encontra-se no final deste anexo.
TOTAL 8.494,86 -
É necessário observar que a incorporação da denominação local “Sapê do Norte” pela
empresa configura outra estratégia de dominação deste espaço. O “Sapê do Norte” sofre, assim,
uma profunda mudança de significado: da vastidão da “terra à rola” do “sertão”, onde o sapê
sempre brota após uma derrubada ou uma roça acabada, passa a representar a maior extensão de
terras contínuas sob domínio privado da empresa Aracruz Florestal S.A., cobertas pela
monocultura de eucalipto. Além da fazenda “Sapê do Norte”, outras terras são apontadas como
propriedade privada da empresa Aracruz Florestal e “sem documentação”, totalizando 1.731,60
hectares:
Tabela: Terras sob domínio da Aracruz Florestal sem documentação - 1974 N.° Mosaico
/ Folha N.°
Ficha Referência de localização Área
(hectares) Documentação
7 48 C. do Macuco 58,00 Não consta 7 52 C. do Macuco 55,00 Não consta 7 53 C. da Lama 28,00 Não consta 7 99 C. Santana / C. do Sapato 461,01 Não consta 7 101 C. Santana / C. do Sapato 764,29 Não consta
20 36 C. do Macuco 49,80 Não consta 20 38 C. da Lama 15,50 Não consta 20 44 C. Santana 300,00 Não consta
TOTAL 1.731,60 -
E outras, ainda, como propriedade da empresa Brasil Leste Agroflorestal S.A., que segundo
o documento, é “a mesma Aracruz Florestal S.A.”, totalizando 14.891,40 hectares, dentre os quais
8.907,60 hectares “sem documentação”:
Tabela: Terras sob domínio da Brasil Leste Agroflorestal S.A. - 1974 N.° Mosaico
/ Folha N.°
Ficha Referência de localização Área
(hectares) Documentação
20 16-A Angelin / C. Macuco 97,50 96,00 com documento (1970)
20 19-A C. do Macuco / C. Angelin 12,20 Não consta 21 5 Canta Galo / São Domingos / C.
do Caboclo / C. Grande / C. Cearense / C. da Estiva / C. Angelin / Porto dos Tocos / Santana / Olaria / Beira Linha/ C. do Felipe / C. do Laço / Itaúnas / C. do Serra / C. Jacirana / C. Santa Cruz / Campo Grande / Morro da Conceição
14.243,80 5.854,90 com documento
(1970 a 1972)
21 32 C. Santana 34,00 Não consta 21 45 C. do Borá / C. do Caboclo 95,80 Não consta 21 54 C. do Borá 50,10 Não consta 21 67 C. das Piabas 78,70 Não consta
21 81 C. Carapina 167,10 Não consta 22 11 C. São Domingos 56,00 1970 22 20 São Domingos 56,20 32,90 com
documento (1970) TOTAL 14.891,40 5.983,80
Assim, ao considerarmos estas terras que passaram a constituir parte da propriedade
privada capitalista da empresa Aracruz Florestal S.A. – e, posteriormente, Aracruz Celulose S.A.,
temos o total de 30.857,46 hectares, dentre os quais 19.989,66 hectares “sem documentação” (o que
equivale a cerca de 65% das terras). Entretanto, todas estas terras dominadas pelo capital do
agronegócio da celulose encontram-se documentadas pelos cartórios de registros de imóveis de
Conceição da Barra e São Mateus, dados que são utilizados na argumentação da empresa
relacionada ao seu “direito de propriedade”, quando em con-front-ação com quilombolas e / ou
trabalhadores do “facho”.
É interessante notar a despreocupação do Estado em identificar, registrar e mapear esta
grande quantidade de terras “sem documentação”, o mesmo Estado que impõe às comunidades o
requerimento particularizado de terras e sua documentação como condição de nelas
permanecerem, embora muitas vezes parte desta terra ficasse com os agrimensores ou era trocada
pela documentação, conforme já relatado. Assim, enquanto ficava cada vez mais diminuída a terra
negra e camponesa, outras transações envolviam quantidades muito maiores para as empresas.
Embora o levantamento das terras realizado pelo Estado do Espírito Santo4 afirme a ausência de
documentação referente à “Fazenda Sapê do Norte”, a Cadeia Dominial referente a mesma
localidade5 aponta requerimentos de extensas áreas feitos por pessoas físicas ao Estado e
negociadas com as pessoas jurídicas Brasil Leste Agroflorestal S.A. – BLASA e à Vera Cruz
Agroflorestal S.A., até chegar à Aracruz Celulose S.A.
Em inúmeros casos, as certidões das terras adquiridas por estas empresas não fornecem o
tamanho da área, que só vai aparecer na última transação de compra e venda, como é
documentado por uma cadeia dominial referente a terras adquiridas pela Brasil Leste Agroflorestal
S.A. e vendidas à Vera Cruz Agroflorestal em 21.11.19746. Neste documento, dos 7.000 hectares
transmitidos à Vera Cruz pela BLASA, somente 1.232,50 hectares contam com certidões que apresentam
discriminação de área.
4 Idem. 5 Este documento foi produzido pela estudante de Direito Amanda Schwab e pelo geógrafo Paulo César Scarim, em virtude do estudo acerca do processo de legitimação de terras devolutas à Aracruz Celulose. 6 Este documento foi produzido pela advogada Alba Aguiar e constitui parte do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação Territorial da Comunidade Quilombola de Linharinho (2005).
As cadeias dominiais revelam, também, que estas empresas surgem no cenário de
transações de terras em momentos diferenciados e com a tarefa de arrecadar terras devolutas e
repassá-las à Aracruz Florestal e Aracruz Celulose S.A. A primeira delas foi a Agroflorestal
Ouroverde Ltda., cuja atuação se iniciou no final da década de 1960, principalmente na região do
Córrego do Angelin e do Canta Galo (localidade inserida no território da Comunidade Quilombola
de Linharinho). Sua atuação foi a de requerer terras ao Estado e comprá-las de moradores, para
transmiti-las à Aracruz Celulose S.A. na década de 1980. No início da década de 1970, é a vez da
Brasil Leste Agroflorestal S.A.- BLASA, que passou a adquirir terras de moradores e empresas numa
área mais abrangente, transmitindo-as à Vera Cruz Agroflorestal S.A. em meados desta década, e
também à Aracruz Celulose S.A. A Reflorestadora Cricaré, de propriedade da família Coutinho, teve
sua atuação mais localizada nos vales dos córregos São Domingos e Santana, abaixo da BR-101,
onde requereu terras ao Estado no início da década de 1970 e as vendeu à Aracruz Celulose S.A. na
década de 1980. Quanto à Vera Cruz Agroflorestal S.A., sua atuação foi, delimitadamente, a de
repassar as terras adquiridas pela BLASA à Aracruz Celulose S.A. no final da década de 1970 e
início da de 1980. Esta última criação jurídica do capital não possui qualquer requerimento de
terras devolutas em seu nome; suas transações sempre são de compra e venda de propriedades
privadas consumadas. Neste sentido, o que se pode observar é a estratégia de mascarar juridicamente
o processo de grilagem das terras públicas, conforme a terra vai se distanciando do Estado através de
inúmeras transações. Com o passar do tempo, a memória se perde, visto que daqueles que foram
expropriados, muitos não se encontram mais presentes. Se nas origens o roubo de terras de uso do
campesinato negro aconteceu na época da Ouro Verde ou da BLASA, sua transmissão ao domínio
da Vera Cruz se dá dentro dos preceitos da legalidade, o que prossegue na transmissão à Aracruz
Celulose S.A. Assim, as fraudes passam a ser de responsabilidade de outros agentes do passado e a
aquisição pela Vera Cruz passa a ser considerada “de boa fé”, pois teoricamente não teria
conhecimento deste processo. Este argumento é utilizado no momento atual pela empresa Aracruz
Celulose S.A., quando é questionada a respeito da irregularidade da documentação das terras que
se encontram sob seu domínio. Desta maneira, as irregularidades e fraudes que permeiam o
processo da grilagem de terras vão sendo diluídas ao longo do tempo, através dos sucessivos
nascimentos e mortes de pessoas jurídicas e consecutivos registros feitos nos cartórios. E assim
justifica-se a dominação do “espaço total” pelo capital, que passa a ser legitimada.
Além das empresas, verificam-se numerosos outros agentes responsáveis pela transmissão
de terras à Aracruz Florestal e Aracruz Celulose S.A., dentre eles alguns funcionários da empresa e
mesmo prefeitos de Conceição da Barra. A estratégia era o requerimento e/ ou compra das
pequenas áreas permitidas, somando uma grande área. Dentre estes agentes que abriram o
caminho para a territorialização do capital do agronegócio da celulose, alguns se destacam pela
freqüência com que aparecem e pela quantidade de terras que transmitiram às empresas
subsidiárias e mesmo à Aracruz. Um deles é José Luiz da Costa - prefeito de Conceição da Barra
entre 1967 e 1971, que requereu ao Estado e também comprou diversas porções de terra que foram
negociadas com a Aracruz Celulose S.A., transações irregulares exemplificadas pela Cadeia
Dominial a seguir7. Neste documento, além de várias certidões fornecidas pelo Cartório de Registro de
Imóveis de Conceição da Barra não discriminarem as áreas de terras adquiridas, há outras irregularidades
relacionadas ao intervalo de tempo entre o requerimento da terra e sua transmissão a outrem:
1. Madalena Graça adquiriu terras do Estado em 11.09.1964 e 2. as vendeu a Paulo Jacob Carletti em 19.09.1964; 3. este fez uma aquisição de terras do Estado em 14.07.1971 e 4. as vendeu a José Luiz da Costa em 22.07.1971. Observa-se que estas transações ocorreram no intervalo de oito dias, o que infringia a Lei
Estadual n.°617 de 1952, em seu artigo n.° 17, inciso III, que determinava o prazo de 2 anos de
inalienabilidade para as terras devolutas requeridas. Na mesma cadeia dominial, o prefeito José Luiz da
Costa adquiria outra terra cuja documentação não chegava às origens no Estado, e junto das demais sem
metragem de área discriminada, totalizaram 1.753.000 m² (ou 175,3 hectares ou ainda, 36,5
alqueires) que foram transmitidos à Aracruz Celulose S.A. em 31.07.1986.
Algumas porções de terras que atualmente se encontram inseridas no latifúndio sob
domínio da Aracruz Celulose pertenciam aos moradores locais desde data longínqüa e seus
familiares descendentes não possuem conhecimento do processo de sua transmissão. Em alguns
casos, não houve a orientação de se registrar a escritura adquirida pelo requerimento no Cartório
de Registro de Imóveis, o que invalidou sua legalidade e permitiu que a terra fosse requerida e
registrada por outrem. Em outros, tanto a ocupação como a documentação mais antiga foram
desconsideradas, como a de Cassiano Alves (ou Adão) dos Santos, que possuía uma gleba de terra
na localidade Castelo (que é parte do atual território da Comunidade Quilombola de Linharinho),
cuja primeira Escritura Pública é datada de 1905 e registrada no cartório de São Mateus. O
levantamento realizado pela Secretaria de Agricultura do Espírito Santo na década de 19708 já
mapeava esta terra de 206,2 hectares (aproximadamente, 43 alqueires) com documentação
registrada no Cartório de Conceição da Barra. Este registro é referendado pela Cadeia Dominial
7 Idem. 8 SECRETARIA DE AGRICULTURA DO ESPÍRITO SANTO– Departamento de Aerofotogrametria e Interpretação. Fotomosaico de propriedades agrícolas e seus ocupantes. Vitória, 1974. (mimeo)
referente ao território da Comunidade Quilombola de Linharinho9, onde sua área é definida como
de 65 braças, transmitida a ele por Belarmino Santos Porto e Rita Conceição Cunha Porto, que
parece descender da família da fazendeira Rita Maria Cunha da Conceição. Apesar desta
“Escritura Pública de Compra e Venda” de 1973 constar na Cadeia Dominial e o nome de Cassiano
já ter sido registrado pelo Recenseamento do Brasil 1920 – Proprietários Rurais do Espírito Santo10 como
ocupante desta localidade, sua terra e todas as demais do Castelo encontram-se dominadas pelos
extensos monocultivos industriais de eucalipto da Aracruz Celulose e seus familiares não possuem
conhecimento da forma como se deu esta transmissão.
Outro caso refere-se à Dona Aurora Diolinda da Conceição, filha de Joaquim Felipe da
Vitória, que fora filho de Rosalina, escrava na fazenda de Dona Rita Cunha da Conceição. Dona
Aurora vivia na antiga localidade do Engenho, numa terra que se estendia do Córrego do Caboclo
ao Córrego do Borá, revelando portanto sua permanência nas terras abandonadas da antiga
fazenda escravista. Nas Cadeias Dominiais referentes ao território da Comunidade Quilombola de
Linharinho11, consta o nome de Dona Aurora Diolinda da Conceição como vendedora de 38,4
hectares (que corresponde a 8 alqueires) à Reflorestadora Cricaré em 18.08.1972, terra que teria
sido requerida ao Estado em 05.02.1971, sob a Matrícula 9.675 – Livro 3 I – Folha 243. Por outro
lado, o levantamento feito pela Secretaria de Agricultura na década de 1970 aponta que esta terra
requerida estaria registrada sob a Matrícula 10.039 - Livro 3 J – Folha 24 e teria sido vendida à
Reflorestadora Cricaré em 04.08.1971. Esta divergência de informações acerca da documentação e
transação da terra reflete o obscurantismo do processo, que causa indignação a Benedita Cassiano,
47, ao relatar que não sabe como as terras de sua avó Aurora foram parar nas mãos da Aracruz
Celulose:
Benedita – Olha, quando minha avó faleceu, ela tinha um pedaço, aí tinha bastante terra, né [...] desde um córrego vizinho até o Córrego Borá, era tudo deles. Agora, eu não sei como essas terra, se eles venderam ou não, que foram parar nas mãos da Aracruz. [...] - Esta perda de terra que teve, em relação à documentação das terras... do que tem hoje e talvez documento sobre o que foi vendido, você sabe se o seu pessoal tem, se isso foi registrado em cartório? Benedita – Olha, eu acho que alguns que venderam logo, recente, foram registrado em cartório como a venda [...]. Agora, outros, eu acho, acredito que não foram registrado, não, tem muitos que não foram registrado. - O lugar onde você mora tem registro?
9 Este documento foi produzido pela advogada Alba Aguiar e constitui parte do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação Territorial da Comunidade Quilombola de Linharinho (2005). 10 MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, INDUSTRIA E COMMERCIO. Directoria Geral de Estatistica. Recenseamento do Brazil – Relação dos proprietarios dos estabelecimentos ruraes recenseados no estado do Espírito Santo. Rio de Janeiro: Typ. Da Estatística, 1923. 11 Este documento foi produzido pela advogada Alba Aguiar e constitui parte do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação Territorial da Comunidade Quilombola de Linharinho (2005).
Benedita – Lá nós temos, mas temos também o antigo, que era pra gente ter pegado lá com Maristela, no ano passado. [...] Maristela é a que trabalha no cartório em Conceição da Barra. Ela achou esse documento antigo de Dona Aurora. [...] Já localizou os documento que eles tinha como alqueirão, alqueire e ela já tá ciente que a gente vai pegar. [...] (entrevista realizada por Alba Aguiar, em novembro de 2004).
Damasceno Pinha 18 alqueires
NaércioBarbosa e Nilton Alves Barbosa 350.000m²
Manoel Dionísio da Fonseca 1.000.000m²
João Roque 435.500m²
Euclides
Rampinelli
6.000.000m²
João Claudio Rocha 5.360.000m²
Ciro Barcelos 171.000m²
Walter Zamperline1.390.000m²
ColetPevidor da Silva 667.000m²
ESTADO
Floriano Siqueira 435.000m²
Russa Agrofolorestal171.000m²
Brasil Leste
Agrofolorestal
Vera Cruz
Agroflorestal
Aracruz Celulose
Fazenda “Sapê do Norte”
84.317.630m²
Arlindo Correia 287.500m²
Mateus Coutinho 421.500m²
Manoel dos Santos Souza 587.600m² + 421.500m²
Antonio dos Santos Souza 587.600m²
José Frassi2.480.000m²
Antonio Miranda e Evaldo Vazole200.000m²
Valdomiro Antonio Duarte 151.600m²
Alceu Faria de Carvalho 151.600m²
Leodílio Barbosa de Souza 1.331.000m²
Manoel Pinheiro Machado 242.000m² + 193.600m²
José Pinheiro 48.400m²
Otávio Tavares da Silva 48.400m²
“usucapião”
9.0
87.0
00m
²
3.271.900m²
1.435.600m² 3.560.000m²
9.087.000m²17.408.500m²
1
ANEXO V - IMPACTOS DA MONOCULTURA DE EUCALIPTO SOBRE MULHERES INDÍGENAS E
QUILOMBOLAS NO ESPÍRITO SANTO
“Essas perdas causaram um impacto muito grande, porque elas mexem, de uma forma violenta, com a vida de todos nós, principalmente com a vida de nós, mulheres, porque nós fazemos... junto, claro, com nossos companheiros, mas a gente é que faz a vida e, aí, somos nós que tiramos nosso tempo para falar com nossos filhos, para falar da nossa história, e isso tá ficando meio vazio.” (OLINDINA, Associação de Mulheres Negras de São Mateus e Comissão Quilombola do Sapê do Norte).
1 INTRODUÇÃO
No dia 8 de março de 2006, Dia Internacional da Mulher,1 duas mil mulheres
da Via Campesina,2 antes de o sol nascer, ocuparam o viveiro de mudas da empresa
Aracruz Celulose, no Rio Grande do Sul.3 Numa ação relâmpago, com vendas de cor
lilás sobre os rostos, destruíram milhares de mudas de eucalipto. O movimento teve
como objetivo chamar a atenção da opinião pública brasileira para os impactos
produzidos pelas monoculturas de eucalipto e pinus sobre o povo e os ecossistemas
locais. Tais atividades de monocultivo são conduzidas por empresas multinacionais
do agronegócio. As mulheres camponesas traduziram, no seu discurso, o deserto
verde dos eucaliptos em aridez e morte e levantaram a relação entre diversidade e
fertilidade — fatores que possibilitam a vida — e monocultura e desertificação — 1 O Dia Internacional da Mulher é celebrado por diversos movimentos de mulheres, em várias partes do mundo.
No dia 8 de março de 1857, as operárias têxteis de uma fábrica em Nova Iorque entraram em greve, exigindo a redução da jornada de trabalho de dezesseis horas para dez horas. Trabalhando dezesseis horas por dia, essas operárias recebiam menos de um terço do salário dos homens. Devido a esse movimento, foram trancadas dentro das dependências da fábrica e incendiadas vivas. Cerca de 130 mulheres morreram queimadas. Em 1910, numa conferência internacional de mulheres realizada na Dinamarca, foi estabelecido o 8 de março como o Dia Internacional da Mulher. 2 São mulheres do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O MMC e o MST integram a Via Campesina, que é um movimento internacional que articula movimentos de camponeses (pequenos, médios produtores e sem-terras) da América Latina, da Ásia e da Europa. No Brasil, a Via Campesina possui alguns fóruns regionais e um fórum nacional. Para maiores informações, consultar o site www.viacampesina.org. 3 O viveiro localiza-se na fazenda Barba Negra, em Barra do Ribeiro, no Rio Grande do Sul.
2
fatores que representam a morte. “No dia Internacional da Mulher, 8 de março de
2006, o Brasil assistiu — em parte, sem entender — a uma batalha histórica. A batalha
entre a fertilidade e a aridez. [...] Entre a dureza do lucro sem escrúpulos e a ternura
das mães”.4
A estratégia político-discursiva das mulheres da Via Campesina pretendeu
sensibilizar a opinião pública brasileira para a gravidade da ampliação de plantios
homogêneos, em larga escala, sobre terras brasileiras. A Aracruz Celulose – que está
se instalando naquele Estado sem respeitar princípios de justiça social e ambiental –
tem sido alvo de denúncias dos movimentos que atuam no campo.
Um ano depois, no dia 8 de março de 2007, as ruas da cidade de Vitória,
capital do Espírito Santo, foram ocupadas por 1.500 mulheres camponesas e urbanas,
brancas e negras, indígenas e quilombolas, ação organizada pelo Fórum de Mulheres
do Espírito Santo, com o forte apoio do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST), de outros movimentos sociais e de ONGs. No Dia Internacional da
Mulher, as mulheres capixabas romperam o silêncio, marchando e gritando, em coro,
pelo fim da violência, pelo direito dos povos indígenas e quilombolas ao seu
território tradicional e por justiça socioambiental.
Em virtude de os problemas e os desafios serem muitos e também comuns às
mulheres do campo e da cidade, mulheres de diferentes lugares denunciavam a
degradação ambiental e a miséria produzidas pelo projeto agroindustrial da Aracruz
Celulose e pelo avanço do agronegócio em terras capixabas e brasileiras. Levantavam
a bandeira da reforma agrária e da soberania alimentar.
No mesmo dia, São Mateus, cidade localizada no norte do Espírito Santo, foi
palco de um belíssimo ato organizado pela Via Campesina: setecentas pessoas, a
maioria mulheres, marcharam sobre as ruas até a BR 101, rodovia que atravessa a
4 VIA CAMPESINA. O latifúndio dos eucaliptos: informações básicas sobre as monoculturas de árvores e as indústrias de papel. Porto Alegre, 2006.
3
cidade, com o objetivo de impedir o tráfego de caminhões que transportavam o
eucalipto para a fábrica da Empresa, localizada no município de Aracruz.
O norte do Estado concentra grande parte da monocultura do eucalipto dessa
Empresa nos municípios de Conceição da Barra (cerca de 70% desse território), de
São Mateus (cerca de 50%) e de Aracruz (cerca de 50%).
A temática dos dois eventos ocorridos no Espírito Santo foi a mesma: o
enfrentamento ao agronegócio e à sua mais fiel representante em território capixaba,
a empresa Aracruz Celulose.
Na manhã do dia 11 de setembro de 2007, cerca de mil pessoas, integrantes do
Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) e da Via Campesina, em mais uma
ação contra o Deserto Verde, trancaram o portão do viveiro de eucaliptos da
Votorantin Celulose e Papel, em Capão do Leão, próximo à cidade de Pelotas, no Rio
Grande do Sul. Essa ação deu continuidade àquela ocorrida em 8 de março de 2006:
“O objetivo era denunciar o monocultivo de eucalipto no estado, a conseqüente
destruição ambiental, o desinteresse dos governos pela agricultura camponesa e a
produção de alimentos, e chamar a atenção para a necessidade da reforma agrária”.5
No dia seguinte, os manifestantes seguiram em marcha, atravessando a cidade
de Pelotas.
Segundo as mulheres que conduziram a ação, os impactos do monocultivo no
Rio Grande do Sul já são visíveis: a grande seca no sul do Estado, que tem a maior
área de produção de eucaliptos; as alterações bruscas de temperatura; o
desaparecimento do bioma Pampa, levando à perda de uma biodiversidade
extraordinária; a diminuição da produção de alimentos; o ressecamento de fontes
hídricas; a poluição e a diminuição do fluxo de água nos rios; o enfraquecimento do
solo. Algumas cidades, para contornar a escassez, passaram a racionar o consumo de
5 MOVIMENTO DAS MULHERESC CAMPONESAS DO BRASIL. MMC e Via Campesina trancam portões de viveiros de eucalipto seguindo na discussão contra o Deserto Verde. Disponível em: <http://www.mmcbrasil.com.br>. Acesso em: 16 set. 2007.
4
água. Nas regiões mais atingidas pelo monocultivo, têm surgido vários casos de
alergia e doenças de pele, devido ao alto uso de agrotóxico pelas empresas.
Há ainda o agravamento da pobreza e do desemprego, por isso essas
populações têm convivido com o crescimento da violência e do êxodo rural. No que
diz respeito aos impactos mais específicos sobre as mulheres, nas áreas onde há
maior presença de monocultura, elas destacam o aumento da prostituição.
Muitas famílias migram para outros locais em busca de trabalho. Enquanto
isso, chegam novos trabalhadores à região, atraídos pelas campanhas publicitárias e
pelas promessas de geração de emprego feitas pelas empresas. Isso tem estimulado a
formação de núcleo de trabalhadores sem família, na maioria das vezes,
desempregados, contribuindo para o aparecimento de prostíbulos no entorno da
atividade agroindustrial.
“O MMC acredita e luta por um outro tipo de desenvolvimento e nega o modelo Capitalista e Patriarcal, que desumaniza homens e mulheres e destrói toda a vida do planeta em nome do lucro"
(MMC BRASIL, 2007, p 1).
Ações como as realizadas pelas mulheres do Rio Grande do Sul e do Espírito
Santo demonstram que a problemática ambiental e a privatização da terra são
também coisas de mulher, ou seja, constituem-se em preocupações das mulheres por
comprometerem, substancialmente, a sua qualidade de vida e a de suas famílias.
Nas últimas três décadas, observa-se a emergência de organizações de base de
mulheres, nas quais elas participam de forma expressiva, em especial quando se trata
de questões sobre a violência, a saúde e o meio ambiente.
Muitas mulheres não-feministas legitimam suas atividades ao perseguir o bem comum através de se identificar como mães. Na maioria das culturas contemporâneas, isso significa que elas são responsáveis por preservar a
5
saúde dos seus filhos, para o qual elas dependem de um ambiente seguro. Se este ambiente começa a doer nos seus filhos,6 muitas mulheres atuarão.7
O agravamento da questão ambiental no cotidiano das mulheres e sua reação
político-organizativa têm-se desenvolvido numa escala global e sinalizam a
voracidade da globalização hegemônica também sobre elas, em diversas partes do
planeta.
Segundo Temma Kaplan,8 fatores, como a modernização, o desenvolvimento e
a globalização, têm, ao longo das últimas décadas, resultado em dramáticas
mudanças de papéis, status e bem-estar das mulheres em todo o mundo. Uma
combinação de guerra, depressão econômica, degradação ambiental, problemas
relativos à saúde e programas de desenvolvimento deixa, cada vez mais, populações
do Sul em situação de vulnerabilidade.
A Conferência Mundial de Mulheres realizada em Pequim em 1995 anunciou,
já naquela época, que 70% dos empobrecidos do mundo eram constituídos por
mulheres da Ásia, da África e da América Latina, ou seja, o modelo hegemônico de
desenvolvimento escolheu as mulheres como uma das suas principais vítimas. Para a
autora, os programas de ajuste estrutural e esforços de privatização ditados pelo
Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial, em especial nos países
do Sul, levaram a reduções de investimentos em saúde, educação e bem-estar social.9
Tais impactos negativos incidem diretamente sobre as condições de vida dos pobres
e das mulheres. Essa situação agrava-se ainda mais, quando populações locais, que
6 Essa afirmação de Temma Kaplan também pode ser considerada quando se analisam mulheres em situação de violência doméstica no Brasil. Estudos comprovam que parte das mulheres só denuncia e rompe com a situação de violência quando esta coloca em risco a integridade física dos seus filhos. 7 KAPLAN, Temma. Uncommon women and the common good: women and environmental protest. In: ROWBOTHAM, Sheila; LINKOGLE, Stephanie (Ed.). Women resist globalization: mobilizing for livelihood and rights. London: Zed Books, 2001, p. 29. 8 KAPLAN, Temma. Uncommon women and the common good: women and environmental protest. In: ROWBOTHAM, Sheila; LINKOGLE, Stephanie (Ed.). Women resist globalization: mobilizing for
livelihood and rights. London: Zed Books, 2001. p. 28-42. 9 A defesa do Estado Mínimo – que se contrapõe à concepção do Estado de Bem-Estar Social – orienta as ações do FMI e do Banco Mundial, o que levou, especialmente nos países do Sul, à privatização de serviços essenciais à população.
6
dependem dos ecossistemas para a sua subsistência, têm que disputá-los a ferro e fogo
com o agronegócio, que, na maioria das vezes, é o grande vitorioso.
No caso da América Latina, a destruição de ecossistemas pela ação de grandes
projetos agroindustriais, em especial, tem levado populações indígenas, quilombolas
e camponesas, as mais afetadas, a conviverem com mudanças drásticas no/do seu
ambiente e a experimentarem perdas materiais e simbólicas das mais diversas. No
caso específico das mulheres, elas têm vivenciado profundas mudanças na divisão
sexual do trabalho, nos papéis que desempenham na família e na comunidade,
intensificando, ainda mais, a sua condição de subordinadas.
A Plataforma de Ação de Beijing, documento final da Conferência Mundial de
1995 – que contou com uma presença expressiva de organizações de mulheres dos
países do Sul – faz duras críticas ao projeto hegemônico de desenvolvimento e
responsabiliza o Norte como o maior agente de destruição ambiental. Ao mesmo
tempo, observa que “[...] as mulheres rurais e as indígenas são as mais afetadas pela
contaminação e deterioração ambiental, cujas condições de vida e subsistência diária
dependem diretamente de ecossistemas sustentáveis”.10
A Conferência foi palco de reivindicação para que os Estados Nacionais
produzissem políticas de inclusão das mulheres em iguais condições às dos homens,
respeitando as suas perspectivas e conhecimentos, em especial “[...] na adoção de
decisões em matéria de ordenamento [...] dos recursos e na formulação de políticas e
programas de desenvolvimento sustentável, particularmente os destinados a atender
e prevenir a degradação da terra”.11 A Conferência reivindica que seja reconhecido o
papel das mulheres “[...] na colheita e produção de alimentos, na conservação do solo
[...] no saneamento, no ordenamento de zonas costeiras e o aproveitamento de
10 PAREDES PIQUÉ, Susel. Invisibles entre sus árboles. Lima: Centro da Mulher Peruana Flora Tristán, 2005. 11 PLATAFORMA DEL ACCIÓN. Instituto del Tercer Mundo. Compromisos: resoluções aprobadas por la conferencia, 1995. Disponível em: <www.socwatch@socialwatch.org >. Acesso em: 2 set. 2007.
7
recursos marinhos, no controle de pragas e no planejamento do uso da terra, na
preservação das florestas, entre outros”.12
O fato de a Conferência Mundial não problematizar o conceito de
“desenvolvimento sustentável” aumenta a necessidade da maior vigilância por parte
dos movimentos de mulheres para se protegerem da armadilha, que busca
incorporar o discurso do desenvolvimento sustentável na mesma perspectiva
adotada pelo agronegócio, constituindo-se numa estratégia discursiva para legitimar-
se em territórios do Sul, apropriando-se destrutivamente dos seus “recursos
naturais”. Por outro lado, observa-se um importante esforço conjunto das mulheres
de todo o mundo para que os Estados Nacionais e os organismos internacionais
admitam e valorizem os saberes e as práticas de preservação e recuperação ambiental
realizadas pelas mulheres, o que implica a inclusão política das mulheres,
transformando suas atividades em possibilidade de emancipação e não mais de
reforço de sua condição subalterna.
Entretanto, apesar do esforço coletivo das organizações de mulheres e das
populações impactadas, o projeto hegemônico de desenvolvimento caminha a passos
largos sobre os ecossistemas restantes e, ironicamente, legitima-se por meio do
discurso da inclusão socioeconômica e do desenvolvimento sustentável, como é caso
aqui abordado.
12 Ibid., 1995.
8
DESENVOLVIMENTO E CONTROLE DE NATALIDADE NO BRASIL
A leitura neomalthusiana da problemática ambiental, que surgiu com força a partir da década de
1960, direcionou o olhar do Norte para o crescimento populacional nos países do Sul e elegeu as
mulheres pobres como alvos de suas políticas. Em vários países da América Latina, foram
implantados programas para a redução do crescimento populacional. No Brasil, há o caso da
Sociedade de Bem-Estar Familiar (Bemfam), que recebeu recursos norte-americanos para
desenvolver ações, visando ao controle da natalidade. A Bemfam atuou, principalmente, em regiões
menos desenvolvidas do País, como foi o caso do Nordeste.
Ela deslanchou em 1974, quando, a partir de um memorando secreto do secretário de Estado Henry Kissinger, o governo americano passou a despejar dólares e pressão diplomática em campanhas de esterilização no Brasil. [...] Homologado quase integralmente pelo presidente Gerald Ford, em 1975, o Relatório Kissinger defende o aborto como método anticoncepcional e aponta o trabalho das mulheres fora de casa como um incentivo a “ter menos filhos”. Elege os países nos quais os EUA “têm interesses políticos e estratégicos”, o Brasil entre eles. A partir daí, generalizou-se a esterilização por ligadura das trompas. Seu principal mérito: era definitiva. Para justificá-la, o Relatório Kissinger insiste que nos países pobres “o rápido crescimento populacional é uma das causas e conseqüência da pobreza.13
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PINAD) do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), em 1986, 29,3% das mulheres, entre 15 e 54 anos, em união estável, já
se encontravam esterilizadas. No mesmo ano, uma pesquisa da BEMFAM mostrava que 84% das
esterilizações ocorreram entre 1978 e 1986 .
13 LAGE, Nilson; CHERNIJ, Carlos. Filhos da pobreza/queda da natalidade x aumento da miséria. IstoÉ, São Paulo, 2003. Disponível em: <http://www.terra.com.br/istoe/1744/ciencia/1744_filhos_pobreza.htm >. Acesso em: 15 jun. 2006.
9
2 A BATALHA ENTRE A DUREZA DO LUCRO E A DEFESA DA VIDA: ARACRUZ CELULOSE x
MULHERES INDÍGENAS E QUILOMBOLAS
À luz da experiência das mulheres indígenas tupiniquins, guaranis e
quilombolas do norte do Espírito Santo, este texto busca mostrar as implicações da
monocultura de eucalipto sobre a condição de vida das mulheres.
2. 1 CONTEXTUALIZAÇÃO
A partir do início da década de 1960, o Estado brasileiro abraçou fortemente a
proposta de modernização do seu território e estimulou a entrada de projetos
agroindustriais que buscavam matéria-prima farta e mão-de-obra barata. Foi no auge
do discurso desenvolvimentista da Ditadura Militar, mais especificamente em 1967,
que a empresa Aracruz Florestal S.A. foi implantada no Espírito Santo, instalando-se
no norte do Estado, sobre as terras dos povos indígenas Tupiniquim e Guarani. “Em
1975, o território indígena de 40.000ha já se encontrava devastado e prestes a ser
transfigurado numa extensa monocultura de eucalipto pelo empreendimento
agroflorestal de grande porte e pioneiro no Brasil”.14
“É meus primos. Quando a Aracruz chegou aqui e botou eles pra fora... ela chegou invadindo. Quando ela chegou, eles ficaram com medo e largaram a terra deles e foram embora. Ela chegou com um monte de tratô e passou em cima das casinhas deles. As casinhas era de palha, barreada, que eles morava. Aí, tem os meus primos que têm vontade de retornar pra dentro da aldeia de novo.” (MARIA LOUREIRO, aldeia Tupiniquim Irajá).
A partir daí, o processo de invasão começou a se expandir: terras devolutas,
situadas ao norte do Estado, foram ocupadas, chegando, em 1974, ao Sapê do Norte,
14 ASSOCIAÇÃO DOS GEÓGRAFOS DO BRASIL. Relatório de impactos da apropriação dos recursos hídricos pela Aracruz Celulose nas terras indígenas Guarani e Tupiniquim. Vitória: AGB, 2004.
10
lugar onde vivem comunidades negras rurais, hoje reconhecidas como
remanescentes de quilombos.
Localizado nos municípios de Conceição da Barra e São Mateus, na região norte do Espírito Santo, o território quilombola denominado Sapê do Norte faz jus ao seu nome, já que a planta nativa chamada sapê representa a metáfora vegetal da resistência histórica das comunidades negras rurais desde a luta contra o sistema escravista à longa trajetória de práticas de sua erradicação na região, que culmina [...], com a implementação do projeto agroindustrial de monocultura de eucalipto da empresa multinacional Aracruz Celulose, favorecida pelo regime das terras devolutas, pela política governamental de incentivos fiscais e de investimentos do BNDES, consolidando a ação de um estado como produtor de sua invisibilidade.15
A produção de celulose da empresa Aracruz teve início com a construção da
primeira fábrica, em 1978, sobre a aldeia indígena Macacos. Nesse período, o
ambientalista Augusto Ruschi16 já tornava pública a sua preocupação com o desenho
de um grande deserto verde em território capixaba. Desde então, a Aracruz Celulose
inaugurou três fábricas de celulose para exportação. A Empresa produz, na
atualidade, cerca de 2,3 milhões de toneladas/ano de celulose. A maior parte é
enviada a países do Norte e destinada à produção de papéis descartáveis.
A chegada desse projeto agroindustrial foi devastadora para as populações
locais: de quarenta aldeias indígenas, hoje só restam sete.17 De acordo com
informações quilombolas, das 10.000 famílias que compunham as cem comunidades18
que existiam na região norte do Espírito Santo, restam apenas 1.200, distribuídas
entre aproximadamente 32 e 37 comunidades, cercadas pelo eucalipto e pela cana-de-
15 CICCARONE, Celeste. Territórios quilombolas no Espírito Santo: a experiência do Sapê do Norte. Apresentação. In: CASTANHEDE FILHO, Andréa et al. O incra e os desafios para a regularização dos territórios quilombolas: algumas experiências. Brasiília: MDA/INCRA, 2006. p. 117. 16 Considerado a maior autoridade mundial em beija-flores, o ecologista capixaba Augusto Ruschi dedicou sua vida à luta ambiental. Morreu em 1986, aos 70 anos de idade (FOLHA DE SÃO PAULO on-line, 1986, [s.p.]). 17 Conforme o censo demográfico da FUNAI de 2004, vive atualmente na região uma população de 2.765 índios, sendo 2.552 Tupiniquim e 213 Guarani. A população ocupa 7.061ha. de terra, habitando sete aldeias: Caieiras Velhas, Irajá, Pau Brasil, Comboios, Boa Esperança, Três Palmeiras e Piraquê-Açu (aldeia criada recentemente para impedir a instalação, em área indígena, de uma empresa exploradora de algas calcárias, a Tothan). A conquista mais recente das populações indígenas foi a oficialização, por meio de duas Portarias do Governo Federal, do reconhecimento de 10.966 ha. de terra sob o controle da Aracruz Celulose S.A. como terras indígenas, totalizando 18.027 ha. de terras indígenas no Espírito Santo. 18 De acordo com o depoimento dos moradores mais antigos, cem é o número que as lideranças quilombolas usam para definir a quantidade de comunidades existentes na época, no entanto é difícil precisar esse dado. A certeza que se tem é de que existiam inúmeras comunidades dispersas no território Sapê do Norte.
11
açúcar para a produção de álcool.19 Além da perda do território, essas populações
tiveram que conviver, nesses últimos anos, com perdas culturais e ambientais, que
geraram um alto grau de desorganização social e identitária. Hoje, o Espírito Santo
tem cerca de 200 mil hectares de eucalipto.20 Desse total, 128 mil hectares, segundo a
Aracruz Celulose S.A., são terras próprias.21 O restante refere-se a áreas fomentadas e
de outras empresas.
Como há uma forte concorrência no mercado mundial de celulose, para se
constituir como uma empresa competitiva e garantir o seu espaço a Aracruz Celulose
precisa crescer e ampliar a sua capacidade produtiva. Por isso, tem investido muito
na compra de terras em vários estados brasileiros. Adquiriu, inclusive, as plantações
de árvores e a fábrica de celulose da Riocell, no Rio Grande do Sul. Em 2005, a
empresa inaugurou, no sul da Bahia, juntamente com a transnacional finlandesa-
sueca Stora-Enso, sua quarta fábrica, denominada Veracel Celulose.22
MONOCULTURAS NO BRASIL
Atualmente, o Brasil possui 5,3 milhões de hectares de plantios homogêneos de árvores, 21,6 milhões de hectares de plantio de soja e 5,8 milhões de hectares de cana-de-açúcar (OLIVEIRA, 2007). No caso dos plantios
homogêneos, o governo brasileiro, buscando aumentar a exportação de celulose e madeira, projetou, para o ano de 2010, a meta de mais 5 milhões de hectares. O Espírito Santo entrará com uma cota de 600 mil hectares. No
caso da cana-de-açúcar, objetivando incentivar a produção de etanol, a meta do governo brasileiro é, nos próximos cinco anos, aumentar em mais 6,3 milhões de hectares. O objetivo é a produção de 728 milhões
toneladas de cana-de-açúcar e 38 bilhões de litros de álcool.23
19 A comunidade quilombola de Linharinho teve reconhecido o seu direito a 9.542 ha. de terra por meio de Portaria assinada pelo Governo Federal em maio deste ano. No entanto, ao que parece, ainda há um longo caminho a ser percorrido para que a terra seja demarcada. Buscando exercer pressão política em prol da demarcação de seu território, a comunidade ocupou, em agosto de 2007, uma área atualmente em poder da empresa Aracruz Celulose S.A., de onde há a memória da grilagem. Essa ocupação contou com o apoio de outros movimentos sociais e parceiros, concretizando-se num acampamento que ali se manteve por 21 dias. No acampamento foram construídas diversas barracas, uma cozinha comunitária, uma cacimba, vários plantios de nativas e frutíferas, inserindo vida na paisagem anterior de monocultivo do eucaliptos. 20 A meta do Governo Federal proposta no Plano Nacional de Florestas (PNF), de 2005, é aumentar as plantações de árvores, no Brasil, de 5 para 7 milhões de hectares, até 2007. Na mesma linha, o Governo do Espírito Santo lançou, em 2005, um plano estratégico para o setor, pretendendo duplicar a área de plantações no Estado até 2010. 21 A Empresa, no seu cálculo, inclui terras indígenas e quilombolas apropriadas como terras devolutas, a partir da década de 1960, revelando a total ausência do reconhecimento desses territórios étnicos pelo Estado brasileiro. 22 Cada uma delas, a Stora-Enzo e a Aracruz Celulose, possui 50% das ações na empresa Veracel Celulose. 23 AMATO, Fábio. Produção de álcool no Brasil. Folha de São Paulo, São Paulo, p. B5, 18 mar. 2007.
