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1 Universidade Federal deSão Carlos. Rod.Washington Luiz km 235.13565-905 São Carlos SP.vawbr@usp.br2 Faculdade de Medicina,Universidade de São Paulo.

Mulheres com deficiência e sua dupla vulnerabilidade:contribuições para a construção da integralidade em saúde

Women with disabilities and their double vulnerability:contributions for setting up comprehensive health care practices

Resumo Mulheres com deficiência contam comações inexpressivas nos serviços de atenção básicaem saúde, que embora historicamente privilegiema clientela feminina, pouco reconhecem os aspec-tos relativos aos direitos sexuais e reprodutivos e àdupla vulnerabilidade que as acometem por seremmulheres e portarem deficiências. Este estudo éparte de uma pesquisa qualitativa que objetivaidentificar dimensões individuais, sociais e pro-gramáticas da dupla vulnerabilidade de quinzemulheres com diferentes tipos e graus de deficiên-cia, usuárias de três serviços de atenção básica emsaúde na cidade de São Paulo. Destacam-se em suasnarrativas vivências de rejeição ou superproteçãofamiliar, dificuldades em adquirir equipamentospara sua autonomia, pouco investimento no estu-do e na qualificação profissional, menor partici-pação social, obstáculos à vivencia da sexualidadee da maternidade, falta de acessibilidade física, co-municacional e atitudes pouco receptivas nos ser-viços de saúde, caracterizando total vulnerabili-dade. Problematizá-la possibilita a construção depráticas integrais de saúde que incorporem a di-mensão dos direitos humanos de grupos que histo-ricamente experimentam a violação dos mesmos:mulheres e pessoas com deficiência.Palavras-chave Gênero e deficiência, Pessoas comdeficiência, Atenção integral à saúde, Saúde damulher, Atenção primária à saúde, Vulnerabili-dade

Abstract Women with disabilities have few mea-sures geared to their needs in the primary healthcare services. Despite the attention given to thefemale population in these facilities, they still failto address specificities of women with disabili-ties, such as issues related to their sexual and re-productive rights and their double vulnerability,both as women and as disabled individuals. Thisresearch is part of a qualitative study to identifythe individual, social and programmed doublevulnerability of fifteen women with different typesand degrees of disabilities, who are frequenters ofthree primary health care facilities in São Paulocity. The women’s narratives highlighted experi-ences of rejection or overprotection in their fam-ily relationships, difficulties in obtaining equip-ment for their autonomy, poor education and lackof professional qualification, lower social partic-ipation, obstacles in their sex lives and mother-hood. They face physical and communicationbarriers and poor care from primary health careservices. All of the dimensions of vulnerabilityare present and addressing them makes it possibleto build comprehensive health care practices thatensure the human rights of groups that histori-cally experience violations, namely women anddisabled persons.Key words Gender and disability, Disabled per-sons, Comprehensive health care, Women’s health,Vulnerability

Stella Maris Nicolau 1

Lilia Blima Schraiber 2

José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres 2

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Introdução

Mulheres com deficiência estão presentes em to-das as faixas etárias, etnias, raças, religiões, es-tratos econômicos e orientação sexual. Histori-camente ficaram à margem do próprio movi-mento de mulheres e do movimento pelos direi-tos civis das pessoas com deficiência1-3.

No Brasil, segundo dados do Censo de 2000,14,5% da população brasileira referiu ser porta-dora de algum tipo de deficiência, sendo que53,58% desta população é do sexo feminino. En-tre as pessoas com mais de 60 anos, 49,64% de-clararam ter alguma deficiência, e entre criançasaté quatro anos essa cifra é de 2,26%4. Isto revelaque o acúmulo dos anos de vida tem estreita re-lação com a aquisição de deficiências, e se forconsiderado que a esperança de vida para asmulheres é maior do que para os homens, mes-mo sob iguais condições socioeconômicas5, épossível afirmar que a questão da deficiência tendea ser uma relevante problemática de saúde coleti-va e de saúde da mulher ao longo de seu ciclo devida. Trata-se de um segmento da população queconta com ações inexpressivas voltadas para assuas necessidades nos serviços de atenção pri-mária em saúde, que embora historicamente pri-vilegiem a clientela feminina6,7, pouco reconhe-cem os aspectos relativos aos direitos sexuais ereprodutivos e à dupla vulnerabilidade que asacometem por serem mulheres e portarem defi-ciências. Esta condição é corroborada na litera-tura internacional sob a perspectiva da desvan-tagem8: as mulheres com deficiência apresentamduas desvantagens na vida social.

Trabalharemos essa dupla desvantagem peloconceito de vulnerabilidade9. Este permite abar-car diferentes dimensões da experiência vividarelativamente às necessidades de saúde e à aten-ção dos serviços. Essa dupla vulnerabilidade damulher com deficiência será discutida com basena integralidade em saúde, já que este princípiolevaria as práticas a oferecerem respostas maisabrangentes às necessidades de saúde, abordan-do-as de modo mais holístico, ao articular a di-mensão curativa à prevenção e à promoção dasaúde. A integralidade designa um conjunto devalores pelos quais o movimento social em saú-de lutou e pretende lutar; uma imagem-objetivodas características desejáveis do Sistema Únicode Saúde10-12.

