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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
INSTITUTO DE ESTUDOS BRASILEIROS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO
CULTURAS E IDENTIDADES BRASILEIRAS
ANA LUISA DUBRA LESSA
Edio da Correspondncia Mrio de Andrade &
Ascenso Ferreira e Stella Griz Ferreira 1926-1944.
VERSO CORRIGIDA
O EXEMPLAR ORIGINAL ENCONTRA-SE DISPONVEL NA BIBLIOTECA DO
INSTITUTO DE ESTUDOS BRASILEIROS (IEB-USP)
So Paulo
2012
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
INSTITUTO DE ESTUDOS BRASILEIROS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO
CULTURAS E IDENTIDADES BRASILEIRAS
Edio da Correspondncia Mrio de Andrade &
Ascenso Ferreira e Stella Griz Ferreira 1926-1944.
ANA LUISA DUBRA LESSA
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao Culturas e Identidades Brasileiras do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Mestre em Filosofia. rea de concentrao: Estudos Brasileiros.
Orientador: Prof. Dr. Marcos Antonio de Moraes
VERSO CORRIGIDA
O EXEMPLAR ORIGINAL ENCONTRA-SE DISPONVEL NA BIBLIOTECA DO
INSTITUTO DE ESTUDOS BRASILEIROS (IEB-USP)
So Paulo
2012
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DADOS DE CATALOGAO NA PUBLICAO (CIP)
Servio de Biblioteca e Documentao do
Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo
reproduo total
Lessa, Ana Luisa Dubra
Edio da correspondncia Mrio de Andrade & Ascenso Ferreira e Stella Griz Ferreira 1926-1944 / Ana Luisa Dubra Lessa. -- So
Paulo, 2012. Orientador: Prof. Dr. Marcos Antonio de Moraes. Dissertao (Mestrado) Universidade de So Paulo. Instituto de Estudos Brasileiros. Programa de Ps-Graduao. rea de concentrao: Estudos Brasileiros. Linha de pesquisa: Brasil: a realidade da criao, a criao da realidade. Verso do ttulo para o ingls: Edition of the correspondence Mrio de Andrade & Ascenso Ferreira and Stella Griz Ferreira 1926-1944. Descritores: 1. Andrade, Mrio de,1893-1945 2. Ferreira, Ascenso, 1895-1965 3. Ferreira, Stella Griz 4. Epistolografia 5. Modernismo I. Universidade de So Paulo. Instituto de Estudos Brasileiros. Programa de Ps-Graduao II. Ttulo.
IEB/SBD03/2012 CDD 869.965
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SUMRIO
Resumo........................................................................................................................................5
Abstract.......................................................................................................................................5
Dedicatria..................................................................................................................................6
Agradecimentos..........................................................................................................................7
Edio da Correspondncia Mrio de Andrade & Ascenso Ferreira e Stella Griz Ferreira
1926-1944...................................................................................................................................9
Cartas e lacunas...........................................................................................................................9
Modernismo, modernismos.......................................................................................................10
Dilogo epistolar: os caminhos da correspondncia.................................................................18
Folclore partilhado....................................................................................................................18
Processo de criao...................................................................................................................22
Viagens pelo Brasil...................................................................................................................27
Eventos polticos e amizade......................................................................................................28
Afetos e divergncias................................................................................................................30
Consideraes finais.................................................................................................................31
Esta edio................................................................................................................................32
Correspondncia........................................................................................................................34
1926...........................................................................................................................................34
1927...........................................................................................................................................57
1928.........................................................................................................................................106
1929.........................................................................................................................................167
1930.........................................................................................................................................192
1931.........................................................................................................................................228
1932.........................................................................................................................................238
1933.........................................................................................................................................247
1934.........................................................................................................................................254
1935.........................................................................................................................................261
1936.........................................................................................................................................269
1937.........................................................................................................................................275
1939.........................................................................................................................................277
1940.........................................................................................................................................280
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1941.........................................................................................................................................291
1942.........................................................................................................................................300
1943.........................................................................................................................................303
1944.........................................................................................................................................312
Referncias bibliogrficas.......................................................................................................317
Anexos....................................................................................................................................326
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RESUMO
Esta dissertao apresenta a edio fidedigna e anotada da correspondncia do polgrafo
modernista Mrio de Andrade (1893-1945), com o poeta pernambucano Ascenso Ferreira
(1895-1965) e sua esposa, Stella Griz Ferreira (1898-1974). A transcrio integral de 138
cartas, pertencente ao Arquivo Mrio de Andrade, no Instituto de Estudos Brasileiros da
Universidade de So Paulo, a recomposio cronolgica dos dilogos, considerando a parcela
de cartas de Mrio ao casal, j publicadas em livros, e o procedimento de anotao das
mensagens epistolares buscam ampliar o conhecimento das redes de sociabilidade no
modernismo brasileiro, oferecendo elementos biogrficos e testemunhais para o estudo da
obra dos interlocutores e de seus processos de criao. A anlise da correspondncia, em
perspectiva interdisciplinar, apreende os principais pontos da discusso acerca da criao
potica e das manifestaes folclricas do nordeste brasileiro.
Palavras-chave: Mrio de Andrade; Ascenso Ferreira; Stella Griz Ferreira; epistolografia;
modernismo.
ABSTRACT
This dissertation presents a reliable and annotated edition of the correspondence the
polygraph modernist Mrio de Andrade (1893-1945), with the poet from Pernambuco
Ascenso Ferreira (1895-1965) and his wife, Stella Griz Ferreira (1898-1974). The full
transcript of 138 letters, belonging to Archive Mrio de Andrade, the Institute of Brazilian
Studies, University of Sao Paulo, the chronological rearrangement of the dialogues,
considering the amount of letters from Mario to the couple, already published in books, and
the annotation procedure of epistolary messages seek to broaden the knowledge of sociability
networks in Brazilian modernism, offering biographical information and testimonial to the
study of the work of the interlocutors and their creative processes. The analysis of the
correspondence, in an interdisciplinary perspective, apprehends the main points of discussion
of poetic creation and the folklore of northeast Brazil.
Keywords: Mrio de Andrade; Ascenso Ferreira; Stella Griz Ferreira; epistolography;
modernism.
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Ao querido Rodolfo, meu amor.
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Agradecimentos
Ao Programa de Ps-Graduao Culturas e Identidades Brasileiras do Instituto de Estudos
Brasileiros da Universidade de So Paulo. diretora Profa. Dra. Maria Angela Faggin Pereira
Leite e vice-diretora Profa. Dra. Marina de Mello e Souza. s Profas. Dras. Flvia Camargo
Toni, Mayra Laudanna, Mnica Duarte Dantas, Tel Ancona Lopez, Vanderli Custdio, pelos
ensinamentos no incio da trajetria acadmica. Maria Cristina Pires da Costa, pela amizade
e pelo apoio nos processos burocrticos.
Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP), pela bolsa concedida.
Capes, pela bolsa concedida.
Ao meu orientador Prof. Dr. Marcos Antonio de Moraes, por me guiar pacientemente pelos
caminhos da correspondncia marioandradiana.
A todos os mestres e docentes do Departamento de Histria da USP, pelo conhecimento
transmitido durante minha graduao.
Ao Prof. Dr. Antonio Dimas, pela primeira orientao acadmica, pelo incentivo
incondicional e pelas palavras estimulantes da qualificao.
Ao Prof. Dr. Francisco Alambert, pela leitura e pelos apontamentos na qualificao.
Ao Prof. Dr. Ivan Marques, pela disciplina de Ps-Graduao, em que muito auxiliou na
pesquisa, e por me aceitar como estagiria do Programa de Aperfeioamento de Ensino
(PAE).
Aos funcionrios e estagirios do IEB, principalmente: Elisabete Marin Ribas, Maria Izilda
Claro do Nascimento Fonseca Leito, Monica Aparecida Guilherme da Silva Bento, Gabriela
Giacomini de Almeida, Joana Pereira Lima, Bruno Cruz Santana, Joo Victor Chaves Serpa
Kosicki, Maria Itlia Causin, Maria Clia Amaral, Livia Baro Vieira, Rosana Campos
Nascimento, Bianca Maria Abbade Dettino.
Fundao Joaquim Nabuco, em especial: Lcia Gaspar, Clia Carvalho, Carlos Ramos.
Fundao Casa de Rui Barbosa: Laura Regina Xavier, Eliane Vasconcellos, Claudio
Vitena.
Biblioteca Nacional.
filha de Ascenso Ferreira, Maria Luiza Gonalves Ferreira de Medeiros, pela entrevista
concedida.
Famlia Griz, em especial, ao senhor Gilberto Griz.
Natlia Barros, por me mostrar Recife e compartilhar sua pesquisa.
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s colegas de Ps que se tornaram amigas, compartilham as angstias e descobertas do fazer
acadmico e da vida: Aline Novais de Almeida, Ana Lcia Guimares Richa Lourega de
Menezes, Maria Viana, Raquel Endalcio, Vivian Caroline Fernandes Lopes.
Lgia Procpio Souto Dubra, pelo incentivo e apoio ao longo de toda a minha vida.
Ao irmo querido, Pedro Ivo Dubra, pelas infinitas conversas sobre literatura e pela reviso da
pesquisa.
Aos meus avs Lourdes e Adhemar, pelo carinho e amor de sempre.
Dona Rosana, Seu Antonio, Eduardo e Victor, por me receberem de abraos abertos na
famlia.
Ao meu marido Rodolfo, pelo amor, amizade, incentivo e dedicao ao longo dessa trajetria.
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Edio da Correspondncia Mrio de Andrade &
Ascenso Ferreira e Stella Griz Ferreira 1926-1944.
