quando a saúde e a educação partem às férias: uma abordagem histórica das colônias de férias...

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\O2014 RcnoW C IIlmu 11111.. 11111111\,Fernando César Paulino-Perelra; J61mll 1'1111111111111.. Ollv"I"I

Direitos desta edição adquiridos pela Paco Editorial NenhulHd P,II li' d,' ,I, 111>1.,1'"<1" lI'rapropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo Slnlllill,I'IH qIMlqu!'1 1\l11l1,1

ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc, sem a pe11ll1S\80 lI,l ~dllOld ~/ºu I1UIOI

B2786 Barros, Renata C. Bianchi de; Paulino-Pereira, FpJII,II1c!n CC~;II:Oliveira, Jáima Pinheiro de,Educação e Saúde Volume 11:questões práticas sobre o Plo(I'~~n dI' 11I1!'fjl.lção e inclusão social, Renata C. Bianchi de Barros; Fell1alldo «(I~dl 1',,"11110-Pereira; Jáima Pinheiro de Oliveira (orqs.). Jundial, Paco Lclllolidl lO 1~

256 p. Inclui bibliografia,

ISBN: 978-85-8148-663-5

1, Inclusão Social 2, Educação 3, Pedagogia 4, Saúde I. BilIlO~, Hl'l1.11,1 (Bianchi de 11. Paulino-Pereira, Fernando César 111, Oliveira, J.íinhl PllllwilO de,

C DD, 370

Índices para catálogo sistemático:

Interação social 302Estrutura Social- Grupos sociais 305Saúde Pública 614

IMPRESSO NO BRASILPRINTED IN BRAZIL

Foi feito Depósito Legal

PACO ~ EDITORIAl

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SUMÁRIO

Apresentação.iL. __",_" __,_,_"__,_", __,_,,,,,,,-""-"_,_,_,_" __,,,_,,,_,,_,,,,_,_,,_,,_,9

Parte 1SOCIEDADE E INCLUSÃO

CaPítulo 1O discurso da felicidade na sociedade de consumo,_""",_,,_,_,,_,21Neide Pena Cátia

Capítulo 2Quando a saúde e a educação partem às férias:uma abordagem histórica das colônias de fériasinfantis no último terço do século XIX._"_", ",_,_,_,_"",,_,_,,_,_,,.43André Dolben

CaPítulo 3",,_Afasta de mim esse cálice.,,": a memória coletiva comoinstrumento político da/na Psicologia Social no trabalhocom grupos focais com velhos"""""""""""""""""""""""""".59Joel Fernando Bore//a

CaPítulo 4Literatura humanizadora: prevenção ecombate ao preconceito nas instituições de ensino""""""""""".73Maykel Cardoso CostaS ilvana Augusta Barbosa Corrijo

CAPÍTULO 2

Quando a saúde e a educaçãopartem às férias: uma abordagemhistórica das colônias de férias

infantis no último terço doséculo XIX

André Dalben

A cada ano, com a chegada do verão, a interrupção nos estudosse impõe pelas férias escolares. Para muitas crianças, trata-se deum período aguardado com ansiedade, pois encontram a opor-t unidade para se entregarem completamente a múltiplos diverti-mentos. Em nossos imaginários mais contemporâneos, as fériasrepresentam frequentemente uma panaceia de nossa própriasociedade, momento de uma alegria esperada, no qual os dese-JOS mais aventureiros teriam supostamente a oportunidade de seconcretizar. No entanto, como todas belas histórias, este períodopode, por vezes, mostrar o seu lado mais sombrio, sobretudoquando consideramos aqueles para quem as férias permanecerão1'111 suas lembranças como momentos tristes e monótonos, poiscrão isentas de sua principal função de partida e descobertas.