No plano das práticas profissionais, a inte-gralidade diz respeito a uma boa prática que seinicia pela apreensão ampliada das necessidadesno encontro profissional-usuário, a partir de um

olhar atento às demandas referidas e tambémàquelas ainda não referidas, mas passíveis de umaação preventiva ou de um diagnóstico precoce11,13.E, nesse sentido, a integralidade funcionará paraa atenção primária à saúde não apenas comomodo assistencial de responder às demandas dosusuários, mas como ‘contexto instaurador denovas necessidades de saúde’13, dando, desta for-ma, visibilidade a questões socioculturais aban-donadas pela redução biomédica na assistênciamédica individual5.

Operar com a integralidade representa a apro-ximação mais fecunda para explorar as situa-ções de vulnerabilidade a que as mulheres comdeficiência estão submetidas, invisíveis aos servi-ços de saúde pela ausência de sua abordagempelos profissionais.

A dupla vulnerabilidade dessas mulheres édiscutida pelos estudos sobre a deficiência (disa-bility studies) que surgem nos anos 1970, no Rei-no Unido e Estados Unidos. Analogamente aofeminismo, concebem a deficiência como umaforma de opressão sofrida por uma diferençacorporal e que deve ser combatida. Diferenciam,pois, como nos estudos feministas, a condiçãonatural de lesões, de uma construção sociocultu-ral que necessariamente a vê como deficiência14.

Já estudos feministas sobre a deficiência (fe-minist disability studies) emergem em um segun-do momento e apresentam convergências e di-vergências em relação aos disability studies. Asconvergências dizem respeito à definição de defi-ciência como um fenômeno sociológico e ao fatoda subalternidade dos deficientes não poder serexplicada somente pela presença de uma lesão,mas pelos obstáculos que enfrentam na vida so-cial e política. As divergências referem-se às de-mandas e aos diferentes pontos de vista em rela-ção à experiência da deficiência: os primeiros teó-ricos eram em sua maioria homens com deficiên-cias motoras que lutavam pela independência einserção no mundo do trabalho a partir da reti-rada das barreiras sociais que os impediam deexercer um papel produtivo. As teóricas feminis-tas (em geral mulheres com deficiência) buscamrevelar como o gênero opera no universo da de-ficiência15 e também passam a dar visibilidade aotrabalho das cuidadoras das pessoas com defici-ência mais gravemente acometidas.

De um lado, postulam que todos somos “cor-pos temporariamente aptos”, sendo poucas asfases da vida em que não necessitamos de cuida-do ou apoio social14. De outro, analisando as re-presentações culturais em relação às mulherescom deficiência e por estarem implicados com o

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ativismo político, buscam recuperar a identidadefeminina que a cultura lhes nega, além de umapolítica que preserve o direito de definirem suasdiferenças físicas e sua feminilidade por si mes-mas, ao invés de receberem interpretações de ou-tros sobre seus corpos15,16. Também buscam iden-tificar e denunciar o modo discriminatório comque os estudos científicos, sobretudo aqueles docampo da medicina, referem-se tanto às mulhe-res como às pessoas com deficiência, consideran-do-as semelhantes: puro corpo, objetos do olharfixo e do espetáculo que pode ser tanto a exposi-ção das aberrações nas atrações circenses comoos concursos de beleza e a exposição do corpo damulher na mídia15. Além disso, apontam que amulher é definida como uma versão inferiorizadado corpo masculino. Essa concepção é reiteradanos estudos médicos a partir do século XVIII,quando a medicina se apodera do corpo femini-no para responder aos interesses demográficosda sociedade moderna capitalista17.

Nessa perspectiva, o corpo da mulher e dapessoa com deficiência deve ser regulado pelaspolíticas de medicalização através de procedimen-tos disciplinares para sua normalização, comoas cirurgias corretivas e as políticas de aparênciaque sustentam a instituição do cosmético e dacirurgia plástica, pois, a beleza, em nossa socie-dade, consiste em um sistema de valor, uma ide-ologia cultural coercitiva que relaciona determi-nada aparência corporal como pré-requisito paraganhar amor, status e reconhecimento, e revela oparadoxo de que a mulher emancipou-se politi-camente, mas não se liberou do mandato socialde perseguir beleza15.

Dois eixos enfatizados na reflexão feministasão a discriminação socioeconômica (mulherescom deficiência trabalham em ocupações menosqualificadas e recebem menos do que homenscom deficiência e mulheres sem deficiência) e aexcessiva medicalização da deficiência, que vê estacondição como doença1,2,18.