Tudo ser posto a lume um dia, por algum que se disponha a realmente
fazer a Histria. E imediato, tanto correspondncias como jornais e demais
documentos no opinaro como ns, mas provaro a verdade. Mrio de Andrade
1
Cartas e lacunas
Esta dissertao tem como proposta a edio fidedigna e anotada das cartas trocadas
entre o polgrafo Mrio de Andrade (1893-1945) e o poeta pernambucano Ascenso Ferreira
(1895-1965) e sua esposa Stella Griz Ferreira (1898-1974), entre 2 de novembro de 1926 e o
final de 1944. As cartas assinadas por Ascenso Ferreira e Stella Griz Ferreira constituem um
conjunto de 138 itens (cartas, bilhetes, cartes-postais, telegramas). Entre eles, 103 foram
assinados por Ascenso, 32 por Stella e trs em parceria, documentos conservados no Arquivo
Mrio de Andrade, do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo (IEB-
USP). A essa documentao, autgrafa e datiloscrita, a pesquisa acrescentou a parcela da
correspondncia ativa do criador de Macunama dirigida ao casal Ferreira, publicada no
terceiro volume de O movimento modernista em Pernambuco (Rio de Janeiro: Guanabara,
1969, 3 v.) e em Os Andrades e outros aspectos do modernismo2, de Joaquim Inojosa, bem
como em Um movimento de renovao cultural (Rio de Janeiro: Ctedra, 1975), de Souza
Barros.
Muitas cartas de Mrio de Andrade a Ascenso Ferreira extraviaram-se, como
testemunhou o destinatrio: Meu querido Edgard [Cavalheiro]: junto lhe envio algumas
cartas do nosso querido Mrio, dirigidas a mim e a minha mulher Stella. Perderam-se muitas
em mudanas etc.3 Dessa forma, a recomposio do dilogo epistolar apresenta lacunas
expressivas, pois a pesquisa logrou localizar apenas o texto de 18 cartas assinadas por Mrio
de Andrade.
Esforos foram empreendidos na busca da correspondncia ativa de Mrio de
Andrade. Realizei viagem ao Recife a fim de localizar documentos na Fundao Joaquim
Nabuco, instituio responsvel pela guarda do acervo pessoal do poeta Ascenso Ferreira. A
1 Fazer a Histria, Folha da Manh, em 24 de agosto de 1944.
2 As cartas de Mrio de Andrade a Stella Griz Ferreira divulgadas nesse volume retomam e completam as
missivas parcialmente transcritas em O movimento modernista em Pernambuco. Inojosa tambm publicou o
poema Stella, escrito por Mrio de Andrade em 27 de dezembro de 1927. 3 FERREIRA, Ascenso. In INOJOSA, Joaquim. O movimento modernista em Pernambuco. v. 3. Rio de Janeiro:
Guanabara, 1969, p. 334.
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pesquisa encontrou documentos pessoais do autor, manuscritos de poemas e textos, cartas,
matrias extradas de peridicos e fotografias. Entretanto, no foi constatada a existncia de
missivas de Mrio de Andrade.
No Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundao Casa de Rui Barbosa, no Rio
de Janeiro, consultei os acervos pessoais sob a guarda da instituio, localizando cartas de
Ascenso Ferreira dirigidas a Francisco Incio Peixoto, a Rosrio Fusco e a Carlos Drummond
de Andrade, bem como mensagens de Manuel Bandeira e de Ccero Dias destinadas ao poeta
de Catimb. No acervo de Joaquim Inojosa, da mesma instituio, pude encontrar fotocpia
de carta de Mrio de Andrade a Ascenso Ferreira, mensagem publicada parcialmente por
Inojosa em O movimento modernista em Pernambuco. Cumpri tambm a consulta de artigos
em peridicos citados e comentados na correspondncia trocada entre Mrio de Andrade e
Ascenso Ferreira. Na Biblioteca Nacional, obtive textos de peridicos microfilmados e em
papel aludidos e discutidos pelos correspondentes.
Modernismo, modernismos
A dcada de 1920, no Brasil, perodo em que se iniciou a correspondncia entre Mrio
de Andrade & Ascenso e Stella Griz Ferreira, foi marcada por agitaes da ordem poltica,
social e artstica. Em 1922, destacaram-se o movimento militar dos 18 do Forte de
Copacabana, a criao do Partido Comunista e a Semana de Arte Moderna em So Paulo. No
campo artstico, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Victor Brecheret, Heitor Villa-Lobos,
Mrio de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, entre outros, propuseram novas
perspectivas estticas, afinadas, principalmente, com a vanguarda europeia. Essas
contribuies chocaram os fundamentos e valores da sociedade paulistana, ainda presa a
valores literrios e artsticos academicistas.
O iderio esttico que norteou o primeiro tempo modernista em So Paulo e no Rio de
Janeiro no transformou de imediato o quadro das artes no pas, como se pensa. Em algumas
regies, os preceitos artsticos libertrios daqueles jovens reunidos em fevereiro de 1922 no
Teatro Municipal paulistano chegaram tarde e foram vistos com preconceito e desconfiana.
O que se vivia em Pernambuco, local de nascimento do casal Ferreira, era um conflito
de ideais. Como mostra Neroaldo Pontes de Azevedo, em Modernismo e regionalismo:
A dcada de 20 em Pernambuco foi agitada por duas vertentes de ideias
destinadas a sacudir, quer na poca em que existiram, quer nas suas
consequncias, a vida cultural do Nordeste. De So Paulo, chegavam as
sugestes do movimento modernista, tornado pblico na Semana de Arte
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Moderna de 1922, ao mesmo tempo em que se intensificava, fazendo eco a
uma preocupao generalizada no Brasil, a pregao em torno do
regionalismo.4
No incio dos anos de 1920, havia em Pernambuco um esprito valorativo das
realidades locais, avesso viso cosmopolita da arte da vanguarda modernista. Em agosto de
1922, uma comitiva de jovens partiu do Recife em direo ao Rio de Janeiro para o 1
Congresso Internacional de Estudantes. O secretrio dessa comitiva era o jornalista Joaquim
Inojosa que, em So Paulo, travou contato com os participantes da Semana, entre os quais
Menotti Del Picchia, Oswald de Andrade, Guilherme de Almeida e Anita Malfatti, e
participou de uma reunio do grupo da revista Klaxon, na casa de Mrio de Andrade.5
Inojosa, por fim, retornou ao Recife como representante de Klaxon, disposto a difundir
a nova orientao esttica. Em 30 de outubro de 1922, assinou o artigo Que futurismo, em
A Tarde, jornal da capital pernambucana, marcando, assim, o comeo da divulgao das
ideias modernistas em seu Estado. Entretanto, o propsito de Inojosa enfrentou divergncias
por parte daqueles que defendiam a valorizao do passado. Jos Lins do Rego se posicionava
contra o futurismo por meio do semanrio Dom Casmurro, editado no Recife; Gilberto
Freyre defendia o regionalismo. Em sua pesquisa sobre os anos de 1920 em Pernambuco,
Neroaldo Pontes de Azevedo distinguiu os princpios norteadores do pensamento do autor de
Casa-grande & senzala: Sua postura polmica, neste momento, decorre da preocupao em
resguardar os valores tradicionais e em apontar a necessidade de valorizao das realidades
regionais.6
Essa postura defensiva dos valores regionais fez surgir, em 1924, o Centro
Regionalista do Nordeste liderado por Gilberto Freyre, Moraes Coutinho e Odilon Nestor,
entre outros. Um dos objetivos postos em prtica pelo Centro foi a realizao, em 1926, do 1
Congresso Regionalista do Nordeste, no Recife, com a finalidade de organizar um esprito de
unidade do Nordeste e de colaborar com movimentos polticos que visassem ao
desenvolvimento e defesa dos interesses da regio, assim como congregao de elementos
tradicionais da cultura nordestina. O Congresso no se deteve em questes literrias, mas,
4 AZEVEDO, Neroaldo Pontes de. Modernismo e Regionalismo. Os anos 20 em Pernambuco. 2 ed. Recife,
UFPE/ UFPB, 1996, p. 11. 5 Em 24 de novembro de 1922, Os sonhadores do Sul, publicado em A Provncia do Recife, Joaquim Inojosa
discorreu sobre o grupo modernista de So Paulo: Renem-se sempre; discutem, e desse trocar de ideias, ideias novas surgem. Numa dessas horas de arte em casa de Mrio de Andrade (primeiro andar silencioso, mesas,
estantes, revistas de arte, livros, quadros modernos pelas paredes). [...] Mrio de Andrade diz trechos de uma
conferncia sobre a poesia moderna (INOJOSA, Joaquim. O movimento modernista em Pernambuco. v. 2, p. 11). 6 AZEVEDO, Neroaldo Pontes de. Modernismo e Regionalismo, p. 41.
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mesmo assim, Ascenso Ferreira recitou alguns de seus poemas a pedido do presidente do
evento. A participao de Ascenso no certame denota a ambivalncia de seus interesses
artsticos. Neroaldo explicitou:
Sua produo potica [Ascenso Ferreira] no pode ser atrelada, de maneira
mecnica, a um determinado movimento de ideias. Sua poesia, de dico
nova, tem dbitos para com a proposta modernista, particularmente no que
tange liberdade formal, mas tambm tem compromissos diretos com o
regionalismo, na medida em que se alimenta, de modo especial, da vida da
regio e suas tradies.7
Ascenso Ferreira no se devotou de imediato ao modernismo, visto que compunha
sonetos bem ao gosto dos parnasianos. Um dos poemas mais conhecidos dessa primeira fase
Adeus! Eu voltarei ao sol da primavera!, estampado, em dezembro de 1923, na revista
Mauriceia, de Joaquim Inojosa. Em 21 de setembro de 1924, no Jornal do Commercio,
Salom, mostrou-se uma primeira tentativa de versos que marcasse seu rompimento com a
poesia mais tradicional:
Quando pus os meus olhos nos seus olhos
Eu senti nalma como que deslumbramentos...
Senti a sensao de todas as Belezas
E a beleza de todos os sentimentos...
[...]
E ela era bela como um Pssaro Encantado;
E ela era bela como a Estrela da Manh;
Bela como a Salom do Yocanaan;
Bela como dos Cisnes o noivado...
[...]