1:,1) t re sonhos e reminiscências, as férias escolares são uma cons-Irução sócio-histórica e diferentes projetos foram concebidos,I<) longo do tempo para conferir significados e estabelecer usosl'spedflcos para este momento do ano letivo. Um desses proje-II)S fora certamente o das colônias de férias, as quais visaram,I11)1' muito tempo, oferecer às crianças matriculadas no sistemapublico de ensino uma viagem de partida dos maiores centros111 h:1I10S para ambientes onde reinasse o ar livre, dirigindo-seplIlll'ipnlmcntc para o campo, a montanha e ao litoral.

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Entre as décadas de 1930 e 1950, quando estas instituições setornaram uma realidade concreta em alguns estados brasileiros,como em São Paulo, que criou uma política pública ligada a suasestruturas administrativas para oferecer este serviço a uma par-cela dos escolares (Dalben; Soares, 2011), as colônias de fériaseram tema de debate entre médicos, enfermeiros, professores epolíticos de diferentes orientações. Após este período, o silênciopraticamente se impôs, muito embora observemos que, atual-mente, as colônias de férias sobrevivem com novas configura-ções e propósitos, sendo oferecidas principalmente pela inicia-tiva privada em clubes esportivos, hotéis, parques de diversões,shoppings centers e instituições de lazer de um modo geral, mastambém pelo terceiro setor e pelos municípios e administraçõesestaduais, invadindo praças, parques e ginásios públicos, assimcomo museus, planetários e jardins botânicos entre os meses dedezembro e fevereiro (Mollo-Bouvier, 1995).

No último terço do século XIX, período delimitado paraesta abordagem histórica, as colônias de férias representavamuma inovação para as áreas da saúde infantil e da educação, sen-do divulgadas em congressos científicos internacionais comouma medida assistencialista que poderia auxiliar na prevenção dedoenças e no ensino dos conteúdos escolares a partir do estudoconcreto da natureza e da sociedade. Entre os eventos que gera-ram maiores repercussões internacionais, colocando as colôniasde férias como centro das atenções de médicos e educadores dediferentes países, destacam-se o IV Congresso Internacional deHigiene e Demografia, ocorrido em 1882 na cidade de Genebra,e o I Congresso Internacional de Colônias de Férias, realizadoem 1888 em Zurique, sendo seus anais utilizados como fontesprincipais para a pesquisa que ora se apresenta neste capítulo.

Partindo de questões postas pelo tempo presente, de umolhar que só pode se estabelecer no momento atual, seguimosem viagem ao passado, à procura de vestígios destas instituições,de seus discursos silenciados e daqueles que possibilitaram sua

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.mergência enquanto uma nova instituição voltada especialmen-te ao público infantil. A narrativa desta viagem toca de maneirasutil o tempo presente, instigando um sem número de reflexõesa respeito de nossas sociedades e colocando em perspectiva osdiscursos da saúde e da educação que, por muito tempo, pauta-ram a criação de colônias de férias nos mais diversos cantos domundo e que permitiram a consolidação em nosso imaginárioelas férias como momento de repouso, de recuperação das ener-gias, propício às alegrias e descobertas múltiplas.

As COLÔNIAS DE FÉRIAS E O DISCURSO DA SAÚDE

A criação das primeiras colônias de férias foi contemporâneaao processo de aumento populacional de diversas cidades euro-peias, ocorrido durante todo o século XIX, em decorrência dogrande afluxo de camponeses que buscavam por trabalho nas in-dústrias nascentes logo que a energia a vapor fora introduzida,forçando-os a buscar outros meios de subsistência nos centrosurbanos. Aos recém-chegados nas cidades industriais do últimoterço do século XIX, era comum que encontrassem como únicaopção de vida se apinhar em moradias precárias, disputando portrabalhos em fábricas que exploravam suas forças até os últimoslimites e lhes pagavam salários que não os permitia sair da po-breza extrema. O saneamento urbano e as infraestruturas bási-cas eram quase sempre incipientes e ruas e vielas viviam sujas emal cheirosas. A fumaça produzida pelas fornalhas e pelo uso docarvão nas oficinas instaladas nos bairros centrais aumentava osodores nauseabundos e escurecia a paisagem. O próprio ar já nãoera mais livre, permanecendo muitas famílias sufocadas em antrossem ventilação e luz natural (Bresciani, 1982; Hobsbawm, 1962).