Tendo em vista os poucos estudos sobremulheres com deficiência no Brasil, realizamosuma pesquisa em serviços de atenção primária,em que profissionais e mulheres usuárias comdeficiência foram investigados. Objetivamos co-nhecer como essas mulheres faziam uso dessesserviços, examinado-lhes a condição de ser mu-lher e ser portadora de deficiência, tendo em vis-ta o próprio conjunto de necessidades que reco-nheciam como suas; e como, segundo elas e tam-bém segundo os profissionais, foram acolhidase cuidadas. Para tal, a pesquisa produziu dadosem três direções: as necessidades identificadas

pelas mulheres com deficiência, a resposta dadapelos serviços a essas necessidades e a relaçãoestabelecida entre as mulheres e os serviços fa-cultando tal ou qual modo de uso dos mesmos.Deste conjunto, abordaremos aqui o ponto devista das mulheres, quanto às suas situações devida em que as necessidades de saúde são gera-das, ao reconhecimento destas e ao modo comose relacionam com os serviços de atenção primá-ria dos quais são usuárias.

Metodologia

Buscamos uma aproximação que desse voz amulheres com deficiência usuárias de três distin-tas unidades básicas de saúde localizadas na re-gião oeste da cidade de São Paulo. Esses serviçosintegraram um subprojeto da pesquisa “Cami-nhos da Integralidade: levantamento e análise detecnologias de cuidado integral à saúde em servi-ços de atenção em região metropolitana”, apro-vada pelos Comitês de Ética em Pesquisa da Uni-versidade e da Secretaria Municipal de Saúde.

Os três serviços ora considerados seguiramcritérios dessa pesquisa maior, e, adicionalmente,o fato de terem usuárias mulheres com deficiên-cia, pois representaram a forma de captação deusuárias a serem entrevistadas e o contexto deatenção primária concretamente por elas utiliza-do. As entrevistas ocorreram entre 2009 e 2010,totalizando 15 usuárias (cinco de cada serviço).

Recrutamos mulheres na faixa etária repro-dutiva, ou próxima, e com deficiências variadas:visual, auditiva, intelectual e motora; congênitasou adquiridas. A idade variou entre 19 a 54 anos,sendo que 11 entrevistadas tinham 30 ou maisanos. Essa faixa etária permitiu explorar ques-tões da autonomia, sexualidade, trabalho, casa-mento e maternidade. Quanto à diversidade dasdeficiências, não foi possível encontrar mulherescom deficiência auditiva, o que pode ser conse-quência da presença menor desses casos na aten-ção primária.

Para encontrar as usuárias, contamos com aindicação dos profissionais dos serviços e tam-bém com a indicação das primeiras mulheresentrevistadas. Foi realizado contato telefônico ouvisita domiciliar para realizar o convite e agendaro encontro que poderia ocorrer em data e localmais conveniente para a entrevistada.

As mulheres com deficiência intelectual ou comdificuldades de comunicação verbal foram entre-vistadas juntamente com suas cuidadoras, queem três situações foram suas mães e em um caso

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a irmã. Houve uma entrevista que foi realizadasomente com a cuidadora (mãe) pelo fato de setratar de pessoa com quadro severo de deficiênciamotora associado à deficiência intelectual.

As entrevistas foram do tipo semiestrutura-do, gravadas e posteriormente transcritas comconferência de fidelidade e totalizaram cerca de10 horas, com uma média de 40 minutos cadaentrevista. Os nomes citados são fictícios.

Para a análise dos dados, usamos o referen-cial da vulnerabilidade, definida como “resultan-te de um conjunto de fragilidades individuais eprecariedades sociais que atingem um sujeitocujas condições de vida e saúde são influenciadasou determinadas pelo social e pela história”19.

Ou como esclarece Ayres12:“De modo sumário, os estudos de vulnerabi-

lidade buscam compreender como indivíduos egrupos de indivíduos se expõem a dado agravo àsaúde a partir de totalidades conformadas porsínteses pragmaticamente construídas com baseem três dimensões analíticas: aspectos individu-alizáveis (biológicos, comportamentais e afeti-vos), que implicam exposição e suscetibilidadeao agravo em questão; características próprias acontextos e relações socialmente configurados,que sobredeterminam aqueles aspectos e, parti-cularizando a partir destes últimos, o modo e osentido em que as tecnologias já operantes nestescontextos (políticas, programas, serviços, ações)interferem sobre a situação – chamadas, respec-tivamente, de dimensão individual, social ou pro-gramática”.

Nossa análise adota as três dimensões de vul-nerabilidade referidas pelo autor, examinando assituações de vulnerabilidades em que nossasmulheres estão inseridas e interpretando suaspercepções acerca dessas situações.

Resultados e discussão

Das quinze mulheres entrevistadas, oito nasce-ram com uma deficiência ou a adquiriram aindana primeira infância, antes dos dois anos de ida-de, e sete delas adquiriram a deficiência no de-correr do ciclo da vida, seja no início da adoles-cência ou na idade adulta. Embora haja diferen-ças significativas entre conviver com uma defici-ência congênita e com uma deficiência adquirida,os relatos apontam esforços adaptativos impor-tantes para lidar com esta situação nos dois gru-pos de mulheres.

Pode-se apreender a dimensão individual dadupla vulnerabilidade dessas mulheres pelas ex-

periências de superproteção ou rejeição familiar,pela falta de acesso a serviços de saúde e reabili-tação, pela privação de recursos materiais queimpediu ou dificultou a aquisição de equipamen-tos que garantissem maior autonomia, pela faltade investimento em sua educação e habilitação/reabilitação profissional, e, pela vivência em ummeio familiar com atitudes hostis e que desqua-lificam mulheres e pessoas com deficiência.