E dizer que vendo-a assim,
Como que a rezar orao pag,
Essa reza sem F,
Pensei: quem dera eu fosse o teu Yocanaan
E que rezasses por mim
Salom... Salom...8
7 Idem, p. 178.
8 O poema foi publicado no primeiro volume de O movimento modernista em Pernambuco (pp. 92-93). No
mesmo volume, Inojosa reproduziu trecho de entrevista concedida por Ascenso em 2 de fevereiro de 1965 e
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A adeso definitiva de Ascenso ao modernismo, segundo o poeta, deu-se na
conferncia de Guilherme de Almeida, realizada no Teatro Santa Isabel, no Recife, em 1925,
ocasio em que o escritor paulista declamou os versos de Raa. Nesse momento, Guilherme o
incentivou a continuar produzindo versos em novos moldes. Joaquim Cardozo e Benedito
Monteiro, de acordo com Ascenso, tambm foram influncias importantes para gui-lo em
direo esttica modernista. Aps esses acontecimentos, sua lrica foi construda em torno
de temas relacionados cultura e s manifestaes do homem do Nordeste.
Nos primeiros tempos das cartas trocadas com Mrio de Andrade, Ascenso, em sua
atuao no modernismo pernambucano, angariou opositores, como verificado em Ascenso,
traidor, artigo sem assinatura na revista recifense Frei Caneca de 17 de outubro de 1927. O
texto permite perceber como Ascenso foi visto por uma parcela da intelectualidade de seu
Estado, contrria s suas ligaes com os artistas do eixo Rio-So Paulo:
Uma nova, meus senhores! Ascenso, o poeta inxundioso [sic] traidor da ptria. A cilndrica criatura tem um remelexo com o Sul que no se
compreende, comprometendo a poesia matuta do Norte. E para que a histria
no v adiante, sem uma demonstrao decisiva, contemos o seguinte: O sr.
Mrio de Andrade fez uma espcie de livro de impresses do Amazonas,
antes da viagem. Agora o resto: Ascenso sabia dessa cousa ridcula,
entretanto, caladinho, pagou almoo e automvel para o poeta sarar,
comentou trechos do livro sobre a viagem e, depois, com aquela sua prosa
alexandrina, ainda fez uns elogiozinhos. E Ascenso ainda fala de poesia do
Norte, de arte do Norte e de Ptria do Norte! Que traidor!9
Experimenta-se nesse momento da histria do Nordeste e, em especial, de
Pernambuco, a necessidade de negar o que vinha dos grandes centros econmicos e culturais
do pas. Evidencia-se a ideia de que preciso manter a tradio e no se deixar contaminar
pelas aes futuristas que repudiavam o passado. Esse passado deveria ser resgatado nos
idos e vividos ureos do cultivo da cana-de-acar, tempo em que a regio era prspera e
abastada economicamente.
Desde 1924, os intelectuais brasileiros centraram esforos na busca de elementos
capazes de promover a unio dos vrios Brasis, ainda percebidos como ilhas conectadas
antes aos centros europeus do que entre si. Os modernistas, em especial Mrio de Andrade,
acreditavam que, nacionalizando a cultura brasileira sendo o tratamento erudito de motivos
da cultura popular uma das formulaes possveis , atingir-se-ia o mesmo patamar das
publicada no peridico carioca Meio-Dia em 27 de maro de 1965, dois meses antes da morte do poeta de
Catimb: ... quando lhe perguntei qual o seu primeiro poema modernista, respondeu: Salom (p. 94). 9Apud AZEVEDO, Neroaldo Pontes de. Op. cit., p. 250.
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realizaes dos pases de maior desenvolvimento cultural. Quando isso finalmente ocorresse,
o Brasil no estaria mais em posio de subordinao no ambiente da cultura ocidental de
extrao europeia.
O interesse de Mrio de Andrade pelas manifestaes populares e o anseio de criar
uma cultura nacional se fizeram presentes, particularmente, a partir de 1924. Em um primeiro
momento, os intelectuais do modernismo brasileiro propuseram vrias experimentaes no
campo esttico. Entretanto, logo aps essa fase heroica de abalo das convenes herdadas do
sculo XIX, o movimento modernista tomou novas direes, como explica Eduardo Jardim:
Esta mudana de rumos, generalizada em todas as orientaes modernistas
que j comearam a se esboar distintamente, indica que a problemtica da
renovao esttica, presente nos anos anteriores, cedia lugar, a partir de 24, a
uma preocupao que, acirrando-se at 1930, se dirigia no sentido de, em
primeiro lugar, elaborar uma literatura de carter nacional, e num segundo
momento, de ampliao e radicalizao do primeiro, de elaborar um projeto
de cultura nacional em sentido amplo.10
As palavras de Mrio ao poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade, em 1924,
expressam essas demandas: [...] Ns s seremos civilizados em relao s civilizaes o dia
em que criarmos o ideal, a orientao brasileira. Ento passaremos da fase do mimetismo pra
fase da criao. E ento seremos universais, porque nacionais.11
Deve-se enfatizar que, no ano de 1924, ocorreu a viagem dos modernistas paulistas s
cidades histricas mineiras, que remontavam ao ciclo do ouro e dos diamantes e conservavam
a arquitetura colonial. Mrio de Andrade, Oswald de Andrade, seu filho Non, Tarsila do
Amaral, o jornalista Ren Thiollier, Goffredo Telles, o poeta franco-suo Blaise Cendrars e
Dona Olvia Guedes Penteado visitaram Minas Gerais durante a Semana Santa. A ida s terras
mineiras causou impacto nos modernistas. Os quadros da fase pau-brasil de Tarsila do Amaral
refletiram uma nova percepo de formas e cores com a integrao do tema brasileiro.
Mrio de Andrade tambm no saiu intacto dessa viagem, tanto que, ao retornar a So
Paulo, escreveu Noturno de Belo Horizonte, poema que, miticamente, mostra Minas Gerais
como smbolo da nao e, posteriormente, elaborou Macunama, publicado em 1928.
10
MORAIS, Eduardo Jardim. A brasilidade modernista: sua dimenso filosfica. Rio de Janeiro: Editora Graal,
1978, p. 73. 11
[So Paulo, 1924] In ANDRADE, Carlos Drummond de; ANDRADE, Mrio de. Carlos & Mrio:
correspondncia completa entre Carlos Drummond de Andrade (indita) e Mrio de Andrade. Prefcio e notas de
Silviano Santiago. Organizao e Pesquisa Iconogrfica de Llia Coelho Frota. Rio de Janeiro: Bem-Te-vi, 2002,
p. 71.
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15
Desde Pauliceia Desvairada (1922), h um sentimento de redescoberta e de revelao
do Brasil. No entanto, Mrio de Andrade s iria aprimorar essa questo na obra Cl do jabuti,
livro de 1927, considerado pela crtica como o mais socializado e anti-individualista do
poeta. Cl do jabuti traz em sua essncia o desejo marioandradiano de compreender e
estabelecer os elementos culturais e sociais que uniriam o Brasil e os indivduos da vrias
partes do pas. Cl do jabuti traz os versos de Dois poemas acreanos, representativos desse
pensamento. No primeiro verso do poema, o letrado se encontra Abancado escrivaninha em
So Paulo/ Na minha casa da rua Lopes Chaves e, de repente, d-se conta de que h uma
realidade completamente diferente da sua. O poeta se comove com a situao do homem do
Norte que, mesmo vivendo uma realidade diversa da sua, tambm brasileiro como ele. Tal
certeza os une. Nesse poema, h a ideia de pertencimento, de que aquele pedao de Brasil to
distante tambm dele, ou seja, h unio de brasis e de brasileiros que compartilham do
mesmo passado e do mesmo presente, no importando de que parte do pas.
A partir de 1924, portanto, Mrio de Andrade passa a se dedicar com mais intensidade
pesquisa das manifestaes populares expressas no folclore. O escritor paulista procurava
saber o significado de palavras presentes no vocabulrio nordestino a fim de compreender
melhor a sua cultura; em carta de 1926, a Ascenso Ferreira, pediu esclarecimentos:
Agora umas coisas. Tm nos poemas umas palavras que no compreendo e
me interessam muito. Por favor, me mande contar o que significam: so:
Ingonos, Tangerinos (gente de Tnger?), Japarandubas, sei pelo poema que
nome de engenho, porm deve significar mais alguma coisa, rvore?; Covo
e Jequi so lugares, ? Essas palavras me interessava conhecer bem em tudo
o que significam.12
A correspondncia confirma tambm o apreo de Mrio pela msica e sua percepo
de que era preciso haver um relacionamento entre a cultura letrada (academias, sales,
conservatrios) e a cultura popular, evidentes no seu texto Ensaio sobre a msica brasileira:
O critrio histrico atual da Msica Brasileira o da manifestao musical que sendo feita
por brasileiro ou indivduo nacionalizado, reflete as caractersticas musicais da raa. Onde que
estas esto? Na msica popular.13
Mrio de Andrade propunha uma nova metodologia para se escrever msica erudita e,
por essa razo, o seu empenho em coletar as expresses culturais do povo como fonte de
criao de uma msica nacional com o fim de universaliz-la. Em carta pintora Anita
12
So Paulo, 2 de novembro de 1926 In INOJOSA, Joaquim. O movimento modernista em Pernambuco. v. 3, p. 336. 13
ANDRADE, Mrio de. Ensaio sobre a msica brasileira. 4 ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2006, p. 16.
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16
Malfatti, em 1925, o pesquisador confessou que aplicava em sua msica o que recolhia do
povo: [...] Estou trabalhando o Brasil [...] Dei tambm pra fazer modas e toadas feio dos
cantadores rsticos copiando deles o que tm de aproveitvel.14
Com aes diferentes para atingir o abrasileiramento das artes e do pensamento do
pas, Gilberto Freyre e Mrio de Andrade no conseguiram estabelecer uma relao de
amizade, muito menos por carta. No Arquivo do autor de Macunama, existe apenas um
carto de visita, duas cartas e um bilhete do mestre de Apipucos.15
Em carta de dezembro de 1926, Ascenso convidou Mrio a conhecer o Recife e
mencionou que Gilberto Freyre poderia ajud-lo no meio intelectual pernambucano. A
pesquisa no localizou a resposta de Mrio ao convite, mas em 8 de janeiro de 1927, Ascenso
comentou:
[...] no sei se valer a pena, em se tratando do Freyre... Em todo caso digo-
te que vale a pena! Ele no um amigo como ns, cheio de sinceridades.