A grande concentração de pessoas nesses labirintos urbanosde cortiços, criados pela exploração imobiliária, gerava a rápi-da propagação de doenças, que em pouco tempo se tornavamverdadeiras epidemias. Pela ameaça que representavam aos mais

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ricos, uma vez que poderiam extrapolar os limites dos bairrospobres, as epidemias, cada vez mais violentas, despertaram aatenção das autoridades para a saúde pública (Rosen, 1994).Conforme analisa Michel Foucault (2005, p. 83), processos ecenários, como os descritos, motivaram a consolidação de "umapratica médica efetivamente centrada na melhoria do nível dapopulação". Médicos e leigos organizariam associações paraatuar com este propósito em diversos países, por meio da cria-ção de corporações médicas, não apenas nas universidades, masprincipalmente nas instâncias administrativas públicas, as quaisse incumbiriam pela saúde não mais somente de uma seletaclientela particular, mas principalmente da população mais po-bre, ou seja, de um corpo coletivo. As medidas adotadas centra-vam-se principalmente na circulação do ar e na aglomeração depessoas, sendo responsáveis por uma série de reformas urbanas,realizadas muitas vezes de forma intransigente e autoritária, as-sim como de medidas assistencialistas, frequentemente contro-versas e dirigidas, sobretudo, aos mais pobres.

Entre os profissionais representantes deste processo encon-trava-se o médico alemão Johann Gcorg Varrentrapp (1809-1886), responsável por uma série de ações de saneamento públi-co na cidade de Frankfurt com o objetivo de conter as epidemiasque corriqueiramente eclodiam. No entanto, o nome do médicoalemão seria reconhecido internacionalmente, especialmenteapós a apresentação que realizara em 1882 no IV Congresso In-ternacional de Higiene e Demografia, na qual dissertou a res-peito das colônias de férias que ajudara a organizar em seu país,assim como sobre aquelas criadas na Suíça e que lhe haviam ser-vido de inspiração.

De acordo com Philippe Alexandre Rey-Herme (1954), foipor conta desta apresentação que as colônias de férias seriamconhecidas e apreciadas pela comunidade médica internacionaldurante muito tempo; seria à Varrentrapp que se fariam refe-rências sem cessar e suas conclusões apresentadas na ocasião

Educação e Saúde: questões práticas sobre o processo de integração e inclusão social

do congresso não deixariam de representar uma autoridade noassunto. Observa-se, desta forma, que, diferentemente do quepoderíamos eventualmente conceber, as colônias de férias pos-suíram, inicialmente como principal argumento para o seu re-conhecimento internacional, questões ligadas principalmente aocampo da saúde pública.

Ao iniciar sua apresentação no evento, Varrentrapp (1882)dizia que as colônias de férias eram um assunto novo naquelemomento, muito embora já fossem conhecidas por alguns profis-sionais, especialmente na Alemanha e na Suíça.A proposta leva-da à apreciação dos médicos presentes no congresso de Genebrapoderia inaugurar um novo momento, no qual a atenção médicanão se dirigiria mais somente às questões sanitárias e higiênicasdo ambiente urbano. Tratava-se da tentativa de consolidação deurna nova estrutura, que atuaria de modo adjacente à escola, nomomento das férias, com o objetivo principal de transformar emelhorar a saúde das crianças mais debilitadas fisicamente porconta da nefanda realidade social e econômica a qual eram sub-metidas. Mais do que tratar doenças, o intento das colônias deférias descritas pelo médico alemão era de se antecipar ao mal,oferecendo espaços e técnicas que pudessem trabalhar o corpoinfantil de modo que este se tornasse mais resistentes às enfer-midades. Em sua apresentação, Varrentrapp deixara claro queas colônias de férias se diferenciariam dos hospitais e sanatóriosinfantis, principalmente por seu caráter preventivo.