12
Doze trabalhadores bóias-frias morreram em 2005 e cinco em 2006, no corte da cana-de-açúcar, por terem
trabalhando além do que o organismo humano podia suportar.24
Apesar de todos os indícios histórico-culturais da presença secular de povos
tradicionais na região norte do Espírito Santo, a Aracruz Celulose, para garantir a
posse de seus territórios, utilizou-se da estratégia discursiva de produção da
ausência dos Tupiniquim e das comunidades remanescentes de quilombos, não lhes
reconhecendo a identidade. Os Tupiniquim são citados pela Empresa como
resultantes de um forte processo migratório gerado a partir da instalação da sua
primeira fábrica, no município de Aracruz, ou seja, trabalhadores – e suas famílias –
que vieram em busca de emprego. Quanto aos quilombolas, a Empresa chegou a
proibir que utilizassem esse termo identitário no processo de negociações sobre a
coleta do resíduo de eucalipto – alternativa de sobrevivência encontrada por essas
famílias, buscando driblar a escassez que lhes foi imposta.
“Hoje eles falam: ‘Ah, não tem mais quilombo’. Como não tem, se nós estamos aqui desde
antes de 1888?”.25
No caso das populações indígenas, a ação mais ousada da Empresa foi a
contratação de uma equipe técnica – mantida, espertamente, no anonimato – que
realizou um estudo histórico-antropológico comprovando, segundo essa equipe, que
o povo Tupiniquim26 jamais povoou a região. A cartilha A questão indígena e a Aracruz
constituiu uma das peças da campanha publicitária que divulgou fragmentos do
estudo realizado.
24 OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. A questão fundiária, entraves, desafios e perspectivas: A questão da propriedade da terra no Brasil. Palestra apresentada no Seminário da Terra. Promoção: Bancada Estadual do Partido dos Trabalhadores e MST/ES. Vitória, em 14 set. 2007.
. 25 Miúda, liderança quilombola da comunidade de Linharinho e membro da Comissão Quilombola do Sapê do Norte. Consultar: OLIVEIRA, Osvaldo Martins de et al. Quilombo: autodefinição, memória e história. In: CASTANHEDE FILHO, Andréa et al. O Incra e os desafios para a regularização dos territórios quilombolas: algumas experiências. Brasiília: MDA/INCRA, 2006. p. 123. 26 Os Guarani chegaram à região em meados da década de 1960, na busca da Terra sem Males ou da terra sagrada, e habitaram o território Tupiniquim.
13
“O que tá acontecendo agora é assim: as pessoas estavam falando lá nos comércios que os índios não eram mais índios, como se fôssemos ladrões, e que, em qualquer lugar que a gente for, a gente ia fazer bagunça. Aí, eles falaram nos comércios, né? Muitos começou a vigiar, dizendo que os índios podia roubar alguma coisa nos supermercados, pra que os índios não roubasse alguma coisa. Aí, a gente teve discriminação também nas escolas. Os professores falavam que a gente não era índio e começavam a fazer alguns comentários, principalmente minha sobrinha. Uns tempos aí, teve discriminação nas escolas de um professor. Ela voltou para casa chorando. Aí os pais dela precisou ir lá pra conversar com eles. Aí, a discriminação é assim, muita chacota, alguma coisa assim: os pais vão lá, aí eles não têm como falar com índios mais velhos e, aí, eles descontam nos filhos, né? nas escolas.” (ÂNGELA, aldeia Tupiniquim Irajá).
O passivo social, cultural e ambiental, devido às populações indígenas e
quilombolas, é imenso. Essas populações resistem. Várias ações por retomada do seu
território foram organizadas, mas não só os que viveram impactos mais diretos se
mobilizaram: segmentos da sociedade civil, indignados com o curso desse grande
projeto e com a conivência dos órgãos governamentais, articularam-se; hoje, há uma
aliança permanente entre as populações do entorno das grandes plantações e
organismos da sociedade civil, constituindo a Rede Alerta Contra o Deserto Verde,27 da
qual o Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM) tem sido um
importante aliado.
27 A Rede Alerta Contra o Deserto Verde é uma rede informal que se formou em 1999, constituída por comunidades impactadas pela monocultura de eucalipto, por movimentos sociais e por entidades de apoio, com o intuito de frear a contínua expansão das monoculturas de árvores e de apoiar as lutas de resistência das comunidades impactadas. A Rede começou a organizar-se no norte do Espírito Santo e no extremo sul da Bahia, onde, conjuntamente, existem cerca de 500 mil hectares sob o domínio de algumas empresas plantadoras de eucalipto. Posteriormente, Minas Gerais, o estado com a maior área de plantações no Brasil – com cerca de 2 milhões de hectares – integrou-se à Rede, tendo em vista a iminência da instalação da Aracruz Celulose no norte do estado, seguido do Rio de Janeiro. Por último, o Rio Grande do Sul também passou a fazer parte da organização, devido à expansão das monoculturas de eucalipto e pinus no sul e no oeste desse estado.
14
2.2 HISTÓRIAS DE VIDA E MORTE: RELATOS DE MULHERES SOBRE OS IMPACTOS VIVIDOS
A realidade contemporânea dos negros remanescentes de quilombos e dos
índios tupiniquins e guaranis no Espírito Santo remonta à história da colonização
brasileira: índios e negros escravizados para atender aos interesses do capitalismo
colonial europeu. Durante mais de três séculos, indígenas e africanos partilharam o
drama da escravidão e do abuso em “território brasileiro”.28 Mulheres foram
violentadas e mortas. Negras foram usadas como reprodutoras de mão-de-obra
escrava e como mães-de-leite, uma história que essas populações fazem questão de
não esquecer e que lhes determinou um lugar histórico de subalternidade no
processo de construção da sociedade brasileira.
Paralelamente à tristeza da violência e do genocídio a que esses povos foram
submetidos, escreve-se uma belíssima história de resistência nos últimos cinco
séculos. A maior prova dessa resistência é a presença de indígenas e quilombolas em
todas as regiões brasileiras.
Com ingredientes modernos e desenvolvimentistas, a relação entre os povos
tradicionais do Espírito Santo e a Aracruz Celulose S.A. reedita a história colonial –
alguns a chamariam de relação pós-colonial, ou seja, formas de dominação que
caracterizaram o período colonial, reelaboradas e transportadas para a
contemporaneidade – e impõe às comunidades indígenas e quilombolas perdas
materiais e simbólicas irreparáveis.
Como no período colonial brasileiro, as mulheres indígenas e quilombolas são
vítimas de abuso e desrespeito. Vêem-se expropriadas dos seus saberes, lidam com a
dispersão de suas famílias, perdem os seus espaços de socialização: os rios, as matas,
os lugares onde se realizavam os rituais de reza e as celebrações. No entanto, a
28 Antes da chegada dos europeus colonizadores esta terra constituía, em sua totalidade, diversos territórios indígenas.
15
nostalgia que sentem de outrora traduz-se numa imensa esperança de recuperar seu
território e recompor o modo de vida do seu povo.
Os relatos e as observações a seguir não têm a pretensão de abordar todos os
aspectos que mexem com a vida das mulheres nem de tratá-los com a profundidade
que merecem. Objetiva trazer a leitura das mulheres sobre a própria realidade,
mostrando como têm elas lidado com o processo ocorrido nos últimos 40 anos. Trata-
se de mulheres intencional ou descuidadamente invisibilizadas pela história.
Mulheres que se têm constituído, ao longo das últimas quatro décadas, em sujeitos
de resistência e imensuravelmente fiéis à luta do seu povo. Este texto constitui-se
numa tentativa escrita de valorizar a experiência das mulheres num contexto de
monocultura de larga escala no Espírito Santo.
“E para nós, mulheres, foi um impacto muito forte também. Nós temos esse sentimento, esse sentimento da perda das nossa riqueza.” (MARIA LOUREIRO, Comissão de Mulheres Indígenas Tupiniquins e Guaranis, aldeia Irajá). “Então, acabou com parte da nossa vida, nossa liberdade e da nossa cultura, do nosso dia-a-dia, da nossa saúde. Essa vinda das grandes empresas para cá acabou com tudo, tirou um pedaço de dentro da gente, é como um pedaço, como se a gente tivesse uma parte viva e outra morta, como se fôssemos vivos-mortos, né?, devido às grandes empresas, após entrarem pra cá. A gente era feliz; agora não: a gente vive infeliz da vida. Precisamos brigar pelo que é nosso, pelos nosso território, por aquilo que eles arrancaram de nós, e com isso foi tudo, tudo que era nosso. Então fica um protesto, né?, por conta da gente, da comunidade inteira.” (ENI, comunidade quilombola de São Domingos).
2.2.1 Os “tês” que tecem a vida: território, terra e trabalho
“E a gente vem lutando assim, juntando com as outras 36 comunidades para lutar pelo território, pela questão das terras, que foram terras tomadas do nosso povo, dos nossos antepassados e, hoje, tá na mão da Aracruz Celulose. Então, a luta que nos une, hoje, é a expansão da eucaliptocultura dentro das nossas comunidades.” (KÁTIA, Comissão Quilombola Sapê do Norte, comunidade quilombola do Divino Espírito Santo).
Historicamente, as populações indígenas e quilombolas viveram no Brasil
sobre grandes extensões de terras com densas florestas. São populações que
dependem diretamente dos seus ecossistemas para a reprodução do seu modo de
16
vida e estabelecem uma forma de organização comunitária em que a terra é um bem
coletivo e não uma mercadoria utilizada para acumulação de bens e riquezas. São
povos que recusaram a leitura moderna da separação sujeito-natureza e vêem-se
como parte dela, por isso a agressão à natureza é a agressão a si próprios. A terra e
tudo o que está nela devem ser usados e preservados, com muita responsabilidade,
para as atuais gerações e para as que virão. Dessa forma, e não por mera
coincidência, são populações que conseguiram preservar parte importante dos seus
ecossistemas até meados do século XX, quando ocorreu a chegada da empresa
Aracruz Celulose S.A. ao Espírito Santo.
O conceito de território que orienta a vida desses povos diferencia-se
profundamente daquele de Estado-Nação, que se hegemonizou e buscou uniformizar
padrões de apropriação e de uso da terra, excluindo outras formas de organização
territorial. No Brasil, só a partir da Constituição Federal de 1988 foram reconhecidos
os direitos dos indígenas e quilombolas aos seus territórios tradicionais (no caso do
Art. 68, referente aos quilombolas, só reconhece o direito, mas não o regulamenta).
No entanto, o fato de a Constituição ter reconhecido não garantiu, até a atualidade,
que esses povos fossem protegidos das investidas ferozes do agronegócio, que, cada
vez mais, exige “recursos naturais” para a sua expansão.
Dados e depoimentos registram que as populações indígenas tinham, até a
década de 1960, 40 mil hectares de florestas de Mata Atlântica, usufruídos por
quarenta aldeias, enquanto os quilombolas tinham grandes parcelas de terra
divididas entre as cem comunidades29 existentes na época. A forma de organização
territorial dessas populações era muito parecida:30 moravam em casas distantes umas
29 Esses números são divulgados por lideranças indígenas e quilombolas. Apesar da dificuldade de se precisar exatamente o tamanho da área usada pelas comunidades e o número de aldeias e comunidades quilombolas existentes até as décadas de 1960 e 1970, os mais velhos, que guardam na memória os acontecimentos longínquos, constituem-se as principais fontes de informação que permitem recompor a história desses povos. 30 Essas populações sempre fizeram o uso comum do território. No entanto, na década de 1960, o Estado capixaba, que tinha interesse em caracterizar aquelas terras como terras devolutas, impôs aos moradores das comunidades negras rurais que requeressem sua pequena parcela individual de terra ao Governo Estadual e a registrassem nos cartórios de registro de imóveis. As terras não requeridas foram consideradas devolutas e ficaram disponibilizadas, posteriormente, para a empresa Aracruz.
17
das outras, o que lhes garantia espaço para a criação de animais e para o exercício da
agricultura. Viviam da caça e da pesca e tinham uma alta capacidade de auto-
sustentação.
“Nós morávamos numa aldeia e essa aldeia chamava Cantagalo. Fica lá acima um pouco de Pau-Brasil... Todo o nosso trabalho que a gente fazia, plantava e colhia feijão, essas coisas tudo que a gente colhia. A gente comprava só o que precisava... Então, ali nós vivia nessa aldeia e tudo que nós queria era a mata. Essa mata, que era formada das coisas que a gente ia fazer: era gamela, era peneira, tapiti, né? Tudo isso vinha dessas matas e isso sustentava, porque a gente vendia as coisas que a gente produzia, que a gente fazia. Então, também eram dos rios, era as matas, era caça, tinha muita caça, tinha muito peixe no rio. Então, era dessas coisas aí que nós vivia. Então, nossos pais cuidavam de nós, quando existia essa mata, mas, depois que a Aracruz chegou, foi botando todo mundo pra fora e comprando por pouca coisa. Dava aquele pouquinho de dinheiro para o pessoal e o pessoal ia na conversa deles que tinha que vender. Aí, eles iam tirando logo tudo mundo, iam derrubando as casas pra fazer as plantações... Então, essa Aracruz acabou com tudo, né? Acabou com tudo que nós tinha, acabou com a nossa mata, acabou com o nosso rio, com os peixes, as caças...” (ROSA, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil).
A partir de meados da década de 1960, como é relatado por Rosa, a realidade
mudou. Com a perda do território, muitas famílias buscaram outras regiões para
viver. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) registra que vivem,
hoje, de forma dispersa, no Estado, cerca de 8.500 indígenas desaldeados, um
número quase quatro vezes maior do que o daqueles que permaneceram em
território indígena. No caso dos quilombolas, o Morro São Benedito, bairro
localizado no município de Vitória, é constituído por grande parte das famílias
expulsas do Sapê do Norte. Registra-se, também, em outros locais da região
metropolitana, como o município da Serra, a existência de quilombos urbanos
formados a partir de meados da década de 1970.
As décadas de 1960, 1970 e 1980 foram marcantes para a história ambiental do
Espírito Santo. A Mata Atlântica, um dos ecossistemas de maior diversidade
biológica do planeta, deu lugar a uma paisagem uniforme e triste: a monocultura de
eucalipto em larga escala.
18
“Porque, no passado, era muito bom, né?, e pra hoje a gente tá morando num lugar... se andar de um lugar pra outro, a gente só vê só a água do rio poluído, porque nós, também, a natureza também, porque a natureza, ela é muito importante, também, pra gente, né? A natureza é as matas, é tudo, é as caças, os passarinhos, é tudo, aí a gente tem que cuidar da natureza.” (NILZA, aldeia Tupiniquim Comboios).
A extinção da maioria das aldeias indígenas e das comunidades quilombolas
levou parte dessas populações a se aglutinar em fragmentos do território das aldeias
que restaram. Outras buscaram regiões próximas para recomeçar a vida.
“Mas eu gostaria que a gente ganhasse as terras pra oferecer coisa melhor pros nossos netos, né? Tê a roça da gente, colhê as coisas, as criação, ter mais espaço pra gente morá... é bom, né? Porque um lugar imprensado assim é muito ruim. Morá mais distante é bom pra gente tê criação dos animais, pros netos da gente e pra nós também, pra gente ficá mais à vontade. Porque é triste morá tudo embolado e não ter espaço pra nada. Que as crianças vive imprensado e a gente tem que corrê atrás deles pra não deixar eles ir pra rua. E num lugar mais distante fica melhor pra gente. É melhor que eles fica à vontade, né? Com mais terra vai melhorá muito... melhora, se Deus quisé!” (FRANCISCA, aldeia Tupiniquim Irajá).
...................................................................................................................................... “De primeiro, era assim: cada um tinha suas roças e hoje não tem como. Aí é todo mundo de mutirão. Comunitário. Alguns que têm, né, perto de casa, mas aquele pedacinho, né, que também... tudo espremido. Como ela, também, eu estava falando ali, eu tenho lá minha rocinha de abacaxi, mas, assim, se eu plantar abacaxi, não posso plantar mandioca. Então, você tem que produzir uma coisa pra depois produzir outra. É, na mesma terra. Aí, você tem que esperar descansar, né?, tem aquele processo todo, pra poder você botar outra semente lá.” (CLÁUDIA, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil).
........................................................................................................................................ “Muita gente aqui tem vontade de vivê da terra. Tem muita gente que tá num beco sem saída, não faz nada. Nós aqui tamos muito apertado pra fazê plantação. Eu acho que tem como resgatá. Tem que ensinar nossos filhos... nossos netos... pra eles não deixar a cultura acabá. Tem que resgatá. O meu sonho é ter de novo as roça.” (MARIA LOUREIRO, aldeia Tupiniquim Irajá).
A redução dos grandes quintais produziu uma alteração nas atividades
domésticas femininas. As mulheres cuidavam das suas casas, da horta, cultivavam a
sua ervas para o uso doméstico e criavam pequenos animais, que também eram fonte
de alimento. Seus filhos tinham espaço suficiente para brincar. Célia (aldeia Pau-
Brasil e pastora da Assembléia de Deus) sussurra emocionada:
19
“Aquele era um bom tempo! Fazíamos muita coisa. A gente trabalhava, mas não tinha tanta preocupação como tem hoje. As mulheres tinham mais tranqüilidade, até com os próprios filhos. A gente era muito mais feliz.”
Observa-se que, para elas, o lugar da aldeia ou da comunidade constituía-se
num espaço seguro, que lhes dava tranqüilidade para organizar o futuro:
“Ah, eu acho que mudou muito, porque, naquela época, que era Sapê do Norte, como eu nasci, criei e andava e sabia como era Sapê do Norte, como tava agora. Você chegava em qualquer lugar, você colocava uma roça. Você roçava, botava pra queimar, chamava era, de primeiro chamava ‘juntamento’, né? com todas as pessoas! Parente, amigo, tudo. Aí a gente botava uma roça, assim, em qualquer lugar aí, e era muita gente! Saía colocando roça. E agora você não tem... esses lugar, apertadinho, que você vai plantar aquele pedacinho... fica oprimido, não tem como, porque tá tudo rodado de eucalipto. Mora aquele monte de família de gente naquele lugar apertadinho! Não tem como, né? Você, pra criar... se for uma galinha, né?; não pode, assim, criar um porco solto, um animal, que era tudo solto, né?, não tinha nada... as coisas que pegasse aquilo, né? Plantava de tudo naquela roça..., agora, você não pode. Até pra você torrar uma farinha num forno, você não pode entrar dentro do eucalipto pra pegar uma varinha. Porque eles estão cercando. É Visel [empresa de vigilância privada contratada pela Aracruz Celulose], bota até polícia, né? Vai entrar e eles estão atrás perguntando o que que vai fazer. Se panha uma varinha, eles estão perguntando pra que é. Então, ficou uma coisa... tudo que eu tô vendo, muito diferente. Não tem nada. Até planta que se planta não presta mais como era antes, porque eles jogam aquele monte de veneno, aquelas coisas tudo, né?. Por isso que as coisa estão difícil. Aí, pra mim, mudou muito porque eu conheci Sapê do Norte, no tempo da minha mãe, pequena, nós tem tanta terra aí nesse eucalipto! Eu tenho meus filho aí, não pode conseguir fazer uma casa, vive assim, pelo lugar dos outro porque tá tudo oprimido do eucalipto, porque tomou tudo, né? Aí, a gente sente com aquilo. Aí mudou muito, muito mesmo, pelo que eu conheci do Sapê do Norte, e o que tá agora. Minha palavra é essa.” (BENEDITA, comunidade quilombola de São Domingos).
O ajuntamento, relatado por Benedita, era uma prática dessas populações. As
pessoas encontravam-se para se ajudar e para celebrar. As mulheres quilombolas,
junto com a comunidade, escolhiam o lugar para o plantio da roça, que era feita por
consórcio. Hoje, a realidade é outra: há a prática dos mutirões que busca, diante da
escassez imposta, potencializar, ao máximo, o uso da terra para a agricultura. No
caso dos índios, a aldeia reserva um pedaço de terra onde é realizado o plantio. Tem
direito a participar da partilha quem contribui com trabalho. É muito comum as
mulheres que são chefes de família ou têm maridos trabalhando fora da aldeia
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organizarem mutirões até o processo da colheita. Há homens que também
participam. Há também algumas iniciativas individuais de plantio, mas nem sempre
alcançam o resultado esperado. Além da falta de espaço, um outro problema
enfrentado é a perda da fertilidade natural do solo e a desertificação, produzidas
pelo intenso e mau uso da terra – plantio de eucalipto em curtos ciclos de corte e em
zonas de mananciais, acompanhado pelo uso intensivo de agroquímicos.
“A situação lá em Caieiras é a mesma situação que a irmã de Pau-Brasil falou; é assim: uns anos atrás, muitos anos atrás, quando ainda era criança, lembro que a gente colhia feijão. Era um feijão diferente de hoje, porque não usava nada de químico na terra. Aquela coisa bonita mesmo! A batata, o aipim eram bem diferentes. E hoje... onde já foi tirado uma parte de eucalipto, Paulo [ela referia-se ao marido] limpou um pedaço e fez uma rocinha lá. Plantou um aipim lá e tava até com dificuldades até pra crescer a raiz. O milho que plantou lá também ficou bem pequeninho, uma coisa bem diferente do que era antes. Antes, a terra tava boa. Hoje, a terra já tá acabada por causa do plantio de eucalipto. O rio não tem mais e a terra tá bem seca.” (BENILDA, aldeia Tupiniquim Caieiras Velha).
........................................................................................................................................ “Por causa que as plantações, hoje em dia, tudo tem que ter adubo. Que, de primeiro, não precisava você adubar terra. Hoje em dia, pra plantar qualquer coisa, tem que adubar, que a terra ficou arenosa. Já vem do eucalipto, ele tirou todas as vitaminas da terra... De primeiro, sem ter o eucalipto, a gente... parecia que até o clima mudou, dentro da aldeia. Mudou porque até para chover... essas mudanças do eucalipto que fizeram, hoje: os rios tinha correnteza, hoje em dia fica aquele fiozinho de água. Como a gente vai poder plantar? Tem tempo que a horta precisa ficar regando ali; a terra fica seca, torrada ali. A dificuldade, hoje, pra a gente ter uma alimentação saudável, tem que plantar e adubar. Ou, então, tem que comprar no mercado, na feira, mas mesmo assim não é saudável, porque eles não vão ter tempo de ficar adubando ali, uma alimentação orgânica, né? Não vão ter tempo. Então, eu acho que, pra gente poder conquistar o de antes, vai ter que lutar muito, e não vai ser como antes, né? Mas, pelo menos, se a gente conseguir pelo menos a metade, né?, pra gente poder passar, não pra gente, pros nossos filhos, nossos netos.” (CLÁUDIA, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil).
........................................................................................................................................ “Quando não existia esse eucalipto aí, você podia plantar tudo misturado e dava! O meu pai plantava mandioca e plantava feijão no meio. Um litro de feijão plantado, ele colhia 80 litros de feijão, e era junto com a mandioca. Tirava o feijão, e a mandioca subia. Hoje, não pode. Se plantar um pedacinho de mandioca, é só mandioca. Se você plantar feijão, é só feijão. Se você misturar, um atrapalha o outro. A terra não tem mais aqueles sais minerais, vitaminas completas pra produzir tudo isso, juntos. Não tem mais como. Mudou muito. Hoje, se faz um pedacinho de roça e pronto. E não dá nem pra sobreviver.” (ENI, comunidade quilombola de São Domingos).
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Há registros históricos do século XIX referentes à grande produção de farinha
de mandioca no Sapê do Norte, inicialmente realizada pela mão-de-obra escrava de
grandes fazendas. Finda a escravidão, as comunidades quilombolas deram
continuidade a essa produção, destacando-se como grandes produtoras de farinha e
beiju – alimento tradicional à base de farinha de mandioca –, produtos que ainda
abastecem as regiões próximas.
“Eu conto sempre assim o que a minha mãe contava: que tinha muita caça, muito peixe. Tem o rio de São Domingos, não tem mais água, não encontra caça mais. Só mesmo tatu, capivara... Peixe também acabou de vez. Se a gente quiser peixe, tem que comprar na cidade, não existe mais. Meus filhos não conhecem mais essa coisa. Primeiro tinha mata, tinha muito sapê, que o pessoal mais velho... quem tinha gado soltava. Hoje, não existe mais. E aí vai acontecendo. Cada dia que passa tá ficando mais pior. Que essa empresa [ela refere-se à empresa Aracruz Celulose S.A.] acabou com todas coisas que tinha aqui: tinha aipim, tinha... A gente querendo encontrar as coisas que existiam, mas a gente não conhece mais. A gente fazia uma roça, plantava bananeira. Primeiro, ela ficava bonita, hoje morre e não dá um cacho de banana. Mandioca aqui acabou mesmo, era o que os meus pais mais usavam. Feijão, o meu pai plantou muito. Feijão, abóbora... É isso que eu tenho pra falar.” (DOMINGAS, comunidade quilombola de São Domingos). ........................................................................................................................................ “Ah! falava causo e sorria, mas era muita brincadeira demais! Tinha aquela água boa, todo mundo tomava banho; dia de calor, menino tomava banho à vontade, né? Era muito bom! Dia de quinta-feira, tudo reunia que ia ralar mandioca. Aí fazia beiju pra ir pra feira, né? Era pamonha, beiju de coco, beiju de massa com coco, era uma alegria, ali era mutirão, era tudo mundo ajudando o outro, né? Era muito bom demais! Isso tudo deixa saudade.” (BENEDITA, comunidade quilombola de São Domingos). ........................................................................................................................................ “Mas nós, quilombolas, sempre tivemos produção. Minha avó ia pelo rio de canoa pra vender farinha no porto de São Mateus. Ela tinha produção, tinha café, tinha mandioca. Então, é isso que nós temos que fazer pra que nossos filhos, nossas crianças, pra que nós tenhamos a nossa produção.” (OLINDINA, Associação de Mulheres Negras de São Mateus e Comissão Quilombola do Sapê do Norte). ........................................................................................................................................ “Antigamente, a gente vivia melhor. A gente respirava melhor, a gente produzia mel, a gente fazia beiju, adoçava tudo com mel, fazia bolo de massa de fubá, café de cana. [Hoje] nossa
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maior renda aqui é a produção de farinha e de beiju.31 Mas isso, a renda está acabando, porque não estão conseguindo manter pra plantar mandioca. Então é isso aí, a gente tá lutando com várias pessoas, de várias comunidades, todas unidas. E o objetivo é todos lutar juntos pra conseguir essas terras.” (ELISÂNGELA, comunidade quilombola de São Domingos).
Com a redução do território, muitas famílias tiveram que sair dos seus lugares
de morada para conseguir trabalho. Por isso, mulheres foram transformadas em
empregadas domésticas, babás, diaristas, lavadeiras, entre outras funções, na maioria
das vezes, servindo a funcionários da Aracruz ou de suas empresas terceirizadas.
“Eu trabalhei muitos anos numa casa em Coqueiral. O marido da minha patroa era funcionário da Aracruz Celulose. Eu saía a pé da aldeia e ia trabalhar na casa deles, com chuva ou com sol. Eu tinha as crianças pequenas e não tinha com quem deixar. Aí minha filha de oito anos é que cuidava dos mais novos. Mas eu não podia deixar de trabalhar, precisava sustentar meus meninos. Eu praticamente criei os filhos deles, não podia cuidar dos meus direito, mas cuidava dos deles. Até hoje, quando eu encontro os meninos na rua, agora eles já são grande, eles me chamam de mãe. Se bem que já tem muito tempo que eu não vejo eles.” (MARGARIDA, de nome indígena Ipotyroby, aldeia Tupiniquim Caieiras Velha). ........................................................................................................................................ “Hoje, as mulheres indígenas enfrentam mais as dificuldades, porque, no passado, elas tinham muita fartura. As mulheres indígenas ficavam em casa com seus filhos e tinha muitas plantações e se dedicavam a colher as folhas, enquanto os maridos estavam fazendo outras coisas. Tinha muita fartura. Hoje, além de não ter muito as plantações, o desemprego é muito. Hoje, para ter mais alguma coisa, a gente tá tentando, em grupos, apoios de projetos, essas coisas para enfrentar mais um pouco as dificuldades. Porque, no passado, as mulheres indígenas nem precisavam trabalhar como empregadas. Hoje, a gente tem que procurar serviço para poder ajudar a manter a casa.” (ALEIDA, de nome indígena Anama, educadora indígena, aldeia Tupiniquim Irajá). ........................................................................................................................................ “Antes, trabalhávamos só dentro da aldeia, na roça, com os filhos. A gente ia pra roça, levava filhos, plantando mandioca, plantando milho... isso mesmo. Levava um pano grande e fazia aquela rede. Ali botava os meninos enquanto a gente limpava e plantava. A Empresa, hoje, acabou com tudo isso. As mulheres, hoje, a maioria, coitada, estão procurando emprego nas casas de famílias. Agora mesmo foi muita menina procurando emprego em Coqueiral.32 Antes não precisavam, porque índio tinha trabalho. Esses dias mesmo, tem minha sobrinha, ela tava 31 Uma iniciativa importante das comunidades quilombolas protagonizada pelas mulheres é a Festa do Beiju, um evento que acontece uma vez por ano e que reúne as diversas comunidades, buscando recuperar e fortalecer práticas tradicionais da culinária quilombola. 32 Coqueiral, bairro situado no município de Aracruz, criado pela Empresa para abrigar os seus empregados.
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falando: ‘Isso tudo por causa da Empresa’. A Aracruz não dá emprego, mas tem gente que trabalha na empreiteira; mulher tem pouca... A Empresa contrata os lá de fora, não contrata índio. Tem mulheres trabalhando fora, mas são só algumas, algumas são domésticas também. Domésticas ganham um salário-mínimo ou menos de um salário.” (MARIA LOUREIRO, aldeia Tupiniquim Irajá).
Segundo Maria Loureiro, da aldeia Irajá, em 2006, “... trabalhando de doméstica
tinha umas dez. Porque, por causa da demarcação, eles não contratam mais índios”. Na
busca do trabalho, as mulheres lidam com a discriminação étnica.
“D. Maria, de Caieiras, tava reclamando ontem, na Funai, que ela tá passando dificuldade porque ninguém quis dá emprego pra ela. E ainda dizem pros índios: ‘Vocês não precisam trabalhar’.” (TURETA, representante local da Funai em 2006).
As mulheres indígenas contam com o atendimento da educação infantil nas
aldeias, em tempo parcial, o que tem facilitado um pouco mais suas vidas. No
entanto essa política não resolve o problema da sua ausência em casa.
“Hoje, aqui, a criança, a partir de 4 anos, fica na pré-escola até as 11h20. Aí, depois que saem da escola, fica com o pai ou com algum vizinho. E já quando têm meninos grandes... estuda de manhã... que tem 12 e 13 anos, aí, quando chega em casa, fica com os menores. Muitas vezes, fica com o vizinho, com parentes. Aqui não tem creche, só tem a pré-escola que é pra criança de 4 a 6 anos. Aí fica difícil pra algumas também.” (ALEIDA, de nome indígena Anama, educadora indígena, aldeia Tupiniquim Irajá).
O fato de as mulheres serem forçadas a se distanciar mais cedo dos seus filhos
para trabalhar fora das aldeias interfere no processo da amamentação, que, na
maioria das vezes, era realizado por um tempo longo. Relata Cláudia:
“Com seis meses é suficiente, né? Assim os médicos fala, né? Antigamente, mamava até dois, três anos. Hoje, mesmo se quisesse, tem que trabalhar.”
E complementa:
“É que a gente vai trabalhar. Essa aqui, mesmo, mama, só mama quando eu chego do serviço”.
Lamenta Benedita: “Mas a maioria, mesmo, tira a mama novinho, os bichinho tão fraquinho, né?”
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Há mulheres indígenas que têm um trabalho formal: trabalham nas escolas e
postos de saúde dentro das aldeias. Essas são vistas pela comunidade como alguém
numa condição privilegiada, já que têm uma renda mensal garantida, diferente da
que recebe a grande maioria da população local. Há, segundo informações das
próprias mulheres, em torno de doze mulheres indígenas trabalhando no viveiro da
Aracruz Celulose. A Empresa opta por contratar mulheres para o trabalho de
reprodução de mudas porque ele exige delicadeza, paciência e cuidado,
características do trabalho feminino. Algumas poucas trabalham em empresas
terceirizadas, geralmente em tarefas similares àquelas vinculadas ao trabalho
doméstico, como, por exemplo, cozinhar, limpar.
Antes da ruptura do acordo firmado,33 em 1998, entre a Aracruz Celulose e as
populações indígenas, a Empresa articulou cursos de cabeleireira, manicura e pintura
para as mulheres, curso de garçom para mulheres e homens e curso de mecânica e de
carpintaria exclusivamente para homens:
“Isso foi um convênio da Aracruz com o Senac34 pra tá desenvolvendo isso lá dentro da aldeia. A esposa do Jetibá [assessor da Empresa para assuntos indígenas] é que deu um curso pras mulheres de pintura.” (TURETA, representante local da Funai em 2006).
Com alto índice de desemprego nas aldeias, a estratégia da Aracruz foi levar
até elas cursos profissionalizantes, buscando causar boa impressão. A Aracruz
Celulose não gosta de ser identificada como empresa que desestruturou e
empobreceu essas populações, em especial por serem populações que vivem no
entorno da sua fábrica. Não é um bom cartão de visitas e compromete a sua imagem.
O incentivo a tais atividades era usado em suas campanhas publicitárias. Com os
33 O acordo foi firmado em decorrência do segundo processo de autodemarcação, iniciado pelas populações indígenas, em 1998. A estratégia da Empresa foi – juntamente com o gabinete da Presidência da República (Fernando Henrique Cardoso), a Funai e a Polícia Federal – isolar as lideranças do movimento em Brasília, forçando-as a um acordo, com validade de vinte anos, bastante favorável à Empresa. O acordo determinava que os índios não poderiam questionar a decisão, inconstitucional, do Governo brasileiro de repassar as terras indígenas para a Aracruz e, como contrapartida, a Empresa, durante vinte anos, financiaria projetos nas aldeias. Dessa forma, ela conseguiu desmobilizar as ações de autodemarcação. 34 Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (iniciativa privada).
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cursos, seu objetivo foi transformar caçadores, agricultores, erveiras e artesãs ociosos
em trabalhadores civilizados, integrados às relações modernas de trabalho,
desvinculando da terra e da natureza o seu modo de sobrevivência. No entanto,
mesmo aqueles que fizeram os cursos continuaram desempregados.
“Até então as mulheres têm que aprender os cursos, mais têm que dá continuidade, pensar em projetos [que permitam resgatar a cultura]. Fazer projetos para ter uma auto-sustentação. Porque se tem que saí pra trabalhar fora vai ser um problema na comunidade. Se aprender e implantar alguma coisa dentro da comunidade, aí não tem problema. Por exemplo, a garçonete... as mulheres... se for uma mulher casada a aprender um curso de garçonete pra ela saí da comunidade... Às vezes tem família casada que combina, mas, se for uma família que não combina, aí vai trazer transtorno pra família. Vai acontecer alguma coisa entre a esposa e o marido.” (ALEIDA, de nome indígena Anama, educadora indígena, aldeia Tupiniquim Irajá).
Outro ingrediente que torna essa realidade indígena ainda mais complexa diz respeito à
concepção de trabalho trazida para dentro das aldeias, desta vez, por não-índios. Mulheres
de origem urbana casam-se com índios e acreditam que o melhor trabalho é aquele que
garante ao seu marido uma renda mensal, de preferência, com carteira assinada. Isso
permitirá a ela e aos seus filhos, num mundo de incertezas, maior estabilidade econômica.
Situações como essas contribuem, ainda mais, para a alteração do modo de vida indígena.
Se há especificidades dos impactos sobre o universo feminino, há também
mulheres que golpeiam o mundo masculino. Os homens indígenas e quilombolas
que se dedicavam à agricultura, à caça, à pesca, vêem-se, na atualidade,
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transformados em desempregados ou alimentam o grande contingente de mão-de-
obra barata. A matéria-prima utilizada pelos homens, como taboa, palhas e
determinados tipos de madeira para a produção de gamelas, peneiras e tapitis,
desapareceu. Essas perdas e mudanças interferiram drasticamente no papel do
homem dentro da comunidade e da família. O caçador que, para as populações
indígenas, significa coragem, força, aquele que garante o sustento da família, perdeu
seu lugar e foi lançado para um espaço vazio.
“Os Guarani sempre tiveram o costume de caçar. Os meninos têm que aprender a caçar. Então ele acompanha o seu pai quando ele vai caçar. Só que quando ele sai pra conseguir caça, roda a noite toda, a noite toda, e não encontra nenhuma caça, nada, nada... Isso é muito triste pr’um guarani. Às vezes até encontra uma paca, um gambá, mas é muito pouco. Então, a gente sai com eles de noite, mas volta no outro dia... e não tem nenhuma caça pra mostrar pra família. Já aconteceu da gente sair e os guarda da Empresa prendê a gente. Eles diz que nós estamos caçando na propriedade que é dela. Eu não sei por que eles coloca aquela placa: ‘É proibido caçar [animal silvestre]’. Eu não sei por quê? No meio do eucalipto não tem nada, nenhum animal vive no meio do eucalipto, nem passarinho. Só formiga e cupim vive no meio do eucalipto.” (TONINHO, de nome indígena Werá Kwaray, Cacique Guarani – depoimento dado na audiência pública da Comissão de Meio Ambiente, na Assembléia Legislativa, em 2002).
A perda da atividade da caça interrompe um rito de passagem antigo
vivenciado por essas populações: o processo que prepara o menino índio para a vida
adulta. A ausência desse ritual produz, nos Guarani e Tupiniquim, um vazio no
processo da construção da identidade masculina. Se não há caça, o que fazer? O
papel do homem dentro da comunidade e da família fica profundamente fragilizado,
beirando a ausência:
“E a gente também [as mulheres indígenas] estão passando por grandes dificuldades, até mesmo dificuldades de arrumar emprego. Os homens também ficaram sem o serviço deles. Hoje, eles vão para o mato e chegam em casa preocupados porque não acham nada pra fazer.” (MARLI, educadora indígena, aldeia Tupiniquim Irajá).
Outros relatos:
“Igual como minha mãe fala, que quando meu finado pai ia caçar, matava variedades de caças. Meu pai, antes de morrer, ele saía pra caçar e voltava com variedades de caça, né? Às vezes, ela tinha até que jogar alguma fora, que já tava mais passada, porque naquela época não tinha
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geladeira. Tinha que salgar pra não ficar ruim, né? E hoje em dia, não. Às vezes, assim, o impacto que eu acho assim que a mulher sente é... por exemplo, o meu marido, né? Os maridos delas vão caçar aí, mas não pega uma caça, aí, quer dizer, a gente fica triste, né?” (KÁTIA, aldeia Tupiniquim Irajá).
........................................................................................................................................
“Eles vão caçar e, às vezes, não caçam nada. Eles vão caçar, mas não acham. Às vezes, eles vão o primeiro dia, o segundo dia, o terceiro dia, até trazer unzinho. Interessante é que, quando eles chegam, eles dividem o que for pras famílias. E tem vezes que eles vão e não pegam nada, né?.” (KÁTIA, aldeia Tupiniquim Irajá).
........................................................................................................................................
“Porque, hoje, se a gente observar dentro da nossa comunidade, as mulheres trabalha mais do que os próprios homens, porque eles não têm trabalho pra fazer. Os homem não têm. Por exemplo, a pesca... aqui todas as família se mantinha da pescaria, e hoje é bem pouco a família que vai na maré pescar por causa dos impactos. Já não tem mais muito mariscos igual os que tinha antigamente. Mas só que, na nossa família, nós não perdemos essa cultura. O meu esposo pesca, o esposo dela, que é meu cunhado, ele pesca, né? Porque, por exemplo, mesmo que tenha esse impacto de acabar com as matas, de ter secado bastante rio, mas se a gente não procurar, a gente vai perdendo nossa cultura, a pesca, o artesanato, a caça. O pouco que temos não podemos deixar, porque é a cultura nossa. Mesmo que tenha outro trabalho, a gente tem que ter ela firme e resistente pra poder se manter. E pra nós, mulheres, foi um impacto muito forte também.” (ALEIDA, de nome indígena Anama, educadora indígena, aldeia Tupiniquim Irajá).