Gosta de morder, tem a volpia de aperrear. Mas, um tipo muito
interessante de escritor.16
Em 7 de fevereiro de 1927, Mrio tentou explicar ao amigo seu posicionamento
ressabiado em relao a Gilberto:
Se eu falei no sei se valer a pena conhecer Gilberto Freyre porque me parece que ele no tem muita afinidade comigo e meio que me desdenha.
No posso forar ningum a me querer bem, quanto a admir-lo isso outra
coisa: admiro e estimo apesar dos belisces que vive dando na gente e que
no tem a mnima importncia porque no me parece maldade, so de
diferena de opinio e isso perfeitamente lcito.17
Em 5 de janeiro de 1928, Mrio demonstrou, ao amigo Manuel Bandeira, que o
relacionamento com Gilberto Freyre era distante. O escritor paulista pediu auxlio para
elaborar trecho de Macunama:
Olhe, pergunte como coisa de voc, pro Gilberto se ele sabe o nome de
alguma rendeira clebre de Pernambuco ou do Nordeste qualquer. Se no for
de Pernambuco ele que diga donde ela . pro Macunama. No diga que
14
So Paulo, 4 de outubro de 1925 In ANDRADE, Mrio de. Mrio de Andrade, Cartas a Anita Malfatti (1921-
1939). Marta Rossetti Batista (Org.). So Paulo: Forense Universitria, 1989, p. 104. 15
Para um estudo mais aprofundado das relaes entre Mrio de Andrade e Gilberto Freyre, consultar o ensaio
de Antonio Dimas, Barco de proa dupla: Gilberto Freyre e Mrio de Andrade In FREYRE, G. Casa Grande & Senzala. Ed. crtica de Guillermo Giucci, Enrique R. Larreta e E. Nery da Fonseca. Madri/Paris/So Paulo:
ALLCA XX, 2002. 16
Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 17
ANDRADE, Mrio de. In INOJOSA, J. O movimento modernista em Pernambuco. v. 3, p. 341.
-
17
coisa minha seno ele capaz de fazer perfdia e dar nome errado s pra ter
o gosto de ler besteira.18
Em 11 de dezembro de 1928, Manuel Bandeira intermediou o encontro entre Gilberto
Freyre e Mrio de Andrade no Recife, fato narrado pelo escritor paulista em seu livro de
viagens:
[...] Almoo Ascenso. Tarde M. Bandeira me busca no hotel e me leva a
Gilberto Freyre, que nos oferece um passeio de lancha pelo Capibaribe,
maravilhoso, com vista da cidade, depois dos arrabaldes, o da Madalena,
com os velhos cais das vivendas das famlias ricas antigas, alguns deliciosos
de monumentalidade simples, os coqueiros sempre espantados.19
Gilberto, pela vez dele, em seu dirio, expressou:
M impresso pessoal de M. de A. Sei que sua obra das mais importantes
que um intelectual j realizou no Brasil. Que entende de msica como um
tcnico e no apenas como um artista intuitivo. Que une muita erudio
intuio potica. Mas me parece artificial e postio em muita coisa. E sua
pessoa o que acentua: o lado artificioso de sua obra de renovador das artes
e das letras no Brasil. Seu modo de falar, de to artificioso, chega a parecer sem ser delicado em excesso. Alguns dos seus gestos tambm me parecem precrios. Mesmo assim, um grande, um enorme homem-orquestra, que est
sendo para o Brasil uma espcie de Walt Whitman. Um semi-Walt
Whitman.20
nesse panorama literrio de conflitos e embates intelectuais que se estabeleceu a
amizade epistolar, de quase duas dcadas, entre Mrio de Andrade, Ascenso Ferreira e Stella
Griz Ferreira.
18
ANDRADE, Mrio de; BANDEIRA, Manuel. Correspondncia Mrio de Andrade & Manuel Bandeira.
Marcos Antonio de Moraes (Org.). So Paulo: Edusp/IEB, 2000, p. 372. 19
ANDRADE, Mrio de. O Turista Aprendiz. 2 ed. Prep. Tel Ancona Lopez. So Paulo: Duas Cidades, 1983,
p. 347. 20
FREYRE, Gilberto. Tempo morto e outros tempos: trechos de um dirio de adolescncia e primeira mocidade
1915-1930. So Paulo: Global; Recife: Fundao Gilberto Freyre, 2006, p. 286. Gilberto Freyre datou o trecho
citado como 1927; equvoco do diarista, pois o encontro entre eles se deu em 11 de dezembro de 1928. As
memrias do autor de Sobrados & mucambos devem ser lidas com certa cautela, pois sabido que muitas
passagens foram escritas posteriormente s datas determinadas.
-
18
Dilogo epistolar: os caminhos da correspondncia
Folclore partilhado
Se no bastassem os seus versos, mais essa qualidade musical de voc bastava pra
que eu no te largasse mais21, escreveu Mrio de Andrade na primeira carta que enviou a
Ascenso Ferreira, em 2 de novembro de 1926. De fato, Mrio levaria a srio a afirmao, pois
a correspondncia se estendeu at poucos meses antes de sua morte.
O incio do dilogo epistolar foi favorecido pelo folclorista potiguar Lus da Cmara
Cascudo. Em 1926, o futuro autor da Geografia dos mitos brasileiros encontrava-se no
Recife, onde estudava na tradicional Faculdade de Direito. Dedicado ao estudo da cultura
brasileira e ciente do interesse de Mrio de Andrade por assuntos do Norte e do Nordeste,
Cascudo certamente viu Ascenso como um possvel colaborador do amigo paulista. Em carta
de 24 de setembro de 1926, dirigindo-se a Mrio, descreveu o poeta pernambucano:
So, forte, bom, inatual pelo carter, moderno pela sensibilidade. Nome do
ex-livro Rosas de cinzas. Nome do livro no prelo Catimb. Deduza. Ascenso conhece bem o serto. O serto de Pernambuco possui a desvirtude
de uma influncia estrangeira mais intensa que o meu. Ascenso quer ser seu
amigo porque est teimando em continuar admirador. Mando versos do
Ascenso. Endereo Tesouro do Estado Recife. Pernambucano.22
Menos de dois meses depois da mensagem de Lus da Cmara Cascudo, Mrio de
Andrade iniciava com Ascenso Ferreira uma correspondncia marcada pelo debate literrio,
pelas afinidades no campo da cultura popular, mensagens que atestam a admirao mtua e a
amizade que superam tenses e divergncias.
Na primeira carta remetida a Ascenso Ferreira, Mrio de Andrade mencionou sua
concepo de estudo de brasilidade e a noo de que tudo estava por ser feito na construo
de uma legtima cultura nacional, rogando ajuda ao novo amigo.
Mrio de Andrade julgava que era necessrio construir uma cultura genuinamente
brasileira, e ele prprio buscava cumprir essa tarefa. Afinado com as ideias de Mrio, Ascenso
Ferreira tinha interesse declarado por tudo aquilo que o povo poderia lhe oferecer. Esse saber
foi reconhecido por Mrio ao pedir auxlio para as suas pesquisas musicais na carta inicial da
correspondncia. O escritor explicou a sua rotina diria de dedicao aos estudos de msica,
no s sobre maxixe como da msica brasileira em geral, exemplificou o plano de escrever
21
ANDRADE, Mrio de. In INOJOSA, J. O movimento modernista em Pernambuco. v. 3, p. 336. 22
ANDRADE, Mrio de. & CASCUDO, Lus da Cmara. Cmara Cascudo e Mrio de Andrade: cartas 1924-
1944. Marcos Antonio de Moraes (Org.). So Paulo: Global, 2010, p. 120.
-
19
um livro sobre o assunto23
e demonstrou plena conscincia dos percalos da tarefa, j que no
havia praticamente nada feito at o momento:
Voc compreende que um trabalho penosssimo e cheio de dificuldades
quase intransponveis, s vezes devido a no haver nada feito at agora.
Careo que toda a gente me ajude. J tenho encontrado alguns amigos que
me tm servido muito, sobretudo gente do Norte. O Antnio Bento de
Arajo Lima que o Cascudinho conhece, me tem sido um ajutrio
inestimvel aqui. Voc no ter tambm a pacincia de me ajudar? O que eu
quero isto: que todas as cantigas e danas nossas que voc conhecer e no
for utilizar delas em livro, me mande pros meus estudos e uso. E mesmo as
que voc quiser empregar em livro seu, pode mandar sem receio, que sou
absolutamente honesto e s as estudarei sem as empregar ou, se o livro de
voc tiver sado, empregarei com citao da fonte.24
Com esse pedido, Mrio de Andrade reiterava a importncia das informaes sobre a
cultura popular fornecidas por intelectuais nordestinos como impulso dinmico para as suas
pesquisas e seus projetos sobre fala brasileira, folclore, expresses populares e msica
nacional. Ascenso era convidado a integrar uma espcie de rede de informantes na qual j
figuravam o paraibano Antnio Bento de Arajo Lima e Lus da Cmara Cascudo. De forma
sutil, Mrio tentava incutir em Ascenso a ideia de que no era possvel se esquivar de tal
empreitada indita e essencial para a cultura nacional, da qual, alis, j estavam participando
amigos seus de outras paragens.
Ascenso recebeu o pedido de Mrio e, bem sua maneira, gracejou com uma suposta
ansiedade do escritor paulista em receber colaboraes recolhidas da cultura local: Eu lhe
escrevo do tumulto da minha repartio de Fazenda. Fao um parntesis no trabalho forado
para acudir ao chamado angustioso dessa alma de voc ansiosa de encantos e alucinada pela
curiosidade!.25 Em 6 de dezembro de 1926, o poeta pernambucano enviou uma srie de
cantos de trabalho oriundos do samba do matuto. Ascenso retirou as informaes do povo, ao
comentar a sua ida a Palmares, sua cidade natal, para registrar cantos populares: Fui a
Palmares. Peguei um modesto msico, o mestre da banda local, Jos Janurio, e consegui
gravar as seguintes canes de trabalho muito em voga, as quais se no so bonitas, so
absolutamente tpicas.26 Mrio assinalou todas as canes desta carta e as incluiu no livro
Ensaio sobre a msica brasileira, registrando o nome do informante.