Neusa (50 anos, deficiência motora) e Mi-riam (39 anos, deficiência intelectual) nasceramem área rural, nunca frequentaram serviços dereabilitação, cresceram em famílias com poucasinformações sobre a deficiência, em uma culturatradicional de gênero e paternalista. Neusa rece-beu sua primeira cadeira de rodas aos 13 anos,idade com a qual ingressou na escola, onde per-maneceu por pouco tempo. Adriana (33 anos,deficiência motora) adquiriu artrite reumatoideaos 10 anos e abandonou a escola pela dificulda-de de locomoção. Luciana (32 anos, deficiênciamotora) por sua vez, recebeu grande investimen-to em sua reabilitação e escolarização por parteda família, mas revela que a superproteção porparte dos familiares tolheu sua autonomia, poispor ter baixa estatura e fragilidade óssea, semprefoi tratada por estes como uma criança indefesa,mesmo após a idade adulta:

Porque a minha infância foi muito regrada,muito cuidada, muito mimo. Então eu sempre tivea família presente até demais. Eu fui o tempo todocuidada como uma boneca de louça pela minhadeficiência e isso me prejudicou no desenvolvimen-to. Apesar que também eu sou uma pessoa muitoalegre, muito enérgica, muito disposta e tenho umavontade de viver muito grande, eu sempre, semprefui bem precoce, aí com cinco anos eu estudei emcolégio regular, [...] e foi o melhor momento daminha vida que eu convivia com crianças que nãotinham deficiências e eu me sentia super bem, maspor um lado, ainda era aquela situação, que eunão me assumia como pessoa com deficiência, edas limitações e dos deveres. Eu achava que ia teruma coisa, que ia acontecer alguma coisa que eu iaficar diferente, sabe, no fundo, no fundo talvez ti-vesse um pouco isso. E a minha família sempre mesuperprotegeu (Luciana).

Via de regra, portanto, a maior autonomiararamente foi buscada pelos familiares, como nocaso de Fernanda (39 anos, deficiência motora)que frequentou instituição educacional especia-lizada na infância e início da adolescência, aban-donando-a sem concluir o ensino fundamental,com anuência da família, como igualmente rela-ta Renata (43 anos, deficiência visual):

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Aí eu vim morar aqui com seis anos, nesse lu-gar aqui [...] que daí as freiras do colégio que tinhaaqui atrás elas sempre me observavam brincandolá da janela e era muito difícil porque tinha muitoburaco, muito morro e elas ficavam me olhando evieram aqui em casa, conversaram com a minhamãe e arrumaram um colégio pra mim estudar láno Ipiranga, no Instituto Padre Chico e condiçãoeu não tinha mas elas me deram tudo porque prair pra lá precisava levar tudo, eles davam só comi-da, cama e o estudo. Eu tinha que levar pratica-mente um enxoval, toda a roupa, toda a roupa decama, o material pra estudar eles me deram tudo[...] Eu ficava lá com todas as outras pessoas, tinhamuita gente lá.[...] Eu fui com quase sete anos [paralá]. Lá eu aprendi muita coisa, tinha natação edepois eu comecei a aprender o braile [...], eu vi-nha todo final de semana [para casa], era obriga-tório, mas tinha muita gente lá que ia pra casa sónas férias, que morava muito longe, em outros es-tados, mas era bom. Eles levavam a gente pra pas-sear, levavam a gente nos parques, nas bibliotecas,levavam até na praia. [...] O tempo de ficar assim,longe de casa no começo era ruim, mas depois eufui me acostumando e eu gostava de ficar lá.[...][Eu saí de lá] porque lá quando a gente entrava naquinta série, eles começavam a ensinar locomoçãoe eu coloquei na minha cabeça que eu não queriafazer, não queria andar de bengala, que, sei lá, onegócio não combina comigo.[...] E minha famíliatambém não fez nada pra que eu mudasse de ideia,apoiou o que eu escolhi.[...] Eu acho que eu nãotenho habilidade, é claro que eles iam ensinar tudoe inclusive hoje tem pessoas que estudaram juntocomigo que eu conheço que tem uma vida ativa,trabalham, que vão pra aonde querem, que saem,viajam sozinhos. [...] Eu acho que eu perdi muitoda minha vida, que eu podia ter uma vida comple-tamente diferente e hoje eu penso assim que eununca posso fazer tudo o que eu quero, na horaque eu quero, eu sempre tenho que precisar de al-guém. [Minha dependência é] pra sair de casa por-que aqui dentro pra mim é normal, eu faço tudo,eu vou no portão, eu vou em qualquer lugar aqui[...], o problema é na rua, e eu não consigo andarna rua do lado de uma pessoa, eu não consigo. Eutenho que segurar na mão ou no braço. Se eu nãosegurar eu não me sinto segura (Renata).