........................................................................................................................................ “Mas hoje, se você sai pra procurar, não acha. Quando chega em casa vem a tristeza na pessoa. Às vezes, os filhos... às vezes, o pai sai pra procurar, pensando que vai trazer alguma coisa. Chega e não traz. Aí a família toda fica preocupada na sua casa, né?” (MARLI, educadora indígena, aldeia Tupiniquim Irajá). ........................................................................................................................................ “Se os caçadores da própria aldeia forem mesmo caçar, eles são presos. Por que, dentro da própria aldeia, eles não podem caçar mais, né? Porque é culpa da gente? Mas não é! São as pessoas de fora mesmo, que, hoje em dia, a gente quer comer uma caça, a gente só vai comer escondido, senão o Ibama35 vem lá, prende você, porque você tá... né? Porque muitos vão de fora caçar, leva, mas eles é pra o lazer, né? Agora a gente às vezes quer matar uma caça lá, pra gente comer, pra lembrar dos velhos tempos, e a gente não pode. Porque a gente vivia da caça, da pesca.” (CLÁUDIA, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil). ........................................................................................................................................ “E também, se vai caçar, não consegue... o IBAMA, né?... perseguindo a pessoa. As tartaruga também. Nós vivia da tartaruga de primeiro. Os mais velhos matavam tartaruga e comia, né?,
35 Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, órgão vinculado ao Ministério do Meio Ambiente.
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comia os ovos dela e, hoje em dia, se matar uma, pode contar que vai pra cadeia. Então, nós tamos... como é que pode viver a cultura do índio desse jeito?” (NILZA, aldeia Tupiniquim Comboios). ........................................................................................................................................ “Quando eu era criança, lá na aldeia, a gente morava lá na aldeia. Meu pai costumava caçar muito e tinha muito caça lá, em Pau-Brasil, naquelas matas. Hoje, não tem mais as matas; no lugar da mata tem hoje o eucalipto.” (CÉLIA, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil).
As mulheres indígenas mais velhas observam mudanças no comportamento
masculino, em especial a partir da década de 1970. A primeira diz respeito ao fato de
os homens saírem freqüentemente das aldeias e buscarem relacionar-se com
mulheres não-índias. Comportamentos como esse tornam o ambiente familiar
inseguro e as mulheres mais suscetíveis à contaminação por doenças sexualmente
transmissíveis (DSTs).
“Eu creio que sim. Agora eles vão procurar outra caça lá fora [ela refere-se a possíveis relações com outras mulheres não-índias]. Às vezes, ao invés de caçador, eles viram a caça (risos). Igual assim como o meu sogro, né? Como meu marido falava, o meu sogro... Quando o meu sogro era vivo, ele saía pouco da aldeia... era mais pra comprar mais óleo, arroz. Mas o resto eles faziam aqui, como a farinha, o feijão, a caça... tinha galinhas no quintal. Mas era muito difícil eles irem pra fora. Hoje em dia, você vê que a maioria dos índios tem que trabalhar. Pra ter o sustento da aldeia tem que sair fora da aldeia, e tá difícil arrumar serviço fora da aldeia.” (MARIA HELENA,36 aldeia Tupiniquim Pau-Brasil).
A segunda mudança está relacionada com o aumento do consumo de álcool
pelos homens. Há também mulheres que bebem, mas em menor número. Hoje, o
alcoolismo nas aldeias é um fato, e esse acontecimento repercute também sobre as
mulheres, que têm que lidar com uma situação que envolve seus maridos e filhos.
“Têm muitas pessoas que bebe aqui na aldeia. Às vezes, ele deixa de cuidar dos filhos, da família, pra viver no alcoolismo”.
Ela complementa:
“Já é uma doença porque, por exemplo, não só por causa das nossas dificuldades de perder... a perca é que vai fazer a gente ficar bebendo? Porque eu falo isso: ‘Se só ficar bebendo, bebendo, não vai resolver não os problemas, vai agravar mais os nossos problemas dentro da
36 Maria Helena é não-índia. Casou-se com um tupiniquim e vive na aldeia Pau-Brasil.
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comunidade’.” (ALEIDA, de nome indígena Anama, educadora indígena, aldeia Tupiniquim Irajá).
O alcoolismo é apontado pelas mulheres como um dos fatores que contribuem
para o aumento da violência doméstica, questão ainda tratada com certo tabu.
“Eu já sofri agressão pelo marido. Há doze anos atrás... do primeiro marido que eu tive, por ele ser alcoólatra. Eu já fui espancada por ele ao ponto de eu ir na delegacia, sim. Minha filha tinha três anos nessa época e, por ele ser uma pessoa muito violenta, ele bateu nela. Aí eu fui na delegacia. Mas aí eu mesmo tomei a decisão, que eu vi que a delegacia não dava jeito nele. Aí, então, eu peguei e me separei dele. Larguei ele pra lá.” (DEUSDÉIA, de nome indígena Yara-Tupã, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil). ........................................................................................................................................ “Meu marido, ele bebia muito, até que um dia ele tentou me bater e aí eu dei uma tampa de panela de pressão na cara dele e mandei ele embora. Ele dizia que não gostava de mim porque eu era índia.”37 (MARGARIDA, de nome indígena Ipotyroby, aldeia Tupiniquim Caieiras Velha).
Observa-se que, na atualidade, principalmente a partir do assassinato de duas
mulheres indígenas, uma tupiniquim e uma guarani, os grupos de mulheres
indígenas nas aldeias querem romper com o tabu e discutir o assunto, buscando
formas de enfrentar o problema. Sentem-se estimulados também pela recente
promulgação da Lei Maria da Penha,38 que trata da violência doméstica no Brasil.
PROSTITUIÇÃO INFANTIL E MONOCULTURA
Segundo a Promotoria da Vara da Infância e Juventude do Espírito Santo, o extremo norte do
Espírito Santo, local onde vivem as comunidades quilombolas, é onde se registra o maior número
37 O ex-marido de Margarida é não-índio. 38 A Lei n.º 11.340/07, Lei Maria da Penha, dá cumprimento à Convenção de Belém do Pará, tipifica e define a violência doméstica e familiar como uma forma de violação dos direitos humanos, altera o código penal e possibilita que os agressores sejam presos, acaba com as penas pecuniárias e prevê inéditas medidas de proteção para as mulheres que correm riscos de morte, como o afastamento do agressor do domicílio e a proibição de sua aproximação física da mulher agredida e dos filhos.
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de prostituição infantil do Estado. Os fatores que mais contribuem para a questão são a pobreza,
produzida, em especial, pela monocultura de eucalipto e de cana-de-açúcar, e o trabalho
temporário dos cortadores de cana, que vêm de regiões distantes e ficam pouco tempo na região.
Isso se agrava ainda pelo fato de a região ser cortada pela BR 101. Cada vez mais surgem notícias
de mães adolescentes e mulheres contaminadas por DSTs/Aids.
“Na nossa região, esse ano, foi o que mais cresceu [ela refere-se à prostituição]. As empresas de cana
traz as pessoas de outra região, estão trazendo pra cá. Aqui tem uma que chama Saionara. A gente teve
até uma reunião em Conceição da Barra com o prefeito, umas três pessoas de Saionara e tinha umas
dez das comunidades. Aí a gente falamos sobre isso, porque eles trazem o pessoal para cá. Depois, aqui,
eles não quer saber da saúde, polícia... não tem segurança. Aí está dando o maior problema na região,
porque o pessoal de menor começa a se envolver muito. Em Conceição da Barra, também, o pessoal
colocou que tá tendo demais.” (MARIA GORETI, comunidade quilombola de são Domingos).
Diante da escassez de trabalho, homens caçadores foram transformados em
“biscateiros”, empregados da construção civil, ou estão desenvolvendo outras
atividades. Na realidade quilombola, a falta de emprego é muito grande, e muitas
famílias agricultoras e extrativistas, incluindo mulheres chefes de família, foram
transformadas em carvoeiras, vivendo da coleta do resíduo de eucalipto.
“E agora ficou ruim... e o emprego agora? Emprego aqui ainda, que coloca sempre uma pessoa, é a Disa39, que coloca pra trabalhar, né?... e a Plantar... algumas pessoas, mas o desemprego tá tudo, a maioria tudo é desempregado. Agora, quando eles chegam a dar esse residuozinho de eucalipto, fazendo pouco da gente, né?, ninguém quer, mas eles também só dá quando quer, e esse é só o passatempo, mas nós quer é nossas terras.” (BENEDITA, comunidade quilombola de São Domingos).
Uma das características da Aracruz é evitar contratar trabalhadores oriundos
das populações locais. As mulheres indígenas relatam situações que vivenciaram em
suas aldeias:
39 A Disa é uma empresa produtora de álcool e grande plantadora de cana-de-açúcar, e a Plantar é a empresa terceirizada pela Aracruz para cuidar do plantio de eucalipto.
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“Queria falar sobre o que acontece lá na aldeia de Caieiras. Assim, quando o pessoal lá, os jovens, ficam sabendo que uma firma tem emprego, eles vão lá. Só que eles não gostam de mostrar identidade indígena. Eles vão muito tirar identidade de branco por causa disso. E lá eles falam que não moram na aldeia. Alguém foi lá que só tinha identidade indígena porque não tinha outro documento. Aí eles falaram: ‘Não vou te dar emprego, porque você é índio’. Ele disse: ‘Sou índio, mas não estou morando na aldeia, sou contra a luta pela terra’. Aí ele conseguiu emprego, mas só que a Empresa mandou alguém investigar. Aí ele foi até a cidade de Aracruz, por uns dias, para a casa de parentes, mas depois voltou para aldeia e aí foi demitido do serviço.” (BENILDA, representante das mulheres indígenas na Apoinme,40 aldeia Tupiniquim Caieiras Velha). ........................................................................................................................................ “Eles não dão serviço para os homens e nem pras mulheres. Quem tá lá é porque foi antes da demarcação; já tem até dez anos de trabalho. Mas, depois da demarcação, ficou difícil arrumá trabalho. A fala é essa mesmo: por causa da demarcação41 é que elas num precisa trabalhá, que nós tem recursos, aí não precisa. Isso é um engano, né? Porque até hoje tá balançado, não se resolveu tudo. Aí vem a dificuldade, falta de emprego, falta de trabalho (ALEIDA, de nome indígena Anama, educadora indígena, aldeia Tupiniquim Irajá). ........................................................................................................................................ “Agora nem serviço acha mais, né? Porque tá todo mundo sem trabalho, passando dificuldade. Por que tá todo mundo sem trabalho? Sai pra arranjar trabalho, mas ninguém dá trabalho porque falta a pessoa entender nossa situação. Eles não gosta de índio e eles fala isso na nossa cara. Eles acha que a Aracruz ajuda muito os índio. A Aracruz colocou que ela ajudava. Ajudou no quê? Ela destruiu foi as matas.” (MARIA, aldeia Tupiniquim Caieiras Velha). ........................................................................................................................................ “Para conseguir um trabalho, isso também acontece nos quilombolas, para os quilombolas conseguir fazer um curso, ele precisa negar que é quilombola.” (OLINDINA, Associação de Mulheres Negras de São Mateus e Comissão Quilombola do Sapê do Norte).
Uma das maiores conseqüências da ausência de trabalho é a falta de
alimentos. As mulheres, que têm a responsabilidade de preparar o alimento da
família, administram, cotidianamente, a escassez.
“Já pensou uma mãe procurar alguma coisa pra dá pros filhos e não tem? Procurar um café, um leite, e não tem. Não tem um pão, uma comida não tem. Porque a criança não quer nem saber da onde sai e como sai. Então, as mães se preocupa mais mesmo. A mãe sabe de tudo o que acaba ali dentro de casa. O pai, por exemplo, se tem um serviço, ele sai de casa de manhã, faz uma marmitinha, carrega e só chega de tarde. A responsabilidade é toda da mãe. E aquela 40 Apoinme – Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo. 41 Aleida refere-se às tentativas de autodemarcação realizadas pelas populações indígenas para a retomada do seu território. Houve três movimentos buscando autodemarcar o território. A primeira demarcação aconteceu em 1981, a segunda, em 1998 e a última, em 2005.
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mãe que se preocupa mesmo com a família, ela tem que sair para procurar alguma coisa para trazer pra casa. Porque ela tá ali no dia-a-dia” (ALEIDA, de nome indígena Anama, educadora indígena, aldeia Tupiniquim Irajá).
........................................................................................................................................
“É triste a gente chegar dentro de casa e ter filho pequenininho e ele pedi: ‘Mamãe, me dá um prato de comida’, e ela não ter. É muito triste!” (MARLI, educadora indígena, aldeia Tupiniquim Irajá).
Antes, essas populações estabeleciam relações de troca42 nas quais o dinheiro
aparecia muito raramente. Hoje, ele é imprescindível para garantir a sua subsistência.
“Tinha muitas coisas. Todo mundo tinha criação, tinha porco e tinha coisas assim. Mas tinha dia que não tinha nada, né? Às vezes, um vizinho... porque andava tudo a pé, né? Às vezes, ia na Barra comprar peixe e chegava e mandava um peixinho pra cada um. Ou, então, a gente vinha também e trazia banana, fazia polenta, fazia beiju e vinha trocar por peixe na praia. Os pescadores chegavam com fome... eles dava o peixe e a gente dava o alimento e trazia o peixe pra cá. Às vezes, levava o alimento pra trocar com peixe e comia farinha no caminho, porque sentia fome (risos).” (GLÓRIA, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil). ........................................................................................................................................
“Em termos da agricultura, hoje tudo tem que ser comprado. Antes, como disse a Glória, antes era bastante a troca; era difícil, mas era bom. Hoje, tudo a gente depende do dinheiro; não se consegue dá um passo em Barra do Sahy se não tiver dinheiro. Hoje a troca é muito pouco. Ainda troca alguma coisa, mas agora é muito menos que antigamente.” (DEUSDÉIA, de nome indígena Yara-Tupã, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil).
........................................................................................................................................ “A gente não tinha falta de nada para alimentar os nossos filhos... Eu sou mãe de treze filhos. Meus filhos foram criados com os peixes, com as caças. Hoje, eu tenho meus netos, meus bisnetos e eles têm as coisas assim tudo comprado, né? E, antigamente, nós não comprava nada, a não ser, assim, o arroz; o óleo, quase não comprava também. A gente criava era os porco. Com as coisas que nós plantava na nossa terra era para sustentar nossos porco, nossas galinhas. Nós criava muito galinha e aí nossos filhos viviam no meio da riqueza, mas dali daquela terra. Mas, depois que Aracruz chegou, acabou com tudo... Então acabou tudo, acabou tudo. Essa Aracruz Celulose acabou com nossas coisas tudo. Agora, nós vivemos assim com as coisas todas compradas, trabalha pra comprar tudo, não é mais como antigamente.” (ROSA, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil).
Nesse contexto de ausências, o artesanato surge como uma possibilidade para
driblar a escassez. Os grupos de mulheres artesãs buscam articular a função cultural
42 Até hoje não existe uma expressão em guarani que traduza a palavra “vender”.
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do artesanato indígena à geração de renda. Entretanto a perda das matas
comprometeu a disponibilidade da matéria-prima utilizada para a sua produção.
“Nossa! Teria mais valor o nosso artesanato! É o urucum, o jenipapo... é mais pra pintura corporal; mas, assim, o barro vermelho, a folha da cana, a folha do pé de araçá, da pedra vermelha... Então, são tudo tintura natural. Até aquele melão de São Caetano... ele tinha uma tintura natural. É através do artesanato que a gente fala da [nossa] cultura. É uma coisa significante. Quando você compra um artesanato, você quer ficar mais bonita, para nós, não. [Quando você compra o nosso] artesanato, você leva um pouco da cultura.” (DEUSDÉIA, de nome indígena Yara-Tupã, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil).
........................................................................................................................................ “... porque as mulheres, de primeiro, tinha muita coisa que dava para elas se manter... assim, material de fazê artesanato, que as mulheres fazia muito. E hoje não existe muito. Pra fazê alguns cordão, precisa ir longe, porque os pedacinhos de mato que tem aqui... não tem muitas coisas que a gente necessita. Algum material tem perto... algumas sementes que a gente colhe... Por exemplo, se pegar a semente pra plantá, pode até nascer e aí a gente tem aquela semente pra fazê o artesanato. Mas aquelas sementes que existia perto das casas, hoje já não existe mais. Então, tem a dificuldade pra gente colher esse material. E, hoje, as mulheres que têm dentro da comunidade é que tem que procurar algum serviço pra ajudar a manter a casa, né?” (MARIA LOUREIRO, aldeia Tupiniquim Irajá). ........................................................................................................................................ “Não se acha um cipó mais. Não se acha uma palha mais. Se eles quiserem... Primeiro, os índios faziam suas casa de palha, tinham como fazer uma casa de palha, tinha palha e tinha madeira. Hoje, não se acha mais nada. Então, as coisas ficaram muito difíceis. Essa realidade acabou com os indígenas mesmo, com a gente das aldeias. Todas as aldeias ficaram prejudicadas.” (MARLI, educadora indígena, aldeia Tupiniquim Irajá).
Apesar das dificuldades encontradas para a produção do artesanato, as
mulheres indígenas estão cada vez mais organizadas, buscando garantir a
recuperação da matéria-prima original, as condições físicas e materiais adequados
para a realização do trabalho e alternativas de comercialização. Segundo elas, o
artesanato é uma forma de lhes garantir a auto-sustentação, impedindo que saiam
das aldeias para buscar trabalho.
A DIFÍCIL ESCOLHA: IR OU FICAR
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Até a década de 1960, havia muito poucos não-índios vivendo nas aldeias indígenas. Com a chegada
da empresa Aracruz e da nova conformação territorial, vários eventos alteraram o cotidiano dessas
populações, que começaram a conviver mais intensamente com não-índios. Por isso, é muito comum,
em especial entre os Tupiniquim, homens índios se casarem com mulheres não-índias e mulheres
índias se casarem com homens não-índios. Diante dessa nova realidade e com a redução drástica do
território, as populações indígenas viram-se obrigadas a normatizar a entrada dos não-índios: o
homem índio deve levar sua esposa não-índia para dentro da aldeia; a mulher índia que se casa com
o não-índio deve sair, ou seja, deve, prioritariamente, acompanhar o seu marido, já que ele é o chefe
da família. No entanto, caso ela e o marido queiram viver na aldeia, poderão, desde que haja
aprovação da comunidade. Observa-se que as mulheres enfrentam mais dificuldades que os homens
índios para estabelecer relações afetivas fora do universo indígena.
“A regra em Pau-Brasil é essa também: se mulher casar com homem de fora, ela tem que sair, mas não acontece na realidade. É uma regra, mas ela não é na prática. Por exemplo, eu caso com branco, eu não poderia morar na aldeia, mas não é isso que acontece. Igual um índio casar com branca, ele deve morar na aldeia, mas, e se ela [a esposa] não quiser? ‘Eu vou morar na aldeia?’... porque os homens são o chefe da casa. Em Pau-Brasil... porque, se o homem tem direito, a mulher também tem [deve ter] direito, se o homem vai trazer a mulher, tanto ele como ela têm que respeitar as regras da aldeia. Assim a mulher que vai trazer o homem tem que respeitar a regra da aldeia.” (MARIDÉIA, Comissão de Mulheres Indígenas Tupiniquins e Guaranis, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil).
2.2.2 Rio: lugar de encontro
“Era tão maravilhoso se abrisse o rio pra nós. Nós lavava roupa, nós pegava água pra bebê, pra fazer comida... A gente pescava peixe, pegava com peneira. A mulherada... juntava tanta gente! Era o lugar de lavar roupa. Terminava de lavar roupa, a gente tomava banho e vinha embora, né?” (MARIDÉIA, Comissão de Mulheres Indígenas e aldeia Tupiniquim Pau-Brasil).
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Segundo o Relatório de Impactos da Apropriação dos Recursos Hídricos Pela Aracruz
Celulose nas Terras Indígenas Guarani e Tupiniquim, elaborado pela Associação dos
Geógrafos do Brasil (2004), foram desmatados, só no município de Aracruz, 430km²
da floresta tropical pluvial nativa para dar lugar à plantação de eucalipto. Rios
imprescindíveis à vida das populações indígenas, como o Guaxindiba e o Sahy, que
banhavam a aldeia Pau-Brasil, praticamente desapareceram.
“O que eu tenho que falar elas já falaram. Mas eu vou falar um pouquinho. Eu nasci aqui tem 53 anos, mas mudou muito do que era antigamente. Mas foi uma dificuldade muito grande pra nós, que a gente vivia do... usava o rio pra pegar peixe. Agora, essa dificuldade... o rio secou através do eucalipto, né? A gente só pode culpar o eucalipto. Dificultou muito pra nós. Mas as mulheres sempre sofreu com isso, com a falta de água. Antes tinha água encanada, mas nem ia nas casas da gente direito, e a gente sofreu muito.” (MARIDÉIA, Comissão de Mulheres Indígenas, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil). ........................................................................................................................................ “Depois, eles começaram a botar os remédios, igual falava essa moça aqui. Começaram acabando com tudo. Os remédios [agrotóxicos] matavam as caça, os passarinhos, a água contaminava também, matava os peixes, os caranguejos como tem lá em Pau-Brasil. Lá tem um riozinho que subia lá para Barra do Sahy. Então, ali, aquele rio se acabou, né? Os peixes também se acabaram tudo, por causa do veneno que eles foram botando. Foram acabando com nossos peixes, nossos caranguejos. Não tem mais nada lá no mangue. Pode ir lá olhar que você não vê mais nada, caranguejo, guaiamu, tudo isso era nosso alimento, que nos alimentava. A gente não tinha falta de nada, alimentava nossos filhos.” (ROSA, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil). ........................................................................................................................................ “Quem fez tampar o rio foi a Aracruz, porque plantou eucalipe e puxou a água e o rio... agora tudo... e também muita barragem, muito bueiro, manilha, né? Perdeu a força da água e aí foi que secou o rio. De primeiro, era correnteza, e, agora, cadê?” (FRANCISCA, aldeia Tupiniquim Irajá).
Esse drama ocorreu também na região onde vivem as comunidades
quilombolas: A vivência [dos quilombolas] testemunha a morte de quase todos os 14 rios e
córregos que atravessavam a entrada de Itaúnas e a Sede de Conceição da Barra. Em 1999,
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apenas o São Domingos, afluente do [rio] Cricaré, dispunha de água.43 Os rios estão
assoreados e/ou contaminados.
A situação do rio Comboios é um exemplo da prepotência e do desmando da
Aracruz Celulose no trato da questão hídrica. Em 1999, ela fez a transposição das
águas da bacia hidrográfica do rio Doce para a bacia do rio Riacho, por meio da
construção do Canal que ela denominou de Caboclo Bernardo, buscando garantir o
abastecimento de água para a terceira fábrica da Empresa. “Entre o Canal e a planta
do complexo celulósico se encontram a aldeia Comboios e o rio Comboios [...].
Depois da construção do canal, não é mais possível sua utilização para beber ou para
banhar porque a água provoca febre, vômitos, ‘encaroça’ o corpo”.44
“Hoje, o rio é poluído, a gente não usa a água pra beber, a gente não usa a água pra tomar banho, não usa a água pra lavar roupa, a gente não usa nada, né? Quer dizer, a diferença... foi muito diferença porque, antes, nós tinha nosso rio bom, nosso rio era limpo, a água era igual um vidro, a gente olhava assim, via a sombra da gente, a gente via os peixinhos lá no fundo e, hoje, a gente não vê, só vê escuridão, né? Acho que está mais preto do que café ainda, porque a diferença é muito mesmo, não era assim que era no passado.” (NILZA, aldeia Tupiniquim Comboios).
O rio era o espaço de socialização das mulheres.
“A nossa preocupação era a falta do rio, e agora ela é bem maior. É igual você falou: ‘tomá o banho, lavá a roupa, de ter a água em casa’. Como você falou, não é tanto dos homens, né?. E quando tinha o rio aqui, as mulheres pegavam suas trouxas de roupa... e era aquela festa na beira do rio, todas lavando a roupa. Era mais no dia de sábado, e quem tinha tempo, durante a semana. Já era um trabalho a menos, porque tinha aquela quantidade grande de água no rio e tudo ficava mais fácil. Quando a gente tinha que pegar no poço, descer uma ladeira onde tem o poço hoje... Então, essa preocupação não é dos homens, é mais das mulheres, e, quando falta essa água nas caixas ou tem um problema na bomba, os homens não vão pegar o balde ... são bem poucos que vão pegar o balde e descer a ladeira, né?. E quando tinha só um pouquinho de
43 FERREIRA, Simone R. B. Da fartura à escassez: a agroindústria de celulose e o fim dos territórios comunais no extremo norte do Espírito Santo. 2002. 217 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. p. 160.
44 ASSOCIAÇÃO DOS GEÓGRAFOS DO BRASIL. Relatório de impactos da apropriação dos recursos hídricos pela Aracruz Celulose nas terras indígenas Guarani e Tupiniquim. Vitória: AGB, 2004.
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água, a gente ia se virando. Mas a preocupação é das mulheres mesmo, né?, de ir lá pegar água no poço e ter essa água em casa. Até que... quer dizer, quando tinha rio essa preocupação diminuía porque, pelo menos, pra lavar a roupa, a gente tinha como resolver o problema. A dificuldade aumentou quando esse processo todo aí, com a chegada de eucalipto foi sugando essa água do rio, que chegou ao ponto que chegou hoje.” (MARIA HELENA, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil). ........................................................................................................................................ “Eu gostava, sim, que voltasse o rio. Um sonho, como era de primeiro. A gente tomava banho, lavava roupa, né? Eu tenho certeza que, com o calor que tá agora, ele taria lotado. Mas acho que deve ser muito difícil voltar como era antes.” (CÉLIA, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil). ........................................................................................................................................ “Eu acho que o rio traria mais união, porque na beira do rio a gente lava a roupa, conversa, se distrai. Acho também que seria uma higiene mental, e as crianças... [nós] não teria tanto medo delas aprenderem a nadar. No rio tinha a taquara pra fazê a peneira... camarão... o pitú, né?, traíra...” (DEUSDÉIA, de nome indígena Yara-Tupã, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil).
As gerações mais jovens perderam a familiaridade com as águas dos rios. Por
isso muitos adolescentes índios não sabem nadar, algo difícil de ser compreendido
no imaginário social brasileiro. Os Tupiniquim, que pertencem ao tronco lingüístico
Tupi, sempre viveram às margens de grandes rios. Para as indígenas, a falta da água
e a água contaminada são problemas que se manifestam no cotidiano da casa. Elas
têm que cozinhar, lavar a roupa e providenciar água para beber e banhar os seus
filhos menores.
“E também a falta de água, né? Lá no lugar, lá, muitas pessoas... os antepassado falam que, por causa das plantações de eucalipto, está secando os rios, né? A gente passou um tempo, esse tempo aí, muito, praticamente uns quatro meses, sem água nenhuma, dependendo de pegar água em outros lugares pra gente sobreviver, pra gente beber, né? E agora que choveu, encheu mais os rios lá, mas agora tá começando faltar muita água lá de novo. Muitos falam que é por causa dos eucaliptos, né? Aí a gente...” (ÂNGELA, aldeia Tupiniquim Irajá). ........................................................................................................................................ “A gente pescava de anzol, pescava de rede, botava uma cruzeira, fazia um mundéu, pegava uma caça, né? um tatu, muito gostoso. Aí agora, se ir... Eu acho que quem mata um inocente, nem vai preso. Agora, só por causa de uma caça ou um peixe, a gente leva aí não sei quantos anos de cadeia, que eles promete. Mas acabou nossos peixe. São Domingos, Santana... nós ia com aqueles balaio que nós pescava, pegava era muito peixe! Agora, acabou tudo! Secou os córrego, né? Se tiver algum córrego, mas ninguém não pode comer um peixe preto, igual teve uma que falou aí que a água é preta, né? Aquela água preta que ninguém... Vixi! Nem... que roupa! Ninguém nem vai fazer isso! Aí, acabou. As nossas cultura, nossos passarinho,
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aqueles passarinho tão gostosinho que a gente pegava, fritava pra comer, né? Que isso tudo a gente fazia, que era da roça mesmo! Aí, agora, acabou.” (BENEDITA, comunidade quilombola de São Domingos). ........................................................................................................................................ “Eu não tenho meu pai mais, mas o meu pai me contava muito sobre o córrego em São Jorge. Isso era muito importante para eles [para os quilombolas]. Isso era importante pra gente também. Mas, como que é que se vai cuidar do rio, se o rio está todo envenenado com os defensivos [agrotóxicos] que eles colocam para manter... para exportar o rico papel deles. Então, para exportar o rico papel, eles danificam o rio, acabam com a vida e a saúde de todos nós. E aí nós ficamos mais prejudicados ainda e eles não têm a relação direta com o veneno do rio, porque somo nós e os funcionários deles que têm esse contato.” (OLINDINA, Associação de Mulheres Negras de São Mateus e da Comissão Quilombola do Sapê do Norte).
O rio era o lugar de encontro das mulheres. O momento do lazer, da conversa,
da troca de experiências e saberes, o espaço das combinações e do reforço dos laços
afetivos e comunitários, suprimidos pela implantação do agronegócio da celulose.
“Lavava muita roupa junto. Era o mesmo ponto. A hora que aquele bocado de mulheres colocava a roupa pra quarar, eles tinham mania de falar. A gente coloca de molho, né? no sabão em pó, e elas não. Lá o alvejante era folha de mamão, né? (risos) e colocava... A grama grande na beira do córrego, cultivava aquela grama e jogava aqueles lençóis brancos, roupas brancas, e alvejava mesmo, de verdade. De vez em quando salpicava aquele pouquinho de água e alvejava mesmo, de verdade.” (ENI, comunidade quilombolas de São Domingos). ........................................................................................................................................ “... igual ao que elas falaram da água mesmo, né? Que antigamente era o ponto de encontro no rio, de lavá a roupa. Às vezes, a pessoa ficava assim... a gente ficava até mais tranqüila, lavava roupa tranqüila ali, né? Tinha água com fartura. É isso que eu tinha que falar.” (KÁTIA, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil).
A recuperação dos rios das áreas indígenas pela Aracruz Celulose constituía
item do acordo feito entre Empresa e a Associação Indígena Tupiniquim e Guarani,
em 1998. No entanto a questão não saiu do papel e a situação agravou-se desde
então. As mulheres que apostam na capacidade de regeneração da natureza sonham
em banhar-se um dia nos rios de outrora.
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2.2.3 A saúde regada a rezas e ervas medicinais
“A planta medicinal pode ter morrido nas cozinhas, mas no coração da gente nunca morre não, porque faz parte da saúde, é algo alternativo, e eu acho que a gente tem que batalhar. Por isso que a gente entrevista muito os adultos, os mais velhos.” (DEUSDÉIA, de nome indígena Yara-Tupã, Comissão de Mulheres Indígenas, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil). .......................................................................................................................................................................... “O remédio natural é muito importante. A gente tem que tomar até acabar essa doença. Minha avó falava que podia tomar. A gente tem que pedir pra Deus que ele vai mostrar o verdadeiro remédio. Nós acreditamos no remédio vivo.” (JOANA, de nome indígena Tatatxî, Comissão de Mulheres Indígenas, aldeia Guarani Boa Esperança).
Amplas conhecedoras da biodiversidade, essas populações viram-se
impedidas de continuar a exercitar seus saberes e práticas relacionados com a saúde.
Com a destruição da floresta e a implantação de postos de saúde nas aldeias,
iniciaram-se as dificuldades de continuar a produção e o uso dos remédios naturais.
Com o passar do tempo, tornou-se cada vez mais difícil para as velhas gerações
transmitir às mais novas o seu conhecimento sobre as diversas espécies de uso
medicinal que compunham a Mata Atlântica. Muitas foram extintas, outras
encontram-se em processo de extinção. A situação agrava-se ainda mais quando há o
aumento dos problemas de doença da população local.
“Tem muita pressão alta... Não existe remédio para pressão alta? Não existe remédio para diabetes?” (DEUSDÉIA, de nome indígena Yara-Tupã, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil).
Entre os moradores das aldeias, são muito comuns os problemas respiratórios,
em especial na aldeia Pau-Brasil, localizada a três quilômetros da fábrica de celulose.
As crianças são as que mais sofrem com o problema.
“Hoje, as crianças nascem e um mês de nascido, né?, Helena, tá lá fazendo nebulização. E isso é o quê? É o impacto da Empresa, entendeu? Do que vem do ar. Essas doenças não eram de índia: o câncer... porque hoje tudo é artificial.” (DEUSDÉIA, de nome indígena Yara-Tupã, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil).
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Com as ervas cada vez mais raras, as mulheres, responsáveis por cuidar da
saúde dos filhos, enfrentam dificuldades para lidar com as doenças da família e, sem
alternativa, dão passagem à medicina convencional. Hoje, o uso de remédios
farmacêuticos é bastante comum entre os índios.
“Tá entrando muito remédio de farmácia nas aldeias.” (DEUSDÉIA, de nome indígena
Yara-Tupã, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil).45
“A gente usava várias ervas para dor de barriga. Para dor de cabeça era folha de urucum, mas hoje as pessoas preferem ir à farmácia do que tomar remédio caseiro. O xarope da folha de maracujá, da folha da arnica deixa a pessoa que tem problemas curada. A carobinha cura coceira, cura tudo. O banho é muito bom. A gente tá fazendo pouca coisa por falta de ervas.” (NILZA, Comissão de Mulheres Indígenas, aldeia Tupiniquim Comboios). ........................................................................................................................................ “Morei na roça, morava na roça, morei muito tempo lá, meus filhos tive todos com parteira. Aqui o que as mulheres mais reclamam sobre os filhos mesmo... Vai ligar, depois que ligou, vai trazendo problema. Geralmente, o pessoal fala que os remédio não tem mais... aqueles que eles usavam pra fazer o chá. Um fazia chá, outros fazia garrafadas. Hoje, isso aqui não existe mais, porque não existe mais a mata. Eles falam que não tem mais aquela mata. Ah! Jesus, onde tem aquele mato? Hoje não existe os remédios do mato. O pessoal, as meninas grávidas começa fazer logo pré-natal no hospital e quando vêm de lá já chega cheio de problema...” (MARIA GORETI, comunidade quilombola de São Domingos).
Parto. O nascimento é um acontecimento muito especial na vida das
populações indígenas. No entanto, nesse novo contexto, transformou-se num desafio
envolvendo escolhas nunca antes imaginadas: o parto será normal ou cesariana? D.
Marilza, de nome indígena Keretxu-Endi, uma sábia velhinha, liderança Guarani,
analisa por que é tão difícil, atualmente, as mulheres terem filhos com parteiras.
Segundo ela, as parteiras estão desaparecendo, e as mulheres indígenas fazem o
acompanhamento com os médicos da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), que
não incentivam o trabalho das parteiras. Relembrando tempos de outrora, a liderança
indígena guarani fala, orgulhosa de si:
“As mulheres tinha cinco, dez, onze filhos e não tinha problema nenhum. Agora, elas tem problema. Porque, muitas vezes, hoje, as doenças que está acontecendo... mais com as mulheres porque elas não procuram os remédios do mato. Elas vai no médico e ele fala que 45 Deusdéia é funcionária do Posto de Saúde da aldeia Tupiniquim Pau-Brasil, administrado pela Funasa.
41
você não vai ter mais filho cinco, seis filhos, que você tem problemas. Minha avó falou que os brancos que quer acabar com o índio, não quer mais que os índios têm muito filho. Ela [minha mãe] ajudava minha avó a fazer parto. Hoje, já não faz mais. Antes, tinha parteira, e os remédios era do mato. Eu nunca fui a médico; tive meus filhos tudo em casa, com parteira.” (JOANA, de nome indígena Tatatxî, educadora indígena, aldeia Guarani Boa Esperança).
O relato indígena combina com as informações quilombolas a respeito do
desaparecimento das parteiras e a adoção – embora dificultosa – do atendimento
médico do Sistema Único de Saúde (SUS).46
“São Bartô era o santo das parteiras. São Bartô ajudava quando ganhavam os nenês em casa. Tinha as parteiras. Minha mãe mesmo era parteira. Hoje, nasce tudo no hospital, porque não tem parteira mais. As parteiras já morreu, aí é tudo médico. No tempo que era só parteira, não existia nem médico, e o que existisse não ia lá, não. Minha mãe mesmo era igual a médico. Todos os problemas ela resolvia. Mas eu não aprendi o que ela fazia, não, eu era bem mais nova, alguma coisa ela ainda me ensinou.” (BENEDITA, comunidade de São Domingos).
Outra informação refere-se à mudança física do corpo da mulher. A obesidade
dela e dos seus bebês, durante a gestação, dificulta um parto natural. Essa situação
tem sido atribuída ao consumo de comida industrializada pelas mulheres,
diferentemente do que acontecia quando elas se alimentavam da comida produzida
pelas aldeias ou extraída das matas, sem qualquer aditivo químico. Também se
atribui à alimentação a menstruação precoce das meninas, que vivenciam a
maternidade cada vez mais jovens.
“De qualquer forma, o índice de cesariana hoje é bem maior do que antigamente. O parto normal, às vezes, é difícil porque as mulheres engorda muito e aí têm que fazer cesariana.” (MARIA HELENA, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil).
Uma das alternativas utilizadas por algumas mulheres indígenas para
combater a obesidade é o uso de drogas para emagrecimento.
“Antigamente não tinha isso. Ninguém se preocupava com gordura ou com magreza. Por exemplo, eu... minha família mesmo... minha mãe era alta e forte, né? Mas ela não se preocupava que tinha que emagrecer pra ficar bonita. Ela sempre falava que a beleza Deus é que dá pra gente. Hoje, a gente vê muitos remédios pra emagrecer que tá trazendo muitas 46 O SUS é o sistema público brasileiro de saúde. A Fundação Nacional de Saúde (Funasa) é vinculada a ele.
42
doenças pras mulheres que quer, através de vários medicamentos, ficar bonita. Aqui na aldeia algumas tomam. Eu conversei essa semana com algumas que tão tomando remédio pra emagrecer. Só que, hoje, esses remédios tão fazendo mal. Eu mesmo nunca tomei e não pretendo tomar.” (ALEIDA, de nome indígena Anama, educadora indígena, aldeia Tupiniquim Irajá).
Outro aspecto que interfere na realização de partos naturais nas aldeias estaria
ligado ao sedentarismo. Hoje, por falta de espaço físico e por assumir novas tarefas
diferentes daquelas tradicionais da mulher indígena, o corpo da mulher está mais
fragilizado e suscetível a doenças. Antes, segundo uma liderança guarani, “... as
mulheres tinham mais força nas pernas”. São comuns relatos de mulheres que foram
submetidas a cesarianas. Há casos de perdas de bebês no nascimento, o que, para
essas populações, é um acontecimento grave e triste.
“Nós, Guarani, precisamos pensar a saúde guarani. Minha esposa teve neném. Foi a primeira vez que uma mulher aqui na minha família foi operada para ter neném. Ela e o neném quase morreram. A criança até hoje tá internada na UTI Neonatal lá em Vitória. Minha esposa, depois que chegou aqui, chegou com a barriga inchada. Aí eu fiz um chá pra ela e foi graças a esse chá que eu percebi que tinha alguma coisa errada. Aí eu levei ela aqui no hospital em Aracruz. Tiveram que abrir de novo a barriga dela e descobriram que a médica tinha esquecido de tirar... como é o nome mesmo? Aquilo que o neném fica dentro [placenta]? Pois é, ela esqueceu de tirar a placenta e ela quase morreu por causa disso. Me disseram até que se eu quiser entrar com um processo contra a média eu posso fazer. Então, se não fosse o chá, ela podia ter morrido.” (TONINHO, de nome indígena Werá Kwaray, Cacique da aldeia Guarani Boa Esperança).
Continuando a analisar a saúde das mulheres, a velha sábia guarani diz que as
mulheres, antes, tinham maior controle sobre o seu corpo, ou seja, elas controlavam a
sua fertilidade:
“Quando queriam ter muito filhos, a mulher guarani... tinha um cipó na mata que elas usava, mas agora ele não existe mais. E o contrário também. Quando a mulher guarani não queria ter filho, elas bebia uma garrafada [de ervas] que também tinha na mata.” (MARILZA, de nome indígena Keretxu-Endi, aldeia Guarani Piraquê-Açu).
Muitas mulheres relatam que engravidavam de dois em dois anos,
demonstrando que faziam, de uma forma muito particular, o seu planejamento
43
familiar. Hoje, a forma mais comum de controle de natalidade é o uso de pílula
anticoncepcional ou a laqueadura de trompas.
A forte crença religiosa guiada pela presença de Ñhanderu e Tupã47 orienta a
vida dessas populações. Entre os Guarani ainda estão presentes muitos rituais de
rezas, conduzidos pelos pajés, como um caminho para a cura de doenças e a geração
da saúde.
Em alguns rituais, fica difícil identificar se são próprios da tradição indígena
ou se são resultado do contato com práticas religiosas não indígenas. A prática do
benzimento é um deles.
“Eu aprendi com minha avó, minha bisavó, que benzia... Eu comecei a benzer com 12 anos. Eu tenho aquele dom, Daí eu comecei a benzê. Eu benzo gente aqui da aldeia, gente fora da aldeia. Eu já benzi gente até de Ibiraçu. Já veio gente de Vitória e eles ficaram bom. Quando eu rezo, eu rezo de noite, com o nome da pessoa. O chá depende pra quem é. Tem poucas ervas, porque muitas acabaram, porque a Aracruz derrubou muitas madeira forte que tinha, os remédios que tinha ela derrubou. Na mata é difícil achar erva, mas eu vou pela beira das casas... a gente acha ainda poucas, mas a gente consegue ainda capim-cidreira, macaé, cidreira, a pitanga, que também dá chá bom, a menina da banana prata, que serve pra diarréia...” (MARIA LOUREIRO, aldeia Tupiniquim Irajá).