A principal questão posta era a de não deixar as crianças nomomento das férias escolares a mercê de uma cidade insalubrec fonte de epidemias inúmeras que poderiam assaltar suas vidas.Pode-se ainda pontuar que, como não era mais possível afastaras doenças do ambiente urbano simplesmente enxotando os en-[ermos para fora de seus limites, como anteriormente procedidopor meio da técnica da quarentena, talvez fosse oportuno levaras crianças com saúde mais debilitada para que fortalecessemseus organismos em locais distantes, onde a natureza se fizesse

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mais presente, com o intuito de que quando regressassem pudes-sem melhor suportar as condições deletérias das ruas, fábricas" ecortiços, nos quais passavam grande parte dos dias. As colôniasde férias representavam, desse modo, uma medida quase que de-sesperada, aos nossos olhos atuais, de proteção às crianças maispobres frente aos efeitos nocivos de um urbano conturbado, pú-trido e exploratório.

Conforme analisado por Pablo Scharagrodsky (2006), as co-lônias de férias, segundo este prisma, poderiam, no entanto, nãopassar de uma medida meramente paliativa, uma vez que nãopromoviam alterações mais profundas nas estruturas sociais eeconômicas vigentes nas grandes cidades, permanecendo a mi-séria como uma realidade enraizada no meio urbano e a divisãoentre ricos e pobres inalterada. Este caráter se dava principal-mente por não se constituírem como medidas revolucionárias,pois em última análise não admitiam que as epidemias e a pobre-za extrema eram, na verdade, a consequência da exploração dohomem pelo homem. Por outro lado, tão pouco poderiam serenquadradas como medidas conservadoras que visariam mantera desigual realidade existente completamente inalterada, sem quesoluções, mesmo que imediatas, fossem concebidas para atendera uma parcela da população para a qual até então não se haviareconhecido o direito à saúde e a proteção do Estado.

Ao se considerar que muitas instituições hospitalares nesteperíodo se configuravam ainda como verdadeiros "morredou-ros, um lugar onde morrer" (Foucault, 2005, p. 102), sem queserviços que visassem efetivamente a cura das doenças fossemprestados, constituindo-se como uma instituição que asseguravaa segregação e a exclusão dos enfermos mais pobres do meiosocial, de modo que não representassem mais um perigo de con-tágio para os demais, pode-se então conceber as colônias de férias

4. Cabe pontuar que, tendo em vista a inexistência de leis trabalhistas e programassociais que coibissem e procurassem erradicar o trabalho infantil, esta era aindauma realidade muito presente em diversos países no final do século XIX.

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como medidas bastante progressista para a época, especialmentenoque diz respeito a sua função de tentar assegurar a saúde das crian-ças das famíliasque mais sofriam com as exploratórias dinâmicastrabalhistas instauradas pela grande maioria das indústrias e pelosperversos esquemas de inquilinato, que ofereciam moradias extre-mamente insalubres à preços elevados.

Às famílias abastadas, a medicina privada, realizada por mé-dicos particulares em seus consultórios ou em visitas domici-liares, e principalmente as instituições terapêuticas privadas esanatórios construídos distantes dos centros urbanos, nas mon-tanhas ou em vilarejos campesinos, era assegurada a tentativade cura mediante pagamento (Guillaume, 1989). As colônias deférias, por sua vez, ao permitirem às crianças atendidas "viver omáximo possível ao ar livre, habituá-las às abluções frias e aosbanhos de rios, ocupá-las à caminhada, à ginástica e à diversosjogos'" (Varrentrap, 1882, p. 163), romperiam com esta exclusi-vidade do ar livre para a saúde daqueles que podiam arcar comos custos das viagens e dos serviços das instituições de cura pri-vadas, ofertando-o às crianças até então sufocadas nos antrossem ar e sem luz das grandes cidades industriais.