A dimensão social da dupla vulnerabilidadedas mulheres com deficiência diz respeito a vi-vências em um meio social no qual mulheres epessoas com deficiência têm uma posição socialmenos qualificada e experimentam menores pos-sibilidades de participação social e política, aces-so à educação, à justiça, à saúde, ao trabalho

regulamentado, a benefícios sociais, à cultura, aolazer e demais bens sociais que promovam a equi-dade de gênero e o desenvolvimento humano depessoas com deficiência.

A acessibilidade é o princípio de tudo, porquesem acessibilidade eu não tenho educação, sem aces-sibilidade eu não tenho saúde, sem acessibilidadeeu não tenho esporte, não tenho lazer, não tenhonada. Então eu acredito que a acessibilidade é ofundamental pra um deficiente porque ele começana acessibilidade saindo do portão da casa dele,então ele vai encontrando obstáculo pra todo lu-gar. Dependendo do deficiente, se ele não conseguirpegar um [ônibus] adaptado e não tiver adaptadona linha, ele não vai a lugar nenhum. Então euacho que acessibilidade é o início do caminho deum deficiente. [...] Por exemplo, eu saio daqui, euvou num teatro; eu chego lá no teatro, ele tem umapeça maravilhosa que eu quero assistir, só que temuma escadaria imensa [...] Eu vou chamar, vouprocurar o segurança, o responsável da área, vouchegar e vou falar: “olha, eu quero assistir, como éque a gente faz?”. Outro dia eu fui numa peça deteatro aqui na Paulista e eles colocaram umas bar-ra lá em cima[...] Eu fui com [um amigo], nósdois cadeirantes. Aí o segurança catou a gente láem cima, eles fizeram uma barra, umas barras deferro porque os cadeirantes fica ali, então, querdizer, aquelas barra fica na frente do olho da gente.A distância é muito longe pra enxergar (Neusa).

Chama a atenção nos relatos o fato de quepoucas entrevistadas entraram no mercado for-mal de trabalho, sobretudo aquelas com defi-ciência congênita. Todas encontravam-se sem em-prego, algumas vivendo do benefício de presta-ção continuada do INSS e/ou realizando traba-lho informal, tal como confecção de artesanato,venda de produtos, prestação de serviços. Ou-tras dependiam financeiramente de seus familia-res e, Luciana, por exemplo, jornalista e únicacom curso universitário, buscava emprego na suaárea. Mas referiu que as editoras não estão dis-postas a adaptar seu espaço físico para empre-gar cadeirantes, e já foi empregada em funçõesaquém de sua qualificação profissional, além dealocada em postos de trabalho nos quais ficava‘escondida’, considerando isso um tipo de discri-minação.

Algumas mulheres enfrentam preconceitospara viver a sexualidade e a maternidade, namedida em que habitam um corpo que destoados padrões estéticos vigentes e enfrentam a des-crença da sociedade de que possam correspon-der às expectativas de gênero, como assumir ospapéis de cuidadora, esposa e mãe.

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Aí os meus irmãos [...] começaram a dizer quea minha gravidez era psicológica; que eu não iaengravidar nunca. Imagina, que eu era tão loucapra engravidar e pra ser mãe, que eu tava com gra-videz psicológica. Daí eu fui, peguei o resultado,mostrei pro meu marido, li, ficou feliz também, masnão mostrou aquela felicidade... aquela coisa... que,de repente, talvez até ele mesmo duvidasse disso,porque se ele não duvidasse, ele ia tá ali, vibrandojunto, daí eu segurei. Quando os meus irmãos vi-ram a minha barriga, e que eu tava grávida real-mente, começaram a falar que o meu filho podianascer aleijado igual eu, se eu já tinha pensado nes-sa possibilidade, porque eu tava sonhando muitoalto, e eu era a grávida mais coruja do mundo, euconversava com o meu filho o tempo todo na mi-nha barriga, e eles ficavam: “você só tá pensando nomelhor, você não sabe o vai acontecer; e se essa cri-ança vim aleijada como você?”[...] O primeiro diaque eu fui fazer o exame de gravidez, o meu ex-marido me levou [...] Quando eu saí, o médico fezeu voltar e perguntou o que tinha acontecido comi-go. Daí eu falei que era pólio; daí, pelo espanto dele,eu fiquei preocupada, aí eu perguntei se tinha algu-ma coisa; ele falou que não, se fosse de nascença,sim, mas a pólio não tinha nenhuma interferência,então eu fiquei tranquila. E, depois que eu fiquei nagravidez do filho, a gravidez dos nove meses, eu tiveuma gravidez maravilhosa, nunca tive problemanenhum na gravidez [...] [O parto] foi cesária,porque ele era muito grande, eu era muito peque-ninha... E, eu sei que próximo do meu bebê nascer,cada um falava uma coisa, teve um dia que eu en-trei na paranoia e chorei o dia inteiro, porque eutinha preparado o berço do nenê, pra me internar echegar com ele todo bonitinho, e não sei quem quefalou se eu já tinha pensado na possibilidade dessenenê não vir aqui pra casa. Ele podia nascer morto,podia ficar por lá mesmo, então quer dizer, eu metranquei naquele dia, eu chorei que nem louca,então eu fiquei o dia inteiro desesperada. Aí, quan-do o meu marido chegou, aí ele falou “não pensabesteira, não é por aí as coisas”; daí eu levantei econtinuei de cabeça erguida. Até que, ele nasceu,nasceu um menino muito grande, bonito (Neusa).