Atualmente, as mulheres buscam desenvolver projetos de implantação de
hortas, comunitárias ou individuais, nas suas aldeias, com o intuito de produzir
alimentos e ervas medicinais. Elas têm consciência de que parte da matéria-prima
usada para seus remédios caseiros foi extinta, todavia o seu principal alvo constitui-
se naquelas que estão em processo de extinção. O desejo de retomada do território
embute a esperança de recuperação das matas e, com ela, de parte importante das
árvores e da vegetação que constituíam a base das práticas de saúde indígena e
quilombola.
Em especial, nas quatro últimas décadas, essas populações experimentaram
mais intensamente o significado da palavra doença. A saúde está vinculada à vida, à
natureza (aquela que guarda parte importante do conteúdo material e simbólico das
47 Nhanderu – Deus Guarani, Tupã – Deus Tupiniquim.
44
práticas culturais); já a doença articula-se à morte da natureza, à presença da
monocultura nos seus territórios. A vitória, na luta contra a monocultura, é a vitória
da vida sobre a morte.
3 IMPACTOS EM SÍNTESE
A invasão de territórios de populações locais pelo projeto agroindustrial da
Aracruz Celulose S.A., implantado nas décadas de 1960 e 1970, no Espírito Santo,
causou enormes perdas materiais e simbólicas para as populações indígenas e
quilombolas. Algumas perdas são irrecuperáveis. Impôs-se, a partir de então, uma
nova conformação territorial, que interferiu drasticamente na divisão sexual do
trabalho e, conseqüentemente, nos papéis sociais e familiares de homens e mulheres.
Grande parte dessas populações se dispersou. Uma parcela refugiou-se em
regiões do entorno do seu antigo território, outras buscaram um lugarzinho para
viver nas cidades da Região Metropolitana da Grande Vitória. Mulheres tiveram que
lidar com a dispersão de seus parentes. As famílias que conseguiram permanecer no
território espremeram-se em fragmentos de terra.
Nesse novo contexto, homens e mulheres experimentam impactos comuns e,
também, diferenciados. Com a perda do território, as mulheres perderam os seus
quintais, lugares para as hortas, para a criação de pequenos animais e para a
produção de ervas medicinais.
A substituição da mata pelo plantio de eucalipto levou à perda do alimento
outrora trazido pelos frutos, pela pesca e pela caça. O fim da floresta tropical
produziu, ainda, a extinção de rios e córregos, que eram os lugares de encontro das
mulheres e um espaço privilegiado de troca dos saberes femininos. Indígenas e
quilombolas tiveram que conviver com a contaminação do ambiente por
agroquímicos utilizados pela indústria da monocultura. O desaparecimento da mata
45
também provocou o fim da matéria-prima usada para a fabricação dos utensílios e do
artesanato, que, no caso indígena, constitui-se numa atividade desenvolvida
prioritariamente por mulheres.
A perda da biodiversidade significou a perda de uma grande quantidade de
medicamentos oriundos de plantas, raízes e animais da floresta; vetou às mulheres
indígenas guaranis, que antes faziam o uso de ervas para estimular e reduzir a
fertilidade, o direito ao seu planejamento familiar, deixando-as reféns de
contraceptivos e laqueaduras de trompas. Indígenas e quilombolas também já não
encontram mais os cipós, as árvores e as banhas de animais usados na prática da sua
medicina.
Sem os ecossistemas que garantiam a reprodução do modo de vida dessas
populações tradicionais, o papel masculino, dentro da família e da
comunidade/aldeia, foi esvaziado. Grandes caçadores, agricultores e pescadores
viram-se obrigados a vender a sua força de trabalho para empresas terceirizadas da
Aracruz Celulose, no caso quilombola, também para as empresas produtoras de
álcool, como a Destilaria Itaúnas S.A. (Disa). Mesmo assim, a maioria viu-se
desempregada, já que é política das empresas a não-contratação da mão-de-obra
indígena e quilombola, com o intuito de forçar, cada vez mais, a saída daqueles que
permaneceram na região. A fragilização do papel masculino sujeitou mulheres a
conviver com o alcoolismo dos seus parceiros e com a violência doméstica.
Algumas mulheres indígenas, portadoras de um rico conhecimento sobre a
fauna e a flora, foram transformadas em empregadas domésticas, diaristas, babás e
cozinheiras dos funcionários da Aracruz Celulose. A obrigatoriedade de
desempenhar essas novas tarefas afetou o exercício da maternidade, forçando-as a
parar de amamentar os seus filhos mais cedo e a deixá-los, ainda bebês, para cuidar
dos filhos de mulheres urbanas.
Diante das transformações vividas, essas populações construíram alianças com
movimentos e ONGs solidários à sua luta. Hoje, articulam-se em rede, buscando,
46
cada vez mais, aumentar a sua capacidade de resistência. As mulheres, que também
são protagonistas dessas lutas, iniciam um processo de organização em espaços
específicos, buscando discutir os impactos da monocultura de eucalipto que sobre
elas incidem e a maneira de contribuir para recompor o modo de vida do seu povo.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um dos sinais de vida que acompanham a trajetória dessas populações é a sua
capacidade de resistência. Articuladas a outros movimentos, como a Via Campesina
e a Rede Alerta Contra o Deserto Verde, são protagonistas do maior movimento
socioambiental do Espírito Santo, realizando inúmeras ações de enfrentamento ao
agronegócio da monocultura de eucalipto. Hoje, essas populações têm importantes
instrumentos de organização e contam com um apoio expressivo de movimentos
sociais e ONGs locais, nacionais e internacionais.
As mulheres, por sua vez, buscam assumir, cada vez mais, o seu lugar nesse
processo de luta. Quando “[...] o ambiente começar a doer nos seus filhos, muitas
mulheres atuarão”.48 Assim se escreve a história das mulheres indígenas e
quilombolas do Espírito Santo que, ao longo dos últimos 39 anos, vivem os impactos
da monocultura em larga escala, juntamente com as suas famílias e o seu povo,
indignando-se diante de tanta violência e opressão. São mulheres que, agora, por
escolha, ocupam o espaço público como portadoras dos clamores do seu povo.
O processo de organização das mulheres em espaços específicos é recente. No
caso das mulheres indígenas, por exemplo, há grupos organizados em cada aldeia
voltados à produção do artesanato e ao resgate dos saberes e uso das ervas
48 KAPLAN, Temma. Uncommon women and the common good: women and environmental protest. In: ROWBOTHAM, Sheila; LINKOGLE, Stephanie (Ed.). Women resist globalization: mobilizing for livelihood and rights. London: Zed Books, 2001, p. 28-42. p. 29.
47
medicinais. Algumas se encontram num processo de organização mais avançado,
outras estão ainda iniciando. Buscando reforçar o seu processo de organização, há
pouco mais de um ano criaram a Comissão de Mulheres Indígenas Tupiniquins e
Guaranis, que busca articular as mulheres indígenas de todas as aldeias e
desenvolver atividades e lutas do seu interesse. Observe-se que todo o movimento
organizativo protagonizado pelas mulheres tem estimulado o reconhecimento
público dos diversos trabalhos que realizam: na frente de batalha, buscando fazer a
autodemarcação do território; no enfrentamento à polícia na ocupação da fábrica da
Aracruz (ocorrida em 2005); na cozinha, preparando a comida para as grandes
assembléias indígenas. Dessa maneira, elas vêm, cada vez mais, ampliando os seus
espaços de socialização49 e procurando substituir, em parte, aqueles que lhes foram
arrancados. A organização tem contribuído também para aumentar a sua auto-
estima. São mulheres que se reconhecem indígenas e se sentem responsáveis em
partilhar com outras mulheres as suas conquistas.
As mulheres quilombolas, que são muito mais numerosas, também iniciam o
seu processo de organização. Há mulheres representando suas comunidades na
Comissão Quilombola do Sapê do Norte. Outras buscam articular grupos de base de
mulheres.50
Em agosto de 2007, no processo de ocupação de uma parcela do território da
Comunidade Quilombola de Linharinho, que se encontra sob o controle da empresa
Aracruz, as mulheres quilombolas marcaram presença de diferentes formas: na
condução política do movimento; na cozinha, preparando a alimentação dos
ocupantes; nas ações de protesto, quando divulgaram o Manifesto do Grupo de
49 Como resultado da presença política das mulheres indígenas e quilombolas nos fóruns específicos de mulheres, foi aprovada a moção de solidariedade aos povos indígenas do Espírito Santo na última Conferência Nacional de Políticas Para as Mulheres, ocorrida em Brasília. 50 Mais recentemente, no processo de ocupação de uma parcela do território que se encontra sob o controle da empresa Aracruz, em Linharinho, mulheres que freqüentam a Escolinha Quilombola – uma iniciativa da Fase – divulgaram o Manifesto do Grupo de Mulheres da Escola Quilombola, em agosto de 2007, expressando sua indignação pela lentidão do Governo Federal em reconhecer e demarcar os territórios quilombolas.
48
Mulheres da Escola Quilombola51 expressando a sua indignação com a lentidão do
Governo Federal em reconhecer e demarcar os territórios quilombolas.
Mulheres indígenas e quilombolas, que por tantas décadas partilharam dos
impactos da monocultura de eucalipto, buscam, agora, partilhar a sua experiência
organizativa, descobrindo juntas os caminhos da liberdade. Mulheres que estão cada
vez mais próximas e que se fortalecem mutuamente, lutando contra a opressão do
agronegócio e do patriarcado.
5 REFERÊNCIAS
AMATO, Fábio. Produção de álcool no Brasil. Folha de São Paulo, São Paulo, p. B5, 18 mar. 2007.
ASSOCIAÇÃO DOS GEÓGRAFOS DO BRASIL. Relatório de impactos da apropriação dos recursos hídricos pela Aracruz Celulose nas terras indígenas Guarani e Tupiniquim. Local: AGB, 2004.
CICCARONE, Celeste. Territórios quilombolas no Espírito Santo: a experiência do Sapê do Norte. Apresentação. In: CASTANHEDE FILHO, Andréa et al. O incra e os desafios para a regularização dos territórios quilombolas: algumas experiências. Brasiília: MDA/INCRA, 2006. p. 116-122. 51 A Escolinha Quilombola é uma iniciativa da Federação dos Órgãos de Assistência Social e Educacional do Espírito Santo.
49
FERREIRA, Simone R. B. Da fartura à escassez: a agroindústria de celulose e o fim dos territórios comunais no extremo norte do Espírito Santo. 2002. 217 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
KAPLAN, Temma. Uncommon women and the common good: women and environmental protest. In: ROWBOTHAM, Sheila; LINKOGLE, Stephanie (Ed.). Women resist globalization: mobilizing for livelihood and rights. London: Zed Books, 2001. p. 28-42.
LAGE, Nilson; CHERNIJ, Carlos. Filhos da pobreza/queda da natalidade x aumento da miséria. IstoÉ, São Paulo, 2003. Disponível em: <http://www.terra.com.br/istoe/1744/ciencia/1744_filhos_pobreza.htm >. Acesso em: 15 jun. 2006.
MORRE Ruschi, pesquisador dos pássaros. Folha de São Paulo On Line. São Paulo, 4 jun. 1986. Disponível em: <www.almanaque.folha.vol.com.br/cotidiano_041jun1986.htm-13k>. Acesso em: 5 jul. 2006.
MOVIMENTO DAS MULHERESC CAMPONESAS DO BRASIL. MMC e Via Campesina trancam portões de viveiros de eucalipto seguindo na discussão contra o Deserto Verde. Disponível em: <http://www.mmcbrasil.com.br>. Acesso em: 16 set. 2007.
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. A questão fundiária, entraves, desafios e perspectivas: A questão da propriedade da terra no Brasil. Palestra apresentada no Seminário da Terra. Promoção: Bancada Estadual do Partido dos Trabalhadores e MST/ES. Vitória, em 14 set. 2007.
OLIVEIRA, Osvaldo Martins de et al. Quilombo: autodefinição, memória e história. In: CASTANHEDE FILHO, Andréa et al. O incra e os desafios para a regularização dos territórios quilombolas: algumas experiências. Brasília: MDA/INCRA, 2006. p. 123-130.
PAREDES PIQUÉ, Susel. Invisibles entre sus árboles. Lima: Centro da Mulher Peruana Flora Tristán, 2005.
PLATAFORMA DEL ACCIÓN. Instituto del Tercer Mundo. Compromisos: resoluções aprobadas por la conferencia. Disponível em: <www. socwatch@socialwatch.org >. Acesso em: 2 set. 2007.
VIA CAMPESINA. O latifúndio dos eucaliptos: informações básicas sobre as monoculturas de árvores e as indústrias de papel. Porto Alegre, 2006.
________________________________________________________
50
Texto solicitado pelo WRM
Escrito por Gilsa Helena Barcellos e Simone Batista Ferreira com as
contribuições de
Ana Clemente (Conselho Estadual dos Direitos da Mulher)
Ana Lúcia da Conceição (Associação de Mulheres Unidas de
Cariacica Buscando Libertação)
Comissão de Mulheres Indígenas Tupiniquins e Guaranis/ES
Edna Calabrez Martins (Fórum de Mulheres do Espírito Santo)
Eva Maria Lima (Coordenação Nacional e Estadual/ES do MMC)
Geiza e Gildásio da Costa Paim (Movimento dos Trabalhadores
Rurais sem Terra/ES)
Marlene Jerônimo (Comunidade Quilombola de São Domingos)
Olindina Serafim Nascimento (Associação de Mulheres Negras de
São Mateus e Comissão Quilombola do Sapê do Norte)
Zélia Siqueira (Fotógrafa e membro do Sindicato dos Bancários do
Espírito Santo)
UFES – CCHN – DCSO
Sandro José da Silva
O Gasoduto Cacimbas/Catu e as comunidades quilombolas do Sapê do Norte
Análise, considerações e recomendações.
Relatório encaminhado à Comissão Quilombola do Sapê do Norte, à Coordenação Estadual dos Quilombos do Espírito santo “Zacimba Gaba” e a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas - CONAQ Quilombola em face da implantação do Gasoduto em terras Tradicionalmente ocupadas pelas comunidades quilombolas nos municípios de São Mateus e Conceição da Barra.
Vitória,setembro de 2008
2
-Você quer um 38 na sua cabeça?
- Oh, meu deus, nós dormindo, explode um negócio destes aí, nós vamos
morrer tudo dormindo!
- Nós vamos morrer de graça! Na mesma hora que nós estamos vivos, nós
estamos mortos!
(Depoimentos de quilombolas de São Jorge durante a entrevista sobre o
Gasoduto Cacimbas-Catu da Petrobrás)
- Atenção pais e responsáveis mantenham as crianças distantes das obras.
(Inscrição de banner da empreiteira da Petrobrás na igreja de São Jorge)
Os governos deverão zelar para que, sempre que for possível, sejam efetuados estudos junto aos povos interessados com o objetivo de se avaliar a incidência social, espiritual e cultural e sobre o meio ambiente que as atividades de desenvolvimento, previstas, possam ter sobre esses povos. Os resultados desses estudos deverão ser considerados como critérios fundamentais para a execução das atividades mencionadas.
(Convenção 169, artigo 7º, item 3)
3
Sumário
Apresentação 4Correspondência 5Introdução 8Territórios quilombolas ameaçados pelo Gasoduto Cacimbas-Catu 11Fotografias e entrevistas da visita a Comunidade de São Jorge. 25Formas de territorialização na comunidade quilombola de São Jorge 35O processo de licenciamento do Gasoduto Cacimbas-Catu e a
legislação quilombola.40
A Licença Prévia 47A convenção 169 e os direitos dos quilombolas 53Considerações e Recomendações 66Anexo com matérias de imprensa 69
4
ApresentaçãoEm resposta ao ofício do dia 10 de junho de 2008 enviado pela Comissão
Quilombola do Sapê do Norte, segue um relatório que avalia a situação da
implantação do gasoduto Cacimbas /Catu de responsabilidade da Petrobras no
território quilombola do Sapê do Norte.
Este relatório consiste, a partir da solicitação de suas organizações formais, em
uma avaliação dos procedimentos de licenciamento e implantação do gasoduto
Cacimbas/Catu em relação às comunidades quilombolas do Sapê do Norte.
Avaliam-se aqui a situação dos quilombolas na relação com o empreendimento
do gasoduto Cacimbas-Catu, destacando que a legislação tanto no que se
refere ao licenciamento ambiental, quanto aos direitos previstos na legislação
específica não obedecem ao previsto sobre populações quilombolas.
Este estudo avalia a implementação do Gasoduto a partir dos anseios diretos
das comunidades quilombolas atingidas pelo empreendimento, seu medo de
morrer e a insegurança com relação a direitos fundamentais como ir e vir e a
segurança alimentar e garantia de reprodução física e cultural das gerações
atuais e futuras, dada a restrição no perímetro do gasoduto. O objetivo é fazer
uma avaliação da relação entre o licenciamento do empreendimento e destacar
que ele fere diretamente princípios básicos dos direitos étnicos das populações
quilombolas. Concluí-se que o Licenciamento Prévio do gasoduto Cacimbas-
Catu foi obtido omitindo-se as comunidades quilombolas e as formas de
produção, consumo e expressões cultural que constituem suas formas de
territorialização.
5
CorrespondênciaCarta da Comissão Quilombola solicitando parecer sobre Gasoduto Cacimbas-
Catu.
Sandro José da Silva
Departamento de Ciências Sociais - UFES
São Mateus, 10 de junho de 2008
Prezado Senhor,
Conforme é do vosso conhecimento está sendo implantado o gasoduto Catu -
Linhares, que liga o estado do ES a BA. Ocorre que o mesmo atravessará todo
o território quilombola do Sapê do Norte, compreendendo os municípios de São
Mateus e Conceição da Barra. Um empreendimento desse porte requer que
alguns procedimentos administrativos e jurídicos sejam respeitados,no entanto
já estão na fase das obras de escavação e até o momento não tomamos
conhecimento da realização de nenhuma consulta pública para tal
considerando que parte das comunidades impactadas são comunidades
quilombolas nos reservamos o direito de sermos consultados conforme rege a
convenção 169 da OTI. Dentre as comunidades impactadas a Comunidade
quilombola de São Jorge sofrerá os maiores danos, sendo que as escavações
estão sendo feitas no meio das casas atravessando a igreja local.
Considerando que este território encontra-se em fase de regularização
fundiária e que o senhor realizou o relatório antropológico da área vimos por
meio deste solicitar que realize e nos forneça um levantamento sobre a
situação da implantação do gasoduto nas áreas quilombolas.
Atenciosamente.
-------------------------------------------------------
Comissão Quilombola do Sapê do Norte
6
Carta solicitando informações sobre as audiências para estudo do Gasoduto
Cacimbas-Catu.
de sandro silva <saandro@gmail.com>
para comissão quilombola quilombola <comissaoquilombola@yahoo.com.br>
cco Jô Brandão <jobrandao.ma@gmail.com>,
quilombo linharinho <quilombolinharinho@gmail.com>,
Arilson Ventura <arilsonventura@yahoo.com.br>
data 18 de julho de 2008 11:27
assunto informações sobre a consulta do gasoduto
enviado por gmail.com
Prezada Kátia,Estou preocupado porque a Petrobras está enterrando os tubos e preciso de algumas informações para dar um parecer sobre a situação do gasoduto no Sapê do Norte.Já li o RIMA e os relatórios do Antropólogo que esteve no Sapê do Norte e preciso saber como foi a consulta feita pela empreiteira à vocês.Me responda:1. Houve alguma convocatória por escrito à comissão quilombola por parte da Petrobras ou empreiteira sobre o Gasoduto?2. Houve alguma manifestação da Fundação Palmares à comissão quilombola sobre o Gasoduto?3. Houve alguma reunião com o Ministério Público com a comissão quilombola sobre o Gasoduto?4. Se alguém acompanhou os técnicos nas comunidades, quem e como se deu este acompanhamento?5. A Comissão Quilombola está sendo informada por escrito sobre o cronograma e as ações da Petrobras ou empreiteira no Sapê do Norte?
Estas informações são importantes porque elas avalizam ou não a licença concedida pelo IBAMA em 2006.Esta é uma peça fundamental para qualquer posicionamento da comissão quilombola sobre o Gasoduto.aguardo seu retorno.atenciosamente,Sandro José da Silva
7
Carta da Comissão Quilombola a respeito do estudo do Gasoduto Cacimbas-
Catu.
de comissão quilombola quilombola <comissaoquilombola@yahoo.com.br>
responder a comissaoquilombola@yahoo.com.br
para sandro silva <saandro@gmail.com>
data 23 de julho de 2008 14:43
assunto Re: informações sobre a consulta do gasoduto
assinado por yahoo.com.br
Responder
Prezado sandro a luta continua.
desculpas so pude esta na lam hause hoje .
Vou responder em cima daquelas perguntas.
1- Nao houve convocatória por parte da Petrobras , a comissão quilombola e
nem as comunidades.
2 A fundação cultural palmares também , não nos informou sobre o gásoduto,
em nenhum momento fomos avisado sobre a questao.
3 - com relação ao MPF, no dia 03 de julho a comissão reuniu com dr Júlio
castilho , e colocamos a situação a ele,mas em nenhum momento na gestao
dos outros que esteve no cargo do mpf ,nao houve procura, .
4- no dia 03 de abril nos da comissao marcamos uma reunaio ,mas nao estive
presente, essa reunaio acontceu em sao jorge, quem acompanhou foi
domingas , e no dia 24 de maio eu fui ate a comunidade estiva, o que pude
obsevar e que a impresa, vai ate a comunidade falar sobre os risco , para que
as familias nem crianças e animais chegue perto da obra , so isso
5 - ate agora acomissao nao foi notificada com nada escrito , e nem nos
procurou para conversar.
Bom amigo e isso , estou correndo porque estou em lam hause
Abraço
8
Introdução
As comunidades quilombolas no Espírito SantoVários estudos demonstram a presença de comunidades quilombolas na região
denominada localmente como Sapê do Norte (compreendendo os municípios
de São Mateus e Conceição da Barra – ES). Estas comunidades se formaram
a partir do processo de resistência ao trabalho escravo e se constituíram em
inúmeras formas de ocupação do espaço e diferenciação cultural. A
especificidade da ocupação do espaço é caracterizado por processos
diferenciados de territorialização e usos dos recursos naturais. Assim, em
termo das formas de organização produtiva é possível observar um gradiente
que preenche formas de produção de subsistência conjugadas com
participação intensa nos mercados locais.
O Norte do Espírito Santo (especialmente São Mateus, e Conceição da Barra)
caracteriza a ocorrência do movimento de resistência a opressão por parte dos
escravos e escravos libertos, alforriados e finalmente livres em São Mateus.
Embora a ênfase destes estudos aponte a fuga como elemento central na
configuração das Comunidades de Quilombo, a compra de terras caracterizou
as atividades de ocupação de algumas famílias na região. Assim, existem
várias configurações de ocupação territorial das comunidades de quilombos no
Sapê do Norte que recentemente estão sendo estudadas pelo INCRA para o
processo de Identificação e titulação destas terras tradicionalmente ocupadas.
A região do Sapê do Norte se caracteriza pela relação entre sociedade e meio
ambiente que pode ser traduzida por formas tradicionais de ocupação,
resistência étnica, trato com a terra, ciclos festivos, organização religiosa,
trabalho, transmissão de bens e prerrogativas territoriais e formas especificas
de herança da terra. Como um território étnico – confluência entre ocupação
histórica ligada a escravidão e a formação de uma identidade quilombola -, o
Sapê do Norte engloba os municípios de São Mateus e Conceição da Barra,
recriando o espaço a partir de uma lógica fundada nas comunidades e seu
modo de vida específico.
O artigo 68 da CF abriu um novo horizonte para as comunidades de quilombo
ao estabelecer posteriormente por meio de decreto a necessidade de restituir
9
os territórios tradicionalmente ocupados pelas comunidades e assegurar a sua
titulação definitiva como território de uso comum.
O movimento social organizado da resistência negra passou a reverter o
quadro de invisibilidade em que se achavam as comunidades negras rurais e
um intenso processo de debates a respeitos dos direitos étnicos destas
populações passou a figurar no cenário constitucional brasileiro. O relatório que
ora se apresenta procura situar as comunidades quilombolas diante de um
empreendimento do estatal que fere o disposto em diversos estatutos jurídicos
relativo às comunidades quilombolas. Estas violações estão no nível dos
Direitos Humanos, tais como o direito à saúde, a integridade física e moral das
gerações presentes e futuras e representa uma ameaça real, como será visto,
à continuidade das comunidades quilombolas face ao empreendimento.
O Art. 4º do Decreto 4887 afirma que “Consideram-se terras ocupadas por
remanescentes das comunidades de quilombos toda a terra utilizada para a
garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural, bem como as
áreas detentoras de recursos ambientais necessários à preservação dos seus
costumes, tradições, cultura e lazer, englobando os espaços de moradia e,
inclusive, os espaços destinados aos cultos religiosos e os sítios que
contenham reminiscências históricas dos antigos quilombos.”
Nas Comunidades de Quilombos existem múltiplas formas dos quilombolas se
referirem ao espaço. Uso, posse, propriedade e território são apenas algumas
destas possibilidades que certamente ressemantizaram noções jurídicas. As
“terras de uso comum”1, por exemplo, compreendem “(...) uma constelação de
situações de apropriação de recursos naturais (solos, água e floresta),
utilizando-os segundo uma diversidade de formas e com inúmeras
combinações diferenciadas entre o ‘uso privado’ e o ‘comum’, perpassadas por
fatores étnicos, de parentesco e sucessão, por fatores históricos, político-
organizativos e econômicos, consoante as práticas e representações próprias”
(Almeida, 2000; 164)
A produção da farinha, as qualidades de mandioca plantadas, a observação
dos ciclos naturais, as novas formas de organização étnica e política
1 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Os quilombos e as novas etnias. Revista Palmares. N5. 2000.
10
constituem um campo de saberes práticos e simbólicos permeados de vigor
criativo.
A percepção e construção do território incorpora o espaço físico em que vivem
os moradores bem como as formas de uso simbólico. O espaço necessário à
manutenção e reprodução da vida depende dos espaços da ex-tração, da
pesca, das reservas de lenha, matas, roçados em descanso, espaços para a
religiosidade, laser mobilidade social, dentre outros.
O território representa também a possibilidade de construir novas formas de
reproduzir os grupos sociais via resistência política coletiva e individual; o
território se converte numa narrativa política dos grupos sociais porque sintetiza
a diversidade de experiências vividas reunidas em torno da experiência com a
terra.
As narrativas locais das Comunidades de Quilombos se utilizam amplamente
dos relatos que associam toponímicas específicas referenciadas a situações
festivas, matrimoniais, reuniões de amigos, morte de parentes, espaços de
perambulação e etc., com o intuito de dar vida ao espaço físico, de romper com
o espaço da escassez, de ampliar os contatos, de “estudar” os filhos e de ter
uma vida melhor.
11
Territórios quilombolas ameaçados pelo Gasoduto Cacimbas-Catu*
Existem aos territórios quilombolas no Sapê do Norte três Relatórios Técnicos
de Identificação e Delimitação publicados pelo INCRA e mais um em fase de
trâmite administrativo para publicação. Todos tratam das comunidades
quilombolas do Sapê do Norte, área de influência direta que o Gasoduto
Cacimbas-Catu está atingindo. Nos relatórios publicados é possível observar a
relação dos quilombolas com o território a partir da apropriação de recursos
naturais e relações simbólicas como festas, calendário religioso e festivo.
Um dos relatórios é especialmente sobre a comunidade de São Jorge,
drasticamente atingida pelo Gasoduto cacimbas-Catu. Esta comunidade é
constituída por vários núcleos residenciais que tem na agricultura e no
extrativismo um elemento central no seu modo de vida. O EIA produzido a
respeito das comunidades tradicionais – especialmente sobre as comunidades
quilombolas menciona apenas a existência destas comunidades induzindo à
caracterização destas comunidades como entes isolados, quando, na verdade
tratam-se de redes de parentesco e amizade voltados para a organização
social e do trabalho. (ver anexo fotográfico da comunidade de São Jorge)
Num exemplo mais grave, o Gasoduto Cacimbas-Catu tem seu traçado a
poucos metros de um núcleo residencial fundamental para a reprodução social
e cultura das comunidades quilombolas de São Jorge (ver anexo fotográfico). A
Igreja de São Jorge é, historicamente, um espaço para realização de reuniões
religiosas, espaço de batizados e reuniões políticas da comunidade (ver anexo
fotográfico).
Há poucos metros da igreja, a escola multi-serial abriga alunos de todas as
localidades que compõe o território quilombola de São Jorge, gerando
apreensão dos moradores quanto á segurança de seus filhos. (ver anexo
fotográfico)
O uso dos recursos naturais como a pesca, caça e extração de fibras para
artesanato é recorrente na organização econômica dos quilombolas, mesmo
com a precarização dos últimos quarenta anos de mono cultivo de eucalipto.
Uma alteração, por mínima que seja, nos atuais territórios que os quilombolas
* A obra citada faz parte dos investimentos do governo federal para o programa de aceleração do crescimento -PAC.
12
ainda mantém acarretam, sem dúvida, uma desorganização nas relações
sociais, bem como elimina as perspectivas de garantia dos direitos aos
territórios tradicionalmente ocupados ora em discussão jurídica pelo Estado.
Além da desorganização das relações produtivas ainda restantes após o
desastre do eucalipto, a insegurança e a violação de um sem número de
direitos constitucionais e internacionais torna as comunidades quilombolas do
Sapê do Norte alvo do racismo institucional que, a despeito dos projetos de
desenvolvimento nacional, eliminam a diversidade cultural e social dos grupos
já discriminados historicamente com a escravidão negra.
Em face da implementação do Gasoduto Cacimbas-Catu a desconsideração
das formas tradicionais de ocupação tem um peso ainda maior porque o RIMA,
não observa as indicações técnicas feitas pelo antropólogo José Augusto
Laranjeiras Sampaio em seu quesito do EIA a propósito das formas de
organização e territorialidade das comunidades quilombolas no Sapê do Norte.
Afirma ele no relatório encaminhado ao contratante:
“3.3.3.1. Diagnóstico Complementar: Populações Tradicionais (Terras de
Quilombos) (...)No município de São Mateus, a diretriz atravessa, sempre entre
eucaliptais, três grandes conglomerados de comunidades de quilombos, como
visto no EIA. Interessam-nos especificamente aqui nesta complementação os
dois últimos: "O segundo conglomerado está situado na área em que a diretriz
cruza o traçado da BR-101 e teria como referência central a localidade de
Divino Espírito Santo, no vale do Rio Preto e próximo à própria rodovia. Incluiria
ainda outras localidades ao longo do rio Preto e do córrego Grande; Tiqüera,
Santa Rita, Estiva etc.”.
"Por fim, o terceiro e mais importante conglomerado de comunidades de
quilombos, historicamente conhecido como Sapé do Norte, tem início -
seguindo o sentido Sul-Norte da diretriz - no curso do rio Cricaré, sobretudo à
sua margem esquerda, com povoações distribuídas ao longo do traçado da
rodovia ES-315 (São Mateus - Boa Esperança), desde as proximidades do seu
início na BR-101 (Km 60, no bairro Litorâneo) até os limites do município de
São Mateus com o de Boa Esperança, mais de trinta quilômetros adiante."
"Fazem parte desse conglomerado as localidades de São Jorge, Morro da
Arara, Nova Vista, Dilô Barbosa, Chiado e São Domingos; (...)" O traçado
13
estudado cruzava aqui o eixo da ES-315 à altura do seu Km 18, entre os
centros das comunidades de Morro da Arara e Nova Vista.
"No sentido norte, o território de Sapé do Norte se estende pelo município de
Conceição da Barra, com diversas comunidades distribuídas ao longo dos
cursos dos riachos Santana, São Domingos, Macuco e Angelim, dentre outros,
cortados, em suas cabeceiras e, portanto, nos limites ocidentais desse
território, pela diretriz do gasoduto." "Estas comunidades todas têm, o seu
território tradicional muito fortemente intrusado, hoje, pelos plantios das agro-
indústrias de celulose e de álcool; e a comunidade do Angelim está entre as
recentemente registradas como "remanescente de quilombo" pela Fundação
Cultural Palmares (Portaria FCP 35, de 06/12/2004)”.(EIA REVISÃO
CACIMBAS – CATU/REV. 02/MARÇO/2006 p.293-4)
Ou seja, o relatório não apenas indica a presença das comunidades
quilombolas, mas destaca que o Estado reconhece através das certidões da
Fundação Cultural palmares, a existência destas comunidades. O
licenciamento das obras do Gasoduto Cacimbas-Catu não reconhece as
comunidades quilombolas e suas formas tradicionais de ocupação o que fica
evidenciado pela violação do estabelecido pela licença Prévia 243 de 2006
expedia pelo IBAMA (ver uma análise abaixo no item O processo de
licenciamento do Gasoduto Cacimbas-Catu e a legislação quilombola.)
Embora o RIMA do Gasoduto Cacimbas-Catu aponte que “No desenvolvimento
dos estudos das alternativas de traçado, foi adotado primeiramente o critério
para a escolha da melhor alternativa, priorizando a que menos impacta o meio
ambiente, seguido do critério social, econômico e técnico, até obtenção da
diretriz principal de traçado, que após este estudo ambiental poderá, se
necessário passar por um processo de microlocalização.” No entanto, a
redação final do RIMA omite a existência dos territórios quilombolas como
“critério social” e das formas tradicionais de ocupação indicando sumariamente
a existência de comunidades quilombolas e não os territórios que configuram a
ocupação especial destas comunidades. Segundo o RIMA:
“No que diz respeito aos municípios abrangidos pelas áreas de influência direta
e indireta do Gasoduto Cacimbas-Catu, os levantamentos indicam que existem
diversos remanescentes de comunidades de quilombos.” (EIA
14
CARACTERIZAÇÃO DO EMPREENDIMENTO CACIMBAS – CATU/VER.
01/JANEIRO/2005)
O RIMA também desconhece as reclamações das comunidades quilombolas
bem como não faz um relato da percepção destas populações em relação ao
Gasoduto, desrespeitando a Licença Prévia e os condicionantes da instalação.
Segundo a redação do EIA:
“A principal reclamação de grande parte dos moradores entrevistados é em
relação à diminuição da oferta de trabalho e/ou emprego. A chegada do
eucalipto não é identificada como causa, mas como fator de acirramento do
desemprego na área rural e conseqüente intensificação da migração dessa
população para as cidades próximas em busca de trabalho.
Um indicador do aumento da pobreza no campo e do abandono da área rural
pode ser o inchaço das cidades, que não tem infra-estrutura para receber esta
população rural. Como exemplo, podemos referir ao aumento das franjas
urbanas, extremamente pobres, com uma população que vive sob péssimas
condições de vida, revelando a precariedade dessa situação. Durante o
trabalho de campo, constatou-se também a existência de casas desocupadas
ou abandonadas, revelando a migração de pessoas do campo para as cidades.
Enquanto Degredo, Barra Seca e Urussuquara estão localizadas nos
municípios de Linhares e São Mateus, no Espírito Santo, as outras
comunidades identificadas encontram-se no Estado da Bahia, assim divididas:
comunidades de Itabuna, Teolândia e Ilhéus na região do Litoral Sul;
comunidades de Alcobaça e Mucuri na região do Extremo Sul; e comunidades
de Cachoeira e Santo Amaro na região do Recôncavo Sul.”(EIA REVISÃO
CACIMBAS – CATU/REV. 02/MARÇO/2006)
Ou seja, embora o relatório antropológico indique a existência de um histórico
de violação dos Direitos Humanos por parte no monocultivo de eucalipto que
resultou numa visão negativa de empreendimentos econômicos, o RIMA opta
por não ouvir estas comunidades e concentra sua atenção em grupos fora do
Sapê do Norte como Degredo, Barra Seca e Urussuquara, localizadas no
município de Linhares. No RIMA não há a opinião dos quilombolas sobre o
empreendimento e sua implementação como é possível destacar na
correspondência com a Comissão Quilombola no início deste relatório.
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Vale ressaltar, que o estado brasileiro em sendo signatário da convenção 169
da OIT que estabelece:
Artigo 6º
1. Ao aplicar às disposições da presente Convenção, os governos deverão:
a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;
B) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os níveis, na adoção de decisões em instituições efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas e programas que lhes sejam concernentes;
tem a obrigação, de estabelecer um processo de consulta as populações
quilombolas existentes no território atingido pela obra. A mesma faz parte de
um programa governamental - Programa de Aceleração do Crescimento-PAC
e deve ser regido por legislações relativas ao impacto ambiental, como também
atentar para a preservação do patrimônio cultural passível de ser atingido pela
obra .
Quanto a “percepção” da implementação de um gasoduto o RIMA indica que
“Nos trechos sem existência de duto, os entrevistados, na sua maioria,
desconhecem o que seria um gasoduto. Por outro lado, é comum nos
municípios situados na região capixaba a presença de poços de petróleo,
movimentação de caminhões e funcionários da PETROBRAS. Desse modo,
constatou-se que a instalação de um gasoduto parece ser vista pelos
moradores como mais uma obra na região, integrando-se a uma realidade
onde a presença de indústrias do petróleo parece estar incorporada ao
cotidiano desses moradores.” (Idem,Idem)
Ora, “incorporada ao cotidiano desses moradores” não quer dizer “aceito por
eles”. A palavra “incorporada” utilizada no RIMA induz a um erro de
interpretação com sérios danos às comunidades Quilombolas porque presume
uma equivalência entre ocupação urbana – as periferias desestruturadas pelo
agronegócio - e rural – atualmente em amplo debate sobre as ocupações
tradicionais, as terras de quilombos e as diferentes territorialidades dos povos e
16
comunidades tradicionais, das quais se destaca aqui as mais de 36
comunidades quilombolas da região.
Não levar em conta a experiência histórica das comunidades quilombolas e as
formas de resistência ao monocultivo do eucalipto como uma das questões a
serem observadas na implementação do gasoduto Cacimbas-Catu é um
equívoco, pois em se tratando das inúmeras violações dos direitos humanos
das comunidades quilombolas, o empreendimento vem somar-se à forma
desumana e racista que as ações empresariais na região impuseram até o
momento.
A título de exemplificação podemos citar o emblemático descaso dos poderes
públicos com as famílias de São Jorge. Dona Estela, moradora de São Jorge,
perdeu um filho e um irmão por envenenamento. Segundo ela os meninos
haviam comido castanhas contaminadas pelo veneno que era borrifado pela
Aracruz Celulose. Os médicos se recusaram a dar o laudo da morte como
envenenamento e, no caso do irmão, atestaram que ele morrera devido ao
alcoolismo. Ela lembra com desespero a ausência dos meninos
Sabe o que eles estão fazendo? Eles estão comendo o dinheiro
nosso! Estão comendo o nosso dinheiro! Eu estou dando entrada [na
justiça] a toa. A toa! Já pegaram o laudo do meu menino de novo.
Você sabe quantos meses nós ficamos aqui desde que o menino
morreu? Eles [Aracruz Celulose] queriam tirar nós daqui! Só não fui
por causa dela aqui (a mãe, Maria Euzébio) (...) eles queria jogar nós
para lá. Eu disse “eu não vou”! “Porque é causa de morte, eu não
vou porque isso é causa de todo mundo”. A Aracruz é o bicho! É o
bicho! É o capeta! Nunca vi uma firma desgraçada que nem esse
satanás que está aí, ó! Esta peste que está aí, ó! Ela é miserável, ela
é miserável. (Estela, São Jorge, 2005)
Em São Jorge a relação entre doença e as condições sociais é um dos
aspectos fundamentais para compreendermos a noção corrente de
Imprensamento. A “pressão alta” reclamada pelas mulheres não se resumia
aos aspectos biológicos, mas estavam relacionados a uma classificação
complexa que reúne condições ambientais, sociais e sintomáticas. A situação
histórica do Imprensamento – monocultivo, ruralistas violentos e falta de
17
políticas públicas básicas - estava sendo incorporada às formas pelas quais os
moradores de São Jorge relacionam saúde e doença. Agora, o gasoduto
Cacimbas-Catu mostra-se como mais uma forma de violar as condições de
existência porque sua implantação ignora a vida destas pessoas, seus anseios
e expectativas de futuro.
Na mesma direção, considerar em termos das formas simbólicas locais as
referências a posse, uso e propriedade permitiriam ao RIMA do gasoduto
Cacimbas-Catu uma análise detalhada da organização social e do lugar que a
terra tem nas representações sociais das Comunidades de Quilombos do Sapê
do Norte. Os arranjos matrimoniais, as formas de aliança, os deslocamentos,
as migrações sazonais representam formas históricas de acesso à terra e às
condições sociais que ela propicia. Nas Comunidades de Quilombos não se
compreende as formas de acesso à terra sem levar em consideração as
dinâmicas que cada grupo definiu em situações específicas ligadas a
economia, ao trabalho, ao casamento, à geração e ao gênero.
Oliveira Filho (1998), indica que a “noção de territorialização é definida como
um processo de reorganização social que implica: 1) a criação de uma nova
unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica
diferenciadora; 2) a constituição de mecanismos políticos especializados; 3) a
redefinição do controle social sobre os recursos ambientais; 4) a reelaboração
da cultura e da relação com o passado”.
Como podemos constatar em visita a comunidade de São Jorge, Córrego de
Santana e São Domingos, o Gasoduto Cacimbas-Catu representa mais um
elemento de desorganização das comunidades quilombolas porque atinge as
formas de territorialização ligadas à religião, à agricultura e às expressões
culturais. O Gasoduto Cacimbas-Catu representa a eliminação definitiva das
comunidades quilombolas afetadas uma vez que reduz drasticamente o
horizonte de direitos, bem com as formas de reprodução social e econômica
destas comunidades garantidas pela Constituição Federal e pela legislação
especial para Povos e Comunidades Tradicionais.