23
Compndio de histria da msica, publicado em 1929; o livro recebeu, em 1942, o ttulo de Pequena histria
da msica brasileira. 24
ANDRADE, Mrio de. In INOJOSA, J. O movimento modernista em Pernambuco. v. 3, p. 336. 25
[Recife, dezembro de 1926], Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 26
Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP.
-
20
Em janeiro de 1927, Ascenso mais uma vez respondeu ao pedido de ajuda: Eu no
tenho preguia de te ajudar, Mrio, e no pense vc. que o faa esperando qualquer
recompensa a no ser o conforto de sua amizade to brasileira....27 Mostrou disponibilidade
em auxiliar o interlocutor no que fosse possvel: No precisa, pois, voc discutir comigo.
Basta que voc acuse a recepo de minhas cartas, pois o que eu quero ajud-lo e para faz-
lo hei de arrancar msica at do Inferno.28 Em 7 de fevereiro de 1927, da Rua Lopes Chaves
veio o agradecimento: No zanga comigo no, hein. Ascenso voc imagina como estou grato
pra voc. As melodias que me tem mandado e as explicaes me deixaram entusiasmado e
feliz.29 Na sequncia da carta, palavras de gratido e reconhecimento pela generosidade do
amigo: [...] As melodias vm vindo graas a Deus e gente como voc das que mais me tm
ajudado. Creio que vai sair coisa que presta e bem til se Deus quiser.30
O incio da correspondncia entre os dois poetas foi marcado pela confirmao de
amizade por meio de manifestaes de afeto, de agradecimentos e de elogios fervorosos. As
estratgias de seduo intelectual permearam o dilogo entre os missivistas; Ascenso iniciou a
carta de 8 de janeiro de 1927 com a forma de tratamento Bicho., o que sinaliza uma
intimidade (epistolar) conquistada. Na carta seguinte, algo semelhante ocorreu com o uso de
Mrio, meu neguinho.... A maneira como o poeta pernambucano se dirigia a seu
destinatrio foi percebida e, em dado momento, Mrio se ressentiu de uma possvel mudana
de tratamento ao longo da correspondncia:
Imagine que at voc deixou de me chamar com os nomes gostosos e
familiares de sempre na ltima carta e veio com um Meu bondoso Mrio to longnquo, to hiertico to desagradvel que fiquei num jejum danado
do Ascenso verdadeiro que tanto quero e gosto!...31
O largo saber folclrico de Ascenso Ferreira foi valioso para o aprimoramento da obra
de Mrio de Andrade. Seu conhecimento de msica e sua capacidade e disposio de ir a
campo procura do que despertava o interesse do autor de Macunama apareceram com
vivacidade em meados de 1930, quando Ascenso se mostrou consciente da centralidade da
sua colaborao:
27
Recife, 8 de janeiro de 1927, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 28
Idem. 29
ANDRADE, Mrio de. In INOJOSA, J. O movimento modernista em Pernambuco. v. 3, p. 337. 30
Idem, p. 337. 31
Idem, p. 346.
-
21
Voc bateu mesmo na porta de quem lhe podia dar o que voc queria. Penso
no ser exagero em dizer-lhe haver em Pernambuco muito poucas pessoas
capazes de o fazer e por uma razo somente: todas essas canes do passado
esto profundamente atrapalhadas, e s os velhos as sabem de verdade. [...]
E por hoje basta. Penso que voc no podia bater em melhor porta. Modstia
a parte. E viva, bicho.32
As cartas de Ascenso e Stella a Mrio trazem informaes referentes a danas
dramticas, ao carnaval pernambucano, ao pastoril e msica, entre outros assuntos.
Em algumas cartas do pernambucano, trazendo transcrio de canes do povo, Mrio
anotou J aproveitada, sinalizando o uso delas em algum de seus trabalhos. Um exemplo
ocorreu, em 16 de janeiro de 1930, quando Ascenso narrou a Histria da Cabra-Cabriola,
personagem do imaginrio folclrico do Nordeste. No extenso relato transcrito na carta, ua
viva tinha 3 filhos que deixava trancados em casa enquanto ia para o trabalho. A Cabra-
Cabriola era um bicho medonho, de olhos de fogo e corpo lanzudo, que comia meninos
quando topava com eles. A histria, integralmente, foi incorporada aos manuscritos As
melodias do boi de Mrio de Andrade e depois transcrito no livro pstumo As melodias do boi
e outras peas, obra organizada por Oneyda Alvarenga, em 1987, a partir dos papis reunidos
pelo escritor.
Stella Griz Ferreira tambm contribuiu para o desenvolvimento da pesquisa folclrica
de Mrio Andrade. Escreveu Ascenso, em duas oportunidades: As msicas Stella vai lhe
mandar33; Stella tem msicas por desgraa pra mandar pra voc, as quais vo em carta
registrada, amanh ou depois.34
Stella mostrou-se disposta a colaborar no trabalho de colheita de msicas, receitas e
simpatias de Pernambuco. Comunicou ao amigo em setembro de 1927:
Vou copiar as suas msicas. Tenho mais duas: uma, um lindo canto de
trabalho e a outra uma lenda muito interessante: a de uma menina que a
madrasta matou e enterrou numa baixa de capim e quando o capinheiro ia cortar o capim ouvia uma voz que dizia: capinheiro de meu pai no me corte
meus cabelos, etc. Voc sabe? Deve saber.35
Esta lenda tambm pode ser lida em As melodias do boi e outras peas.
Stella atendeu ainda aos pedidos de Mrio, enviando a histria Maria Borralheira e
receitas de doces tpicos da culinria pernambucana. O Arquivo de Mrio de Andrade, do
32
Recife, 16 de janeiro de 1930, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 33
Recife [setembro de 1927], Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 34
Recife, 7 de outubro de 1927, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 35
Recife, [setembro de 1927], Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP.
-
22
IEB-USP, preserva o material enviado por Stella Griz Ferreira, principalmente na Srie
Manuscritos de Mrio de Andrade, que congrega trabalhos em processo do escritor em
diversas reas.
Processo de criao
O dilogo epistolar pode expor etapas do processo de criao artstica e ensastica dos
missivistas, transformando a correspondncia em um frtil laboratrio da criao.36 A
carta pode tambm fornecer matrizes de um determinado escrito; verses abandonadas de um
texto; justificativas de escolhas ou de recusas na elaborao de uma obra etc.
Os carteadores muitas vezes trocam opinies, sugerem mudanas nas obras em
processo ou oferecem subsdios para obras in progress do interlocutor. o caso da carta de
Ascenso Ferreira, de 8 de janeiro de 1927, ao mencionar A gramatiquinha da fala brasileira,
obra de Mrio de Andrade que permaneceu inacabada e indita: Tenho, tambm muitos
termos que lhe poderiam servir para a gramatiquinha da fala brasileira. Vou dar-lhe uma
amostra de interessantes nomes de molstias: o pela-quem-quem, o bute-caiana, a Erisipa, o
roda.37
Na mesma carta, Ascenso instigou Mrio a conhecer o Recife, mencionando as
mangas de Itamarac: A sua carta fala-me de mangas! Mangas amarelas de So Paulo que
enlambuzam o sol! Ai! Se voc visse as mangas de minha terra! Se provasse o impossvel das
mangas de Itamarac!.38 As referncias oferecidas por Ascenso foram utilizadas por Mrio
para recriar a lenda das mangas de Itamarac no sexto captulo da rapsdia Macunama
(1928), A francesa e o gigante. O escritor adaptou as informaes do amigo: Em Itamarac
Macunama passou um pouco folgado e teve tempo de comer uma dzia de manga-jasmim
que nasceu do corpo de dona Sancha, dizem.39
Informaes que Ascenso, em fevereiro de 1928, ofereceu a Mrio, em cartas,
ressurgiram em Macunama, no terceiro captulo da rapsdia, Ci, Me do Mato, com a
presena de esclarecimentos em relao s rendeiras nordestinas. Ascenso ensinou:
Rendeira coisa muito humilde, no chegando mesmo a ser pessoa.
Entretanto eu cavei, com um amigo coronel, muito amante dessas tradies,
36
MORAES, Marcos Antonio de. Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia de Mrio de Andrade. So
Paulo: Edusp/FAPESP, 2007, p. 92. 37
Recife, 8 de janeiro de 1927, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 38
Idem. 39
ANDRADE, Mrio de. Macunama, o heri sem nenhum carter. Texto estabelecido por Tel Ancona Lopez
& Tatiana Longo Figueiredo. Rio de Janeiro: Agir, 2007, p. 68.
-
23
as seguintes informaes: As irms Felinta e Maria Rodrigues de Rio
Formoso, Pernambuco, falecidas h coisa de 2 anos, peritas trocadeiras de
bilros. Joaquina Leito, conhecida por Quinquina Cacunda (Corcunda),
falecida em So Jos da Coroa Branda, Pernambuco, h cerca de 10 anos.
Vivas talvez venham do Cear e vivas daqui s esperando mais alguns dias,
para tomar informaes com os Coletores dos Lugares onde se fabrica renda:
Caruaru e Gravat. Escreverei.40
Em Macunama, l-se:
Todos agora s matutavam no pecurrucho. Mandaram buscar para ele em
So Paulo os famosos sapatinhos de l tricotadas por dona Ana Francisca de
Almeida Leite Morais e em Pernambuco as rendas Rosa dos Alpes, Flor de Guabiroba e Por ti padeo tecidas pelas mos de dona Joaquina Leito, mas conhecida pelo nome de Quinquina Cacunda.