A experiência da maternidade para algumasmulheres com deficiência possibilita a “recaptura”da identidade feminina perdida. Entretanto, elasrelatam empreender grandes esforços para corres-ponder às expectativas sociais de serem mães ade-quadas, pois, como bem mostrou Neusa, enfren-tam o ceticismo do meio social quanto às suas ca-pacidades de gerar e cuidar de um filho20.

As mulheres com deficiência intelectual, comoTainá e Miriam, relatam o desejo de ter uma rede

social que possa proporcionar-lhes lazer, diver-são e possibilidade de relacionamentos afetivo-sexuais, o que é corroborado pela ausência deespaços de convivência que sejam receptivos àspessoas com deficiência intelectual fora das insti-tuições especializadas. As cuidadoras se queixamque os familiares não se envolvem nessas deman-das e por isso elas se sentem sozinhas para res-ponder a todas essas necessidades.

A dificuldade em acessar os direitos está rela-cionada à dimensão social da vulnerabilidade.Embora o Brasil conte com um importante apa-rato jurídico para promover a equidade de gêne-ro e a inclusão de pessoas com deficiência na vidasocial, a realidade apresentada pelas entrevista-das ainda é marcada por iniquidades.

O Brasil é signatário desde 2008 da Conven-ção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, umtratado internacional de direitos humanos commaior força jurídica vinculante que os anterio-res, e que representa um marco na mudança deparadigma em relação às pessoas com deficiên-cia, pois rompe com uma abordagem baseadana assistência e incorpora a dimensão dos direi-tos, especialmente os civis e os políticos21.

Das mulheres entrevistadas somente três de-las apresentam um discurso sobre si no qual sereconhecem como cidadãs, pessoas com direitose responsabilidades, e que se engajaram em mo-vimentos em prol das pessoas com deficiência.Duas delas citam a Convenção, mas ainda comcerto ceticismo em relação ao seu cumprimento.

Agora a partir de agora o Brasil é obrigado acumprir a Convenção, o que significa isso, que to-das as leis federais, estaduais e municipais têm queseguir a Convenção. Mas a gente sabe que isso nãoacontece porque hoje de todas as leis, a única queexiste sanção, que tem multa mesmo é a lei de cotasdas empresas. As demais leis de acessibilidade, porexemplo, que os postos de saúde sejam acessíveis,não existe multa, e não existe multa nem fiscaliza-ção. Tudo bem, o Brasil hoje é um dos países quetem uma das melhores legislações em relação à pes-soa com deficiência, um dos melhores mesmo, com-parado até aos Estados Unidos, o problema é quenão tem fiscalização (Luciana).

As demais associam seus direitos às possibi-lidades de acessarem benefícios sociais, como aisenção na tarifa do transporte coletivo e o bene-fício de um salário mínimo do INSS caso vivamem situação de pobreza. Nesse sentido, reivindi-cam menos a participação política e mais umaação assistencial do Estado em relação a elas.

Os direitos que até agora eu tive foi receber[...] Eu sou aposentada.[...] Fui [atrás disso] mais

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minha prima [ela me orientou][...] Ela sabia, temesse direito, aí dei entrada umas três vezes, fiqueipensando que eu não tinha direito, mas quandofoi na quarta vez a gente conseguiu.[...] Eu achoque um direito é quando eu vou também andarnos ônibus, eles respeita é muito [...] Nem pago, equando eu entro eles veem que eu tô dentro, eles jáse levanta, me dão o assento.[...] Tenho carteiri-nha prá mim e o acompanhante (Marcia, defici-ente visual)

Já a vulnerabilidade programática diz respei-to à falta de políticas assistenciais que contem-plem as especificidades das mulheres com defici-ência, à falta de acessibilidade física e comunica-cional nos serviços regulares de saúde – como asunidades básicas de saúde, ambulatórios e hos-pitais – à falta de sensibilização e capacitação dosprofissionais de saúde, à falta de reconhecimen-to nos serviços dos direitos humanos das mu-lheres com deficiência, a fim de protegê-los e pro-movê-los, como bem relata Neusa:

E o papanicolaou até hoje a gente tem proble-ma porque a sala de gineco é lá em cima, tem esca-da, e eu já fiz entrevista com o pessoal do serviço,veio um grupo aqui uma vez olhar a acessibilidadee a gente questionou isso. Aí teve uma época quecomo eu era conselheira do conselho de saúde aqui[da região], [...] que a gente batalhou isso porquetinha, a gente brigava muito, daí a gente conse-guiu junto com a subprefeitura uma sala embaixo.Como eu sempre atuei na parte de acessibilidadeeu testei a maca do gineco, tinha que cortar, por-que daí eu pedi essa sala prá deficiente, idoso eobeso, e eles fizeram tudo bonitinho, só que assim,eu fiz um exame só e não fui mais, aí o pessoal falouque ia tirar porque os deficientes não tavam usan-do.[...] Agora tá assim, agora tem um grupo doPSF, acho que tá melhorando que eu espero que elecontinue. Só que eu não tenho feito o papanico-laou agora com esse grupo. Só que a última vez queeu fui no posto, antes de implantar o PSF, foi omaior show porque a médica não quis colher omeu papanicolaou. Por que tem uma lei que obri-ga o médico a descer se o deficiente tá aqui embai-xo ele tem que descer, porque eu não posso subir atéele de escada. Aí ela desceu, só que não tinha macapra colher o papanicolaou. Aí eu fiz o maior show.“Cadê? Tem. Eu acompanhei e essa maca existe!Prá onde que ela foi?” Daí chamaram a diretorado posto, a diretora veio toda preocupada, comoque ia fazer, daí a médica disse: “Ó se você quisernós pede pro segurança levar você lá encima”. Eufalei “não, meu filho tá aqui comigo, só que eu nãoquero ter que subir lá encima, eu quero o direitode ser atendida aqui embaixo. Esse é o meu direito,

então eu quero ser atendida aqui, eu não vou su-bir”. Aí a diretora veio, acharam, a maca tavaenfiada dentro de um depósito lá com um monte decoisa, tiraram a maca, limparam, passaram álcoolna hora e me atenderam. Esse dia eu fiz, daí o meufilho falou “mas cê gosta de causar”. Não é que eugosto de causar, ela tava aí, eu pedi, e não sou só euque preciso. Tem muitos deficientes no bairro, temidoso, tem obeso, só que aí agora eu não tenhoacompanhado mais (Neusa).

Luciana relata o quanto os profissionais sãodespreparados em relação às questões ligadas àsexualidade das mulheres com deficiência. Poroutro lado, das 15 mulheres entrevistadas, cincosão separadas (três após a aquisição da deficiên-cia), duas são casadas e oito são solteiras. Oitomulheres não têm filhos e sete são mães de maisde um filho. Das sete mulheres com filhos, trêstiveram filhos após a aquisição da deficiência, oque corrobora o fato de que mulheres com defi-ciência querem ter vida sexual ativa e necessitamde atenção em relação à sua saúde sexual e re-produtiva.

A primeira ginecologista que eu fui que foi umapessoa da família [...] tive uma experiência em re-lação à ginecologia muito triste. Eu fui numa mé-dica indicada pela família, na verdade eu fui leva-da, na verdade eu fui carregada, nem me falaramdireito o que era. [Tinha] dezenove anos [...] quan-do eu comecei a namorar um garoto com 18-19anos, quando minha família ficou sabendo, fica-ram desesperados, aí me levaram no médico e foiuma situação horrível, porque a ginecologista co-locou um livro de anatomia na minha cara, olhoue falou, tá vendo isso daqui, você não pode usar!Falou assim: ‘olha, você tem tudo igual, você sabe oque é o aparelho reprodutor? Então você tem quesaber que você não pode fazer nada com o seu cor-po. Foram essas as palavras que ela usou.[...][Quem me levou] foi uma tia da família. Umasenhora de idade, com uma certa preocupação, ló-gico, mas, é importante registrar isso porque as-sim, independente da situação da família, a profis-sional em nenhum momento poderia ter agido des-sa forma. Em nenhum momento! Nem que a famí-lia tivesse falado pra ela: ‘Faça assim! Fale dessejeito’, ela teria que conversar com a família e falar‘eu enquanto profissional não posso ser antiética,não posso agir dessa forma’. Então, assim, me trau-matizou muito. [...] Foi uma situação chatíssima,muito dolorosa, porque eu fui pensando que eu iaesclarecer dúvidas, porque eu tinha um monte depergunta, e assim: não pediu nenhum exame, nemsequer pensou na minha situação de saúde. Nãopediu nada. Não pensou na questão da saúde, só

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pensou na questão da relação sexual. Que eu nemsonhava ainda!! Porque eu ainda tava no começodo namoro, sabe, ainda tava em beijos e abraços,imagina, não tinha uma coisa, e se tivesse eu iriaperguntar, eu nunca iria fazer nada, porque eu souuma pessoa muito responsável, até demais, e mes-mo assim não justifica uma atitude dessas. [...] Euquando fui no médico agora que eu te falei que fizos últimos exames, foi um homem. O cara não quisnem tocar em mim. Ficou olhando assim, pareciaque ficou assustado, aí timidamente ele pergun-tou, depois que perguntou das partes de saúde e tal,falou dos exames, aí ele perguntou: ‘Ah mas vocêusa preservativo? cê toma pílula? não sei o que. Emvez dele logo falar ‘você tem vida sexual ativa?’Como é que faz, tem algum problema, tem algumadúvida, tá precisando de alguma coisa? (Luciana)

Outro aspecto levantado diz respeito à atitu-de do serviço em relação às mulheres com defici-ência, como a falta de prioridade no atendimen-to, o despreparo e a falta de interesse dos profis-sionais às suas demandas específicas.