Como exemplo SILVA (2007) destaca que “Ao observar as inúmeras
referências ao trabalho na roça, os moradores associam os períodos de plantio
aos de festa. O “Forró”, como denominam, fazia parte das prerrogativas dos
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“ajuntamentos” para a derrubada, plantio e a colheita. O processo que
culminava com o “erguimento” de uma roça dava-se pela partilha do trabalho
entre parceiros, e parentes de uma determinada localidade.
Na ocasião de um ajuntamento o trabalho, elemento de produtividade de
identidades e meio de subsistência, era coroado pela oferta de alimento e
música. As narrativas fazem referência ao momento em que o almoço era uma
grande festa de confraternização com porco, galinha, farinha, dentre outros,
que formava a mesa para os “convidados”.
O final do dia era esperado ansiosamente pelos parceiros que “caiam no forró”.
Essa lembrança da relação entre trabalho e rito de fertilidade, leva os
moradores mais velhos a se referirem a festa com espaço de alegria e respeito.
Neste sentido, o estudo clássico de Cândido (1979) demonstra que a relação
entre trabalho e as condições de reprodução da terra são fundamentais em
vários sentidos da organização social.
O trabalho evoca um mundo ideal de relações sociais, formas produtivas,
formas de ocupar o espaço, uma imagem ideal da sociedade, das relações
entre as pessoas, gerações, gêneros que se traduz no mundo da festa. Desta
forma, “abundância, solidariedade e sabedoria” sãos os tópicos por meio dos
quais podemos compreender a evocação da festa associada ao calendário
produtivo e a abundância. (CANDIDO, 1979: 194)
O momento da festa era, em termos, simbólicos, o ritual que conferia
visibilidade a empreitada do “dono” da roça. Por meio da festa, evocava-se um
sanfoneiro conhecido, um tirador de versos para animar a festa e certificava-se
publicamente do sucesso do dia de trabalho. A festa evocava, desta maneira, o
compromisso com a reciprocidade, ligando os parceiros numa rede de
prestações e contraprestações ao mesmo tempo em que permitia uma
gramática social que envolvesse trabalho, moralidade e território.
Nas Comunidades de Quilombos a festa é ao mesmo tempo rito, pois evoca
uma arquitetura relacionada ao tempo e ao espaço, é mito, porque evoca um
tempo de fartura de terras, alimentos e sociabilidades, é identidade, pois evoca
um modelo de sociedade baseada nas relações sociais e é uma forma de
economia moral, pois faz a mediação entre posses, usos, reprodução da
sociedade e grupos sociais.”
19
O RIMA Cacimbas-Catu desconsidera este universo e acrescenta mais um
elemento de preocupação dos quilombolas ao seu destino social, econômico e
cultural. Quando se referem ao tempo e ao espaço contemporaneamente os
moradores de das Comunidades de Quilombos se vêem “imprensados”. Esta
categoria é elaborada a partir da experiência social, ambiental e histórica para
responder aos sucessivos avanços do monocultivo de eucalipto, cana e agora
petróleo e gás. Estar imprensado não se resume a não ter terras para cultivar e
exercer os diferentes usos sobre o território. Estar imprensado é estar impedido
de exercer formas culturais específicas e fazer com que o cotidiano e as
práticas rituais percorram caminhos silenciosos, atenuados e invisíveis de sua
realização. Estar imprensado é recusar a cena pública, omitir o confronto,
silenciar e seguir. A situação de imprensamento é uma “situação total” que
aniquila a dignidade humana, as possibilidades de uma vida tranqüila, de
criação de filhos e netos, de autonomia, de subtração da saúde física e mental,
do escasseamento das possibilidades de reprodução da vida social, do grupo,
da família e dos valores pessoais.
Na situação de imprensamento as identidades têm que ser reconstruídas
cotidianamente sob a lógica do poder econômico que não recusa uma
perspectiva de futuro. Estar imprensado é renegociar sua posição no grupo
social o tempo todo de forma a garantir a existência da família.
Na situação de imprensamento a diversidade cultural sociais, tão importantes
para a vida social, fica reduzida à condição de trabalhador assalariado, de
“facheiro”, de diarista, trabalhador quase compulsório. As identidades
masculinas e femininas desaparecem sob a monotonia da busca por dinheiro.
As artes do fazer e pensar, próprias do patrimônio histórico destas populações,
ficam ocultadas pela faina do ganho. Imprensados as comunidades
“esquecem” suas origens históricas e o passado passa a envergonhar seja pela
recusa do passado espoliado seja pelas condições adversas em que se deram
a perda das terras em que nasceram e foram criados.
Estar imprensado é estar excluído das possibilidades de reprodução social da
terra no interior do processo que levou ao monocultivo e a fruticultura. Os
moradores das Comunidades de Quilombos percebem-se na periferia de um
território que já lhes foi bastante familiar e próximo. Esta ambigüidade: estar
“fora” estando “dentro” é uma das contradições que geram a situação de
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imprensamento. O território possível das Comunidades de Quilombos passa a
ser a periferia do que antes era parte fundamental de seu modo de via.
Ao desconsiderar as comunidades quilombolas o RIMA Cacimbas-Catu
reproduz um erro historio e incorre no racismo ambiental que atinge as
populações da região há décadas, pois expropria os territórios necessárias á
reprodução física e cultural ao mesmo tempo que ameaça o pouco que resta
de dignidade nestas comunidades.
O relatório antropológico do EIA apresenta um quadro deste “racismo
ambiental” e de como a implementação do Gasoduto pode agravar a situação.
Diz o relatório do antropólogo José Augusto Laranjeiras Sampaio:
“Agregue-se a isto o fato de que essas áreas ainda não estão formalmente
regularizadas em conformidade com o Artigo 68º do ADCT e com o ainda
recente Decreto 4887/03.
Sendo, porém, tal regularização responsabilidade do Estado Nacional para com
essas comunidades, os direitos a ela referidos não deixam de estar postos
anteriormente à sua efetivação formal, o que inclui eventuais medidas de
mitigação dos impactos por empreendimentos nesses territórios.
Com relação a tais processos de regularização, vale informar que: 1.
Contemporaneamente a realização do presente estudo complementar,
realizam-se também, pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária), os estudos de campo para regularização de terras quilombolas na
área de Sapé do Norte.
2. As comunidades situadas ao longo do vale do Córrego do Angelim,
correspondente à porção mais setentrional das ocupações quilombolas atuais
em Sapé do Norte, têm já um estudo de identificação e delimitação territorial,
promovido pela Fundação Cultural Palmares (FCP) em 2003, e que deverão
subsidiar os trabalhos finais de regularização, agora a cargo do Incra (a partir
da edição do Decreto 4887/03).
3. A comunidade do Divino Espírito Santo, no território quilombola ao sul do
Cricaré, conta já com os estudos antropológicos que deverão subsidiar o seu
processo de regularização territorial (Oliveira, 2002), mas que não abrangem
plenamente, contudo, todas as comunidades quilombolas nesse território, e
que incluiriam, segundo indicação desses mesmos estudos, pelo menos
também as de Tiqüera (Bom Pastor), Santa Rita e Córrego da Estiva.”
21
Embora tenha alertado para esta configuração das comunidades quilombolas e
o estágio de reconhecimento dos direitos étnicos que constam na Constituição
Federal e no decreto presidencial 4887/2003, não houve nenhuma
incorporação destas informações no RIMA Cacimbas-Catu.
O EIA alerta para o fato de que as comunidades não devem ser tratadas como
“pontos em um mapa”, mas como territórios étnicos, marcados por relações de
parentesco, economia, religião. Ao traçar o perfil das comunidades atingidas
pelo gasoduto Cacimbas-Catu o EIA caracteriza da seguinte maneira os
recursos naturais e culturais das comunidades:
“1. Território quilombola ao Sul do Cricaré: Pode-se identificar 'grosso modo'
(em função de que não há demarcação das áreas), que, no sentido Sul-Norte,
a diretriz intercepta esse território ao cruzar o Rio Preto, ainda a leste da
BR-101, e que o deixa ao abandonar o vale do Córrego da Estiva, já próximo à
periferia da cidade de São Mateus e ao traçado da BR-381.
Neste percurso, intercepta oito áreas de várzea com presença de ocupações
ou de recursos naturais explorados por população quilombola, a saber, ainda
em sentido Sul-Norte: a. Rio Preto B. Córrego Grande c. Braço do Córrego do
Cedro d. Córrego do Cedro e. Córrego Rancho de Telha f. Riacho dos Cavalos
g. Braço do Riacho dos Cavalos h. Córrego da Estiva Destes, se pode
identificar a presença de ocupações agrícolas de quilombolas próximas ao
traçado da diretriz em "a", "b", "f", "g" e "h". (EIA REVISÃO CACIMBAS –
CATU/REV. 02/MARÇO/2006 299)
(...) O núcleo da comunidade do Espírito Santo, representado por sua capela e por sua escola, está ainda sobre a área de influencia do empreendimento [grifo nosso], porém significativamente mais distante de sua diretriz em relação
à opção estudada anteriormente.
Por outro lado, o núcleo da comunidade de Córrego da Estiva, também representado por suas escola e capela [grifo nosso], bem como por uma
maior concentração de moradias, situado a cerca de um quilômetro da margem
direita da BR-101 (sentido Norte-Sul, Km 70, com acesso em frente ao posto
"Flecha São Mateus"), esta na AID dessa diretriz.
Também a aglomeração do Riacho dos Cavalos, bem próxima a anterior e
sobre a estrada vicinal que liga aquela á do Espírito Santo, é interceptada pelo
traçado da diretriz.
22
2. Sapé do Norte: O traçado ora estudado ingressa, no sentido Sul-Norte, no
território de Sapé do Norte ao cruzar o Rio Cricaré, interceptando, logo em
seguida, o traçado da ES-315 à altura do seu Km 8, bem ao lado do núcleo
central da comunidade quilombola de São Jorge.
A partir daí, segue cortando a área central do território de Sapé do Norte até
cerca de três léguas adiante, onde cruza o curso do Angelim e o traçado da
ES-313 (BR-101 - Pinheiros), para deixá-lo, ainda mais uma légua adiante, ao
cruzar o Itaúnas, limite setentrional histórico desse território.
Nesse percurso, a diretriz intercepta dezesseis faixas de várzea com presença
de ocupações ou de recursos naturais utilizados por quilombolas, a saber, em
sentido Sul-Norte:
a. Braço do Córrego do Betinho b. Córrego Aimirim c. Córrego do Vinho d.
Córrego do Sapato e. Córrego de Santana f. Braço do Santana g. Braço do
Sapucaia h. Córrego Sapucaia i. Córrego São Domingos j. Córrego do Macuco
k. Braço do Angelim l. Rio Angelim m. Braço do Córrego das Pedras n. Braço
do Córrego Braço do Rio o. Córrego Braço do Rio p. Braço do Rio Preto do
Norte ou Itaúnas Dentre estas, identificam-se a presença de ocupações
quilombolas próximas ao traçado em toda a área mais central entre "c" e "l".
No que diz respeito a nucleações, a área de influência do empreendimento engloba, no município de São Mateus: a. A já referida comunidade de São Jorge[grifo nosso], com centro à altura do Km 8 da ES-315.
b. a área da Sapucaia, que consiste em uma concentração de moradias e ocupações agrícolas junto à várzea desse córrego e de outros próximos, cortados pela diretriz [grifo nosso],, que tem como referência para chegada
as imediações da estrada vicinal que liga a BR-101 (Km 50, junto ao trevo da
ES-421, para Conceição da Barra) à ES-315 (nas proximidades da comunidade
de Dilô Barbosa).
c. o núcleo do Retiro, pertencente ao conjunto de aglomerações designado
como São Domingos, entre o curso do córrego desse nome e o do Cabeló, a
oeste da diretriz, na AII.
Junto à BR-101, também abrangida, nesse trecho, pela área de influência do
empreendimento: d. o Quilombo do Coxi, na AII, que consiste em algumas
ocupações ao longo do Córrego de Santana e das rodovias BR-101 e ES-421,
próximas ao entroncamento destas.
23
e. A grande aglomeração do Córrego São Domingos, também conhecida como
Paraíso, em ambas as margens da rodovia à altura do seu Km 46.
E, no município de Conceição da Barra, também junto à BR-101: f. a
comunidade do Macuco, na AII, próxima à margem direita da rodovia, onde
esta cruza o córrego deste nome.
g. a comunidade do Angelim, na AII, no ponto em que a rodovia cruza o rio
deste nome, hoje praticamente uma extensão do povoado de Saionara, cerca
de um quilômetro ao norte.
E, junto à própria diretriz: h. a comunidade do Angelim 3, uma continuidade
ocupacional e societária da anterior, rio acima, com acesso pela ES-313
(Saionara - Pinheiros), à altura do seu Km 6, próximo ao ponto em que esta é
interceptada pela diretriz estudada”. EIA REVISÃO CACIMBAS – CATU/REV.
02/MARÇO/2006 300-301)
Em resumo, embora todas estas comunidades quilombolas sejam apontadas
no EIA como “áreas de influência”, elas não tiveram qualquer referência no
RIMA que salvaguarde os direitos destas comunidades, fato que vai se refletir
no processo descrito pela resolução do CONAMA2 que garante ampla
publicidade dos empreendimentos de grande impacto ambiental, especialmente
o artigo 2 item V que monitora Oleodutos, gasodutos, minerodutos, troncos
coletores e emissários de esgotos sanitários, bem como o artigo 5 que prevê
em seu item IV – “Considerar os planos e programas governamentais,
propostos e em implantação na área de influência do projeto, e sua
compatibilidade”, em outras palavras, reconhecer o processo de titulação das
comunidades quilombolas a partir de sua certificação pela Fundação Cultural
Palmares e pelos processo abertos pelo INCRA conforme indicados pelo EIA.
O RIMA do Gasoduto Cacimbas-Catu desconhece estes procedimentos e
adota como “educação ambiental” repreender verbalmente as comunidades por
circularem próximos aos dutos do Gasoduto, como ficou explícito na entrevista
que foi realizada em São Jorge e como se as comunidades fossem
responsáveis pelos danos causados.
O EIA Cacimbas-Catu, embora aponte a interferência do empreendimento das
comunidades quilombolas finaliza com uma avaliação parcial e incompleta da
situação afirmando que “Em síntese a comparação entre os dois, evidência, 2 RESOLUÇÃO CONAMA N° 001 de 23.01.86 EIA/RIMA
24
que no tocante aos aspectos de uso e ocupação do solo, notadamente, junto à
comunidade Córrego dos Cavalos e na área urbano do município de São
Mateus, o novo traçado apresenta, em relação à diretriz estudada no
EIA/RIMA, um grau maior de implicações socioeconômicas negativas.”
Indicando uma solução burocrática para um problema real de violação de
Direitos Humanos, pois a linguagem do EIA-RIMA acaba por resguardar mais a
relação do empreendimento com os recurso naturais que com as populações
quilombolas como pode ser lido na conclusão do “Meio Antrópico” – “Para as
Comunidades Tradicionais, mantêm-se os termos da identificação e avaliação
de impactos constantes do estudo anterior, bem como as recomendações
referentes a medidas Mitigadoras e Compensatórias e a Programas de
Controle e Monitoramento de Impactos.” (EIA REVISÃO CACIMBAS –
CATU/REV. 02/MARÇO/2006 306) O que se denomina de “medidas
Mitigadoras e Compensatórias e a Programas de Controle e Monitoramento de
Impactos” não está explicitado e a visita a campo indicou que trata-se até agora
de advertências recorrentes e faixas escritas como a que pode ser vista no
anexo fotográfico.
25
Fotografias e entrevistas da visita a Comunidade de São Jorge.
Dona Estela: ...aí ela falou assim, Zenilda aqui, eu e ela. E Zenilda falou assim - o que nós vamos fazer na vida? Porque este negócio que passa aqui, esse trem aqui. Por que este povo aceitou, nós aceitamos...nós não! Porque isto pegou nós de surpresa!” Nós não sabe de nada! – por que este trem vai passar aqui!?” e eu falei – é Zenilda! É verdade sua mesmo! Aqui no terreiro: olha ela aqui passando! – é! Isso não era para ter passado aqui! – por que este povo não pega, não vão fazer uma reunião junto à comunidade e não tira este trem passado pra lá? Porque dizem que este trem, quando sair assim, um troço escapar, igual aquele troço ali [aponta a tubulação exposta] escapar, que nós tiver o gás também dentro de casa: isso vai acabar com nós! Aí eu fiquei pensando, menino, de noite, - Oh, meu deus, nós dormindo, explode um negócio destes aí, nós vamos morrer tudo dormindo!” aí, nós paramos, mas temos que ver tudo isso aí! A comunidade tem que se juntar e ver que isso está muito dentro de casa! Olha, todo mundo que chega aqui pergunta o que é isso! Pergunta: o que é isso que está passando aqui!? Olha, isso aí é o que eles botaram aí, um tal de gás, sei lá o... (Dona Estela -São Jorge. Foto do autor)
26
A Igreja de São Jorge é patrimônio cultural da comunidade e está ameaçada pelo Gasoduto. Fotografia da esquerda retirada no mês de julho de 2008 com os dutos. Fotografia da direita extraída em 2005 durante uma cerimônia religiosa na comunidade de São Jorge (fotos do autor)
Sr. Arisvaldo: Você me entendeu agora? Ele vai vazar aqui [mostra novamente o lado de dentro da tubulação] ele vai terminar aqui. Aí é que faz o vazamento no cano e você vem com a aqui para fazer o tapamento (...) esta tubulação vai aqui no chão por vinte anos, ele tem garantia por vinte anos. O gás que passa aqui dentro ele como com força! Isso aqui a garantia é de 20 anos e o gás não tem garantia de 10 anos para comer isso aí! Se o eucalipto não prestava, agora sim! Porque eles não colocaram um cartaz aí escrito botafogo!? Então, nós temos que fazer o que? Reunidos, fortes, disputar e tirar daqui! Nós não estamos livrando nóis! Nós não estamos livrando nóis! As crianças, nós vamos livrar da morte! Amanhã ou depois a gente pode morrer (...) e as crianças?( Sr. Arisvaldo: São Jorge. Foto do autor)
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Os ciclos festivos em São Jorge reúnem os moradores em diferentes ocasiões. A procissão do dia de Ramos é uma das celebrações da Igreja de São Jorge, ameaçada pelo Gasoduto. (fotos do autor)
Sr. Arisvaldo: Nós não queremos, Nós não queremos, Nós não queremos, Nós não queremos mesmo! Acabou! Ela vai te que mudar de qualquer maneira porque nós não queremos! Você quer um 38 na sua cabeça? (...) eu trabalhei com isso aqui [mostra a solda e a ferrugem da tubulação] isso que está aqui [mostra a ferrugem do lado de fora da tubulação] ele vai vazar aqui [mostra o lado de dentro da tubulação] (fotos do autor)
A proximidade das casas ameaça a segurança e sugere um deslocamento compulsório da comunidade, sem que os procedimentos de consulta sejam atendidos como indica a convenção 169. (fotos do autor)
28
A região de São Mateus recebeu milhares de negros escravizados Ao lado instrumentos usados no período de escravidão encontrados na sede do “sítio vovô Délio”, próximo ao Morro das Araras (ver mapa de localização dos Núcleos Residenciais). O processo de licenciamento não apresenta estudos arqueológicos dos territórios quilombolas. (fotos do autor)
Dona Estela: é! Desse jeito aí, nós não temos que continuar! Aí, as crianças chegam, meu filho, batem neste trem, vai em cima. É uma reunião atrás da outra que eles fazem. Chegou mesmo na sexta-feira, veio a mulher, explicou, explicou para nós, explicou para as crianças: que isso não pode estar em cima, que as crianças não podem estar em cima, meu filho, direto, direto, direto! Sem paradeiro, correndo em cima! Ali estava tudo aberto [a tubulação] e ela falou assim... escorpião, fica em cima, tudo aberto como vocês estão vendo ali. Eles vieram e fecharam! Mas estava tudo aberto! No tempo de as crianças entrarem [na tubulação] e irem embora! Eles vieram e explicaram que não pode andar em cima porque é perigoso cobra e escorpião. Então este trem está muito perigoso para nós! Para nossa comunidade! (fotos do autor)
A inscrição do banner diz “atenção pais e responsáveis mantenham as crianças distantes das obras”
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O Sr. Arisvaldo observa perplexo a implantação do Gasoduto Cacimbas-Catu: a falta de informação leva as comunidades a ficarem inseguras sobre seu futuro. (fotos do autor)
Dona Estela: ela faz parte da Petrobras. Então, você tem que entrar em contato com ela para fazer uma reunião na comunidade de São Jorge para poder explicar porque tem o colégio do Morro das Araras que está participando aqui, na comunidade na comunidade de São Jorge, tem nós aqui! Então – oh, eles passando aí! [carro e caminhão da empreiteira Galvão passam ao lado da casa da irmã Zenilda]. Então vocês tem que fazer uma reunião junto com a Petrobras para ser discutido isso aqui! Isso não pode ficar assim! (fotos do autor)
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Dona Estela: Nós vamos passar muita dificuldade com isso aqui! Diz eles que vai passar um tapete assim, (...) depois disso aí, vai vir uma retro escavadeira, sei lá, um trem que eles falam, cavar um buraco para enterrar estes canos aí! Então, em cima destes canos aí vai passar um tapete, um tapete de fora a fora...Esse tapete vai resolver nada!? vai resolver nada!? E na hora que este trem explodir!? Como que fica a comunidade? Nós vamos morrer todos de graça!? (fotos do autor)
As partidas de Futebol representam um momento de interação entre as várias localidades do sapê do Norte. O Gasoduto passa a poucos metros do campo de futebol que promove a integração dos quilombolas na região. (fotos do autor)
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O Time de São Jorge orgulha-se do campo e de poder recepcionar os times da região. As partidas são o grande momento para os homens jovens compartilhar sua identidade representam uma das expressões do patrimônio cultural local. (fotos do autor)
Uma parte do pescado produzido na Comunidade de São Jorge é repassado para terceiros e comercializado no mercado e feiras-livres de São Mateus.
O RIMA Cacimbas Catu não avaliou o impacto do gasoduto sobre a pesca na comunidade quilombola. (fotos do autor)
A Pescaria é uma importante fonte de alimento para a Comunidade de São Jorge. Os utensílios necessários para a pescaria são em sua grande maioria produzidos pelos próprios pescadores. Ao lado uma armadilha adaptada para áreas de brejo: o Quixó. Ao lado o Sr. Cosme demonstra o manuseio da armadilha em sua cada de farinha.(fotos do autor)
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Dona Estela: (...) de nada! E como fica este negócio ara nós!? Vocês tem que parar e tem que sentar, vão discutir com a Aracruz e com a Petrobras porque vocês trabalham dentro disso aí e agora vocês tem que correr atrás disso aí! O negócio está difícil, está difícil! Nós não estamos gostando disso aí! Vocês vão parar para discutir! Tem as crianças, tem nós, nós moramos há tanto tempo na comunidade e vamos morrer de graça para quem é rico!? Jamais! Jamais! Você tem que pegar a sua equipe e discutir isso aí, porque não dá não! Juntar as comunidades todas: Linharinho, Espírito Santo e São Jorge, porque não dá não! Nós vamos morrer de graça! Na mesma hora que nós estamos vivos, nós estamos mortos! (fotos do autor)
Dona Estela: Aí, eu falei assim, tem hora que eu penso em cima da cama – meu deus, nós estamos na hora ...- eu nunca vou comprar gás para colocar aqui dentro de casa não! Eu não vou comprar gás nem fogão porque este trem quando vem lá...aquele ferro...aquilo tem segurança? Tem segurança? Não tem! Aí, nós temos que prevenir antes de acontecer, antes de acontecer! Porque na mesmo hora que nós estamos vivos, nós estamos mortos! Eu não vou botar gás aqui dentro de casa, porque eu estou construindo uma casa (...) nós vamos organizar isso porque isto não tem condição de estar em nossa região! (..) então vocês vão correr atrás disso aí, porque nós vamos nos dar mal! (fotos do autor)
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A Sr.a Ana Conceição (dona Siloca) e seus “porquinhos”, uma de suas “criações”. Uma das características do Imprensamento destacado pelos moradores é sua situação de confinamento ante a percepção dos espaços como de uso comum. O Gasoduto emerge como mais uma forma de confinamento.(fotos do autor)
O sr. Antônio Conceição, “tilico”, é um dos grandes artesão da região de São Jorge. A “Uruba” é extraída dos igarapés de São Jorge anualmente para a colheita do café.
O RIMA Cacimbas Catu não avaliou o impacto do gasoduto sobre a economia artesanal nas comunidades quilombolas. (fotos do autor)
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Em toda a cadeia produtiva da farinha o trabalho da mulher é fundamental. Ao lado uma da comercialização do Beiju no mercado de São Mateus.
O RIMA Cacimbas Catu não avaliou o impacto do gasoduto sobre a economia nas comunidades quilombolas. (fotos do autor)
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O beiju, assim como a farinha, tem se tornado um elemento identitário na Comunidade de São Jorge, além de sua presença histórica na construção da autonomia destas comunidades. Consumidos no ambiente doméstico, vendidos nas feiras-livres, mercado municipal, mercadinho local, ou nos eventos ligados às comunidades negras do Sapê do Norte, os beijus e farinhas representam uma fonte importante de renda social. (Família quilombola produz farinha na comunidade de Morro das Araras: fotos do autor. 2005)
A Casa de Farinha no núcleo Córrego do Sapato de propriedade da família do Sr. Orli Esteves. O ambiente de trabalho relaciona os elementos da organização social, divisão sexual do trabalho e reprodução econômica dos grupos. As opiniões do quilombolas sobre seus destinos após o gasoduto não figuram no EIA-RIMA Cacimbas-Catu. (fotos do autor. 2005)
37
Formas de territorialização na comunidade quilombola de São JorgeAs formas de territorialização na comunidade quilombola no Sapê do Norte são
definidas por vários critérios: econômicos, sociais, culturais, religiosos de laser
e reprodução das condições de suas identidades. O processo de
reconhecimento dos territórios quilombolas pela legislação federal enfoca
exatamente esta característica ao associar as formas de ser e viver dos
quilombolas aos seus territórios. A tabela 1 a seguir ilustra as formas de
apropriação dos recursos naturais bem como exemplifica os processos de
territorialização na comunidade quilombola. Trata-se de um exemplo de como o
RIMA Cacimbas-Catu desconhece a ocupação tradicional das comunidades
quilombolas no Sapê do Norte. A tabela 2 indica a ocupação por “posseiros”
com sobrenomes dos atuais moradores da região de São Jorge na década de
1920, época em que o registro de terras ainda era bastante precário e as
formas de ocupação não documentada eram majoritárias.
Tabela 1 - Espaço e sociedade3
NOME ORIGEM ATIVIDADE LOCALIDADE FREQÜÊNCIA
D. Ana Jorge(Siloca)
Morro da Arara
Produção e comércio de
frutas, verduras.
Mercado de São Mateus
Todos os sábados
Franciscão Córrego do Sapato
Festas de “reis de bois”
São Jorge, córrego da
onça
Final/início do ano
Franciscão Fazendeiros “fortes”
Extração de palmito
Toda a região “muitas vezes”
Franciscão Córrego do Sapato
Produção de farinha
Faz. Boa Vista
De acordo com a mandioca
angariada a 1/2
Franciscão Córrego do Sapato
Culto Afro-brasileiro
O chefe (valdenir) do centro era
de São Mateus
durante 12 anos
FranciscãoCórrego sapato/ Santana
Casamento com Maria edi
Córrego Santana 1970
Jonathan Córrego do Festas de “reis São Jorge, Final/início do
3 Extraído de INCRA, Relatório de Estudo e Identificação da Comunidade Remanescente de Quilombos São Jorge. ÁPAGES/INCRA/ES. São Mateus, 2005.
38
Sapato de bois” córrego da onça ano
Helvácio Córrego do Sapato
Festas de “reis de bois”
São Jorge, córrego da
onça
Final/início do ano
Helvácio Córrego do Sapato
Receber/pagar contas São Mateus início do mês
Helvácio
Córrego do Sapato na casa que haviam
morados os pais de dona
Marcolina
Culto Afro-brasileiro. “iam muitos brancos, mas os negros
eram mais ativos”(Regina)
O chefe (Valdenir primo de
seu Helvácio) do centro era
de São Mateus
Todas as semanas,
reunindo muitos médiuns de
várias localidades do
entorno. (“vinha gente de longe ser atendido!)
(regina)
Helvácio
Córrego do Lama
(“antigamente”)
Trabalho na roça
Córrego São
Domingos, Córrego Macuco
semanalmente
Helvácio Pescaria no Cricaré
Pescaria com parentes e
amigos“banhado”
Com intensidade de acordo com a
época do ano
Filhos e sobrinhos de
Estela valentimSão Jorge Trabalho na
fruticultura
Sitio vovô délio,
fundos são Jorge e outras
localidades
diariamente
Douglas valentim São Jorge carvoaria
Pega o facho fora
de são Jorge (+-
num raio de 20 Km)
diariamente
Domingos São Jorge carvoaria
Pega o facho fora
de são Jorge (+-
num raio de 20 Km)
diariamente
Alacrino Cainagua e Maria Purquera (pais de
Antônio Conceição)
Fazenda Boa vista/Moro da
AraraTrabalho na roça
Fazenda Boa
vista/Moro da Arara
diariamente
Domingas Carvalho (Dona
Fazenda do Sr. Waldemar
Trabalho na roça Fazenda do Sr.
diariamente
39
Domingas) e Júlio Teodoro Farias Waldemar
Farias
Amauri da Conceição e
Maria Helena da Conceição
terra doada pelo seu
então patrão, Deosdete Coutinho.
Disse também ter trabalhado
também para Sr. Oracio (Oracinho).
Trabalho na roça
Propriedade de
Deosdete Coutinho e Sr. Oracio (Oracinho).
diariamente
Pais do Senhor Cesário: leovídio
Cesário e Regociana Maria
Amélia da Conceição
trabalhavam nas terras da
Sr. Edi Barbosa
Trabalho na roça Morro da arara diariamente
“Folô” Córrego Jacarandá Moradia/forró
Morro da Arara, São
Jorge, Córrego do
Sapato
Final de semana
Homério córrego do Asrici
Moradia dos antigos Até falecimento
“pessoal dos Lindolfo”
córrego do Saco
Moradia dos antigos “são um
pessoal antigo na região.” (Zé do
leite)
Visitas dos “amigos”
para conversas e
festas.
“antigamente”
Helvácio Roda D'água Local de retirar cipó
Extração de cipó sazonalmente
Ornalino/Laudemiro
Margem do Rio cricaré
Moradia dos antigos
Morro das Araras
Início do século XX
Irmãos Cesário
Margem do Rio cricaré.
“Do porto pra cima”
Pescaria com acampamento, e várias formas de
armadilha.
Morro das Araras
Anos 1950 até o presente.
Irmãos Cesário “brejos”
Extração de fibras para
armadilhas de pesca
Morro das Araras
Anos 1950 até o presente.
“Pessoal” da cotinha e totonho (finado Leovídio)
Margem do Rio cricaré na propriedade de horácio
“Moradia dos antigos”, roças, pesca, trabalho como diarista, a
meia
Morro das Araras Década de 1930
Laudimiro/ornalin Propriedades “Trabalhava pra Fazenda Início do século
40
o
de Finado Valdemar, pro finado Horacinho.
ele, lá alguma vez quando às vezes não tinha condições, ia lá trabalhava um
dia, dois, três lá pra aqueles
bicho, aqueles bichão que era o velho Farias, que
era o Dezinho. Viu? Mas trabalhava
somente a troco de uma caixa de
fósforo, um quilinho de açúcar, de besteira...”
Boa Vista/morro das araras.
XX
“Mané Sapucaia, tinha terra da beira do rio de
Cricaré lá, atravessando
perto de Silivestre”.
“Aí, ele, aonde ele
morava, do córrego do
Aspucaia pra dentro, ele organizou
aquela terra, tudo, e
Aspucaia pra fora ficou
sendo dele, mas sem
documento.”
Moradia dos antigos, roças, pesca, trabalho como diarista, a
meia.
Rio de Cricaré
Início do século XX
Francisão, Jonathan, “Zé do
Leite”
Morro das Araras, Vala
Grande
Venda de produtos
Porto de São Mateus Antes de 1970
Homens de são Jorge, córrego do
sapato, morro das araras
Porto de são Mateus Festas, forró Porto de
São Mateus Antes de 1970
Estela e Arisvaldo São JorgeProdução de carvão como empregados
Fazenda Jacarandá na margem esquerda do
Rio São Mateus.
Anos 1980 e 1990
Homens, mulheres e
crianças de são Jorge, córrego do
Todas estas localidades
em regime de rodízio
“Ajuntamento” para fazer roçados:
derrubada,
Todas estas localidades em regime de rodízio
“no tempo dos antigos” anterior ao esbulho das
terras.
41
sapato, morro das araras,
córrego do tapa, córrego são
domingos, morro da onça, três
barras
roçado e plantio.
Manoel Francibílio
Trabalho com os pais no
sítio Córrego Grande.
Cerca de 40 hectares.
Roças, criação de animais, produção de
farinha, árvores frutíferas.
Córrego Grande 1960
Estela e Arisvaldo São Jorge Culto Afro-brasileiro
Margem do Rio São Mateus
1990
Antônio Conceição Córrego Seco
Extração de Uruba para
fabricar peneiras e balaios.
Córrego do Sapato.
Desde a “mocidade”.
Aprendeu com o pai.
TABELA 2 - Relação de posseiros no censo de 1920.4
Número no Recenseament
o
Nome do proprietário Nome da localidade
486 David Manoel da Victoria Terra do Meio
669 Manoel Valentim Boa Vista
670 Valentim Roberto Linhares Boa Vista
685 Aureliano Antônio de Oliveira Sant´Anna
689 Manoel da Vitória Sant´Anna
709 José Seraphim Sant´anna
710 Pedro Seraphim Sant´anna
721 Laudemiro Constantino Faria Espigão
727 Leopoldo Ayres Faria Laranjinha
4 Extraído de INCRA, Relatório de Estudo e Identificação da Comunidade Remanescente de Quilombos São Jorge. ÁPAGES/INCRA/ES. São Mateus, 2005.
42
Fonte: Extinto Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio/APEES.
O processo de licenciamento do Gasoduto Cacimbas-Catu e a legislação quilombola.Este item tem por finalidade apontar algumas violações dos direitos das
comunidades quilombolas em face ao processo de licenciamento das obras do
Gasoduto Cacimbas-Catu destacando que a legislação, bem como os
procedimentos para identificação dos passivos socioambientais foram
desconsiderados em muitas etapas do processo administrativo.
O Empreendimento do GASENE e Impactos regionaisO gasoduto Cacimbas-Catu é parte do complexo denominado GASENE que
levará gás do nordeste para o sudeste ao longo de uma malha de 1.400 km de
extensão. A obra do GASENE foi financiada com 4,5 bilhões de reais do
BNDES e bancos estrangeiros e pretende estar pronta em dezembro de 2009.
O trecho que impacta as comunidades quilombolas tem 940 km e vai ligar
Linhares (ES) a Catu (BA). A implantação do gasoduto é também uma
oportunidade de instalação de empresas ao longo da malha o que requer
atenção especial dos administradores, dadas a demanda de enormes recursos
naturais o que implicará mais especificamente:
a. Na redução dos territórios tradicionalmente ocupados.
b. Na criação de Sub-empregos;
c. Eliminação de recursos naturais;
d. Aumento do preço da terra;
e. Acirramento dos conflitos com o setor ruralista;
f. Acirramento de conflitos diante da titulação dos territórios quilombolas
g. Na continuação da expulsão dos quilombolas de seus territórios;
h. No aumento das praticas de trabalho semi-escravo
O professor Alfredo Wagner discute que o não reconhecimento das terras de
quilombos tem a ver com a lógica do mercado de terras existentes no Brasil
pois “as terras das comunidades quilombolas cumprem sua função social
precípua, quando o grupo étnico, manifesto pelo poder da organização
comunitária, gerencia os recursos no sentido de sua reprodução física e
43
cultural, recusando-se a dispô-los às transações comerciais. Representada
como forma ideológica de imobilização que favorece a família, a comunidade
ou a uma etnia determinada em detrimento de sua significação mercantil, tal
forma de propriedade impede que imensos domínios venham a ser
transacionados no mercado de terras. Contraria, portanto, as agências
imobiliárias de comercialização, vinculadas a bancos e entidades financeiras;
as agências multilaterais, que objetivam uma reestruturação formal do mercado
de terras; do mesmo modo que contraria os interesses latifundiários, os
especuladores, os "grileiros" e os que detêm o monopólio dos recursos
naturais.”5 Acrescentaríamos as novas plantas energéticas do país como a
cana-de-açúcar e o gás natural.
A Legislação do CONAMA para o EIA/RIMAEm seu Art. 1.º, a RESOLUÇÃO CONAMA N° 001 de 23.01.86 EIA/RIMA
destaca que “Para efeito desta Resolução, considera-se impacto ambiental
qualquer alteração das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio
ambiente, causada por qualquer forma de matéria ou energia resultante das
atividades humanas que, direta ou indiretamente, afetam:
I - a saúde, a segurança e o bem-estar da população;
II - as atividades sociais e econômicas;
III - a biota;
IV - as condições estéticas e sanitárias do meio ambiente;
V - a qualidade dos recursos ambientais.”
Como se pode observar até o momento os itens I, II, IV e V, encontram-se
violados como atesta o próprio EIA do Gasoduto Cacimbas-Catu, pois este
suprime os danos às populações quilombolas em face da implementação do
Gasoduto Cacimbas-Catu relatando sumariamente que em relação ao “Meio
Antrópico – Para as Comunidades Tradicionais, mantêm-se os termos da
identificação e avaliação de impactos constantes do estudo anterior, bem como
as recomendações referentes a medidas Mitigadoras e Compensatórias e a
Programas de Controle e Monitoramento de Impactos.”
5 Alfredo Wagner Berno de Almeida. OS QUILOMBOS E O MERCADO DE TERRAS. PORANTIM Ano XXVI . N0 272 . Brasília-DF . Jan/Fev-2005.
44
O Parágrafo Único da Resolução indica que “Ao determinar a execução do
estudo de impacto ambiental, o órgão estadual competente, ou o IBAMA ou,
quando couber, o Município, fixará as diretrizes adicionais que, pelas
peculiaridades do projeto e características ambientais da área, forem julgadas
necessárias, inclusive os prazos para conclusão e análise dos estudos.”
Este item foi completamente desconsiderado pelos órgãos competentes em
relação às comunidades quilombolas do Sapê do Norte reforçando a
invisibilidade e a discriminação racial de empreendimentos deste porte.
Instituições como o Ministério Público, o INCRA e o IPHAN estão amplamente
informados da presença de comunidades quilombolas na região, bem como a
Fundação Cultural Palmares expediu certificação de todas as comunidades
atingidas pelo Gasoduto Cacimbas-Catu.
O Art. 6.º da Resolução indica que “O estudo de impacto ambiental
desenvolverá, no mínimo, as seguintes atividades técnicas:
I - Diagnóstico ambiental da área de influência do projeto completa descrição e
análise dos recursos ambientais e suas interações, tal como existem, de modo
a caracterizar a situação ambiental da área, antes da implantação do projeto,
considerando:
a) o meio físico - o subsolo, as águas, o ar e o clima, destacando os recursos
minerais, a topografia, os tipos e aptidões do solo, os corpos d'água, o regime
hidrológico, as correntes marinhas, as correntes atmosféricas;
b) o meio biológico e os ecossistemas naturais - a fauna e a flora, destacando
as espécies indicadoras da qualidade ambiental, de valor científico e
econômico, raras e ameaçadas de extinção e as áreas de preservação
permanente;
c) o meio sócio-econômico - o uso e ocupação do solo, os usos da água e a
sócio-economia, destacando os sítios e monumentos arqueológicos, históricos
e culturais da comunidade, as relações de dependência entre a sociedade
local, os recursos ambientais e a potencial utilização futura desses recursos.
II - Análise dos impactos ambientais do projeto e de suas alternativas, através
de identificação, previsão da magnitude e interpretação da importância dos
prováveis impactos relevantes, discriminando: os impactos positivos e
negativos (benéficos e adversos), diretos e indiretos, imediatos e a médio e
longo prazos, temporários e permanentes; seu grau de reversibilidade; suas
45
propriedades cumulativas e sinérgicas; a distribuição dos ônus e benefícios
sociais.
III - Definição das medidas mitigadoras dos impactos negativos, entre elas os
equipamentos de controle e sistemas de tratamento de despejos, avaliando a
eficiência de cada uma delas.
IV - Elaboração do programa de acompanhamento e monitoramento dos
impactos positivos e negativos, indicando os fatores e parâmetros a serem
considerados.
(...)”
O RIMA elaborado para o licenciamento do Gasoduto Cacimbas-Catu não leva em consideração um conceito contemporâneo de Territorialidade e de Terras Tradicionalmente Ocupadas e suas implicações para a definição das terras de quilombo. (Almeida, 2000. Op. Cit pg.09) Este fato
acarreta conclusões no relatório que descaracterizam, em proveito da obtenção
da licença de implantação, as atividades ecológicas e históricas das
comunidades quilombolas do Sapê do Norte. A presença das comunidades
quilombolas é minimizadas pela ausência de estudos antropológicos que levem
em conta os modos de ser e estar destas comunidades, bem como suas
relações identitárias com o território.