41
Em 27 de maio de 1928, Mrio solicitou colaborao do amigo pernambucano para o
desenvolvimento de seu projeto O Sequestro da Dona Ausente, que pretendia estudar a
ausncia da mulher nas expresses folclricas luso-brasileiras:
At descobri uma coisa de que falo pra voc com absoluta reserva, peo pois
no contar isso por enquanto pra ningum. Voc no conhece por a alguma
cano de qualquer gnero, cantiga de roda, toada, coco, maracatu, tudo
serve tratando de mulher que vem por mar, mulher que vem em barca,
mulher que atravessa rio pra chegar junto da gente, enfim mulher
embarcada? O assunto geral esse: Mulher ausente que afinal chega de
outro lugar. Escarafunche bem na sua memria pra ver se encontra versos e
cantigas a esse respeito. E me mande tudo que encontrar por mais
desinteressante que seja. O tema que interessante e foi descoberto por
mim. Vou tratar dele num opsculo especial. J indico esse opsculo entre as
obras por publicar que vm indicadas no Macunama (pra junho) porm s
indico o ttulo Sequestro da Dona Ausente sem indicar do que se trata.42
Ascenso procurou auxili-lo, enviando alguma colaborao: No conheo nada de
mulher que est pra chegar, apenas sei de uma cano que diz assim: A mar encheu/ A mar
vazou/ Cad minha mulata/ Que ainda no chegou!.43
A correspondncia revela que Ascenso, assim como Mrio, tambm aproveitou a carta
como espao de compartilhamento de ideias, para expor suas intenes, planos e projetos.
40
Recife, 29 de fevereiro de 1928, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 41
ANDRADE, Mrio de. Macunama, o heri sem nenhum carter, pp. 34-35. 42
ANDRADE, Mrio de. In INOJOSA, J. O movimento modernista em Pernambuco. v. 3, pp. 346-347. 43
[Recife], 14 de julho de 1928, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. Os versos
enviados por Ascenso, pelo que constatou esta pesquisa, no foram includos por Mrio de Andrade nos
documentos reunidos do manuscrito O sequestro da Dona Ausente (Arquivo Mrio de Andrade, Srie
Manuscritos de Mrio de Andrade, IEB-USP).
-
24
Ascenso mostrou-se aberto ao dilogo crtico com o modernista de So Paulo. Na
primeira carta do conjunto, Mrio escreveu:
Uma coisa porm no posso sem falar. O poema Maracatu que positivamente uma gostosura de ritmo e de som e com um mistrio cheio de
lirismo, tem uma coisa que me desagrada. o verso Onde estou eu quebrando o ritmo tanto do metro geral do poema como de ritmo do refro.
verdadeiramente uma pena. Voc me avisa que tem msica e est no livro.
ouro sobre azul e sei que o ritmo musical pode muitas vezes fazer ficar
ritmicamente certo um verso quebrado. Porm isso s pra quando o poema
for cantado.44
O exame da correspondncia marioandradiana ajuda a identificar os ideais do autor em
relao lngua, msica e, no caso, potica que deveriam ser feitas no Brasil, no s por
ele mas tambm pelos outros intelectuais. Pela leitura das sugestes e dos aconselhamentos
que destinava aos amigos/interlocutores, vislumbra-se a lgica de seu pensamento. Sabe-se
que alguns comentrios no eram pura e simplesmente endossados, mas o fato de haver
rplicas de recusa (s vezes longas, s vezes veementes) revela que ocorriam ao destinatrio
momentos de meditao e de apreciao da relevncia da mensagem. Mrio partilhava suas
ideias, recorrendo ao tom pedaggico, ao apontar os caminhos que poderiam ser escolhidos
pelos mais novos ou os da sua gerao.45
Negar os alvitres de Mrio tambm fazia parte da
busca de uma dico particular.
Ascenso, inicialmente, recusou a opinio do poeta paulista: H, realmente, uma
quebra de ritmo no refro do meu Maracatu. Aquele Loanda, Loanda, onde estou eu destoa
do ritmo geral, porm nas toadas do maracatu mesmo assim, e eu compus o poema ao som
da toada da qual envio uma cpia p. voc.46 Porm, em outra carta, aps refletir um pouco
mais, aceitou as sugestes: O Loanda, Loanda j est consertado de acordo com o teu
sabor.47
Em setembro de 1927, Ascenso escreveu:
O meu livro [Catimb] est sai-no-sai e logo que o bote na rua seu Ascenso vai fazer um trabalho que julga digno de todo o cuidado: Eu quero estudar o grande movimento lrico do hoje chamado samba do matuto, o qual est tomando um incremento notabilssimo, chegando ao
44
ANDRADE, Mrio de. In INOJOSA, J. O movimento modernista em Pernambuco. v. 3, p. 335. 45
Ver a esse respeito o livro de Marcos Antonio de Moraes Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia de
Mrio de Andrade. So Paulo: Edusp; Fapesp, 2007. 46
[Recife, dezembro de 1926], Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 47
Recife, 8 de janeiro de 1927, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP.
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25
ponto de no haver mais ncleo rural sem possuir o seu Mestre de Samba.48
Percebe-se, ento, que a criao um contnuo processo que recebe formulaes
constantes por meio de novas leituras, novas ideias, opinies de outros indivduos presentes
no cotidiano do criador.
Em maro de 1930, Ascenso pediu ao amigo que se posicionasse em relao ao
prefcio escrito para a obra Cana caiana: Junto te envio um ligeiro prefcio que fiz para o
livro. [...] Responde urgente se devo por o prefcio.49 Em outra carta, novamente exigiu um
julgamento sincero, reiterando os laos de amizade: Preciso que tu me mandes com urgncia
dizer algo sobre a introduo do Cana caiana, que te enviei. Tenho de mandar o livro para a
impresso. Peo sinceridade. Tu sabes que nesta coisa de arte ns somos mesmo que
irmos.50 Em 4 de abril de 1930, a ansiedade do pernambucano chegou ao fim aps receber
carta de So Paulo, no localizada pela pesquisa: Muito obrigado por sua lealdade de amigo.
Eu j esperava que fosse esse seu pensamento, e, por isso, no quis publicar o prefcio antes
de ouvir sua opinio.51 A sugesto de Mrio de Andrade foi acatada, e o livro veio a lume em
1939 sem que o prefcio figurasse em suas pginas.
A correspondncia Mrio de Andrade & Ascenso Ferreira reflete igualmente a atuao
episdica do escritor recifense na crtica literria e artstica. Mrio guardou, em seu arquivo,
artigos do amigo acerca de Amar, verbo intransitivo (1927) e Cl do jabuti (1927)52
de
Macunama (1928). A pesquisa tambm localizou crticas de Ascenso a obras de Jorge de
Lima, de Cassiano Ricardo, de Antnio de Alcntara Machado e de Tarsila do Amaral.53
O autor de Catimb apontou desajustes no poema Lenda do Cu, presente em Cl
do Jabuti: Fiquei doente com v. no ter botado fumo no cu do caboclo. Onde que v. viu
48
Recife, [setembro de 1927], Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 49
Recife, [maro de 1930], Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 50
[Recife, anterior a 4 de abril de 1930], Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 51
[Recife], 4 de abril de 1930, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 52
Os artigos escritos por Ascenso Ferreira receberam os seguintes ttulos: Mrio de Andrade o Revoltoso: Amar, verbo intransitivo (Recife, Jornal do Commercio, 3 de abril de 1927); Cl do Jabuti (Recife, Revista da Cidade, 4 de fevereiro de 1928), Arquivo Mrio de Andrade, Srie Matrias Extradas de Peridicos, IEB-
USP; Brasilidade e dinamismo a propsito de Macunama de Mrio de Andrade (Recife, A Provncia, 18 de novembro de 1928) (Coleo Carlos Alberto Passos, IEB-USP). 53
Todos os artigos foram publicados na Revista da Cidade, respectivamente Jorge de Lima: Poemas em 18 de fevereiro de 1928 (Publicaes Digitalizadas da Fundao Joaquim); Martim Cerer em 28 de julho de 1928 (Publicaes Digitalizadas da Fundao Joaquim); Path Baby em 14 de abril de 1928 (Arquivo Antnio de Alcntara Machado, Srie Matrias Extradas de Peridicos, IEB-USP); Tarsila em 21 de janeiro de 1928 (Coleo de Artes Visuais, IEB-USP).
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26
cu de caboclo sem fumo? Te dana.54 Mrio diante da restrio do amigo, aprofundou o
debate:
[...] Sei to bem como voc quanto o fumo inerente ao homem brasileiro
caboclo e se tivesse me lembrado disso tinha botado ele na poesia. Porm se
no est isso no tem importncia porque em toda enumerao sinttica de
lirismo, o que no est presente est implcito. Pegue no Serto por exemplo e j se pode fazer uma crtica nesse sentido mostrando tudo o que
voc no botou na poesia e que essencial da psicologia que voc quis fazer.
Porm est implcito no poema e por isso ningum no se lembra agora de
estar perdendo tempo em lembrar. No tem poesia neste mundo que resista a
uma crtica dessa ingenuidade. Se tivesse me lembrado do fumo de certo que
tinha botado ele no que seja defeito sem ele porm porque era um elemento
bom como evocao. Me esqueci, pacincia.55
Em relao a Macunama, Ascenso escreveu em carta: Muito agradecido pela
incluso de meu nome modesto entre tantos macumbeiros ilustres.56 No livro, no captulo
Macumba, o nome do poeta aparece junto ao de Jaime Ovalle, Dod, Manuel Bandeira,
Blaise Cendrars, Raul Bopp e Antnio Bento. Outras obras literrias mereceram
consideraes do poeta, nas cartas, como Brs, Bexiga e Barra Funda e Laranja da China de
Antnio de Alcntara Machado e O quinze de Rachel de Queiroz, s para citar dois escritores
relevantes. Casa-grande & senzala, escrito pelo socilogo e antroplogo Gilberto Freyre,
figurou em missiva imediatamente enviada aps a sua publicao, em 1933: A nota do dia
o livro do Gilberto Freyre. Ainda no o li, mas me agradou muito um pedao no qual ele
assevera que os senhores de engenho antigos deixavam a mesa, acendiam o charuto,
deitavam-se nas redes, cuspindo no cho e peidando... Gozadssimo e profundamente real.57
A pesquisa tambm logrou descobrir que Stella escrevia versos. Filha, irm e esposa
de poetas, Stella enviou, em 9 de outubro de 1936, um dos seus trabalhos, o poema Mulher,
conservado por Mrio de Andrade entre seus papis58
.