Importante destacar ainda que a atenção à infância não es-lava completamente atrelada, no entanto, a uma concepção dacriança como sujeito portador de direitos, mas com uma visãoutilitarista que concebia este período da vida como passível deinvestimento econômico, por meio de escolas e de instituiçõespreventivas como as colônias de férias, devido principalmente àpromessa inscrita na futura força produtiva que a criança poderiarepresentar para a economia. Entre as manifestações de apoio àscolônias de férias, proferidas logo após a apresentação de Var-I'entrapp, se pronunciara um dos médicos presentes no congres-so dizendo que se tratava de uma instituição a ser encorajada,

" "Faire [les enfants] vivre le plus possible en plein air, les habituer aux ablutionsIn iides et aux bains de riviere, les occuper à la marche, à la gymnastique et à divers1I 'IIX, selon les facultés de chacun".

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pois era uma das formas mais úteis de assistência, uma vez quese prestava a ajudar as famílias pobres no cuidado de seus filhosem estado de saúde mais debilitado, fonte de grandes despesas,e assegurar para o futuro próximo um capital de saúde que lheseria precioso (Varrentrapp, 1882). O discurso realizado pelomédico partia de um verdadeiro delineamento da pobreza, noqual o problema da doença seria concebido segundo o imperati-vo do trabalho e da necessidade de produção. Tratava-se de umaconcepção de que o corpo enfraquecido não era apenas umarealidade meramente biológica, mas principalmente uma realida-de política e econômica, uma vez que administrar e melhorar asaúde do mais debilitado fisicamente e do mais pobre constituíatambém uma forma de torná-lo economicamente produtivo e dealiviar o máximo possível o seu "peso" para o restante da socie-dade (Foucault, 2005).

Ao final de sua conferência, Varrentrapp explicitou que a suaintenção era de formar um movimento internacional em favordas colônias de férias, pois considerava que esta era "uma boaobra que merecjia] ser imitada em todos os lugares. Meu desejo éque vocês todos procurem fazer, ao retornarem aos seus países,algo parecido no próximo verão"? (Varrentrapp, 1882, p. 170). Épossível que o objetivo de Varrentrapp fosse o de tornar as colô-nias de férias tão difundidas quanto à própria instituição escolar,pois promover a saúde se configurava tão importante economi-camente quanto promover a instrução. Certo é que as colôniasde férias inaugurariam um novo espaço, no qual a ação médicanão se restringiria mais unicamente ao universo hospitalar, sana-torial ou a clínica de âmbito privado. Uma política médica de as-sistência à infância bastante específica poderia ser formada coma criação destas instituições em diferentes países.

6. "[".] une bonne oeuvre qui mérite d'être imitée partout. Mon vceu est que vous chcr-

chiez tous, de retour dans vos payes, à faire quelque chose de semblable, l'été prochain".

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As COLÔNIAS DE FÉRIAS E O DISCURSO DA EDUCAÇÃO

As colônias de férias não atrairiam a atenção apenas da co-munidade médica, sendo postas novamente em evidencia inter-nacional na ocasião do I Congresso Internacional de Colôniasde Férias, ocorrido na cidade de Zurique no ano de 1888. Entreos países participantes com delegações, compostas por médicos,professores e personalidades políticas, encontrava-se a Suíça,a Alemanha, a França, a Itália, a Bélgica e a Hungria, havendoainda outros cinco países europeus que enviaram representantesindividuais, como a Espanha, demonstrando que as colônias deférias já eram naquela data um tema de interesse de diferentesnações, não se restringindo apenas à classe médica, mas anga-riando também a atenção de profissionais ligados às estruturaspúblicas de ensino, fato este que se repercutiria em novas formasele conceber e organizar estas instituições.