Todos os itens deste artigo 6o denotam uma preocupação da legislação sobre
as formas de reprodução econômica e cultural das comunidades humanas
envolvidas nos projetos com impacto ambiental. Ao omitir tais comunidades o
processo de Licenciamento Ambiental do Gasoduto Cacimbas-Catu
descaracteriza a presença destas comunidades e os impactos reais causados
pelo empreendimento.
A Resolução do CONAMA em seu Art 7.º que prevê que “O estudo de impacto
ambiental será realizado por equipe multidisciplinar habilitada, não dependente
direta ou indiretamente do proponente do projeto e que será responsável
tecnicamente pelos resultados apresentados” é também descaracterizada pois
os resultados do EIA – relatório mais completo – não menciona os impactos
diretos e indiretos nas comunidades quilombolas e limita-se a indicar a
presença em face ao empreendimento, sequer identificando sua incidência na
região.
46
O Parágrafo Único do artigo 9o que indica que “O RIMA deve ser apresentado
de forma objetiva e adequada a sua compreensão. As informações devem ser
traduzidas em linguagem acessível, ilustradas por mapas, cartas, quadros,
gráficos e demais técnicas de comunicação visual, de modo que se possam
entender as vantagens e desvantagens do projeto, bem como todas as
conseqüências ambientais de sua implantação.” Não reflete a realidade
descrita nas comunidades quilombolas visitadas. Nelas os moradores não
sabem informar, em alguns casos, o que são os “canos” ali expostos. Em São
Jorge, por exemplo, os moradores estão atônitos por receberem apenas
repreendas por deixarem seus filhos brincarem nas tubulações. Conforme
comunicação com as lideranças locais, nenhuma reunião coletiva foi realizada
para avaliar a implementação do Gasoduto Cacimbas-Catu e as informações
que constam no artigo 9o permanecem totalmente desconhecidas dos
quilombolas.
A imprensa noticiou que as audiências da implantação do gasoduto foram
realizadas no Lions Club de São Mateus no dia 15 de abril de 2005 e 21 de
junho de 2006 (19h) ocasião em que a “Petrobras informou que o Ibama
convocou a audiência com o objetivo de discutir a revisão do Estudo de
Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (Rima) da
gasoduto Cacimbas - Catu.. (Século Diário). (Ver anexos)
Segundo informações da Agência Nacional do Petróleo, foi realizada uma
audiência em São Mateus (ES) (Dia 18 de abril de 2007 – Local: Pólo
Universitário – Av. João XXIII nº 1544 – Boa Vista, São Mateus-ES e publicado
no DOU de 29/03/2007) para definição das indenizações pela utilização das
terras para o gasoduto. Através do “AVISO DE AUDIÊNCIA PÚBLICA Nº
3/2007, (...) O DIRETOR-GERAL da AGÊNCIA NACIONAL DO PETRÓLEO,
GÁS NATURAL E BIOCOMBUSTÍVEIS - ANP, no uso de suas atribuições
legais e com base na Resolução de Diretoria nº 109, de 13 de março de 2007.
COMUNICA: aos proprietários de terra, aos concessionários do setor de
exploração e produção de petróleo e gás natural e aos demais interessados
que realizará Audiência Pública, com as características apresentadas a seguir:
1. OBJETIVO: 1.1 Obter subsídios e informações adicionais sobre a
modificação proposta na Portaria ANP no 143/98, que regulamenta o
pagamento aos proprietários de terra (art. 52 da Lei nº 9.478/97). 1.2 Propiciar
47
aos proprietários de terra e aos concessionários a possibilidade de
encaminhamento de opiniões e sugestões. 1.3 Identificar, da forma mais ampla
possível, todos os aspectos relevantes à matéria objeto da audiência pública.
1.4 Dar publicidade, transparência e legitimidade às ações da ANP.” (disponível
em http://www.anp.gov.br/audiências_publicas)
Historicamente a população negra de São Mateus não era autorizada de forma
tácita a entrar no Lions Clube seja por questões de discriminação racial ou de
classe social. Segundo a observação de Domingos Fi miniano, o Lions era um
“espaço para brancos” onde a “população negra não entrava” (comunicação
pessoal durante uma audiência convocada pela câmara de vereadores de São
Mateus, a propósito da titulação das terras de Quilombolas na região). As
audiências Públicas na Bahia foram realizadas em praças públicas e centros
culturais (ver http://www.ibama.gov.br/licenciamento/módulos/documentos.php?
COD_DOCUMENTO=8938).
A audiência pública proposta pela ANP na Universidade Federal do Espírito
Santo também não foi acessada pelos quilombolas, uma vez que os níveis de
formalidade e acessibilidade não condizem com a organização econômica nas
comunidades: “2. DISPONIBILIZAÇÃO DE INFORMAÇÕES: 2.1 A minuta de
Resolução, objeto desta Audiência, estará à disposição dos interessados nos
seguintes endereços: INTERNET - http://www.anp.gov.br/audiencias_publicas,
ANP - Protocolo – Avenida Rio Branco, 65, 12º - Centro, Rio de Janeiro, RJ
ANP - Protocolo – SGAN Q.603 Módulo “I” - Térreo, Brasília, DF ANP –
Protocolo – Avenida Indianápolis, 1111 – Indianápolis, São Paulo/SP ANP –
Protocolo – Avenida Tancredo Neves, 450, sala 1401 - Ed. Suarez Trade -
Caminho das Árvores, Salvador/BA” , “3. ENVIO DE COMENTÁRIOS /
SUGESTÕES 3.1 Os comentários/sugestões deverão ser encaminhados à
ANP através dos seguintes endereços: ENDEREÇO ELETRÔNICO:
spg@anp.gov.br ou ANP - Protocolo – Avenida Rio Branco, 65 - Centro, Rio de
Janeiro, RJ e 5. FORMA DE PARTICIPAÇÃO E CADASTRAMENTO DE
EXPOSITORES NA AUDIÊNCIA PÚBLICA:” tais como “5.3 Para otimizar a
logística do evento, os inscritos que pretenderem fazer sua exposição
utilizando recursos de informática deverão ter a cópia da apresentação
disponível na ANP até às 18 horas do dia 09 de abril de 2007.” (AGÊNCIA
48
NACIONAL DO PETRÓLEO, GÁS NATURAL E BIOCOMBUSTÍVEIS – ANP
AVISO DE AUDIÊNCIA PÚBLICA Nº 3/2007”
Em outras palavras, a referida Audiência Pública, não cumpriu o objetivo dado
pela norma do CONAMA, ou seja “(...)O RIMA deve ser apresentado de forma
objetiva e adequada a sua compreensão(...) tornando os anseios dos
quilombolas do Sapê do Norte objeto de preocupação do empreendedor.
Este procedimento também fere o que estabelece a convenção 169 sobre o
direito de consulta a essas comunidades:
-art.6
item 2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser
efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o
objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das
medidas propostas.
O § 2.º do Artigo 11o que diz que “Ao determinar a execução do estudo de
impacto ambiental e apresentação do RIMA, o órgão estadual competente ou o
IBAMA ou, quando couber o Município, determinará o prazo para recebimento
dos comentários a serem feitos pelos órgão públicos e demais interessados e,
sempre que julgar necessário, promoverá a realização de audiência pública
para informação sobre o projeto e seus impactos ambientais e discussão do
RIMA.” parece igualmente desconsiderado pelos órgãos competentes haja
vista a situação de insegurança que desorganiza o cotidiano das comunidades
quilombolas do Sapê do Norte. Em todas as conversas na região, foi unânime a
ausência de reuniões para discussão da implementação do Gasoduto
Cacimbas-Catu. Este desconhecimento da implantação leva os quilombolas à
uma situação de insegurança quanto ao futuro aumentando a pressão para
expulsão de seus territórios tradicionalmente ocupados.
Como pode ser visto, o silêncio do Relatório de Impacto Ambiental, expresso na falta de dados que identifiquem as formas de ocupação das
comunidades quilombolas bem como os impactos em seu modo de vida, é uma
forma de obter a Licença Prévia para instalação, ainda que em desacordo com
a Resolução CONAMA N° 001 de 1986.
Como veremos este silêncio gera um vício de origem nos procedimentos de
licenciamento porque impossibilita as partes interessadas na implantação do
49
gasoduto Cacimbas-Catu se manifestem de forma democrática, assegurando
os direitos fundamentais das populações quilombolas. Se não houve
audiências junto às comunidades quilombolas situadas no município de São
Mateus, mas apenas na sede do município, em Conceição da Barra, município
também com comunidades quilombolas, não houve sequer audiência na sede
do município, impedindo as manifestações dos quilombolas dali.
Agora vamos apresentar os paços que orientaram o início das obras do
Gasoduto Cacimbas-Catu no território quilombola. Segundo informações
colhidas com um dos técnicos do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) O RIMA
foi concluído em janeiro de 2005, tendo sofrido uma revisão em março de 2006
e recendo uma Licença Prévia em dezembro de 2006.
A Licença PréviaA ênfase nos aspectos ambientais dos recursos naturais faz com que o RIMA
desconsidere as comunidades quilombolas e não atenda a licença ambiental
expedida pelo IBAMA através da Licença Prévia de número 243 de 2006.
Segundo o IBAMA o “O processo de licenciamento ambiental possui três
etapas distintas: Licenciamento Prévio, Licenciamento de Instalação e
Licenciamento de Operação.
Licença Prévia (LP) - Deve ser solicitada ao IBAMA na fase de planejamento
da implantação, alteração ou ampliação do empreendimento. Essa licença não
autoriza a instalação do projeto, e sim aprova a viabilidade ambiental do projeto
e autoriza sua localização e concepção tecnológica. Além disso, estabelece as
condições a serem consideradas no desenvolvimento do projeto executivo.
Licença de Instalação (LI) - Autoriza o início da obra ou instalação do
empreendimento. O prazo de validade dessa licença é estabelecido pelo
cronograma de instalação do projeto ou atividade, não podendo ser superior a
6 (seis) anos. Empreendimentos que impliquem desmatamento depende,
também, de "Autorização de Supressão de Vegetação".
Licença de Operação (LO) - Deve ser solicitada antes de o empreendimento
entrar em operação, pois é essa licença que autoriza o início do funcionamento
da obra/empreendimento. Sua concessão está condicionada à vistoria a fim de
verificar se todas as exigências e detalhes técnicos descritos no projeto
aprovado foram desenvolvidos e atendidos ao longo de sua instalação e se
50
estão de acordo com o previsto nas LP e LI. O prazo de validade é
estabelecido, não podendo ser inferior a 4 (quatro) anos e superior a 10 (dez)
anos.
Embora esta licença chame a atenção no item:
Com relação este pedido da Licença Prévia, uma solicitação de informação
quanto ao parecer emitido pela Fundação Cultural palmares (segundo
informações da técnica Luciana Gonçalves, feita em julho de 2006), não foi
ainda respondida para fins de redação deste relatório.
O item seguinte (2.31) não foi atendido segundo informações das lideranças
quilombolas e dos quilombolas do sapê do Norte:
A experiência extremamente negativa com o monocultivo do eucalipto vista
acima, não foi suficiente para que o processo de licenciamento do Gasoduto
Cacimbas-Catu levasse em conta os danos materiais, econômicos e morais
das comunidades quilombolas. Pelo contrário, os “riscos” foram ignorados no
quesito transparência e clareza na comunicação aos quilombolas do Sapê do
Norte.
Quanto ao uso dos recursos naturais e às formas de ocupação tradicional a
Licença Prévia indica que
Novamente esta recomendação parece não ter surtido os efeitos jurídicos e
administrativos do licenciamento, pois nenhum estudo complementar foi até o
momento apresentado e as comunidades quilombolas continuam sem
51
informações sobre os impactos deste Gasoduto em seu cotidiano. (ver anexo
fotográfico acima, especialmente as relações econômicas e culturais)
O Resultado do reestudo do traçado do Gasoduto Cacimbas-Catu para
alargamento da faixa é bastante clara em suas conclusões sobre os danos às
comunidades quilombolas. Ainda que realizada entre 03 e 04 de setembro de
2005, tempo bastante curto em se tratando de uma revisão tão importante
quanto as recomendadas pelo IBAMA, o item apresenta conclusões bastante
contundentes. Temos, segundo o EIA –RIMA:
“3.3.3.2. Impactos/Medidas Recomendadas Em síntese, se pode afirmar que,
para o território quilombola ao Sul do Cricaré (que poderíamos denominar aqui
como Espírito Santo - Estiva), o traçado aqui estudado é EIA REVISÃO CACIMBAS – CATU/REV. 02/MARÇO/2006.302 equivalente ao anterior em termos dos seus possíveis impactos, posto que
se afasta significativamente, por um lado, dos núcleos das comunidades do
Espírito Santo e de Santa Rita; aproximando-se e mesmo cortando, porém, por
outro lado, os do Córrego da Estiva e do Riacho dos Cavalos, cujas nucleações
estão na AID.
Já no que diz respeito ao território de Sapé do Norte, se pode indicar que o
traçado aqui estudado venha a ser potencialmente mais impactante que o
anterior, o qual, mesmo cortando toda a extensão desse território no sentido
Sul-Norte, o fazia, após cruzar a ES-315, aproximando-se ao seu flanco
ocidental, mais distante da BR-101 e onde parece haver bem menos
ocupações, e passando a não menos que quatro quilômetros de áreas de
moradia mais significativas (no caso as aglomerações de Morro da Arara e
Nova Vista, na ES-315).
Já o traçado ora estudado, também cortando todo esse território no sentido
Sul-Norte, o faz em uma situação mais central e mais próxima à BR-101, onde
parece haver um número maior de ocupações quilombolas, e o faz de modo a
cortar, muito mais proximamente, aglomerações quilombolas importantes como
o da comunidade de São Jorge próximo da AID (Km 8 da ES- 315), o da
Sapucaia e o do Angelim 3, na AII.
Além do fato de que o próprio traçado da rodovia federal, agora abrangido pela
área de influência do empreendimento, inclui algumas aglomerações mais
52
propriamente quilombolas, o Coxi, o Paraíso (Córrego São Domingos), o
macuco e o Angelim, e áreas urbanas (Saionara e Braço do Rio) com presença
de população quilombola refugiada, na AII do Gasoduto.
Descrições mais detalhadas das comunidades de São Jorge e do Coxi, e de
parte das comunidades do Angelim, constam do estudo anterior, a partir do relatório de Arruti (2002).[grifo nosso]
Parece temerário que uma alteração no traçado, seja feita com base em
estudos apenas de segunda mão. Este quadro proposto pela “revisão” redunda numa violação dos direitos das comunidades de São Jorge como território e não como “ponto num mapa”. Mesmo indicando que o novo
traçado seja “potencialmente mais impactante que o anterior”, o que vemos no
anexo fotográfico é que os resultados do reestudo não surtiram qualquer efeito
sobre a responsabilidade social do Gasoduto Cacimbas-Catu, uma vez que a
avaliação por parte dos órgãos competentes e ligados ao patrimônio cultural
quilombola e seus direitos – Fundação Cultural palmares, INCRA, Ministério
Público -, não emitiram nenhum parecer sobre este “reestudo”.
Embora o EIA apresente estes elementos que poderiam orientar uma atitude
mitigatória mais relevante em relação ao Gasoduto Caimbas-Catu, as
conclusões do RIMA agravam a invisibilidade das comunidades quilombolas ao
expor textualmente nas conclusões
“Comunidades Indígenas, Quilombolas e Populações Tradicionais.
Não foram identificados impactos diretos a essas comunidades devidos à implantação do duto.[grifo nosso] As áreas indígenas existentes situam-se
fora da AID.
Por outro lado, indiretamente, algumas populações podem ser afetadas quando da remoção da cobertura florestal, da qual se utilizem para sobrevivência pela extração de itens de consumo. Esse impacto não é muito significativo, visto que o desmatamento é realizado somente na faixa de domínio, o que não compromete a vegetação do entorno.” [grifo
nosso] (CARACTERIZAÇÃO DO EMPREENDIMENTO, CACIMBAS –
CATU/VER. 01/JANEIRO/2005)
Este quadro isenta a responsabilidade social do Gasoduto Cacimbas-Catu dos
danos sociais, culturais e econômicos nas comunidades quilombolas,
constituindo uma forma de “racismo ambiental”, uma vez que impõem um
53
empreendimento da magnitude de um gasoduto de 940km e com bitola de
quase 30 polegadas a uma comunidade fragilizada historicamente pela
escravidão e contemporaneamente pela violência de fazendeiros, expulsão de
suas terras pelo monocultivo do eucalipto, envenenamento de córregos, dentre
outros danos. As conclusões que orientaram o licenciamento por parte do
IBAMA do Gasoduto Cacimbas-Catu tornam incertas a vida de dezenas de
famílias e suas formas de reprodução econômica e cultural, o que viola os
Direitos Humanos destas comunidades.
A este respeito a Petrobras acatou o Termo de Referência proposto pela
FUNAI para o Relatório de Impacto ambiental do trecho do gasoduto que
compreendia Cacimbas, em Linhares, a Vitória. [ver matéria nos anexos de
notícias] Perguntar-se-ia: porque o trecho entre Cacimbas, Linhares a Catu,
Bahia, não recebeu o mesmo tratamento quanto aos direitos das comunidades
quilombolas?
O cenário de implantação do a Gasoduto Cacimbas-Catu torna irreversível os danos às comunidades quilombolas, porque incide sobre sua forma de
reprodução cultural e econômica, violando o Artigo Constitucional 215,
especialmente em seu “§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das
culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos
participantes do processo civilizatório nacional.” em seus desdobramentos, ou
seja “I - defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; II - produção,
promoção e difusão de bens culturais; III - formação de pessoal qualificado
para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; IV - democratização do
acesso aos bens de cultura; V - valorização da diversidade étnica e regional.”
Segundo Robert Bullard6 “O conceito ‘racismo ambiental’ se refere a qualquer
política, prática ou diretiva que afete ou prejudique, de formas diferentes,
voluntária ou involuntariamente, a pessoas, grupos ou comunidades por
motivos de raça ou cor. Esta idéia se associa com políticas públicas e práticas
industriais encaminhadas a favorecer as empresas impondo altos custos às
pessoas de cor. As instituições governamentais, jurídicas, econômicas,
políticas e militares reforçam o racismo ambiental e influem na utilização local
6 Revista Eco 21, ano XV, Nº 98, janeiro/2005. Ver também “Racismo ambiental: Obras com impacto ambiental atingem mais negros e índios” in http://www.direitos.org.br
54
da terra, na aplicação de normas ambientais no estabelecimento de instalações
industriais e, de forma particular, os lugares onde moram, trabalham e têm o
seu lazer as pessoas de cor. O racismo ambiental está muito arraigado sendo
muito difícil de erradicar.”
A implantação do a Gasoduto Cacimbas-Catu ameaça os elemento da cultura
quilombola que Constituem patrimônio cultural brasileiro, que segundo o Art.
216 são “os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou
em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I -
as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações
científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos,
edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.” Desconsiderar a
existência destas comunidades e suas formas de ser e viver é uma estratégia
de racismo ambiental pois relega a elas apenas os passivos do
empreendimento Gasoduto Cacimbas-Catu.
O Gás e seus derivados podem ser considerados “fontes de energia limpas”,
mas seu passivo social não é devidamente avaliado como mostra o EIA-RIMA.
As comunidades quilombolas do Sapê do Norte ao longo do traçado do
gasoduto usam fogões a lenha para cozinharem, mas são ameaçadas de morte
por um fluxo de gás de 20 milhões de m³/dia para alimentar a planta industrial
já instalada (Aracruz Celulose - DISA) e a que se anuncia (duas mega-
siderúrgicas no Sul do estado e uma fábrica de fertilizantes no Norte)
A convenção 169 e os direitos dos quilombolasA Convenção 169, da qual o Brasil é signatário, tem por finalidade garantir da
diversidade cultural dos povos que integram as diferentes nações,
reconhecendo seus direitos originários diante da organização dos Estados. O presente relatório conclui que a implementação do Gasoduto Cacimbas-
55
Catu é uma violação dos direitos reconhecidos pela Convenção 169 porque o empreendimento incide de maneira violenta sobre as formas de viver e ser das comunidades quilombolas. Como foi visto anteriormente o
empreendimento do Gasoduto Cacimbas-Catu desrespeita determinações
básicas como o direito à informação, segurança e reconhecimento das
populações quilombolas atingidas. Estes direitos são apresentados a seguir e
mostram que o Gasoduto Cacimbas-Catu não respeita as comunidades
quilombolas, suas organizações e formas de territorialização.
Com relação as comunidades quilombolas do Sapê do Norte O RIMA do
Gasoduto Cacimbas-Catu tem um vício de origem que é:
1. A recusa em reconhecer as formas de ocupação tradicional das
comunidades quilombolas do Sapê do Norte;
2. A recusa em reconhecer as formas de organização social e política das
comunidades quilombolas do Sapê do Norte;
3. A recusa em reconhecer as formas de organização econômica das
comunidades quilombolas do Sapê do Norte;
4. A recusa em reconhecer as formas de territorialização das comunidades
quilombolas do Sapê do Norte;
5. A recusa em reconhecer as identidades quilombolas do Sapê do Norte.
Indicaremos algumas das formas de violação dos direitos quilombolas que o
processo de licenciamento do empreendimento promove, mas não atende com
medidas de mitigação.
Conforme apresentado no artigo 1º “b) aos povos em países independentes,
considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que
habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da
conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras
estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas
próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas” e
artigo 2º item 2. “A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser
considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se
aplicam as disposições da presente Convenção.”, ou seja, a elaboração do
RIMA Gasoduto Cacimbas-Catu deve atender a especificidade das
organizações sociais e culturais locais em primeiro plano e não ignorar a
diversidade cultural.
56
A aplicação da Convenção 169 deve-se ao fato de que como apresentado no
artigo 2º “1.Os governos deverão assumir a responsabilidade de desenvolver,
com a participação dos povos interessados, uma ação coordenada e
sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o
respeito pela sua integridade.” No caso do RIMA Gasoduto Cacimbas-Catu,
cujo empreendimento é responsabilidade do governo brasileiro, não ação
coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a
garantir o respeito pela sua integridade” porque a documentação para o
licenciamento da obra não resguarda direitos fundamentais como a vida, a
garantia das gerações futuras e o desenvolvimento integral.
O artigo terceiro da “política geral da” da Convenção afirma em seu item 2 “Não
deverá ser empregada nenhuma forma de força ou de coerção que viole os
direitos humanos e as liberdades fundamentais dos povos interessados,
inclusive os direitos contidos na presente Convenção.” Pelo contrário, as
narrativas colhidas em campo mostram uma situação de coerção física contra
as famílias quilombolas – a presença maciça de trabalhadores, máquinas,
equipamentos e veículos, trafegando intensamente -, e coerção moral –
reuniões por parte do empreendimento para culpar os pais pelos filhos que
brincam nas tubulações, desejo de se mudar de grande parte dos quilombolas
em face ao gasoduto.
O Artigo 3º da Convenção afirma que “1. Deverão ser adotadas as medidas
especiais que sejam necessárias para salvaguardar as pessoas, as
instituições, os bens, as culturas e o meio ambiente dos povos interessados.” O
RIMA do Gasoduto Cacimbas-Catu adota uma salvaguarda que enfoca
exclusivamente a questão arqueológica sem considerar o patrimônio cultural
das comunidades quilombolas. Como os estudos sobre as comunidades
quilombolas têm mostrado é impossível dissociar as formas de ocupação
tradicional – envolvendo aí a relação específica com o meio ambiente – e as
expressões culturais que organizam social e culturalmente todas as
comunidades quilombolas apontadas no EIA do Gasoduto Cacimbas-Catu nos
municípios de São Mateus e Conceição da Barra.
57
O EIA do Gasoduto Cacimbas-Catu aponta dezenas de córregos associados às
comunidades quilombolas cujo caráter de utilização se estende desde as
atividades econômicas – pesca e extração de material para cestarias -, lazer –
recurso de banhos de jovens e adultos – alimentação humana e animal, sendo
que a própria toponímia dos córregos está ligada à vida dos quilombolas como
podem ser observados os nomes e sobrenomes de alguns córregos batizados
com nomes dos quilombolas. A toponímia já é uma indicação de apropriação
específica do território configurando o que a legislação denomina como “terras
tradicionalmente ocupadas”.
O RIMA do Gasoduto Cacimbas-Catu mostra em suas conclusões que há uma
violação dos direitos culturais dos quilombolas quando não indica medidas para
salvaguardar o patrimônio cultural destas comunidades e desconsidera o Artigo
5º da Convenção que indica que:
“a) deverão ser reconhecidos e protegidos os valores e práticas sociais,
culturais religiosos e espirituais próprios dos povos mencionados e dever-se-á
levar na devida consideração a natureza dos problemas que lhes sejam
apresentados, tanto coletiva como individualmente;
b) devera ser respeitada a integridade dos valores, práticas e instituições
desses povos;
c) deverão ser adotadas, com a participação e cooperação dos povos
interessados, medidas voltadas a aliviar as dificuldades que esses povos
experimentam ao enfrentarem novas condições de vida e de trabalho.”
A leitura do RIMA do Gasoduto Cacimbas-Catu mostra a violação destes
direitos colocando em risco a integridade e a integralidade do patrimônio
quilombola. Ao tratar as comunidades quilombolas como “comunidades rurais
dispersas” o RIMA do Gasoduto Cacimbas-Catu desconsidera o patrimônio
cultural dos quilombolas e as formas específicas de territorialização. Quando se
compara o EIA e o RIMA, é gritante a produção da inviabilização discriminatória
das comunidades quilombolas, uma vez que sobre estas comunidades não é
produzida nenhuma ponderação sobre os impactos na organização política,
econômica e sociocultural.
58
O trabalho de campo realizado em São Mateus e Conceição da Barra mostra
que, com relação ao RIMA do Gasoduto Cacimbas-Catu, o artigo 5º da
Convenção 169 não é observado acarretando danos no presente e nas futuras
gerações.
Nas conclusões do RIMA do Gasoduto Cacimbas-Catu submetido ao IBAMA
argumenta-se que com relação ao “Meio Antrópico” a “Dinâmica populacional,
além de interferências (positivas e negativas) pontuais [grifo nosso], como
descritas no texto complementar a principal diferença entre a análise
comparativa entre a diretriz estuda no EIA/RIMA e alteração sugerida entre o
Km 80+386 da diretriz do EIA e o km 134+821 apresenta a possibilidade da
ocorrência de um novo impacto, não identificado no EIA/RIMA, a saber:
remoção de alguns moradores residentes na comunidade Córrego dos Cavalos ou da Estiva. [grifo nosso] Além da remoção deverá, caso não seja
possível, nesse ponto, a realização de um microdeslocamento do traçado,
ocorrer desestruturação da área de convívio social da comunidade. Esse é um impacto, negativo, novo em relação à diretriz estudada no EIA/RIMA, cuja medida recomendada é um ajuste no traçado de modo a afastá-lo da comunidade. [grifo nosso] No caso específico do município de São Mateus, a
situação apresenta uma nova variável, sobretudo, onde o duto corta a estrada
da Aroeira. Nesse ponto é possível prever que em curto espaço de tempo, ocorrerá adensamento populacional, ainda que de baixa intensidade, no entorno da faixa de domínio. [grifo nosso] Em síntese a comparação entre os
dois traçados (diretriz estudada no EIA/RIMA e a alternativa ajustada),
evidência, que no tocante aos aspectos de uso e ocupação do solo,
notadamente, junto à comunidade Córrego dos Cavalos e na área urbano do
município de São Mateus, o novo traçado apresenta, em relação à diretriz
estudada no EIA/RIMA, um grau maior de implicações socioeconômicas negativas [grifo nosso]. Excetuando-se os dois pontos citados, ambos os
traçados não apresentam entre si diferenças significativas quanto aos aspectos
socioeconômicos.”
Em síntese, o que o texto do RIMA do Gasoduto Cacimbas-Catu afronta é o
disposto no Artigo 6º, especialmente o item “a) consultar os povos
interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através
59
de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas
legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente; b)
estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam
participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da
população e em todos os níveis, na adoção de decisões em instituições
efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas
políticas e programas que lhes sejam concernentes; c) estabelecer os meios
para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas dos povos e, nos
casos apropriados, fornecer os recursos necessários para esse fim.”
Como foi visto na correspondência da Comissão Quilombola com o relator, não
houve reunião ou processo formal de convocação para a realização do
Gasoduto Cacimbas-Catu. O levantamento preliminar para a realização do EIA-
RIMA fica restrita a um inventário superficial dos territórios quilombolas e retira
do trabalho de campo dos técnicos a autoridade para a implantação das obras
do gasoduto.
As conclusões, embora bastante claras com relação aos danos às
comunidades quilombolas, não são suficientes para reorientar o
empreendimento em direção ao processo de consulta que consta na obtenção
das licenças, violando o Artigo 7º que observa em seu item 1 que “Os povos
interessados deverão ter o direito de escolher suas, próprias prioridades no que
diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as
suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras
que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do
possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além
disso, esses povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos
planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de
afetá-los diretamente.”
O RIMA Gasoduto Cacimbas-Catu não indica como as comunidades
quilombolas foram consultadas e muito menos como elas vão se beneficiar da
implantação do empreendimento. A falta de informações no que diz respeito as
comunidades compromete o licenciamento e implantação do Gasoduto
Cacimbas-Catu porque não observa “A melhoria das condições de vida e de
trabalho e do nível de saúde e educação dos povos interessados, com a sua
60
participação e cooperação, deverá ser prioritária nos planos de
desenvolvimento econômico global das regiões onde eles moram. Os projetos especiais de desenvolvimento para essas regiões também deverão ser elaboradas de forma a promoverem essa melhoria.[grifo nosso]”
(Convenção 169, artigo 7º item 2)
Ao apresentar o RIMA do Gasoduto Cacimbas-Catu aos órgãos de
licenciamento ambiental estaduais e federais, bem como aqueles ligados à
titulação de terras de quilombos e salvaguarda do patrimônio cultural, o
empreendimento desconhece as indicações feitas no EIA a propósito das
comunidades quilombolas, omitindo ao poder público informações
extremamente relevante no tocante aos direitos das comunidades quilombolas.
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA
Embora tenha sido mencionado como responsável pela elaboração de
Relatórios de Identificação e Delimitação de territórios quilombolas na região de
São Mateus e Conceição da Barra não recebeu nenhuma comunicação ou
pedido de informação a respeito de possíveis estudos ou mapeamentos
preliminares feitos na região relativos às comunidades quilombolas como se
observa na correspondência abaixo expedida pelo órgão
“Vitória, 20 de julho de 2008.
Ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
Prezado Sr. Jefferson Gonçalves Correia
Assegurador do Programa de Regularização de Territórios Quilombolas
SR(20)F4 ES,
Atendendo a solicitação da Comissão Quilombola do Sapê do Norte, fui convocado a elaborar um relatório sobre o RIMA do Gasoduto Cacimbas-Catu que incide sobre os territórios ocupados por várias comunidades quilombolas da região de São Mateus e Conceição da Barra.
Por este motivo, solicito a vossa senhoria cópias dos pareceres, relatórios ou qualquer documento que indique que os responsáveis pelo EIA-RIMA consultaram este órgão na elaboração dos procedimentos de licenciamento.
Atenciosamente,
Sandro José da Silva
61
Antropólogo – UFES”
Em resposta
“29 de julho de 2008 15:27
Assunto Re: gasoduto
enviado por vta.incra.gov.br
Sandro Silva,
em resposta a sua solicitação tenho a informar que nada a este respeito chegou a este Setor de Regularização de Territórios Quilombolas.
Contudo, pode ser que, na hipótese do encaminhamento de um ofício, este esteja retido em outro setor. Portanto, solicito que me remeta o nome de todas as empresas envolvidas no Gasoduto, a fim de que o setor de Protocolo possa identificar a entrada ou não de qualquer documento desta natureza nesta Superintendência Regional.
Att,
Jefferson Gonçalves CorreiaAssegurador do Programa de Regularização de Territórios QuilombolasSR(20)F4 ES (27) 3185 9073”
Fundação Cultural Palmares.
Em contato telefônico feito dia 18 de julho com a Sra. Luciana Valéria P.
Gonçalves, Subgerente da Diretoria de Proteção do Patrimônio Afro Brasileiro
da Fundação Cultural Palmares, foi solicitado o parecer elaborado a propósito
da implantação do Gasoduto Cacimbas-Catu em território quilombola. No dia
24 de julho a Sr. Luciana informou que “estava procurando nos arquivos” da
instituição o parecer e que enviaria em meio digital para compor este relatório.
Em novo contato dia 31 de julho obteve-se a seguinte respostade sandro silva <saandro@gmail.com> ocultar detalhes 15:36 (26 minutos atrás) para luciana.goncalves@palmares.gov.br data 31/07/2008 15:36 assunto relatório Gasoduto Cacimbas-catu enviado por gmail.com
Prezada Sra. Luciana Gonçalves,conforme informado no último E-mail continuo aguardando o relatório da Fundação Cultural Palmares sobre a instalação do Gasoduto Cacimbas Catu
62
da empresa Petrobras em território quilombola do Sapê do Norte nos municípios de Conceição da Barra e São Mateus (ES)atenciosamente,Sandro José da Silva
Em resposta
de Luciana Valéria Gonçalves <luciana.goncalves@palmares.gov.br> ocultar detalhes 16:03 para sandro silva <saandro@gmail.com> data 31/07/2008 16:03 assunto RES: relatório Gasoduto Cacimbas-catu enviado por palmares.gov.br
Caro Sandro, Conforme já lhe disse, estamos em processo de mudança, e o parecer referente ao PRIMEIRO TRAÇADO DO GASODUTO CACIMBAS CATU , foi realizado em 2005. Já pedi a estagiária para localizar, mas nesse momento fica inviável remexer nos arquivos, uma vez que estamos emundando para a nova sede.Assim que for possível lhe repassarei uma cópia do o parecer do PRIMEIRO traçado, pois sobre o segundo traçado que atinge São Jorge ainda não nos manifestamos.Desde já agradeço a sua atenção, pois estamos com vários documento encaixados para a MUDANÇA. Luciana Valéria P. GonçalvesSubgerenteDiretoria de Proteção do Patrimônio Afro BrasileiroFundação Cultural PalmaresMinistério da Cultura3424-0143luciana.goncalves@palmares.gov.br--------------------------------------------------------------------------------De: sandro silva [saandro@gmail.com]Enviado: quinta-feira, 31 de julho de 2008 15:36Para: Luciana Valéria GonçalvesAssunto: relatório Gasoduto Cacimbas-catu
Instituto Estadual do Meio Ambiente.
Solicitação de informações sobre licenciamento enviada, mas ainda não respondida.
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis.Não contactado
IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
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Solicitação de informações sobre licenciamento enviada, mas ainda não respondida.
Ao desconsiderar a presença de comunidades quilombolas e os responsáveis
O RIMA do Gasoduto Cacimbas-Catu “Os governos deverão zelar para que,
sempre que for possível, sejam efetuados estudos junto aos povos
interessados com o objetivo de se avaliar a incidência social, espiritual e
cultural e sobre o meio ambiente que as atividades de desenvolvimento,
previstas, possam ter sobre esses povos. Os resultados desses estudos deverão ser considerados como critérios fundamentais para a execução das atividades mencionadas.[grifo nosso] (Convenção 169, artigo 7º, item 3)
De igual teor é Artigo 8º que em seu item 1 indica que “ Ao aplicar a legislação
nacional aos povos interessados deverão ser levados na devida consideração
seus costumes ou seu direito consuetudinário.” Definitivamente, os “costumes
ou seu direito consuetudinário” das comunidades quilombolas do Sapê do
Norte não foram observadas nem no EIA RIMA, nem no processo de
licenciamento, nem na Licença Prévia concedida pelo IBAMA. (Idem, Artigo 8º)
Como visto acima, a relação das comunidades quilombolas com seus territórios
é fundamental para proceder o licenciamento de qualquer empreendimento que
afete seu modo de vida. No exposto até o momento podemos considerar que o
RIMA do Gasoduto Cacimbas-Catu não procede ao reconhecimento das
formas tradicionais de ocupação invisibilizando, em proveito próprio, as
comunidades quilombolas, seu patrimônio cultural e os direitos advindos desta
identidade, colidindo com o expresso na “Parte II – Terras” especialmente o
Artigo 13 que em seu item 1 define proteção especial às comunidades
tradicionais pois “Ao aplicarem as disposições desta parte da Convenção,
governos deverão respeitar a importância especial que para as culturas e
valores espirituais dos povos interessados possui a sua relação com as terras
ou territórios, ou com ambos, segundo os casos, que ele ocupam ou utilizam de
alguma maneira e, particularmente, os aspectos coletivos dessa relação.” Onde
“A utilização do termo "terras" nos Artigos 15 e 16 deverá incluir o conceito de
territórios, o que abrange a totalidade habitat das regiões que os povos
interessados ocupam ou utilizam de alguma outra forma.”
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O Gasoduto Cacimbas-Catu sofreu uma reformulação em suas dimensões
passando de 15 para 20 metros de servidão o que forçou a uma nova licença.
No entanto os problemas de reconhecimento dos territórios quilombolas
continuaram violando o Artigo 14 da Convenção, especialmente o item “1”
(...).nos casos apropriados, deverão ser adotadas medidas para salvaguardar o
direito dos povos interessados de utilizar terras que não estejam
exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham
tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência. Nesse
particular, deverá ser dada especial atenção à situação dos povos nômades e
dos agricultores itinerantes.” A identificação pontual das comunidades
quilombolas feita pelo EIA-RIMA do Gasoduto Cacimbas-Catu não leva em
conta as formas pelas quais as comunidades quilombolas do Sapê do Norte
“tenham [e têm] tido acesso para suas atividades tradicionais e de
subsistência” impedindo a execução do item “2” que indica que “Os governos
deverão adotar as medidas que sejam necessárias para determinar as terras
que os povos interessados ocupam tradicionalmente e garantir a proteção
efetiva dos seus direitos de propriedade e posse.” E eliminando as
possibilidades do item “3” que indica que “Deverão ser instituídos
procedimentos adequados no âmbito do sistema jurídico nacional para
solucionar as reivindicações de terras formuladas pelos povos interessados.”
O Gasoduto Cacimbas-Catu representa uma ameaça ao Artigo 15 da
Convenção 169 que diz em seu item “1” que “Os direitos dos povos
interessados aos recursos naturais existentes nas suas terras deverão ser
especialmente protegidos. Esses direitos abrangem o direito desses povos a
participarem da utilização, administração e conservação dos recursos
mencionados.” A faixa de servidão, o medo de coabitar e ter as lavouras em
suas terras leva os quilombolas a perderem sua autonomia em administrar e
conservar, segundo seus costumes, seus territórios.
Embora a Petrobras anuncie a “integração nacional através do gás”, o
Gasoduto Cacimbas-Catu não reconhece o disposto no item “2” do Artigo 15
que instrui que “Em caso de pertencer ao Estado a propriedade dos minérios
ou dos recursos existentes nas terras, os governos deverão estabelecer ou manter procedimentos com vistas a consultar os povos interessados, a
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fim de se determinar se os interesses desses povos seriam prejudicados, e em que medida, antes de se empreender ou autorizar qualquer programa de prospecção ou exploração dos recursos existentes nas suas terras. [grifo nosso] Os povos interessados deverão participar sempre que
for possível dos benefícios que essas atividades produzam, e receber indenização eqüitativa por qualquer dano que possam sofrer como resultado dessas atividades. [grifo nosso]
Não é demais lembrar que a indenização não se completa com a remoção das
populações atingidas, sendo sua permanência uma obrigação do Estado como
indica o Artigo 16 em seu item “1”, ou seja, “Com reserva do disposto nos
parágrafos a seguir do presente Artigo, os povos interessados não deverão ser
transladados das terras que ocupam.” E mesmo se for impossível a
manutenção destes povos, indica o item “2” que “Quando, excepcionalmente, o
translado e o reassentamento desses povos sejam considerados necessários,
só poderão ser efetuados com o consentimento dos mesmos, concedido livremente e com pleno conhecimento de causa. [grifo nosso] Quando não
for possível obter o seu consentimento, o translado e o reassentamento só
poderão ser realizados após a conclusão de procedimentos adequados
estabelecidos pela legislação nacional, inclusive enquetes públicas, quando for
apropriado, nas quais os povos interessados tenham a possibilidade de estar
efetivamente representados.
No caso do Gasoduto Cacimbas-Catu a invisibilidade produzida com o EIA –
RIMA viola frontalmente este sub-item e impede que seja realizado o sub-item
“3” que indica que “Sempre que for possível, esses povos deverão ter o direito
de voltar a suas terras tradicionais assim que deixarem de existir as causas
que motivaram seu translado e reassentamento.” O não reconhecimento das
comunidades e seus territórios por parte do EIA-RIMA implica também que se
recuse o direito de retorno pois quando este não for possível “esses povos deverão receber, em todos os casos em que for possível, terras cuja qualidade e cujo estatuto jurídico sejam pelo menos iguais aqueles das terras que ocupavam anteriormente, e que lhes permitam cobrir suas necessidades e garantir seu desenvolvimento futuro. [grifo nosso] (...) (item
4, Artigo 16)
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No caso do Gasoduto Cacimbas-Catu a invisibilidade produzida com o EIA-
RIMA viola frontalmente o sub-item “1” do “artigo 17” e impede que sejam
“(...)respeitadas as modalidades de transmissão dos direitos sobre a terra entre
os membros dos povos interessados estabelecidas por esses povos.” Bem
como o item “2” onde os “povos interessados deverão ser consultados sempre
que for considerada sua capacidade para alienarem suas terras ou
transmitirem de outra forma os seus direitos sobre essas terras para fora de
sua comunidade.”