No Arquivo de Ascenso Ferreira sob a guarda da Fundao Joaquim Nabuco, no
Recife, dois poemas assinados por Stella foram localizados: Confisso, publicado no Jornal
do Commercio e Natal, em A Seleta.59 Artigos da poca tambm se referem atuao de
54
[Recife, anterior a 28 de dezembro de 1927], Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 55
ANDRADE, Mrio de. In INOJOSA, J. O movimento modernista em Pernambuco. v. 3, pp. 343-344. 56
Recife, 26 de agosto de 1928, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 57
[Recife], 15 de maro de [1934], Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 58
V. Srie Matrias Extradas de Peridicos no Arquivo de Mrio de Andrade, IEB-USP. 59
Infelizmente, os recortes de jornal no esto datados. Transcrio do poema Confisso: Que s tu para mim?/ Vou te dizer baixinho: Vida!// Gosto de fechar bem os meus olhos/ quando a saudade me vem falar de ti.// Por que ser?// que tu vives no meu ser/ na minhalma,/ fechos os olhos/ para te sentir melhor.// Que s tu
para mim?/ Vou te dizer bem alto: Vida!. Os versos de Natal so: Jesus menino no seu bero humilde/
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Stella na imprensa local. Em julho de 1944, o texto Ascenso Ferreira & Cia, assinado por
F.G., publicado no Boletim da C.G.P.60
discorreu sobre Stella:
A esposa de Ascenso Ferreira o tipo da senhora que, alm de ser uma
excelente dona de casa, tambm conhecedora profunda da poesia, pintura e
msica; aprecia a matemtica e acompanha com interesse o desenvolvimento
da guerra atual. No somente uma apaixonada da poesia, como tambm
poetisa: faz como o seu marido poesia modernista. Porm, h 5 anos no faz
mais poesia, porque um gurizinho toma todo o seu tempo.61
Viagens pelo Brasil
O dilogo epistolar travado entre Mrio de Andrade, Ascenso Ferreira e Stella Griz
Ferreira, tambm historia a viagem de Mrio ao Nordeste em 1927 e 1928/9, a de Manuel
Bandeira em 1927 ao Recife e tambm a ida de Ascenso a So Paulo, em 1927. Nesta ltima,
com Manuel e Mrio, Ascenso seguiu para a Fazenda Santa Tereza do Alto, propriedade de
Tarsila do Amaral. Na capital paulista, Ascenso travou conhecimento com Oswald de
Andrade e Lasar Segall. Essa estadia no Sudeste do pas valer cartas de agradecimentos
hospitalidade e impresses sobre os intelectuais modernistas: Minha saudade de vocs
enorme. S. Paulo mesmo a capital artstica do Brasil. Aguarde minhas crnicas. No direi
mais para no melindrar os cariocas, que tambm foram muito gentis para comigo.62
Em 1927, Mrio de Andrade, juntamente com D. Olvia Guedes Penteado, rica
senhora da sociedade paulista e mecenas dos modernistas, Margarida Guedes Nogueira
(Mag), sua sobrinha, e Dulce do Amaral Pinto (Dolour), filha da pintora Tarsila do Amaral,
percorreram o interior dos Estados nortistas e chegaram at Iquitos, no Peru. nessa viagem
que aconteceu um desencontro entre Ascenso e Mrio, que no avisou ao poeta de Catimb
acerca de sua passagem pelo Recife. Ascenso comentou aps os nimos acalmados:
Contava poder obsequiar melhor vc. e D. Olvia, oferecendo a vcs. uma festa
tpica, com carter absolutamente nordestino. Para isso eu esperava que vcs.
me avisassem do dia da passagem, mode poder juntar o pessoal... [...] Eu
mandara at pintar a casa e arranjara um cozinheiro conhecedor profundo da
tradio. [...] A pintura da casa no era por sua causa, vc. bem sabe, mas por
causa de D. Olvia, diante de quem no queria parecer to Jeca...63
Perfumado/ Pelo amor/ de Maria e Jos!// Jesus to grande na misso do Pai! E o homem/ guardando para Ele/ o
espinho e o madeiro!// Jesus homem feito: Amor e Verdade/ ensinando/ mostrando/ o caminho/ da Vida e do
Bem!// Jesus amando... sofrendo... chorando por todos ns!/ Entretanto/ todos ns temos feito to pouco por amor a Ele// Ns que queremos tanto:/ O cu!. 60
rgo da Campanha do Ginasiano Pobre, segundo Luiz do Nascimento em Histria da Imprensa em
Pernambuco (1941-1954), v. 10. 61
Artigo encontrado entre a documentao pertencente a Ascenso Ferreira na Fundao Joaquim Nabuco. 62
[Recife, posterior a 28 de dezembro de 1927], Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 63
Recife, [setembro de 1927], Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP.
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As viagens ao Norte e ao Nordeste do pas foram essenciais para que Mrio de
Andrade pusesse em prtica as ideias de construo da cultura nacional, engendrada por meio
de muito estudo, reflexo, anlise e interpretao das manifestaes do povo brasileiro. O
passado nacional e a pesquisa das expresses populares deveriam ser estudados para que a
essncia da brasilidade pudesse ser utilizada no momento de criao. Mrio lamentava o
descaso de muitos pensadores brasileiros em relao nossa cultura e expressou esse
descontentamento no livro Ensaio sobre a msica brasileira (1928): Pode-se dizer que o
populrio musical brasileiro desconhecido at de ns mesmos. Vivemos afirmando que
riqussimo e bonito. Est certo. S que me parece mais rico e bonito do que a gente imagina.
E sobretudo mais complexo.64
Eventos polticos e amizade
Nas cartas trocadas, Mrio de Andrade, Ascenso Ferreira e Stella Griz Ferreira
comentaram os fatos marcantes do pas como a Revoluo de 1930, a Revoluo
Constitucionalista de 1932 e a nomeao de interventores indicados pelo presidente Getlio
Vargas. Estes episdios causaram grande impresso nos missivistas. A correspondncia
permite apreender como Mrio, Ascenso e Stella pensaram e sentiram os acontecimentos
polticos da dcada de 1930 no Brasil.
Durante as negociaes de sucesso presidencial de 1930, So Paulo e Minas Gerais
romperam a aliana conhecida como poltica do caf com leite ao divergirem em relao
indicao do candidato ao poder. Os paulistas apoiaram Jlio Prestes e os mineiros se ligaram
s oligarquias da Paraba e do Rio Grande do Sul na chamada Aliana Liberal e indicaram
Getlio Vargas como candidato presidncia e Joo Pessoa, vice-presidncia.
Nas eleies de 1930, Jlio Prestes saiu vitorioso, mas no chegou a tomar posse. Em
3 de outubro do mesmo ano, a Aliana Liberal articulou e apoiou a ecloso da Revoluo de
1930 em Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Nordeste. Em 24 de outubro de 1930, o Palcio
da Guanabara foi cercado e o presidente Washington Lus deposto.
Os acontecimentos, aqui descritos de forma sucinta, foram vistos por Ascenso com
entusiasmo. O poeta contou como irrompeu a Revoluo de 1930 em terras pernambucanas:
Aqui o queima foi danado e quem fez a revoluo foi realmente o povo. De Pernambuco
dependeu a queda de todo o Norte. E j que contaste tua odisseia, na qual eu muito pensei,
64
ANDRADE, Mrio de. Ensaio sobre a msica brasileira. 4 ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2006, p. 17.
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passo a contar-te a minha.65 Ascenso narrou sua viagem a trabalho, um servio fiscal de
ordem do Governo, na fronteira com a Paraba, ocorrida durante os fatos. Depois de ter sido
parado e revistado em diversas cidades, conseguiu retornar ao Recife em pleno fogo.
Entretanto, Ascenso no encontrou imediatamente Stella, que ficara na casa de seu pai, na
zona de maior fuzilaria, prximo do quartel do Derby.
Na mesma carta de 25 de novembro de 1930, a excitao pelos eventos deflagrados
apareceu em afirmaes de defesa ao novo governo como: Enfim, pessoalmente eu nada
sofri, e pude mesmo gozar a esttica revolucionria, que foi maravilhosa e Enfim tudo
passou e o novo governo vai muito bem, graas a Deus, e foi de uma humanidade estupenda
para os vencidos. Ascenso perguntou ao amigo como estava a situao em So Paulo e a
recepo dos paulistas diante da nomeao do interventor Joo Alberto. Por fim, solicitou um
posicionamento de Mrio Manda dizer se voc est bem com ele.
Em 2 de janeiro de 1931, Ascenso escreveu palavras tranquilizadoras sobre os
desdobramentos que a Revoluo poderia causar na sua carreira de escriturrio do Tesouro do
Estado de Pernambuco: Aqui tudo em paz. Meu emprego no periga, salvo se viesse
qualquer mudana de interventor, o que no acho provvel, pois em Pernambuco a revoluo
continua a ser um fato.66 O desempenho do interventor Carlos de Lima Cavalcanti, em
Pernambuco, foi visto por Ascenso de forma positiva: O nosso interventor MADEIRA DE
LEI. Bicho moo, bem intencionado e cheio de nobres execues. O povo est satisfeito.
Meses depois, a decepo de Ascenso diante dos artistas plsticos e dos msicos
recifenses se deflagrou: A revoluo que foi formidvel de pitoresco e maravilhosa de
esttica no inspirou as bestas dos pintores daqui nem um quadro sequer e nem uma cano
aos musicistas.67 Para Ascenso, a intelectualidade pernambucana no soube aproveitar os
acontecimentos ocorridos para renovar as artes e quebrar paradigmas.
Aps assumir o governo em carter provisrio, Getlio Vargas protelou a
constitucionalizao do pas e as eleies livres. Esses fatos aliados ao alijamento da
oligarquia paulista, desencadearam a Revoluo de 1932.