Logo após sua mesa de abertura, as primeiras divergênciase oposições entre os profissionais presentes começaram a semanifestar. Nesse sentido, se pronunciou o presidente da de-legação francesa, Jules Steeg (1836-1898r, que, contrariando astradições médicas das colônias de férias apresentadas, destacouque "desde muito tempo os franceses conheciam as viagens es-colares, e certos estabelecimentos possuíam mesmo verdadeirascolônias de férias'". O representante francês se referia às viagenspedagógicas concebidas por Louis François Portiez (1765-1810)no final do século XVIII como uma forma de renovação dosmétodos educativos e que seriam implantadas em alguns liceuspúblicos franceses, seguidos pelas escolas primárias parisienses,no final do século seguinte. Tomando como maior inspiração aobra Emílio, de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), as viagens

7.Jules Steegparticipara em 1881-1882 da comissão responsável por reformar o ensino

sob bases republicanas que instauraria a escola gratuita, obrigatória e laica na França.

1\, "[".] depuis longtemps, les français connaissent les voyages scolaires, et certains

ctablissements possédaient même de véritables colonies".

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escolares perrrutlam aos alunos contemplar o mundo natural,refletir e comparar os comportamentos e hábitos dos diferen-tes povos com os quais se deparariam durante o percurso. Ofortalecimento corporal por meio do ar livre, como priorizadopela tradição médica, encontrava-se também presente entre pre-ocupações destas viagens escolares, no entanto o ar livre não seresumia a uma função higiênica. Neste projeto, a natureza seriainterpretada menos como um meio para a cura e fortalecimentodo corpo do que numa terra de aventura e dispositivo pedagó-gico, ancorando as viagens escolares mais profundamente numatradição pedagógica do que numa tradição médica.

N o caso das colônias de férias parisienses, inauguradas apartir de 1883 por iniciativa de Edmond Cottinet (1824-1895),o qual se encontrava presente na delegação francesa do I Con-gresso Internacional de Colônias de Férias, as viagens escolaresconcebidas por Portiez constituíram uma importante influência,sobretudo no que diz respeito às novas práticas instauradas paraas rotinas destas instituições, como as excursões, a confecçãode coleções de plantas, insetos e minerais, o jornal diário escritopelas crianças, além de uma série de jogos e divertimentos inú-meros. Estas práticas visavam reforçar o rendimento dos estu-dos feitos pelos alunos em sala de aula durante o período letivoe tinham como referência, além das viagens escolares, o métodointuitivo de ensino. do qual derivam as lições de coisas (Downs,2009; Rey-Herme, 1954).

Conforme analisado por Pierre Kahn (2002), as lições decoisas constituiam um método bastante em voga nos círculospedagógicos de diversos países europeus e americanos desde adécada de 1860, sendo criado pelo resultado sincrético das re-flexões pedagógicas realizadas ao longo do século XIX, espe-cialmente influenciado pela pedagogia de Johann Heinrich Pes-talozzi (1746-1827) que priorizava "as coisas antes das palavras,a educação pelas coisas e não a educação pelas palavras". O ob-jetivo com este método de ensino seria o de colocar a criança

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na presença do mundo real, fazê-las ver, tocar, distinguir, medir,comparar, nomear, enfim, conhecê-lo a partir de sua concretudee não a partir da abstração das palavras. Se a natureza se apre-sentava como um livro aberto, como dito por diversos educa-dores, era então preciso aprender a lê-la de modo sistematizado.À escola que adotasse o método intuitivo de ensino era exigidoque mantivesse suas portas e janelas abertas para a natureza aser investigada pelos alunos e o ar livre seria considerado tãobom para os métodos de ensino e os programas escolares, quecomeçavam a adotar o estudo das ciências naturais e humanascomo centrais em seus currículos, quanto para os pulmões, osnervos e os músculos das crianças. Com as lições de coisas, ocorpo infantil e suas experiências, seus sentidos, eram inseridos110 âmbito de uma pedagogia escolar, ao mesmo tempo em que:l natureza se tornava um recurso inestimável para o aprendizadocientífico (Corbin, 2005).