De forma sumária, o EIA-RIMA chama de “meio antrópico” o “Patrimônio
Arqueológico” apontando que “apesar da grande interferência antrópica, é
possível que sítios arqueológicos ainda desconhecidos venham a ser
encontrados na área de influência do gasoduto, uma vez que a pesquisa
diagnóstica não extingue as possibilidades. Assim sendo, a descrição de
impactos e programas indicados no EIA é mantida para esse complemento,
ressaltando-se o aumento do número de sítios já identificados na área de
influência do empreendimento.” EIA REVISÃO CACIMBAS – CATU/REV. 02/MARÇO/2006 305
Ora, a disputa pela definição das terras tradicionalmente ocupadas pelos
quilombolas e os empreendimentos da cana-de-açúcar, pastoreio e eucalipto
tem levado as comunidades quilombolas a uma “luta pela memória” que
elegem como ponto de referência os inúmeros “lugares da memória”, sejam
eles de ocupação recente ou ligados ao “tempo do cativeiro”. Parece temerário
excluir esta possibilidade dos levantamentos arqueológicos tomando-os como
um patrimônio de “pedra e cal” ou exclusivamente indígena, e não como um
elemento definidor na construção das identidades quilombolas do sapê do
Norte.
A ausência de estudos mais detalhados sobre a ocupação e a toponímia na
região por parte do EIA-RIMA Cacimbas-Catu é um fator limitante na definição
das formas de ocupação da região do Sapê do Norte e não reflete a
complexidade das formas de ocupação das comunidades quilombolas.
O mesmo item “Meio Antrópico – Para as Comunidades Tradicionais” mantém
os equívocos anteriores em não realizar estudos sistemáticos específico de
campo – tomando como principal apenas os estudos feitos por Arruti, 2006 -,
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pois, mesmo diante da revisão do alargamento da faixa de incidência do
traçado “mantêm-se os termos da identificação e avaliação de impactos
constantes do estudo anterior, bem como as recomendações referentes a
medidas Mitigadoras e Compensatórias e a Programas de Controle e
Monitoramento de Impactos.” (EIA REVISÃO CACIMBAS – CATU/REV. 02/MARÇO/2006. Pg. 306)
Ora, o analista da seção antrópica foi claro e objetivo em suas conclusões ao
indicar “Já no que diz respeito ao território de Sapé do Norte, se pode indicar
que o traçado aqui estudado venha a ser potencialmente mais impactante que
o anterior, o qual, mesmo cortando toda a extensão desse território no sentido
Sul-Norte, o fazia, após cruzar a ES-315, aproximando-se ao seu flanco
ocidental, mais distante da BR-101 e onde parece haver bem menos
ocupações, e passando a não menos que quatro quilômetros de áreas de
moradia mais significativas (no caso as aglomerações de Morro da Arara e
Nova Vista, na ES-315).
Já o traçado ora estudado, também cortando todo esse território no sentido
Sul-Norte, o faz em uma situação mais central e mais próxima à BR-101, onde
parece haver um número maior de ocupações quilombolas, e o faz de modo a
cortar, muito mais proximamente, aglomerações quilombolas importantes como
o da comunidade de São Jorge próximo da AID (Km 8 da ES- 315), o da
Sapucaia e o do Angelim 3, na AII.
Além do fato de que o próprio traçado da rodovia federal, agora abrangido pela
área de influência do empreendimento, inclui algumas aglomerações mais
propriamente quilombolas, o Coxi, o Paraíso (Córrego São Domingos), o
macuco e o Angelim, e áreas urbanas (Saionara e Braço do Rio) com presença
de população quilombola refugiada, na AII do Gasoduto.” (EIA REVISÃO
CACIMBAS – CATU/REV. 02/MARÇO/2006. Pg. 302)
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Considerações e Recomendações
Considerando-se:1. Que o licenciamento do Gasoduto Cacimbas-Catu apresenta um vício de
origem que não reconhece a existência de comunidades quilombolas e
suas formas de territorialização;
2. Que as formas de ocupação tradicional, bem como o patrimônio cultural
das comunidades quilombolas não foram objeto de análise;
3. Que as formas de organização social e política das comunidades
quilombolas não foram objeto de análise;
4. Que as formas de produção, consumo e comércio das comunidades
quilombolas não foram objeto de análise;
5. Que o histórico de opressão racial e cultural das comunidades
quilombolas não foram objeto de análise;
6. Que as comunidades quilombolas ao longo do Gasoduto Cacimbas-Catu
não foram ouvidas pelo empreendedor como indicado pelo trabalho de
campo e como consta na legislação específica;
7. Que as comunidades quilombolas apresentam um alto índice de
desinformação quanto ao empreendimento do Gasoduto Cacimbas-
Catu: seus objetivos, alcance, duração e impactos sobre suas vidas;
8. Que as comunidades quilombolas apresentam um alto índice de
insegurança em relação a sua integridade física e moral diante da fase
atual de implantação do Gasoduto Cacimbas-Catu;
9. Que os resultados do reestudo do EIA-RIMA não foram apreciados pelos
órgãos responsáveis pela questão quilombola, ainda que os impactos
negativos destas alterações seja evidenciado no reestudo;
10.Que o Gasoduto Cacimbas-Catu representa mais uma forma de
exclusão econômica e cultural;
11.Que o Gasoduto Cacimbas-Catu representa uma forma de racismo
ambiental;
12. Que o Gasoduto Cacimbas-Catu não apresentou às comunidades
quilombolas um plano claro, objetivo e com linguagem acessível de
mitigação e compensação dos danos advindos da implantação do
gasoduto;
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13.Que um grande contingente das comunidades quilombolas já planeja
deixar seus territórios tradicionalmente ocupados com medo de
acidentes seguidos de morte de si próprios e de seus familiares;
14. Que a obra é financiada com recursos públicos e portanto deve
respeitar legislações referentes aos direitos de salvaguarda do
patrimônio cultural brasileiro;
15.Que a obra oferece possibilidades de deslocamento compulsório das
comunidades atingidas .
Recomenda-se:1. A suspensão imediata da implantação do Gasoduto Cacimbas-Catu
em territórios quilombolas situados o Sapê do Norte, bem como
outras comunidades quilombolas que estejam situadas em espaço
destinado a construção da obra ainda, que não estejam em processo
de titulação e que serão afetadas pelo empreendimento;
2. A garantia que as comunidades não sejam deslocadas
compulsoriamente em função do Gasoduto Cacimbas-Catu
3. Rever o processo de obtenção da Licença Prévia, bem como a
autorização para implantação do Gasoduto Cacimbas-Catu para
apurar as responsabilidades;
4. Notificar o Ministério Público sobre as conseqüências do Gasoduto
Cacimbas-Catu para as comunidades quilombolas;
5. Notificar a Fundação Cultural Palmares sobre as conseqüências do
Gasoduto Cacimbas-Catu para as comunidades quilombolas;
6. Notificar o Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Cultural sobre
as conseqüências do Gasoduto Cacimbas-Catu para as
comunidades quilombolas;
7. Notificar o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária sobre
as conseqüências do Gasoduto Cacimbas-Catu para as
comunidades quilombolas;
8. Notificar o instituto de desenvolvimento agro florestal -IDAF sobre as
conseqüências do Gasoduto Cacimbas-Catu para as comunidades
quilombolas;
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9. Notificar o Instituto Estadual de Meio Ambiente – IEMA sobre as
conseqüências do Gasoduto Cacimbas-Catu para as comunidades
quilombolas;
10.Notificar as organizações quilombolas sobre as conseqüências do
Gasoduto Cacimbas-Catu para as comunidades quilombolas;
11.Realizar em data, hora e local adequados às comunidades
quilombolas exposição objetiva e em linguagem acessível sobre o
empreendimento do Gasoduto Cacimbas-Catu;
12.Realizar em data, hora e local adequados às comunidades
quilombolas exposição objetiva e em linguagem acessível sobre as
medidas compensatórias e mitigadoras do Gasoduto Cacimbas-Catu
em territórios quilombolas;
13.Garantir, por meio de transporte e alimentação, a ampla participação
das comunidades quilombolas às audiências públicas
14. Que seja realizada uma ampla consulta junto às comunidades
quilombolas que se julguem afetadas pelo Gasoduto Cacimbas-Catu
para proceder ao licenciamento ambiental com foco nestas
comunidades mediante o que rege a convenção 169;
15. Instituir um plano de mitigação dos efeitos já ocasionados com a
implantação do Gasoduto Cacimbas-Catu;
16. Instituir um programa continuado de desenvolvimento integral que
incida em territórios quilombolas do Sapê do Norte, bem como outras
comunidades quilombolas que se julguem afetadas pelo
empreendimento do Gasoduto Cacimbas-Catu;
17. Instituir um fórum paritário de monitoramento continuado sobre o
empreendimento do Gasoduto Cacimbas-Catu.
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Anexo com matérias de imprensa
Gasoduto Cacimbas-Catu passará por territórios quilombolas (HTTP://www.seculodiario.com.br/arquivo/2005/abril/12/noticiário/meio_ambient
e/12_04_08.asp)
Ubervalter Coimbra
Vitória (ES), edição de 12 de abril de 2005
A construção do gasoduto Cacimbas, no Espírito Santo, a Catu, na Bahia, será
analisada em audiência pública na próxima sexta-feira (15), em São Mateus. A reunião será às 19h, no salão do Lions Clube. [grifo nosso] No trecho
capixaba, o gasoduto passará por áreas dos quilombolas do antigo Território de
Sapê do Norte, nos atuais municípios de São Mateus e Conceição da Barra.
Estas terras estão ocupadas pelos plantios de eucalipto da Aracruz Celulose.
A construção do empreendimento em seus territórios deverá mobilizar os
quilombolas da região, que estão em luta para retomada de suas terras da
Aracruz Celulose e pela regularização de suas terras.
O salão do Li ons, local da audiência pública, é localizado na avenida Jones
dos Santos Neves, 686, no bairro Sernambi.
O gasoduto é da Petrobras e, segundo o Ibama, apresenta quatro alternativas
de traçado: uma delas passa por áreas de restinga, em Linhares, no trecho
próximo à Fazenda Cedro, com início no Km 46,618 e final no Km 53,853 em
direção à Bahia. Segue "trechos próximo ao município de São Mateus,
seguindo próximo à BR 101, com início no km 80,043 e final no Km 461,301 da
diretriz (Bahia). No trecho baiano, passa por Camacan, e de travessia do rio
Paraguaçu".
A Petrobras admite que o gasoduto Cacimbas-Catu passará por "terras passíveis de utilização com culturas anuais, perenes, pastagem ou reflorestamento e vida silvestre".[grifo nosso] Os estudos de impacto
ambiental apontam ainda que existem "terras impróprias para cultivo intensivo,
mas ainda adaptadas para pastagens ou reflorestamento ou vida silvestre".
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E, "terras não adaptadas para cultivos anuais, perenes, pastagens ou
reflorestamento, porém apropriadas para proteção da flora e fauna silvestre,
recreação ou armazenamento de água" e "terras impróprias para cultura ou
reflorestamento podendo servir apenas como abrigo e proteção da fauna e flora
silvestre, como ambiente para recreação, ou para fins de armazenamento de
água".
Ainda segundo o Ibama, o gasoduto Cacimbas-Catu faz parte do Projeto
Gasene, que interliga as regiões Sudeste e Nordeste: é considerado o "mais
relevante de todo o traçado. O gasoduto a ser implantado a partir da Estação
de Cacimbas no Espírito Santo, até a futura Estação de compressão de Catu,
no município de Pojuca/Bahia", atravessa os municípios de Linhares, São
Mateus, Conceição da Barra, Pinheiros e Pedro Canário, no Espírito Santo, e
46 municípios no Estado da Bahia.
Diz a Petrobras ao Ibama: "Com o gasoduto deverá ser garantido o suprimento
de gás natural para as usinas inseridas no programa prioritário de
termoeletricidade do Governo Federal, por até 20 anos. A linha tronco do
gasoduto terá diâmetro de 28 polegadas. E a extensão aproximada será de 940
km em uma faixa de servidão de 20 M de largura. Deverão ser instaladas
"válvulas de bloqueio automático intermediário a cada 20 quilômetros".
O gasoduto deve ser enterrado em toda a sua extensão, com uma cobertura
mínima de 1,2 metros, exceto em trechos rochosos, onde será admitido uma
profundidade de 60 centímetros. As obras de implantação abrangem um
período de 18 meses.
O empreendimento exigirá a contração direta de 10.404 trabalhadores, e serão implantados 6 canteiros de obras: São Mateus, Teixeira de Freitas, Eunápolis, Itabuna, Ipiaú, e Valença" [grifo nosso]
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Petrobras acata exigência de índios do Estado e muda trajeto de gasoduto. pachto://www.seculodiario.com.br/arquivo/2005/fevereiro/25/noticiário/meio_am
biente/25_02_08.asp
Flávia Bernardes
Vitória (ES), edição de 25 de fevereiro de 2005
A Petrobras acatou a exigência dos índios capixabas de não atravessar suas terras no norte do Estado, com o Gasoduto Cacimbas/Vitória, e desviou o traçado do empreendimento para o entorno da área indígena. A empresa terá ainda como condicionante pela interferência na região, a obrigação de efetuar o pagamento de indenização à aldeia indígena de Comboios, por atravessar a aldeia com o Gasoduto Lagoa Parda, em 1983. [grifo nosso]
Além disso, para conseguir que o empreendimento passe no entorno da área
indígena, a Petrobras apresentará à Fundação Nacional do Índio (Funai), um
estudo etno-ecológico dos povos indígenas do norte do Estado. Este deverá
diagnosticar a situação da comunidade e as conseqüências sociais e
ambientais do projeto aos índios, como o fluxo de mão de obra na região e
pressão sob o território.
"O relatório deverá ser apresentado em 30 dias à Funai, mas acompanhamos
os trabalhos de campo e sabemos, não só pela experiência do Gasoduto
Lagoa Parda, que haverá muita pressão na região, aumentando o conflito entre
os próprios índios. Além disso, a supressão vegetal e toda interferência na
fauna local causará prejuízos ao meio ambiente e por conseqüência aos
índios", ressaltou o antropólogo da sede da Funai em Governador Valadares
(MG) responsável pelo Espírito Santo , Jorge Luís de Paula.
Sendo assim, depois de concluído os estudos pela Petrobras, todos os fatores
que afetam ou não a vida dos índios na comunidade, serão avaliados pela
Funai, que em seguida, emitirá um parecer à empresa. Foi acordado com a
comunidade um prazo de 100 dias, a partir da primeira reunião no dia 1º de
janeiro, para que todo este processo seja finalizado.
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Assim que emitido o parecer da Funai, haverá uma reunião entre as partes
para definir os termos de compromisso da empresa com a comunidade
indígena, principalmente no que diz respeito a indenização dos índios de
Comboios. "Apenas a aldeia de Caieiras Velha foi indenizada, e isso somente
cinco anos após a construção do gasoduto Lagoa Parda, em 1988", lembrou o
antropólogo. A interferência do Gasoduto Lagoa Parda atingiu Caieiras Velhas
e Comboios.
Mesmo com o pagamento da indenização à aldeia de Caeiras Velha, a Funai
também irá estudar se o dinheiro cumpriu ou não sua finalidade de compensar
os danos causados na época, para que no próximo empreendimento da
empresa, no caso o Gasoduto Cacimbas/Vitória, os mesmos erros não se
repitam.
O empreendimento do Gasoduto Cacimbas Vitória causou indignação durante
seu processo de apresentação e licenciamento, por não apresentar a definição
do seu traçado e, mesmo assim, conseguir licença do Instituto Estadual de
Meio Ambiente (Iema), no ano passado.
Ao iniciar o projeto, a empresa anunciou aos índios que o gasoduto passaria
pelas terras indígenas, ao contrário do que haviam afirmado ao Iema. Com
isso, os índios enviaram um documento à Coordenação Geral do Patrimônio
Indígena e Meio Ambiente (CGPIMA) e à Diretoria de Assuntos Fundiários da
Funai em Brasília, comunicando a decisão de não permitir a passagem do
gasoduto sobre suas terras ainda não demarcadas.
Os índios apontaram que a intervenção é inconstitucional, já que o ato de
intervir em terras indígenas, mesmo que não demarcadas, fere o art.231 da
Constituição Federal, que reconhece ao índio o direito originário sobre as terras
que tradicionalmente ocupam.
No documento, os índios alertaram para a reação da comunidade caso não
fossem atendidos. "Jamais vamos desistir da demarcação dos 12.000 ha de
terras indígenas em poder da Aracruz Celulose e estamos dispostos a usar
todos os recursos possíveis para impedir a intervenção do gasoduto em nossas
terras".
Na época, os índios afirmaram que a Petrobras estaria articulando com a
Aracruz Celulose para que o traçado do gasoduto atravessasse as terras
indígenas ainda não demarcadas.
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Os índios lutam há anos pela demarcação de suas terras. Ao todo, são 12 mil
hetares em poder da Aracruz devido a um acordo fechado entre os índios e a
empresa.
Em virtude dos inúmeros problemas gerados pelas intervenções da Aracruz
Celulose nas terras indígenas, como a destruição de dois córregos e a
contaminação do solo, eles repudiaram a iniciativa da empresa.
O projeto do Gasoduto Cacimbas/Vitória foi contestado não só pelos índios,
mas também pelo município da Serra, que alegou que o traçado da obra
passaria dentro da Área de Proteção Ambiental do Mestre Álvaro. Além disso,
nenhuma das duas intervenções contestadas passaram pelo estudo de impacto
ambiental.
A obra, que também já foi aprovada no Conselho Estadual de Meio Ambiente
(Consema), teve 24 condicionantes impostas. Custará R$ 180 milhões e
deverá passar pelos municípios de Serra, Vitória, Fundão, Aracruz e Linhares.
Consema discute gasoduto Cacimbas - Vitória nesta 6ª http://www.seculodiario.com.br/arquivo/2004/julho/01/noticiário/ultimas/07.asp
Manaíra Medeiros
Vitória (ES), edição de 01 de julho de 2004
O Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema) se reúne mais uma vez
nesta sexta-feira (2), às 14h, para discutir o projeto do gasoduto Cacimbas
-Vitória. O objetivo é debater os pontos do parecer dado pelo Instituto Estadual
de Meio Ambiente (Iema) - que os conselheiros consideraram preocupantes - e
determinar quais serão as próximas deliberações em torno do projeto.
Na última reunião do Consema, os 21 conselheiros não aprovaram as condicionantes do parecer técnico do Iema. Entre as justificativas, apontaram o fato de não terem sido realizadas audiências públicas nas comunidades impactadas, e de algumas diretrizes se apresentarem confusas, necessitando assim de serem novamente discutidas e, se necessário, reformuladas. Também apresentaram dúvidas quanto ao trajeto do gasoduto, como por exemplo, se vai passar pela Área de Proteção Ambiental do Mestre Álvaro, na Serra, ou ainda por Terras Indígenas. [grifo nosso]
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Mesmo assim, o Iema divulgou parecer favorável a obra, e não revelou suas condicionantes, nem mesmo se elas foram baseadas nas solicitações da Secretaria de Meio Ambiente da Serra e dos índios, para que o trajeto fosse revisto. [grifo nosso]
Segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), as áreas que estão em
posse da Aracruz Celulose, 10.500 hectares, na região de Comboios e Caieiras
Velhas, são Terra Indígena, e devem ser incluídas no Estudo de Impacto
Ambiental, o que não aconteceu.
Além destas exigências a Petrobras deverá recuperar o Deserto químico, no Vale do Suruaca, como reivindicam os ambientalistas do norte do Estado. O deserto foi criado pela própria empresa, ao drenar a principal lagoa da região. [grifo nosso]
Após feitas as mudanças exigidas pelo Consema, será divulgado o parecer
técnico final do Conselho, que em seguida seguirá para Assembléia Legislativa,
onde será submetido a análise por suas comissões temáticas. As audiências
ainda devem ser publicadas em edital, para no prazo de até 10 dias serem
realizadas.
A implantação do projeto vai atingir quatro municípios do Estado: Linhares,
Fundão, Aracruz e Vitória.
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Petrobras: Índios querem indenização para gasoduto de Lagoa Parda
Ubervalter Coimbra
A comunidade indígena de Comboios quer indenização da Petrobras para o gasoduto Lagoa Parda - Vitória, construído em 1981. [grifo nosso] Eles
alegam que a construção do gasoduto causou impactos ambientais e sociais
sobre a comunidade, e querem ser reparados em R$ 4 milhões. As
negociações já começaram, mas a Petrobras quer pagar pouco mais da
metade do que foi pedido pelos índios, o que exigirá novas conversas sobre o
assunto.
Segundo informou nesta segunda-feira (9) o cacique Vilson Benedito Oliveira, a
indenização referente a construção do gasoduto Lagoa Parda - Vitória
começou a ser discutida na última sexta-feira. O cacique afirmou que a Petrobras reconhece que não houve indenização à comunidade, [grifo
nosso] mas sua contraproposta, de pouco mais de R$ 2 milhões não foi aceita.
Agora, os índios de Comboios vão discutir a proposta e as alternativas para, no
prazo de 40 dias, voltar a negociar com a Petrobras.
Paulo Henrique Vicente Oliveira, liderança indígena, informou que a instalação do gasoduto não só causou impactos ambientais à região usada pelos índios para seus plantios de subsistência, pois suprimiu a vegetação nativa, entre outros, como também provocou medo dos índios. Estes, até hoje, não deixam suas crianças passar sobre o "tatarapé", o caminho de fogo, como chamam o gasoduto. [grifo nosso]
Assegurou que indenização paga pela construção do gasoduto foi tão insignificante, que muitos índios conseguiram comprar apenas bacias de plástico ou, no máximo, uma panela de pressão. [grifo nosso]
Agora, querem compensação na forma de dinheiro e projetos ambientais, como
por exemplo, recursos para aplicação na agricultura de subsistência, na
construção de escola, entre outros. A comunidade indígena de Comboios é
formada por 84 famílias.
Cacimbas - Já em relação ao gasoduto Cacimbas - Vitória, em construção, os
índios foram informados na reunião com a Petrobras que o traçado foi desviado
para que ele não passe por terras indígenas.
78
Vilson garantiu que o gasoduto passa, sim, por terras indígenas, pois eles
estão lutando para recuperar 11 hectares de suas terras, tomadas pela Aracruz
Celulose. Assegurou nesta segunda-feira que a discussão sobre o traçado do
gasoduto Cacimbas - Vitória não está encerrada.
Compensação Cacimbas-Catu: recuperar o Vale do Suruaca http://www.seculodiario.com.br/arquivo/2006/junho/16/noticiário/meio_ambiente
/16_06_07.asp (acessado em 20 de julho)
Ubervalter Coimbra
Uma das compensações ambientais a ser feita pela Petrobras para construir o
gasoduto de Cacimbas, no Espírito Santo, a Catu, na Bahia, deve ser a
recuperação do Vale do Suruaca. A tese está sendo discutida por
ambientalistas de Vitória e será apresentada na audiência pública sobre o
projeto, que será realizada na próxima quarta-feira (21), às 19h.
A audiência será em São Mateus, no Lions Clube - Cricaré, localizado na
avenida Jones dos Santos Neves, 686, bairro Sernambi. A Petrobras dá o
telefone 0800 25 21 60 para informações.
No resumo do edital que publicou sobre o assunto, por obrigação legal, a Petrobras informou que o Ibama convocou a audiência com o objetivo de discutir a revisão do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (Rima) da gasoduto Cacimbas - Catu. [grifo nosso] O
gasoduto interligará a Unidade de Tratamento de Gás de Cacimbas e a
Estação de Compressão de Gás que será construída em Pojuca, na Bahia.
Este gasoduto, ainda segundo a Petrobras, representa a ligação do sistema de
escoamento de gás entre as Regiões Sudeste e Nordeste do País, o Gasene.
O gasoduto Cacimbas - Catu terá 941 quilômetros. O licenciamento do Gasene
começou no ano passado. No Espírito Santo, um outro trecho do gasoduto é o
de Cabiúnas-Vitória, de 325 quilômetros entre o Rio de Janeiro e Espírito
Santo.
A audiência pública em São Mateus é o fórum apropriado para que seja exigida
da Petrobras compensação ambiental pela destruição do Vale do Suruaca,
apontam ambientalistas de Vitória.
79
No Suruaca, o maior Deserto Químico do planeta
No Vale do Suruaca foi criado o maior Deserto Químico do planeta, que avança
sem controle. A destruição da região começou com a drenagem da região, feita
pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS), a partir da
década de 60.
Para drenar a região, o DNOS fez a abertura de duas saídas para o mar. Mas
apesar disso, o professor Midszenty Garozi, da UFES, que estudou o
problema, não tem dúvida de que a destruição ambiental da área foi agravada
enormemente pela Petrobras.
A Petrobras drenou a lagoa Suruaca, a principal da região, ligando-a ao rio
Ipiranga. Para abrir este canal teve de romper a rocha que fazia a contenção
das águas de todo o vale. Esta rocha é longitudinal e acompanha toda a orla.
Hoje a lagoa Suruaca está seca.
Com a drenagem da água, aflora a matéria orgânica, originada da turfa. Na sua
decomposição, é produzido enxofre. Este, na presença da água produz o ácido
sulfúrico. A região se torna desértica, e nada mais produz. A desertificação é
do solo e da água.
Várias propostas já foram apresentadas para recuperação ambiental da região.
Uma delas seria a de transformar o Vale do Suruaca em uma unidade de
conservação.
A construção de canais na região atinge, indiretamente, toda a região centro-
leste do Espírito Santo, e particularmente a microbacia do rio Ipiranga. Os
municípios atingidos mais atingidos são Linhares, São Mateus, Jaguaré,
Sooretama, Aracruz, mas o problema prejudica até João Neiva.
1
O projeto agroindustrial da Aracruz Celulose (Fibria) 1 e as
comunidades quilombolas do Sapê do Norte
1 – APRESENTAÇÃO
O chamado modelo hegemônico de desenvolvimento, que se baseia em grandes projetos
industriais, energéticos, minerais, agroindustriais e de infra-estrutura, tem desafiado
organizações de direitos humanos, particularmente aquelas existentes nos países do Sul, à
elaboração de estratégias político-metodológicas para o enfrentamento dos seus impactos
negativos. Experiências em diversas partes do mundo registram constantes violações de direitos
por parte de grandes empreendimentos e de Estados nacionais, que se apresentam como um
bloco que, conjuntamente, implementam as estratégias desenvolvimentistas, gerando impactos
significativos na realização dos direitos humanos.
No Brasil, a partir de acúmulos acerca do tema em fóruns nacionais de direitos
humanos, elaborou-se a proposta do instrumental Estudo e Relatório de Impacto sobre Direitos
Humanos em Grandes Projetos (EIDH/RIDH), objetivando incidir de maneira efetiva na relação
entre desenvolvimento e direitos humanos. Em 2004, tal proposta foi transformada numa
resolução na IX Conferência Nacional de Direitos Humanos. O EIDH/RIDH é um instrumento
análogo ao Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), no entanto, pretende ser
mais abrangente, porque propõe discutir aspectos para além dos que integram o rol deste
último, investigando questões relacionadas aos direitos humanos no seu conjunto.
Contudo, entre uma proposta e a sua instituição legal e aplicação, um longo caminho
precisa ser percorrido. O presente estudo faz parte de uma das etapas deste processo, ou seja,
busca construir argumentos para serem apresentados ao Ministério da Justiça acerca da
importância e da urgência da instituição deste novo instrumento, como um dos pressupostos
para avaliar a implantação de grandes projetos no Brasil.
Parece relevante informar que este estudo acerca dos impactos da monocultura de
eucalipto sobre populações quilombolas no Sapê do Norte (Espírito Santo) integra um projeto
mais amplo do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), que desenvolve mais
1 Em 2009, após 40 anos, a Aracruz Celulose S/A deixou de existir quando foi adquirida pela Votorantim. Hoje, os acionistas principais são o Grupo Votorantim e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Por ainda ser muito mais conhecida como ‘Aracruz’, principalmente entre as comunidades impactadas, optou-se, neste relatório, trabalhar com este nome.
2
outras três investigações: uma em Minas Gerais que busca investigar os impactos do plantio de
cana-de-açúcar em larga escala, uma no Rio Grande do Sul, que também tem como objeto
central os impactos do monocultivo de eucalipto da Aracruz Celulose (Fibria), e a terceira no
Maranhão sobre os impactos da soja. A escolha de duas experiências que envolvem a Aracruz
Celulose (Fibria) no Espírito Santo e Rio Grande do Sul constitui a possibilidade de se
identificar as ações de um único projeto produzindo impactos em realidades geográficas
distintas.
O eucalipto vem sendo posto como estratégia de desenvolvimento de estados do Brasil,
e os mais conhecidos destes são Espírito Santo, Minas Gerais, Bahia, São Paulo e Rio Grande do
Sul. São, em geral, grandes empresas, em sua maioria, movidas por capital e interesses
transnacionais, as que patrocinam os projetos de conversão das bases de produção local,
concentrando-se na monocultura como recurso para a produção e exportação de celulose.
Corroborando isso, há o fato de o plantio de árvores homogêneas estar sendo usado como
recurso ambiental, sobretudo no seio dos debates dos créditos de carbono e de outras iniciativas
de obter subsídios como pagamento pela “recuperação ambiental”. Portanto, o plantio de
eucalipto em larga escala toca em aspectos de fundo do modelo de desenvolvimento, baseado
no capitalismo globalizado, dialogando com questões ambientais, sociais, econômicas,
produtivas e, sobretudo, com a maneira dos empreendimentos lidarem com as populações que
ocupam tradicionalmente os territórios (ou vivem no seu entorno) nos quais os projetos são
instalados.
No caso do Espírito Santo, a violação dos direitos humanos de populações tradicionais
(indígenas e quilombolas) pela empresa Aracruz Celulose S/A já é bastante conhecida. Quando
a empresa iniciou sua atuação no estado, em 1967, os primeiros eucaliptos foram plantados no
município de Aracruz sobre os territórios indígenas dos povos Tupiniquim e Guarani. Em
seguida, a Aracruz expandiu-se para os municípios de Conceição da Barra e São Mateus no
extremo norte do Espírito Santo, sobretudo em território quilombola (MAPAS 1 e 2).
3
MAPA 1
Legenda: ���� Estado do Espírito Santo. Fonte: Salomão, 2006.
MAPA 2
Legenda: ���� Municípios de São Mateus, Conceição da Barra, Pinheiros e Pedro Canário/ES. Fonte: Salomão, 2006.
4
De acordo com os dados do IBGE de 2008, o plantio de eucalipto ocupa 34,55% da área
total do município de Conceição da Barra e 15,68% da área total do município de São Mateus
(CENSO AGROPECUÁRIO, 2006, IBGE, 2008).
O processo que envolveu o plantio de eucalipto do norte e extremo norte do Espírito
Santo produziu uma série de conseqüências para as comunidades quilombolas localizadas na
região chamada Sapê do Norte, entre elas a perda de grande parte do seu território, o que levou
a uma série de reações dessa população que, atualmente, luta pela sua retomada. Por causa dos
conflitos locais, as organizações de direitos humanos têm sido acionadas regularmente para
intervir. Essa proximidade com a realidade dos impactados deu uma base de informação para
indicar a experiência do Espírito Santo como uma das quatro a serem estudadas no Brasil.
O Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) e o Centro de Defesa dos
Direitos Humanos da Serra-Espírito Santo (CDDH-ES), respectivamente propositor e executor
do presente estudo, entendem o mesmo como uma contribuição modesta, mas centrada no viés
dos direitos humanos. Ademais, entendem que será um exercício significativo a fim de
“experimentar” novas metodologias e acumular conhecimentos para a proposição de novos
instrumentos de ação em direitos humanos.
2 – INTRODUÇÃO
2.1 – Problematizando o conceito de “desenvolvimento”
Pode-se aqui destacar três grandes ciclos de colonização da sociedade brasileira. O
primeiro iniciou com a chegada dos portugueses ao que hoje é o território brasileiro. Esse
processo de colonização perdurou até a segunda década do século XIX, quando foi declarada a
Independência do Brasil; o segundo ciclo foi marcado pela Revolução Industrial, quando o
Brasil, então “independente”, se ligou economicamente à Inglaterra. Para Florestan Fernandes
(2008), a inclusão da economia brasileira no mercado mundial, no século XIX, representou um
simples episódio do ciclo das modificações dos laços coloniais, no quadro histórico, criado pela
elevação da Inglaterra à condição de grande potência colonial. Os laços coloniais mudaram o
seu caráter e sofreram uma transferência.
5
Esse processo histórico-social, que vinculou o destino da nação emergente ao neocolonialismo [relações imperialistas constituídas, particularmente, pela Inglaterra], provocou conseqüências (políticas e econômicas) de enorme monta para a estruturação e a evolução do capitalismo no Brasil (FERNANDES, 2008, p.24).
O terceiro e último ciclo se iniciou no período Pós-Segunda Guerra Mundial,
quando os Estados Unidos buscaram hegemonizar o seu modelo de desenvolvimento
para o resto do mundo. Escreve o ativista alemão Wolfgang Sachs (2000, p. 118): “O
significado do desenvolvimento depende da maneira como as nações ricas se sentem”. A
afirmação de Sachs é dotada de sentido quando se vasculha na história2 as condições objetivas e
subjetivas que determinaram a implantação do projeto hegemônico de desenvolvimento a partir
de meados do século XX.3 Talvez um dos acontecimentos mais marcantes nos últimos 60 anos
foi o discurso do presidente estadunidense Harry Truman, quando buscou definir, no Pós-
Guerra, um padrão de desenvolvimento mundial, tomando como referência o modelo
tecnológico e industrial do seu país. Discursa Truman em 20 de janeiro de 1949:
É preciso que nos dediquemos a um programa ousado e moderno que torne nossos avanços científicos e nosso progresso industrial disponíveis para o crescimento e para o progresso das áreas subdesenvolvidas. O antigo imperialismo – a exploração para o lucro estrangeiro – não tem lugar em nossos planos. O que imaginamos é um programa de desenvolvimento baseado nos conceitos de uma distribuição justa e democrática (TRUMAN citado por ESTEVA, 2000, p. 60. Grifo nosso).
2 De acordo com o escritor e militante mexicano Gustavo Esteva (2000), o desenvolvimento descreve um processo pelo qual são liberadas as potencialidades de um objeto ou de um organismo para que esse venha a alcançar sua forma natural, completa e amadurecida. Daí o uso do termo para explicar o crescimento natural de plantas e animais. Na biologia, o desenvolvimento refere-se ao processo por meio do qual organismos atingem o seu potencial genético: “a forma natural daquele ser, prevista pelo biólogo”. Frustra-se o desenvolvimento “[...] todas às vezes que a planta e ou animal não lograssem cumprir seu programa genético [...]” (ESTEVA, 2000, p. 62). Tal acontecimento decorreria uma anomalia. Segundo o autor, a metáfora biológica do desenvolvimento para a esfera social, mais particularmente para a história, ocorreu a partir de meados do século XVIII, quando Herder buscou fazer a comparação entre as fases da vida humana com a história social. “Segundo ele, o desenvolvimento histórico seria a continuação do desenvolvimento natural; e ambos seriam meras variantes do desenvolvimento homogêneo do cosmos criado por Deus” (ESTEVA, 2000, p. 62). No início do século XIX, sustentado pela lógica antropocêntrica da modernidade o autodesenvolvimento tornou-se moda na Europa, abrindo “[...] todas as possibilidades para o sujeito humano, agora autor de seu próprio desenvolvimento e livre dos desígnios divinos”. Pouco mais adiante, o desenvolvimento (o desenvolvimento das forças produtivas) tornou a categoria central na obra de Karl Marx. “A concepção hegeliana da história e a darwinista da evolução fundiram-se no conceito de desenvolvimento e adquiriram novo vigor com a aura científica de Marx” (ESTEVA, 2000, p. 62). Nas fronteiras do século XIX e XX, o termo desenvolvimento incorporava o linguajar popular. Na virada do século XX, a palavra desenvolvimento é adjetivada pelo urbano: “desenvolvimento urbano” das áreas periféricas resultantes do processo de industrialização na Europa e nos Estados Unidos. Em 1939, o governo britânico edita a Lei de Desenvolvimento e Bem-Estar das Colônias, objetivando dar um conteúdo simpático à sua condição colonial: “Com a intenção de dar à filosofia do protetorado colonial um sentido positivo, os britânicos sustentavam que seria necessário assegurar níveis mínimos de nutrição, saúde e educação aos nativos. Um duplo mandato começou a ser esboçado: o conquistador deveria ser capaz de desenvolver a região conquistada e, ao mesmo tempo, de aceitar a responsabilidade de cuidar do bem-estar dos nativos. Quando o nível de civilização passou a ser identificado com o nível de produção, o duplo mandato deu lugar a apenas um: o desenvolvimento” (ESTEVA, 2000, p. 64). 3 O discurso proferido por Clinton Anderson, Secretário da Agricultura dos EUA, em 1946: “Não existe uma solução agradável. O fato de que em alguns países as pessoas morrem de fome não é razão suficiente para fornecer [assistência]... Nós estamos na posição de uma família que tem uma ninhada de filhotinhos indesejados; nós temos que decidir quais serão afogados.” (citado FRITH, 1995,citada por BARCELLOS, 2008, p. 29).
6
Com esse discurso, Truman inaugurou, segundo Esteva, a Era do desenvolvimento. Desde
então, o objetivo dos Estados Unidos foi inserir, particularmente os países do Sul, denominados
por eles de “subdesenvolvidos”, à nova dinâmica desenvolvimentista: “Naquele dia [20 de
janeiro de 1949], dois bilhões de pessoas passaram a ser subdesenvolvidas. [...] deixaram de ser
o que eram antes, em toda a sua diversidade, e foram transformados magicamente em uma
imagem inversa da realidade alheia” (ESTEVA, 2000, p. 60). Truman introduz o
desenvolvimento como símbolo de sua política externa, adotando, para alguns autores, outra
forma de colonização: nesse contexto, a palavra desenvolvimento adquiriu uma virulência
colonizadora insuspeita, construindo a necessidade de se escapar da condição indigna chamada
subdesenvolvimento. “Para que alguém possa sequer imaginar a possibilidade de escapar de
uma situação específica, é preciso, primeiramente, que tenha chegado àquela situação
específica” (ESTEVA. 2000, p. 60), ou seja, para a grande maioria da população mundial pensar
em alcançar o desenvolvimento econômico/industrial era preciso que assumisse a sua condição
de subdesenvolvida (BARCELLOS, 2008).
No conceito de desenvolvimento está inserida a idéia de “progresso cultural” vinculado
aos avanços científicos e tecnológicos.
O desenvolvimento é sinônimo de crescimento econômico, compreendido como a passagem de uma economia tradicional, eminentemente agrícola, para outra moderna, industrializada, favorecida por um processo de expansão quantitativa, por um contínuo progresso científico e tecnológico, aplicado à produção para fazer aumentar a produtividade, crescer o montante do capital e o PNB - Produto Nacional Bruto. (RIZZOTTO, citado por SALOMÃO, 2006, p. 102).
O capitalismo não compreende, em sua lógica, modos de vida que possuem
temporalidades distintas da sua. Assim, todos que não podem ser classificados segundo suas
categorias são invisibilizados ou subordinados. Neste caso, territórios ocupados por populações
não inseridas na dinâmica do capital são considerados vazios ou subutilizados.
Por outro lado, as sociedades do chamado Terceiro Mundo não são vistas com modos de
vida próprios, mas atrasadas e em direção a um desenvolvimento progressivo. Segundo
Salomão (2006), para justificar a industrialização a todo custo, faz parte da estratégia de
implantação dos grandes projetos a colocação da crença de que os empreendedores são os
portadores de uma mudança social: a população é vista como atrasada, a região estagnada e o
empreendimento será o portador do progresso para todos. Assim, os impactos negativos são
7
vistos como pequenos prejuízos necessários para o progresso e qualquer resistência é lida como
um obstáculo à mudança e ao progresso social, cultural e econômico.
Na grande maioria das vezes, na implantação de grandes projetos, as comunidades
envolvidas não são vistas como sujeitos políticos, produzindo-se o que Vainer (2006) chama de
naturalização das populações junto com o meio físico, ou seja, como se estas fizessem parte da
paisagem subordinada aos olhos verdadeiramente humanos. Falando de outra forma: é como se
estas populações não possuíssem o mesmo grau de humanidade dos sujeitos condutores do
desenvolvimento. São povos sem história, que vivem em “estado de natureza”, em estágios
inferiores de um mesmo continuum onde no ápice do desenvolvimento estão a Europa e os
EUA. Neste sentido, o desenvolvimento permitirá a essas populações a sua inclusão na história,
a sua humanização e, por conseqüência, a sua civilização.