Falta um pouquinho de preparação [...] eledevia perguntar: “- É cadeirante? Não é?” Ver se oPosto, às vezes, pode atender.[...] Eu acho que [oserviço não se empenha] porque [...] chega lá, elaé deficiente, ela não anda, tem problema mental,ela não tem tolerância a chegar num Posto de Saú-de e ficar esperando todo mundo passar pra depoischegar a vez dela. Ela não. Ela já quer passar [...]Ninguém passa ela na frente. Tem que aguardar lá.Esperar. Eles não passam [...] Teve uma vez lá queela começou a ficar nervosa, começou pedir: “- Euquero ir embora. Eu quero ir embora. Eu quero irembora.” Aí eu tive que pedir pra pessoa que tavana frente, deixar eu passar ela porque... Aí eu faleicom o médico e o médico passou. Porque o [aten-dente] lá da frente, eles não colocam, assim, a fichadela. Aí ela fica, ela não tem paciência de chegar eesperar. Aí já começa: “- Eu quero ir embora. Euquero ir embora.” E já começa. Começa a beliscar,apertar a gente, agarrar as pessoas que passam. Efica assim. (mãe da Diana).

Considerações finais

Retomando a discriminação socioeconômica e aexcessiva medicalização da deficiência enquantoos dois eixos enfatizados pela literatura no estu-do das mulheres com deficiência, constatamos oquanto estão presentes nas situações relatadaspelas nossas entrevistadas. Por outro lado, a iden-tificação das diferentes dimensões da vulnerabi-lidade na experiência cotidiana dessas mulheres

permite uma ampliação do nosso olhar para alémde demandas relativas a alterações morfofunci-onais de seus corpos, assim como para as distin-ções, que constituem efetivamente desigualdades,ou discriminações médico-sanitárias, inscritas emsuas condições de usuárias de serviços públicosde atenção primária à saúde.

Tate e Weston18 e Rao3 apontam que as mu-lheres com deficiência sofrem discriminação emdiferentes culturas e sociedades, sendo maior nospaíses mais pobres e geralmente incrustrada emvalores tradicionais que restringem as chancesde desenvolvimento pessoal às mulheres. As au-toras apontam a necessidade de investimentosna educação e qualificação profissional das mu-lheres com deficiência a fim de que consigamautonomia financeira, além da necessidade demudanças nas atitudes frente a elas, pois em al-gumas sociedades tradicionais as mulheres sóadquirem uma maior participação na vida socialapós o casamento, e aquelas com deficiênciasgeralmente experimentam o isolamento domici-liar desde a infância e na vida adulta são maisrejeitadas como esposas.

Acreditamos ser urgente, portanto, a instau-ração de outro olhar e outros contextos assisten-ciais, regidos por práticas de saúde ampliadas, paraque os serviços e a equipe de seus profissionaispossam se aproximar do conjunto diverso de ques-tões que se situam nas necessidades de saúde des-sas mulheres. Olhar para os seus contextos de vidafaz com que as preocupações das práticas de saú-de se voltem para dimensões da vida relacionaldessas mulheres, captando com maior riquezatanto aspectos psicossociais como socioculturais.Nesse sentido, abordagens concebidas a partir dospressupostos da integralidade em saúde nos pare-cem as mais potentes no enfrentamento e supera-ção das diversas vulnerabilidades às quais as mu-lheres com deficiência estão submetidas.

Um dos aspectos, porém, que ainda é poucoestudado e raramente detalhado nas formula-ções de uma atenção integral, é o da incorpora-ção de conhecimentos, formas de identificação eações de promoção dos direitos humanos e soci-ais nas práticas de saúde cotidianamente desen-volvidas nos serviços. Embora a pauta dos direi-tos seja sempre lembrada nas políticas de saúde epermeia o discurso programático da atenção in-tegral5,19, pouco se sabe acerca do modo como osdireitos são articulados nos processos assisten-ciais e nas ações de prevenção ou promoção dasaúde nos serviços.

O relatório sobre a situação mundial das pes-soas com deficiência22 aponta três razões que jus-

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oletiva, 18(3):863-872, 2013

tificam a deficiência como uma questão de direi-tos humanos: a experiência da desigualdade noacesso a saúde, educação, emprego e participa-ção política; uma maior sujeição a situações deviolação da dignidade pelo abuso, violência, pre-conceito e desrespeito; e, a negação da autono-mia das pessoas com deficiência quando sujeitasà esterilização involuntária, confinadas em insti-tuições contra a sua vontade, e/ou vistas comolegalmente incompetentes.

Não obstante, a questão dos direitos é mui-tas vezes tratada de modo reduzido a dificulda-des de obtenção de alguns dos benefícios sociais,formulados pela legislação trabalhista ou outrasde assistência social. O reconhecimento das ini-quidades e sua correção pela afirmação dos di-reitos das mulheres com deficiência, nesta duplasituação de desigualdade, pouco se revela, ainda,como uma forma de corrigir, na saúde, as vulne-rabilidades dessas mulheres.

Colaboradores

SM Nicolau, LB Schraiber e JRCM Ayres partici-param igualmente de todas as etapas de elabora-ção do artigo.

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Artigo apresentado em 15/09/2011Aprovado em 20/10/2011Versão final apresentada em 16/11/2011

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