Em 19 de dezembro de 1932, cinco meses aps a Revoluo de 1932, Stella se
mostrou receosa de um possvel rompimento dos laos de amizade com Mrio, j que os
paulistas no conseguiram cooptar os demais Estados do pas na luta contra o governo
provisrio de Getlio Vargas:
65
[Recife], 25 de novembro de 1930, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 66
Recife, 2 de janeiro de 1931, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 67
[Recife], 10 de agosto de 1931, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP.
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Mrio, eu tenho ainda uma alegria grande em lhe assegurar que nem todo
brasileiro do Norte tem esse dio pequenino por S. Paulo. Esse dio que no
mais do que uma vergonhosa inveja. Felizmente, graas a Deus, nem todo
nortista pensa pela mesma cabea. So vrios os semblantes e vrios so os
coraes e os crebros. Por Deus, eu no lhe digo isso para lhe ser agradvel.
Sou absolutamente sincera e sincera sempre que falar para voc.68
Nesse quadro conflituoso, o estado de So Paulo foi visto como inimigo do restante do
Brasil. Em carta de junho de 1933, Mrio ao se referir sobre uma possvel Constituinte no pas
reafirmou que So Paulo estava de um lado e o Brasil de outro: Aumenta a animosidade
entre brasileiros e paulistas.69 Por fim, explicou os motivos de no ir at o Nordeste naquele
momento por temer questionamentos sobre o separatismo paulista: No estou absolutamente
disposto a encontrar algum brasileiro indiscreto que me pergunte sobre como vai o
separatismo aqui ou se sou separatista.
Afetos e divergncias
Alm das discusses acerca da criao potica e das manifestaes folclricas e
populares, do testemunho de viagens e da vida poltica brasileira, o dilogo epistolar entre
Mrio de Andrade, Ascenso Ferreira e Stella Griz Ferreira foi marcado por momentos em que
o cotidiano surgiu, em que sentimentos foram expostos de forma contundente.
Stella lamentava as ausncias de Ascenso, sentimento apaziguado pelo recebimento de
palavras de amizade: Me ajuda Mrio, manda uma carta pra mim mode ir matando essas
durezas da minha vida.70 Em outra mensagem, Stella rogou o envio de algumas palavras do
amigo paulista como forma de suavizar as distncias: Tenho uma grande saudade de voc, e,
as cartas sempre enganam a gente. Aqui o povo diz enganar no sentido de mitigar,
suavizar.71
As angstias de Mrio durante sua estadia no Rio de Janeiro aps o afastamento do
Departamento de Cultura da Municipalidade de So Paulo tambm foram retratadas em cartas
trocadas, principalmente, com Stella. Ao lado de Oneyda Alvarenga e de Henriqueta Lisboa,
Stella se configurou como mais uma interlocutora disposta a compartilhar as frustraes
narradas por Mrio. A missivista teceu mensagens reconfortantes aliadas ao tom fraternal:
68
Limoeiro do Norte, 19 de dezembro de 1932, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 69
So Paulo e So Joo [24 de junho] de 1933. In INOJOSA, Joaquim. O movimento modernista em
Pernambuco. v. 3, p. 352. 70
Recife, 1 de dezembro de 1927, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 71
[Recife, dezembro de 1937], Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP.
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31
Sempre e sempre penso em voc. Sei bem, no precisa me falar, que a nesse
Rio voc no sente a alegria da sua vida de S. Paulo. [...] L se vai, de
quando em vez, o meu pensamento para voc e como num carinho de me eu
queria consolar a sua cabea no meu colo e botar para longe todas essas
tristezas que matam esse seu sorriso to bonito. Voc um amigo irmo, um
filho a quem eu aprendi a querer muito bem.72
O trecho acima recebeu resposta desesperanada, prpria de um indivduo dilacerado
pelas circunstncias:
Sua carta suave, quente, murmurante, escuto bem nela a doce voz de voc
que das coisas mais preciosas do meu mundo. [...] Anda minha irmzinha
querida, fala para eu sarar! Ando vazio, Stella, completamente
inconsequente. Bebo, ando bebendo muito pra esquecer que mal? no sei.
No sei o que que eu tenho ou que no tenho. um grande mal vagarento,
um enorme desgosto escuro, uma espcie de arrependimento de crimes no
cometidos, a ntida conscincia de um formidvel pecado que no sei qual
.73
O poeta de Catimb tambm se valeu da carta para exprimir os pormenores de seu
pensamento, permeado de afetos. Ascenso exps seu descontentamento em face da publicao
da entrevista cedida a Manuel Bandeira, Um poeta do Nordeste, em 1 de janeiro de 1928,
n O Jornal: Botou sempre umas sacanagens que, felizmente, s eu entendo. O menininho
quer mostrar que j tem teso na bimbinha....74 Entretanto, pouco mais de um ms depois, o
tom empregado era outro: A sacanagem que o Bandeira fez comigo, longe de me magoar, me
fez gozar como o diabo. Ela foi toda sem malcia, e no a explico para no me tornar
maante.75
Consideraes finais
A edio da correspondncia Mrio de Andrade & Ascenso Ferreira e Stella Griz
Ferreira aponta para um rico manancial de explorao no campo dos estudos
interdisciplinares, mobilizando questes literrias, histricas, do memorialismo, da sociologia
da cultura.
O presente trabalho tencionou contribuir para a ampliao do conhecimento das redes
de sociabilidade no modernismo tanto quanto oferecer elementos testemunhais para o estudo
72
Recife 17 de julho de 1940, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 73
Rio de Janeiro, 4 de setembro de 1940 In Os Andrades e outros aspectos do modernismo, Rio de Janeiro:
Civilizao Brasileira, 1975, pp. 212-213. 74
Recife, 19 de janeiro de 1928, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP. 75
Recife, 10 de fevereiro de 1928, Arquivo Mrio de Andrade, Srie Correspondncia, IEB-USP.
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32
da obra dos interlocutores e de seus processos de criao. Os documentos epistolares reunidos
nesta pesquisa contribuem, particularmente, para que se compreenda melhor aspectos do
projeto marioandradiano de construo de uma cultura brasileira.
Esta edio
O estabelecimento do texto das cartas de Mrio de Andrade, Ascenso Ferreira e Stella
Griz Ferreira orientou-se pelas normas previstas na Coleo Correspondncia Mrio de
Andrade (Edusp/IEB), coordenada pelos Profs. Drs. Tel Ancona Lopez, Marcos Antonio de
Moraes e Tatiana Longo Figueiredo. O trabalho norteou-se pelas seguintes diretrizes
metodolgicas: a) atualizao do texto das cartas, de acordo com a norma ortogrfica vigente;
b) respeito pontuao; c) eventuais intervenes no texto das missivas foram explicitadas
em nota de rodap; d) abreviaes e abreviaturas foram mantidas para preservar o fluxo da
escrita, revelador do grau de intimidade dos missivistas; e) respeito s locues nominais,
verbais e adverbiais diz-que, bom-dia, arranhacu etc., quando sinalizavam aspectos do
projeto lingustico nacionalista dos interlocutores; f) preservao das idiossincrasias
lingusticas de Mrio de Andrade, assim como de sua particular maneira de grafar nomes
prprios, como, por exemplo, Osvaldo (Oswald de Andrade) etc.; g) uso de itlico nos
ttulos de livros, manuscritos, quadros, esculturas, filmes, peas de teatro ou composies
musicais, peridicos, nomes de navios etc.; ttulos de poemas e de contos aparecem entre
aspas, de acordo com a norma bibliogrfica vigente; h) na impossibilidade de leitura de
algumas palavras, optou-se pela colocao de [ilegvel]; vocbulos ou expresses entre
colchetes apontam para possibilidades de leitura; i) manuteno dos sublinhados e das
solues grficas dos autores; j) dados atestados (locais e datas) foram colocados entre
colchetes; l) ao final de cada carta, foram descritas as caractersticas documentais (anlise
documentria), a fim de se registrar a materialidade das mensagens, visto que tambm so
produtoras de sentido no dilogo epistolar.
A elaborao de notas da pesquisa tencionou elucidar dados biobibliogrficos de
personalidades, eventos culturais/histricos, expresses da poca e/ou regionais e fatos
tratados pelos missivistas, a fim de proporcionar ao leitor uma compreenso mais clara e
aprofundada da correspondncia. Nesse sentido, valeu-se, alm de fontes bibliogrficas, da
consulta no arquivo e na biblioteca de Mrio de Andrade, sob a guarda do Instituto de Estudos
Brasileiros (IEB-USP), recuperando documentao de fonte primria (manuscritos,
marginlia em livros, dedicatrias, fotos, matrias extradas de jornais e revistas); a descrio
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documentria dos manuscritos foi recuperada do Catlogo Eletrnico Mrio de Andrade,
IEB-USP, cujas pesquisas foram coordenadas pela Profa. Dra. Tel Ancona Lopez, no IEB-
USP, entre 1989 e 2003 e resultaram na Organizao da Srie Correspondncia de Mrio de
Andrade, Auxlio Pesquisa FAPESP e VITAE, 1989-94, no Catlogo da Srie
Correspondncia de Mrio de Andrade, Auxlio Pesquisa VITAE, 1995-96, no Preparo para
publicao do Catlogo da Srie Correspondncia de Mrio de Andrade, Auxlio Pesquisa
VITAE, 1996-97 e no Preparo para publicao do CD-ROM da Srie Correspondncia de
Mrio de Andrade, Auxlio Pesquisa VITAE, 2000-3. Textos inditos em livros, citados nas
cartas, como artigos e outros escritos, compe um Dossi ao final da dissertao.
A leitura minuciosa da correspondncia trocada entre Mrio de Andrade e Ascenso
Ferreira e Stella Griz Ferreira, tendo em vista a elaborao de notas de pesquisa, propiciou a
reordenao cronolgica das cartas (atestando-se mensagens no datadas) e favoreceu a
apreenso das linhas de fora do dilogo.
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Referncias bibliogrficas
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