Em praticamente todos os estudos de previsão e avaliação de impactos ambientais de grandes projetos temos uma divisão fundamental: a ação
impactante e o objeto impactado. De um lado o projeto, o empreendimento, o empreendedor; de outro lado, a região afetada, o meio ambiente impactado, a
população atingida. Na verdade, de um lado um sujeito de ações, de outro lado o
objeto, alvo ou campo de exercício destas ações [...] a população, suas formas de existência social e as formas vigentes de sua relação com o seu meio ambiente
vêem-se reduzidas a meio ambiente de obra. (VAINER, citado por SALOMÃO, 2006, p. 103. grifos do autor).
A idéia de subdesenvolvimento possibilita a definição de pobreza numa escala global,
Obviamente, em toda sociedade há coisas sendo produzidas, distribuídas e consumidas, mas
nem toda sociedade que possui uma atividade econômica se organiza a partir da lógica
capitalista. Entretanto, desde a década de 1950, o modo de vida das comunidades tradicionais
vem sendo incorporado à definição de pobreza.
[...] a naturalização da pobreza [...] corresponde ao desconhecimento de sujeitos sociais, especificidades culturais e contextos sócio-políticos. Temos a transformação da pobreza num objeto em si, descolada das relações societárias. (RIBEIRO, citado por SALOMÃO, 2006, p. 102)
Para Salomão (2006), no fim dos anos 60, ficou claro que a conjunção de crescimento
econômico com o progresso social não funcionava. No mais, a preocupação dos Estados Unidos
com o crescimento populacional mundial possibilitou, nesse mesmo período, o surgimento da
concepção neomalthusiana. Eles atribuíam a culpa dos problemas ambientais – que surgiam em
decorrência do processo acelerado de industrialização – ao crescimento populacional,
particularmente, nos países do Terceiro Mundo. Foi então que o presidente do Banco Mundial,
8
Robert McNamara, em 1973, propôs novas alternativas para a promoção do desenvolvimento:
rapidamente, fenômenos tais como desemprego, pobreza, injustiça e degradação ambiental
foram transformados em problemas que deveriam ser resolvidos com estratégias especiais de
desenvolvimento.
Dessa forma, problemas decorrentes do processo de industrialização foram
transformados em argumentos para dar continuidade ao projeto desenvolvimentista. “De tal
modo, a questão do crescimento econômico é colocada como condição a priori para a solução
dos problemas sociais” (RIZZOTTO, citado por SALOMÃO, 2006, p. 103). Desenvolvimento
tornou-se uma expressão não muito clara, mas que podia expressar qualquer coisa, uma vez
que “Desenvolvimento, assim, não tem conteúdo, mas possui, sim, uma função: permite
qualquer intervenção para ser santificado em nome de um objetivo maior, em evolução”
(SACHS, 1989, p. 7).
Mediante a publicação do Relatório da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento pela ONU, mais conhecido como o Relatório de Brundtland, em 1987, intitulado
“Nosso Futuro Comum”, pôde-se assistir novamente à escolha insistente da pobreza como a
causa principal da degradação ambiental e obstáculo à promoção do desenvolvimento. Acusou-
se a pobreza de reduzir a capacidade de uso dos recursos de forma sustentável: “[...] ela [a
pobreza] intensifica a pressão sobre o ambiente [...]. Uma condição necessária, mas não
suficiente para a erradicação da pobreza absoluta é um crescimento relativamente rápido nas
rendas per capita no Terceiro Mundo.” (COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E
DESENVOLVIMENTO, 1989, citada por SACHS, 2000, p. 121).
“Não há desenvolvimento sem sustentabilidade; não há sustentabilidade sem
desenvolvimento.” (Ibidem). O Relatório de Brundtland celebrou a união entre desenvolvimento
econômico e sustentabilidade. Segundo Barcellos (2008), se nas décadas de 1970 e 1980 a palavra
de ordem era redução populacional e crescimento econômico equitativo, nos anos 1990 passou a ser
desenvolvimento sustentável. No entanto, a estratégia discursiva continuava a responsabilizar o
Terceiro Mundo por sua incapacidade em abraçar o projeto moderno de desenvolvimento,
impedindo que se considerasse a presença definitiva dos chamados países desenvolvidos na
exploração dos recursos naturais e, por conseguinte, que se acertasse o verdadeiro alvo da crise
ambiental: o alto padrão de consumo dos países desenvolvidos. “Neste caso, agimos [o Primeiro
Mundo] como se possuíssemos uma considerável fatia do planeta fora da Europa”, aponta
9
Martínez-Alier (1999, citado por BARCELLOS, 2008, p. 34). No entanto, continua o autor: 4
“Quase ninguém está reclamando ou tentando cobrar de nós uma multa; porém, já se ouvem
ruídos vindos de baixo, relativos à ‘dívida ecológica’5 (com aspectos espaciais e temporais) que
isso constitui.” (MARTÍNEZ-ALIER, 1999, citado por BARCELLOS, 2008, p. 34).6
Quando da publicação do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em
1992, o mundo pôde constatar que as estratégias desenvolvimentistas implementadas por quase
quatro décadas falharam. Observou-se uma forte polarização da riqueza produzida entre as
décadas de 1960 e 1980: “[...] 82.7% do rendimento global ficam por conta dos 20% mais ricos,
enquanto que os 20% mais pobres ficam com 1.4%. Em 1960, o quinto do topo [20% mais ricos]
da população mundial ganhava trinta vezes mais do que o quinto da base [20% mais pobres]”
(PEET; WATTS, 1996, citados por BARCELLOS, 2008. p. 34). Ainda, de acordo com os autores,
até 1989, a disparidade havia crescido sessenta vezes. O desenvolvimento havia mudado a face
do Planeta, mas não da forma como se esperava: “Em 1960, os países do Norte eram 20 vezes
mais ricos que os do Sul; em 1980, essa proporção já havia aumentado 46 vezes” (SACHS, 2000,
p. 14).
Ao final do século XX, segundo Gustavo Esteva, a metáfora do desenvolvimento deu
hegemonia global a uma história puramente ocidental,7 roubando dos povos com culturas
diferentes a oportunidade de definir as formas de sua vida social.
Quando a metáfora [do desenvolvimento] voltou ao vernáculo, absorveu um poder colonizante súbito e violento, logo utilizado pelos políticos da época. Converteu a história em um programa: um destino necessário e inevitável. O
4 “Martínez-Alier (1999, p. 216) trabalha o conceito de distribuição ecológica: “[...] refere-se às assimetrias ou desigualdades sociais, espaciais e temporais na utilização pelos humanos dos recursos e serviços ambientais, objeto ou não de trocas comerciais, isto é, ao esgotamento dos recursos naturais (incluindo a perda da biodiversidade), bem como às cargas de poluição (BARCELLOS, 2008, p. 34) .” 5 “Segundo Martínez-Alier (1999, p. 217), a dívida ecológica é originada do uso de um espaço ambiental que vai além do próprio território. “O relatório da organização não-governamental Amigos da Terra (Friends of the Earth) acerca da Holanda, em 1993 [...], a partir de premissas adequadas, mostrou que aquele país absorve um espaço ambiental aproximadamente quinze vezes maior do que seu próprio território.” BARCELLOS, 2008, p.34) .” 6 “Otto Ullrich (2000, p. 345) escreveu: ‘No momento atual, a quantidade de combustível fóssil queimado por ano equivale ao que foi armazenado pela natureza em um período de quase um milhão de anos. A maior parte deste combustível, cerca de 80%, é utilizada pelos países industriais, onde vivem somente 25% da população mundial. Esse apetite voraz dos recursos torna-se ainda mais evidente no caso dos Estados Unidos: menos de 6% da população mundial consomem cerca de 40% dos recursos naturais do mundo. Se esse modo de produção industrial e estilo de vida se expandisse para toda a população da terra, seria necessário que cinco ou seis planetas iguais à Terra estivessem disponíveis para o saqueio de recursos e recolhimento do lixo.’” (BARCELLOS, 2008, p. 34) 7 Para Gustavo Esteva, “[...] a mera associação de nossos projetos de vida com o desenvolvimento tende a anulá-los, contradizê-los, subordiná-los. Ela impede que pensemos sobre nossos próprios objetivos [...]; ela corrói a autoconfiança e a confiança em nossa própria cultura [...]; ela clama por aquele tipo de gerenciamento de cima para baixo [...]; ela converte a participação em truque manipulativo para envolver indivíduos em conflitos para obter algo que os poderosos querem lhes impor [...] (ESTEVA, 2000, p. 64).
10
modo de produção industrial, que era nada mais que uma entre as muitas formas de vida social, tornou-se por definição o estágio final de um caminho unilinear para a evolução social. Esse estágio, por sua vez, passou a ser visto como a culminação natural de potenciais já existentes no homem neolítico e como sua evolução lógica. Assim, a história foi reformulada nos termos do Ocidente (ESTEVA, 2000, p. 63).
Observa-se que, a partir dos eventos citados e das reflexões esboçadas pelos diversos
autores, é difícil, senão impossível, desconectar a expressão “desenvolvimento” da lógica
moderno-industrial, já que ele se produz e reproduz – do ponto de vista material e simbólico –
dentro do contexto da sociedade moderno-industrial. Para Shiva (1991), por exemplo, as teorias
do desenvolvimento, na contemporaneidade, focam o progresso puramente derivado das
economias industrializadas, na pressuposição de que o estilo de progresso ocidental seria
possível para todos. O desenvolvimento, como a melhoria do bem-estar de todos, foi então
igualado com categorias ocidentalizadas – necessidades humanas, produtividade e crescimento:
“O desenvolvimento como acumulação de capital e mercantilização da economia para a geração
de ‘excedentes e lucros’ envolve, portanto, a reprodução não apenas de determinadas formas de
criação de riqueza, mas também [e sobretudo] formas de criação de pobreza.” (SHIVA, 1991,
citada por BARCELLOS, 2008, p.34).
A despeito da promoção do desenvolvimento inclusivo e para todos, conclui-se,
tomando como referência as questões aqui suscitadas, que o termo “desenvolvimento” é
marcado por um emaranhado de estratégias teórico-político-econômicas que busca garantir, em
última instância, fôlego ao modo de produção capitalista. Dito isto, a expressão
“desenvolvimento” deve estar sempre sob forte suspeitas e mesmo as ações ditas “bem
intencionadas” devem ser avaliadas com o rigor que a questão exige.
2. 2 - O desenvolvimento e os direitos humanos
Ao se analisar a relação desenvolvimento e direitos humanos, algumas indagações
devem ser consideradas: não estaria na gênese do desenvolvimento (hegemônico) a violação de
direitos humanos? É possível conceber uma forma digna de desenvolvimento dentro da
sociedade moderno-industrial? Seria possível identificar dentre os projetos de desenvolvimento
implantados nos países do Terceiro Mundo aqueles que respeitam os direitos humanos das
populações locais e, por conseguinte, o seu modo de vida? Estas questões se fizeram presentes
no decorrer desta investigação.
11
Tomando como parâmetros os documentos da ONU, pode-se observar que este
organismo abraçou fortemente a discussão acerca do desenvolvimento, tanto na implementação
de políticas que pudessem promover a “inclusão” dos países ‘pobres’ no projeto hegemônico de
desenvolvimento quanto em ações que pudessem lidar com os seus impactos negativos. Ao
mesmo tempo, populações impactadas negativamente pelas ações desenvolvimentistas viram-
se excluídas do desenvolvimento. Não obstante, a sua inclusão já estava dada, mas de forma
desigual e subordinada.
Na Resolução nº 41/128, de 4 de dezembro de 1986, publicada pela Assembléia Geral das
Nações Unidas, que trata da relação desenvolvimento e direitos humanos, definiu-se o
desenvolvimento como um processo econômico, social, cultural e político abrangente, “que visa
ao constante incremento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos com base
em sua participação ativa, livre e significativa no desenvolvimento e na distribuição justa dos
benefícios daí resultantes” (ONU, 1986). A Resolução confirma o direito ao desenvolvimento
como um direito humano inalienável e que a igualdade de oportunidade para o
desenvolvimento é uma prerrogativa também das nações/povos que compõem os Estados-
nação, ou seja, das diversas e diferentes nações que integram o conjunto do Estado-nação. E
mais, a Convenção 169 da OIT (aprovada no ano de 2002 pelo Congresso Nacional brasileiro e
promulgada em 2004 pela Presidência da República), no seu art. 7º, itens 1 a 3, estabelece que:
1. Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente.
2. A melhoria das condições de vida e de trabalho e do nível de saúde e educação dos povos interessados, com a sua participação e cooperação, deverá ser prioritária nos planos de desenvolvimento econômico global das regiões onde eles moram. Os projetos especiais de desenvolvimento para essas regiões também deverão ser elaborados de forma a promoverem essa melhoria.
3. Os governos deverão zelar para que, sempre que for possíve1, sejam efetuados estudos junto aos povos interessados com o objetivo de se avaliar a incidência social, espiritual e cultural e sobre o meio ambiente que as atividades de desenvolvimento, previstas, possam ter sobre esses povos. Os resultados desses estudos deverão ser considerados como critérios fundamentais para a execução das atividades mencionadas.
12
A Resolução nº 41/128 diz ainda, no seu art. 2°, que “A pessoa humana é o sujeito central
do desenvolvimento e deveria ser participante ativo e beneficiário do direito ao
desenvolvimento” (Ibidem). Para tanto, estabelece como obrigação para os estados nacionais,
signatários de tais instrumentos (Estados-partes), a de promover o respeito e a observância
universais aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, “sem distinção de
qualquer natureza, tal como de raça, cor, sexo, língua, religião, política ou outra opinião
nacional ou social, propriedade, nascimento ou outro status” (Ibidem).
A Resolução nº 41/128 toma os direitos humanos e as liberdades fundamentais como
indivisíveis e interdependentes. Por conseguinte, considera imprescindíveis a eliminação das
violações maciças e flagrantes dos direitos humanos dos povos e indivíduos afetados por
situações resultantes do colonialismo, neocolonialismo, apartheid, de todas as formas de racismo
e discriminação racial, dominação estrangeira e ocupação, agressão e ameaças contra a
soberania nacional, unidade nacional e integridade territorial. Tais eventos, segundo ela,
impedem o estabelecimento de circunstâncias propícias ao desenvolvimento de grande parte da
humanidade e à sua completa realização, implicando na negação dos direitos civis, políticos,
econômicos, sociais e culturais.
A Resolução incorpora ainda, no seu art. 1º, inciso II, o direito à autodeterminação:
O direito humano ao desenvolvimento também implica a plena realização do direito dos povos de autodeterminação que inclui, sujeito às disposições relevantes de ambos os Pactos Internacionais sobre Direitos Humanos, o exercício de seu direito inalienável de soberania plena sobre todas as suas riquezas e recursos naturais.
E no seu art. 2º, inciso II:
Os Estados [nacionais] têm o direito e o dever de formular políticas nacionais adequadas para o desenvolvimento, que visem ao constante aprimoramento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos, com base em sua participação ativa, livre e significativa e no desenvolvimento e na distribuição eqüitativa dos benefícios daí resultantes.
Art. 3º, inciso I: “Os Estados têm a responsabilidade primária pela criação das condições
nacionais e internacionais favoráveis à realização do direito ao desenvolvimento”; no seu art. 4º,
inciso I:
É necessária ação permanente para promover um desenvolvimento mais rápido dos países em desenvolvimento. Como complemento dos esforços dos países em desenvolvimento, uma cooperação internacional efetiva é essencial para prover esses países de meios e facilidades apropriados para incrementar seu amplo desenvolvimento.
13
Art. 6º, Inciso III: “Os Estados devem tomar providências para eliminar os obstáculos ao
desenvolvimento resultantes da falha na observância dos direitos civis e políticos, assim como
dos direitos econômicos, sociais e culturais”.
Art. 8º diz que:
1. Os Estados devem tomar, em nível nacional, todas as medidas necessárias para a realização do direito ao desenvolvimento e devem assegurar, inter alia, igualdade de oportunidade para todos, no acesso aos recursos básicos, educação, serviços de saúde, alimentação, habitação, emprego e distribuição eqüitativa da renda. Medidas efetivas devem ser tomadas para assegurar que as mulheres tenham um papel ativo no processo de desenvolvimento. Reformas econômicas e sociais apropriadas devem ser efetuadas com vistas à erradicação de todas as injustiças sociais.
2. Os Estados devem encorajar a participação popular em todas as esferas, como um fator importante no desenvolvimento e na plena realização de todos os direitos humanos.
E, no seu último artigo (art. 10) estabelece que “Os Estados deverão tomar medidas para
assegurar o pleno exercício e fortalecimento progressivo do direito ao desenvolvimento,
incluindo a formulação, adoção e implementação de políticas, medidas legislativas e outras, em
níveis nacional e internacional”.
Os conteúdos da Convenção 169 da OIT e da Resolução 41/128 possibilitam uma série de
reflexões acerca da relação desenvolvimento e direitos humanos, e ainda problematiza a própria
questão do desenvolvimento como possibilidade ou ameaça à realização dos direitos humanos.
Coloca com força a “[...] diferença entre os compromissos feitos pelo Estado (os direitos
humanos em princípio) e a possibilidade de desfrutar dos ditos direitos na realidade do país (os
direitos humanos na prática)” (RIGHTS AND DEMOCRACY, s/d, s/p). Esta diferença entre os
direitos humanos como princípio e a sua realização se explicita no fato de já terem se passado 23
anos desde a publicação da Resolução 41 e o que se pode observar é que, apesar da existência de
importantes instrumentos jurídico-políticos e dos esforços coletivos de diferentes sujeitos em
diversas partes do planeta, estes não conseguiram humanizar o processo de desenvolvimento,
particularmente, nos países do Terceiro Mundo. Observa-se constantemente a violação dos
direitos humanos de grupos e populações locais e/ou tradicionais em nome do
desenvolvimento. Neste sentido, o processo ocorrido no território quilombola do Sapê do Norte
exemplifica com bastante propriedade a desumanidade do desenvolvimento.
14
2.3 - A especificidade do EIDH/RIDH no Espírito Santo: população quilombola e os direitos étnicos no Brasil
A questão étnica tem grande relevância na realização do presente estudo. Refletir acerca
dos impactos de grandes projetos sobre populações quilombolas implica em se discutir
especificidades que envolvem estes sujeitos na sua trajetória sócio-histórica. Não é possível
ignorar que essas populações ocupam na sociedade contemporânea um lugar determinado ou
influenciado pela experiência colonial; que essa tradição persiste ao longo dos séculos e se
manifesta de diversos modos, reforçando o lugar de subalternidade dos negros no sistema-
mundo (WALLERSTEIN, 1990). No Brasil, apesar do discurso da miscigenação, da mistura de
raças, observa-se que esse lugar de exclusão e desrespeito continua existindo e, em muitos
casos, se ampliando. Para Boaventura de Sousa Santos, o Brasil pode estar transpondo o
período da pós-Independência e chegando ao período pós-colonial. Segundo o autor, a entrada
no pós-colonialismo “[...] dá-se pela constatação de que o colonialismo, longe de ter terminado
com a Independência, continuou sob outras formas, mas sempre em coerência com o seu
princípio matricial: o racismo como uma forma de hierarquia social não intencional, porque
assente na desigualdade natural das raças” (SANTOS, As dores do pós-colonialismo. Folha de
São Paulo. São Paulo: 11 ago. 2006).
No entanto, não se pode desconhecer a existência de instrumentos jurídico-políticos
internacionais que buscam romper com a subordinação de raça. Por isso, alerta a
desembargadora federal, Maria Lúcia Luz Leiria, que é preciso superar o conceito “quilombola”
vinculado à legislação colonial escravocrata, tendo em vista que:
a) a historiografia reconhece a diversidade cultural e de organização dos quilombos, que não se constituíam apenas de escravos fugitivos; b) a Associação Brasileira de Antropologia-ABA estabeleceu, com base em estudos empíricos, um marco conceitual, a servir de base para o tratamento jurídico; c) o dispositivo constitucional, de caráter nitidamente inclusivo e de exercício de direitos, não pode ser interpretado à luz de uma realidade de exclusão das comunidades negras; d) os remanescentes não constituem "sobra" ou "resíduo" de situações passadas, quando o comando constitucional constitui proteção para o futuro [...].8
8 D.E. Publicado em 07/05/2009. Relatora: Des. Federal Maria Lúcia Luz Leiria. Disponível em http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/1309395/agravo-de-instrumento-ag-10160-pr-20080400010160-5-trf4.
15
Nesse sentido, alguns instrumentos se destacam ao proporem medidas que contribuem
para que esses povos se constituam sujeitos de direito, entre eles está o Pacto Internacional dos
Direitos Políticos e Civis, instituído em 1966, pela Organização das Nações Unidas, que tem
como um dos seus eixos principais questões relacionadas ao princípio da autodeterminação dos
povos, que é o direito de cada povo dispor de seu destino.
Artigo 1º
1. Todos os povos têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito, determinam livremente seu estatuto político e asseguram livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural.
2. Para a consecução de seus objetivos, todos os povos podem dispor livremente de suas riquezas e de seus recursos naturais, sem prejuízo das obrigações decorrentes da cooperação econômica internacional, baseada no princípio do proveito mútuo e do Direito Internacional. Em caso algum poderá um povo ser privado de seus próprios meios de subsistência.
3. Os Estados-partes no presente Pacto, inclusive aqueles que tenham a responsabilidade de administrar territórios não autônomos e territórios sob tutela, deverão promover o exercício do direito à autodeterminação e respeitar esse direito, em conformidade com as disposições da Carta das Nações Unidas.
A Constituição Federal brasileira traz para o seu conteúdo questões tratadas pelo Pacto
Internacional. O art. 4º da CF afirma que as suas relações internacionais serão guiadas pelos
princípios: II - prevalência dos direitos humanos; III - autodeterminação dos povos; VIII -
repúdio ao terrorismo e ao racismo. Segundo Sandro Silva (2010), “a idéia mais importante da
legislação sobre os direitos étnicos no Brasil contemporâneo é a idéia de autodeterminação”.
Para ele, apesar de o seu propósito ser remetido mais diretamente aos direitos dos povos
indígenas e quilombolas, a idéia de autodeterminação pode ser acessada por grupos sociais
“cuja identidade e os modos de produção e reprodução cultural são comprometidas pelo poder
econômico, político e social”.
Nascida após a Segunda Guerra Mundial a idéia de autodeterminação é uma aplicação dos Direitos Humanos que pretende que nenhuma forma de discriminação seja usada contra as populações cuja identidade não seja hegemônica. O acesso às identidades e identificações terá a partir de agora a memória como lugar privilegiado especialmente pela autodefinição que, afastando qualquer forma de objetivação científica da identidade, privilegiará as formas de inscrição desenvolvidas socialmente. A verdade não estará mais no corpo, mas na capacidade de lembrar as atrocidades da guerra e da ideologia do extermínio. É neste sentido que o passado, enquanto vida coletiva, pode ser nomeado como identidade de grupo. Esta nova memória possibilitará pensar os grupos e seus lugares de fabricação, seja a origem comum, a cultura comum, o território comum (SILVA, 2010)
16
Corrobora o princípio da autodeterminação o direito à auto-identificação. De acordo
com a Comissão Pró-índio, “a legislação brasileira reconhece como critério para determinação
de comunidades como quilombolas a auto-identificação. Esse critério está reconhecido no artigo
2º do Decreto 4.887/2003. Também está presente na Convenção 169 da OIT que estabelece o
critério da auto-identificação como fundamental para identificar os sujeitos de sua aplicação. O
direito de uma comunidade inteira se reconhecer quilombola abre um rico e profundo debate
sobre a importância de sua identidade sociocultural e a fortalece como sujeito coletivo de
direito.
Outro instrumento importante, neste caso de combate ao racismo, é a Convenção sobre a
Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial adotada pelas Nações Unidas em 21 de
dezembro de 1965 e ratificada pelo Brasil em 27 de março de 1968. Constitui o primeiro
instrumento internacional que trata, com profundidade, da relação entre racismo e direitos
humanos.
Na qualidade de instrumento global de proteção dos direitos humanos editado pelas Nações Unidas, a Convenção integra o denominado sistema especial de proteção dos direitos humanos. O sistema especial de proteção dos direitos humanos é endereçado a um sujeito de direito concreto, visto em sua especificidade e na concreticidade de suas diversas relações. Vale dizer, do sujeito de direito abstrato, genérico, destituído de cor, sexo, etnia, idade, classe social, dentre outros critérios, emerge o sujeito de direito concreto, historicamente situado, com especificidades e particularidades. Daí apontar-se não mais ao indivíduo genérica e abstratamente considerado, mas ao indivíduo especificado, considerando-se categorizações relativas ao gênero, idade, etnia, raça.
A Convenção afirma a necessidade de se eliminar a discriminação racial no mundo, em
todas as suas formas e manifestações, e de assegurar a compreensão e o respeito à dignidade da
pessoa humana, com a convicção “de que a doutrina da superioridade baseada em diferenças
raciais é cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa, e que
não existe justificação para a discriminação racial, em teoria ou na prática, em lugar algum”. A
Convenção estabelece o racismo como crime que deve ser combatido por todos os Estados-
partes.
No entanto, no Brasil, há forte reação por parte da elite, que organiza estratégias para
impedir avanços para que o Estado reconheça o imenso passivo que tem com os afro-
descendentes, parcela expressiva da população brasileira, e institua políticas e ações afirmativas
no sentido de contribuir para a realização dos seus direitos humanos. Escreve Boaventura de
Sousa Santos:
17
Assim se naturalizou um sistema de poder, até hoje em vigor, que, sem contradição aparente, afirma a liberdade e a igualdade e pratica a opressão e a desigualdade. Assentes nesse sistema de poder, os ideais republicanos de democracia e igualdade constituem hipocrisia sistêmica. Só quem pertence à raça dominante tem o direito (e a arrogância) de dizer que a raça não existe ou que a identidade étnica é uma invenção. O máximo de consciência possível dessa democracia hipócrita é diluir a discriminação racial na discriminação social. Admite que os negros e os indígenas são discriminados porque são pobres para não ter de admitir que eles são pobres porque são negros e indígenas. (SANTOS, As dores do pós-colonialismo. Folha de São Paulo. São Paulo: 11 ago. 2006).
Em 2001, a Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e
Intolerância Correlata observou que “[...] apesar dos esforços da comunidade internacional, os
principais objetivos [estabelecidos para as] três décadas de Combate ao Racismo e
Discriminação Racial não foram alcançados e que inúmeros seres humanos continuam até hoje a
ser vítimas do racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância. Tal constatação reforça a
idéia de que existe uma distância substancial entre a existência dos instrumentos de direitos
humanos e a sua realização de fato. Portanto, a luta anti-racista no interior da sociedade é
condição imprescindível para a sua superação. Afirma Santos (2006):
Uma democracia de muito baixa intensidade. A sua crise final começa no momento em que as vítimas da discriminação se organizam para lutar contra a ideologia que os declara ausentes e as práticas que os oprimem enquanto presenças desvalorizadas. Os agentes dessas lutas distinguem-se dos seus antecessores por duas razões. Em primeiro lugar, empenham-se na luta simultânea pela igualdade e pelo reconhecimento da diferença. Reivindicam o direito de ser iguais quando a diferença os inferioriza e o direito de ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza. Em segundo lugar, apostam em soluções institucionais dentro e fora do Estado para que o reconhecimento dos dois princípios seja efetivo. Daí a luta pelos projetos de Lei de Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial. O alto valor democrático desses projetos reside na idéia de que o reconhecimento da existência do racismo só é legítimo quando visa a sua eliminação. É o único antídoto eficaz contra os que têm o poder de desconhecer ou de negar o racismo para continuar a praticá-lo impunemente. Esses projetos de lei, se aplicados, darão ao Brasil uma nova autoridade moral e um novo protagonismo político no plano internacional (SANTOS, As dores do pós-colonialismo. Folha de São Paulo. São Paulo: 11 ago. 2006).
3 – PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Se por um lado a chegada de um grande investimento, no Brasil, é uma boa notícia para
o Estado, governos e investidores; por outro, pode ser motivo de alerta para comunidades locais
que terão que conviver, na maioria das vezes, com os impactos negativos do empreendimento.
18
Observa-se, particularmente, a partir da implantação de grandes projetos em países do Terceiro
Mundo, que comunidades têm utilizado de vários métodos para se fazer ouvir, seja porque já
vivenciam os impactos negativos ou porque buscam se antecipar a eles, temendo o
comprometimento do seu futuro. Contudo, em geral, quando as comunidades se confrontam
com governos e empresas implicadas, observa-se um grande desequilíbrio na correlação de
forças e as populações, que dispõem de poucos instrumentos (institucionais e organizativos),
acabam por “levar a pior nessa queda de braços”. Diante de tantos acontecimentos, são cada vez
mais numerosos aqueles que se inquietam com os impactos de grandes projetos
desenvolvimentistas, em especial neste caso os agroindustriais, sobre populações locais,
sublinhando dentre esses impactos a flagrante violação de direitos humanos.
Um investimento estrangeiro, na maioria das vezes, vindo do Norte, que busca realizar
aquisição de bens em um país, na maioria das vezes, do Sul, como de terras e de outros recursos
naturais, pode vir a assumir formas e conteúdo muito complexos, desorganizando o ambiente
local. Investidores, precavendo-se de qualquer transtorno e/ou comprometimento dos seus
investimentos, procuram reduzir os riscos em potencial, ou seja, apostam nas melhores
condições ambientais (matéria-prima, terra, recursos hídricos etc), mão-de-obra barata, leis mais
flexíveis, incentivos e subsídios oferecidos pelo país anfitrião, infra-estrutura, etc. Também são
avaliados os níveis de resistência e potencial de alianças político-institucionais locais, regionais
e nacionais.
As comunidades locais, por sua vez, ao se depararem com uma nova realidade, precisam
constituir os seus próprios instrumentos de proteção aos interesses da coletividade, de avaliação
e porque não dizer de resistência. Vários instrumentos foram instituídos no Brasil buscando
prevenir e/ou minimizar os impactos negativos de grandes projetos, a exemplo dos EIA/RIMAs,
da incorporação do custo ambiental pelos empreendimentos, da instituição do princípio
poluidor-pagador. No entanto, observa-se que tais instrumentos têm sido sistematicamente
burlados e/ou manipulados para legitimar ações de agressão ao meio ambiente, objetivando
ampliar cada vez mais o poder de acumulação de capital.
O EIDH/RIDH busca ser um instrumento que possibilitará levantar os impactos sobre os
direitos humanos de um projeto de investimento. Desta forma, objetiva-se ampliar o raio de
investigação acerca de um grande investimento, incorporando-lhe novas questões para além
daquelas, por exemplo, levadas em conta em um EIA/RIMA. Para tanto, toma-se como
referência, além da Resolução 41/128 de 1986, os princípios integrantes da Declaração Universal
dos Direitos Humanos e os tratados e acordos internacionais assinados pelo Brasil (veja abaixo).
19
Ao mesmo tempo, busca-se superar a idéia de que só especialistas têm condições de realizar
análises de impactos, destituindo as populações locais dos seus saberes/conhecimentos sobre o
seu ambiente. É preciso incorporar o olhar dos que vivem nas regiões e lugares impactados.
Para isso, é necessário estabelecer novas metodologias que impeçam a fragmentação da
realidade e do sujeito implicado nela; que acionem espaços efetivos e legítimos de participação
popular; que impeçam que tais instrumentos fiquem reféns daqueles que buscam privilegiar tão
somente a dimensão econômica/mercantil do investimento.
O presente estudo organizou seu roteiro de trabalho com base nas orientações do Centro
Internacional de Direitos Humanos e Desenvolvimento Democrático, conhecido como Rights
and Democracy.9 No guia que esta entidade elaborou para a realização de estudos de impactos
sobre direitos humanos, são sugeridas 24 etapas para a realização do estudo, contemplando
desde a elaboração do projeto até o momento de divulgação do relatório final. Neste caso
específico, buscando adequar a proposta do Rights and Democracy à realidade local, foram
realizadas apenas 18 etapas distribuídas em quatro grupos:
(i) A preparação do Estudo foi constituída por seis etapas, sendo elas: escolha de
uma coordenação para o projeto; encontro com as comunidades/lideranças
(Comissão Quilombola do Sapê do Norte) e aliados/apoiadores para
apresentação da proposta; estabelecimento dos objetivos do estudo; escolha
dos membros da equipe; determinação de como se reunir/levantar a
informação; elaboração de um plano de trabalho.
(ii) No campo do marco Jurídico, as etapas foram quatro: a identificação dos
tratados e acordos internacionais assinados pelo Brasil relacionados à
proteção dos Direitos Humanos; os instrumentos jurídicos nacionais,
estaduais e municipais de proteção aos direitos humanos; a seleção dos
Direitos Humanos a serem confrontados durante a pesquisa; e a seleção de
perguntas. Trabalhar de acordo com o marco de referência dos direitos
humanos significa observar e analisar uma situação, baseando-se nos direitos
garantidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Este
procedimento permite esclarecer o papel dos responsáveis (governos) e dos
titulares de direitos (que vivem sob a jurisdição do Estado). De acordo com
“Rights and Democracy”:
9 Ver: www.dd-rd.ca. Em português: “Direitos e Democracia”.
20
Um marco de referência de direitos humanos se baseia em um certo número de
princípios. Alguns dos mais importantes são os seguintes: a) participação e acesso à
informação: todos têm direito de participar no planejamento e na realização de decisões
que afetam seus direitos humanos e têm direito a acessar informação necessária para
participar verdadeiramente; b) imputabilidade e acesso a soluções eficazes: os
responsáveis (governos) têm obrigação de implementar seus compromissos relativos aos
direitos humanos. Os cidadãos devem ter acesso aos recursos eficazes quando correm a
violação dos seus direitos humanos; c) igualdade e não discriminação: todos os seres
humanos são iguais e ninguém deve ser sujeitado à discriminação. Deve-se outorgar
uma atenção especial a toda ação que pode resultar em discriminação, particularmente
contra os grupos mais vulneráveis; d) indivisibilidade dos direitos: todos os direitos
humanos, sejam sociais, econômicos, culturais, civis e políticos, são indivisíveis, estão
inter-relacionados e são interdependentes. [...] Uma avaliação de impacto em direitos
humanos (EIDH) é um processo que mede a diferença entre os compromissos feitos pelo
Estado (os direitos humanos em princípio) e a possibilidade de desfrutar dos ditos
direitos na realidade do país (os direitos humanos na prática). A avaliação trata de
identificar os direitos que não se respeitam ou para os que existem fortes indicadores de
que não serão respeitados no futuro (tradução nossa).
(iii) O processo de investigação foi divido em duas etapas: levantamento de dados
(empíricos); levantamento de informações disponíveis (revisão de literatura e
de documentos oficiais).
(iv) A análise e a divulgação do relatório foram constituídas em seis etapas:
sistematização e análises das informações; elaboração de um relatório (RIDH)
preliminar; seminário com as comunidades quilombolas e aliados/parceiros
para a apresentação e discussão do relatório preliminar; incorporação ao
relatório preliminar das alterações/sugestões; audiência pública aberta à
sociedade como um todo, quando deverão ser convidados representantes do
Estado e da Empresa; revisão do relatório; divulgação do relatório.
Após a escolha da coordenação pelo Centro de Defesa dos Direitos Humanos da Serra
(CDDH), foi marcada uma reunião com a participação de aproximadamente 100 pessoas (70
quilombolas de várias comunidades e lideranças integrantes da Comissão Quilombola Sapê do
Norte e apoiadores/aliados, tais como: lideranças indígenas; Observatório dos Conflitos no
Campo da Universidade Federal do Espírito Santo, professores, pesquisadores e alunos desta
universidade; Fórum de Mulheres do Espírito Santo (FOMES); Movimento dos Pequenos
Agricultores/MPA); Rede Alerta Contra o Deserto Verde; Federação dos Órgãos de Assistência
Social e Educacional (FASE); CDDH e Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos
Humanos (PPDDH), onde foram expostas as idéias acerca do estudo. Depois de uma longa
discussão, a proposta foi bem recebida pelos presentes, que enunciaram algumas questões, tais
como: que o estudo fosse utilizado para denunciar a situação de violência e opressão vivida
21
pelas comunidades; que fortalecesse a sua luta pelo território tradicional quilombola. Com
relação aos eixos, deliberou-se que o estudo investigasse, em especial:
a) a situação dos criminalizados/constrangidos/perseguidos;
b) as questões relacionadas ao território quilombola;
c) a destruição dos ecossistemas locais;
d) o comprometimento da sua cultura.
A partir daí, começou-se a esboçar de forma um pouco mais detalhada o estudo,
definindo-se por três eixos de investigação: Os impactos sobre o Território/terra, os impactos
socioambientais e a situação de criminalização de quilombolas. O aspecto cultural deveria
perpassar as análises dos três eixos de investigação. Para tanto, estabeleceu-se um
subcoordenador para cada eixo.
Em seguida, foi marcada uma reunião com a Comissão Quilombola, quando foram
escolhidos três jovens quilombolas para contribuir no levantamento de dados. Foi proposto pela
comissão que o estudo priorizasse o levantamento da situação dos quilombolas criminalizados,
constrangidos e perseguidos dentro de suas comunidades pela Visel e Garra, empresas de
segurança da Aracruz Celulose, pela Polícia Militar e por outros funcionários ou aliados da
Empresa, como é o caso do Movimento Paz no Campo (MPC), constituídos por fazendeiros,
latifundiários e pequenos proprietários instalados nas regiões do entorno das comunidades.
Diante da solicitação, decidiu-se por priorizar tal levantamento e para isso foi usado o
questionário do Programa de Proteção dos Defensores dos Direitos Humanos (PPDDH). Foram
preenchidos 44 questionários.
A fase seguinte foi se debruçar sobre os marcos jurídicos no âmbito internacional que foram
confrontados com os dados resultantes do estudo. Tomaram-se como referências:
1. Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948 e ratificada pelo Brasil em 10 de dezembro de 1948.
2. Convenção sobre a Eliminação de todas das formas de Discriminação Racial adotada pelas Nações Unidas em 21 de dezembro de 1965 e ratificada pelo Brasil em 27 de março de 1968.
3. Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), ratificado pelo Brasil em 24 de abril de 1992
4. Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966), ratificado pelo Brasil em 24 de abril de 1992.
5. Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (1979), ratificado pelo Brasil em 2 de março de 1984.
22
6. Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais (1989), ratificada pelo Brasil em 25 de julho de 2002.
7. Convenção 111 sobre a Discriminação (emprego e ocupação) da Organização Internacional do Trabalho aprovada em 1958, ratificado em 16 de novembro de 1965.
8. Declaração sobre o Direito e o Dever dos Indivíduos, dos Grupos e das Instituições de Promover e Proteger os Direitos Humanos e as Liberdades Fundamentais Universalmente Reconhecidos, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 9 de dezembro de 1998.
9. Declaração Final dos Defensores de Direitos Humanos na III Consulta Latino-
Americana de Defensores e Defensoras dos Direitos Humanos, ocorrida em São Paulo,
em agosto de 2004.
Em âmbito nacional e estadual, tomaram-se como referências:
1. Constituição Federal do Brasil: Artigos 215, 216 e 225 da CF e Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
2. Constituição do Estado do Espírito Santo
3. Legislação que regulamenta a demarcação de terras quilombolas no Brasil (Decreto 4887/2003).
4. Legislação ambiental: Código Florestal 1965 e Resolução CONAMA nº 001 de 23 de janeiro de 1986 - EIA/RIMA.
5. Decreto de 13 de julho de 2006, que altera a denominação, competência e composição da Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.
6. Decreto 6.040 de 07 de fevereiro de 2007, que instituiu a Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais
7. Lei Estadual nº 5.623/98, que reconhece a propriedade definitiva de terras devolutas ocupadas por comunidades remanescentes de quilombolas;
8. Lei Estadual 617/1951, Lei Delegada Estadual 16/1967 e Decreto-Lei 2.688/1968 sobre terras devolutas.
Em seguida, foram cadastradas as pesquisas e trabalhos realizados sobre as
comunidades quilombolas: dissertação de mestrado e tese de doutorado de Simone Raquel
Batista Ferreira, dois relatórios sobre os “Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (DESC 1 e
2) elaborados pela FASE em parceria com a Rede Alerta Contra o Deserto Verde, Cartilha
Mulheres e Eucalipto editada pelo Movimento Mundial de Defesa das Florestas Tropicais
(WRM), em anexo a este relatório; Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID)
produzidos por equipes contratadas pelo INCRA/ES para o reconhecimento do território
quilombola no Sapê do Norte; tese de doutorado de Gilsa Helena Barcellos; tese de
doutorado de Marilda Maracci; Relatório final da CPI da Aracruz Celulose instalada pela
23
Assembléia Legislativa em 2002; Cartilha “Direitos Humanos e Aracruz Celulose”,
publicada pela Câmara Federal; a publicação “Quilombolas do Sapê do Norte: as
comunidades negras de Conceição da Barra e São Mateus”, da Koinonia (2005); Relatório da
autoria de Anna Fanzeres intitulado “Temas conflituosos relacionados à expansão da base
florestal plantada e definição de estratégias para minimização dos conflitos”, realizado em
2005, a pedido da Comissão Coordenadora do PNF (CONAFLOR); relatórios produzidos
pelo PPDDH; Relatório “O Gasoduto Cacimbas/Catu e as comunidades quilombolas do
Sapê do Norte”, de autoria de Sandro Silva (2009), em anexo a este relatório.
Com os dados em mãos, iniciou-se o processo de escrita do Estudo e Relatório de
Impactos em Direitos Humanos. Na medida em que questões importantes eram apontadas
pela revisão da literatura, novas perguntas e/ou sujeitos eram integrados à pesquisa
empírica.
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