As práticas instauradas para as colônias de férias das escolasprimárias parisienses seriam, por sua vez, duramente criticadas,especialmente por Walter Hermann Bion (1830-1909), princi-pal responsável pela realização do I Congresso Internacional deColônias de Férias e palestrante central da mesa de abertura doevento. Em suas palavras: "Nas colônias de férias de Paris, a pre-f icupação de ensinar conduz à criancices tolas e enfadonhas: her-Il:\rios, coleções de insetos, de borboletas, de minerais; é o triunfodo ensino intuitivo"? (Bion apud Rey-Herme, 1954, p. 263).

Diferentemente dos médicos, a prevenção de enfermidadesuno era a prioridade dos educadores que pensavam as colônias,k férias como espaços alternativos que poderiam trabalhar não.1penas a saúde das crianças como também a sua educação moral,uuclectual e, sobretudo, física. Atuando paralelamente à escola,,IS colônias de férias poderiam possibilitar descobertas múltiplas

'I "Dans les colonies de vacances de Paris, la préoccupation d'enseigner conduit à,li 'I puérilités niaises et encombrâtes : herbiers, collections d'insectes, de papillons,,It minéraux ; c'est le triomphe de l'enseignement intuitif".

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aos seus participantes, incitando o imaginário infantil e colabo-rando para a transformação do momento das férias escolares,antes determinadas apenas como uma limitação sazonal conferi-da ao trabalho escolar, em um tempo mais que desejado, tempoem que fantasias e aventuras infantis poderiam se tornar realida-de (Rauch, 2001). Importante ressaltar que o ato de oferecer fé-rias às crianças matriculadas nas escolas públicas não rimara, pormuito tempo, com descobertas e divertimentos, uma vez que,no final do século XIX, as crianças das classes populares eramtambém pequenos trabalhadores e o período de interrupção dosestudos poderia inversamente repercutir-se no aumento da cargade trabalho por eles executado.

Para muitos educadores, mais do que vigiar, punir e corrigir ocorpo infantil, as colônias de férias deveriam adotar práticas quepossibilitassem, a partir do prazer oferecido ao corpo, que o sen-timento de alegria reinasse em seu interior. Ao instrumentalizaro prazer inscrito nos divertimentos para o desenvolvimento deum processo educativo, estas instituições promoviam uma fun-cionalização do espaço e do tempo da natureza, instaurando asférias como um período educativo travestido pela promessa deliberdade e aventura. Como analisado por Alain Vulbeau (1993),ao compará-las às colônias penitenciais agrícolas, as colônias deférias promoviam uma metamorfose positiva na vigilância e nocontrole disciplinador da higiene médica, transformando a via-gem em mov,imento e alegria, em nome de um projeto que apa-ziguaria o caráter ocioso das viagens realizadas pelos mais ricos,tornando-as úteis e pedagógicas. Da série normativa que o espa-ço escolar e hospitalar criara - estudo, trabalho, obediência, si-lêncio, imobilidade, alinhamento corporal- as colônias de fériasproduziriam seu lado positivo - recreação, movimento, jogos,afeição, barulho, alegria - estimulando a adoção de uma vidahigiênica sem a necessidade de se utilizar de métodos repressi-vos. Ao mesmo tempo em que fixavam regras para a vida dascrianças no momento das férias escolares, as colônias de férias

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difundiam uma imagem de movimentação corporal incessante ede animação constante, até o ponto de se fazer esquecer sua fun-ção higiênica, agora transmitida em silêncio enquanto preceitosde uma vida sã. Enraizada em um movimento maior de procurapelo ar livre e pelos divertimentos na natureza, as colônias deférias se veem paradoxalmente marcadas por uma reivindicaçãoemancipadora, dimensão não necessariamente da higiene, masda autonomia do sujeito, e sua eficiência pedagógica passava me-nos pela ostentação de restrições do que pela estimulação daalegria e da aventura de viver (Rauch, 1983).

O I Congresso Internacional de Colônias de Férias, quehaveria de apresentar o intuito de congregar as mais diferentesiniciativas que estavam surgindo em diversos países de modo aconferir um norte comum, ou seja, de modo a constituir um mo-vimento, se não único, ao menos centralizado, trouxera à tona asdivergências existentes entre duas grandes tradições nas quais seancoravam as colônias de férias: a médica e a pedagógica. Mesmose houvesse interlocuções entre estes dois universos, logo apósas apresentações da mesa de abertura do evento, seriam suas di-vcrgências mais ressaltadas, repercutindo-se de modo severo nasralas dos profissionais presentes, que protestariam, por exemplo,"contra o abuso das ações de pesar as crianças e de prescriçõescientíficas, contra as legiões de bacilos e de micróbios com osquais a ciência aterroriza a imaginação'"? (Rey-Herme, 1954, p.143). Entre os que tomaram a palavra, houve inclusive aquelelluC concluiria, empregando termos enérgicos, que: "se as colô-nias de férias enviam as crianças ao campo, é para lhes fortificart' lhes fazer viver em alegria, não para lhes transformar em expe-rimcntos científicos'?" (Rey-Herme, 1954, p.143). Nos anais doevento nada é dito após esta intervenção, mas, como observado

10, "[ ...] contre l'abus des pesées et des prescriptions scientifiques, contre les lé-1',I0I1S de bacilles et de microbes dont la science effraie les imaginations".11. "[...] si les colonies envoient les enfants à la campagne, c'est pOU!les fortifiert I lcs faire vivre dans la joie, non pOU!les transformer en champs d'expérience".

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por Philippe Alexandre Rey-Herme (1954), sem dúvida, aqueleera o momento de descer as cortinas.

CONCLUSÃO

As férias escolares são uma interrupção sazonal no tempode estudos, que conferem ritmo ao calendário letivo anual, im-passíveis de serem isoladas de concepções e interesses inúme-ros que as afirmam. No último terço do século XIX, quandoas cidades apresentavam-se extremamente infladas pelo intensofluxo de camponeses a procura de outras formas de subsistênciae que submetidos a uma realidade produtivista exploratória eramobrigados a viver em precárias condições de vida, as colônias deférias inaugurariam novos usos para este período escolar, ofere-cendo uma série de atividades voltadas, principalmente, para ascrianças das classes populares. Enquanto medidas preventivas,ligadas à saúde pública, não escondiam seus interesses econômi-cos e apostavam no fortalecimento corporal das crianças maisenfraquecidas, para que num futuro próximo suas forças fossemintegralmente utilizadas pela mesma dinâmica produtivista ex-ploratória que as submetera à pobreza extrema.

No entanto, paradoxalmente, inaugurariam um novo espaçopara o tempo das férias escolares, no qual práticas médicas antesrestritas às famílias abastadas, que tinham condições de procurarpor sanatórios e instituições terapêuticas nas montanhas ou emvilarejos no campo para se curarem e se fortalecerem, seriampela primeira vez ofertadas à crianças que não tinham até entãoa sua proteção e o seu direito à saúde reconhecidos. Suas práti-cas médicas mais acentuadas, como os exames antropométricosrealizados antes e depois das viagens, seriam seguidamente criti-cadas por diversos profissionais, especialmente por educadoresque viam estas instituições como passíveis de servirem para re-formas no ensino que procuravam ampliar seus objetivos paraalém das habilidades de ler, escrever e calcular, característicosdas escolas mais tradicionais, inserindo em seus conteúdos as

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Educação e Saúde: questões práticas sobre o processo de integração e inclusão social

ciências naturais e humanas, trabalhadas a partir de métodos pe-dagógicos que possibilitassem as crianças aprenderem por meioda concretude das coisas, da investigação da natureza, e não maispela abstração das palavras.

Sem perder de vista os embates e os distintos projetos em tor-no das colônias de férias, que ora se alinhavam, ora se distancia-vam, estas instituições foram responsáveis pela consolidação emnosso imaginário atual das férias como momento de liberdade,divertimentos e aventuras múltiplas, momento no qual a naturezapoderia ser redescoberta em suas potencialidades educativas e emsuas possibilidades de harmonia com a vida, mesmo em temposde lazeres cada vez mais urbanizados e vorazes como os nossos.

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