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Associação Nacional dos Programas de Pós-‐Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016
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DAS NARRATIVAS DE FUNDAÇÃO ÀS NARRATIVAS DE DISSOLUÇÃO: a
questão da identidade nacional em filmes contemporâneos “periféricos”
FROM FOUNDATIONAL NARRATIVES TO DISSOLUTION NARRATIVES: the
question of national identity in contemporary and peripheral films
Lúcia Ramos Monteiro 1
Resumo: Este artigo propõe pensar a questão do “nacional” dentro do cinema contemporâneo. Apesar da crise nos conceitos de “nação” e “nacionalismo”, eles ainda são usados no cinema, tanto pela historiografia e pelos estudos cinematográficos quanto por festivais e retrospectivas. Em contraponto às chamadas “narrativas fundacionais” (SOMMER, 2004), que entrelaçavam felicidade doméstica e ideal nacional, em um conjunto de filmes contemporâneos realizados em regiões “periféricas” com relação ao cânone cinematográfico (Brasil, China, Filipinas, Portugal), e cuja visibilidade se situa sobretudo no âmbito de festivais internacionais, as esferas “individual” e “nacional” continuam ligadas, mas em chave negativa. Por essa razão, propomos o conceito de “narrativas de dissolução nacional”. Haveria uma relação entre a crise de identidade nacional no âmbito diegético, e uma suposta crise do cinema, numa época em que os suportes digitais de gravação e exibição se tornam predominantes?. Palavras-Chave: Cinemas nacionais. Narrativas fundacionais. Cinema contemporâneo. Abstract: This text aims to think about the question of “national” in contemporary cinema. At a time of crisis in the concepts of “nation” and “nationalism”, those notions continue to be used in the cinematographic context, both by historiography and film studies, and by festivals and retrospectives. In opposition to the so-called “foundational narratives” (SOMMER, 2004), in which domestic happiness and national ideals are intertwined, in the films we will study the “individual” and the “national” spheres continue to be linked, but in a negative way. Because of that, we propose the concept of “national dissolution narratives”. Among our preliminary hypotheses, there is the relation between an interest on the crisis of an idea of nation, an identity crisis, and what can be considered a crisis of the cinema itself, in a moment when digital supports of capture and exhibition become predominant.
Keywords: National cinemas. Foundational narratives. Contemporary cinema.
1 Lúcia Ramos Monteiro é pesquisadora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), onde desenvolve um projeto de pós-doc com financiamento da Fapesp.
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1. Introdução (anedota sobre identidade nacional e cinema contemporâneo)
Em meados de 2015, admiradores do cinema do realizador chinês Jia Zhang-ke foram
convidados, por e-mails e postagens em redes sociais, a entrarem no site do IMDB e darem
nota máxima na avaliação de seu último longa-metragem, Mountains May Depart (2015). A
mensagem não era um apelo comum, não se tratava de defender o filme de um ídolo.
Tratava-se de uma estratégia, antes de mais nada política, de furar o bloqueio que os filmes
de Jia Zhang-ke vêm enfrentando há quase vinte anos em seu país, seja de maneira explícita
ou tácita, ora resultado da censura oficial, ora em função do controle estatal por parte do
mercado exibidor. Mountains May Depart conseguira um feito raro na filmografia de Jia:
permanecer uma semana em cartaz, em setembro na China. Isso permitia que o filme
competisse na cerimônia do Oscar, na categoria de “Melhor Filme Estrangeiro” (LEE, 2015).
O objetivo final desse apelo, e do lobby realizado por seus produtores, não era apenas o
reconhecimento internacional.
Dez anos antes, com Still Life – Em busca da vida (2006), o cineasta conquistara o Leão de
Ouro do Festival de Veneza; em 2013, no Festival de Cannes, Um toque de pecado (2013)
levou o prêmio de melhor roteiro. Mountains May Depart havia levado o Cavalo de Ouro do
Festival de Taipei. O filme tinha também disputado a Palma de Ouro em Cannes em 2015 – e
perdido para Dheepan, de Jacques Audiard. Além dos prêmios e das participações em
festivais internacionais, a obra de Jia Zhang-ke tem sido objeto de diversas retrospectivas –
em Paris, Nova York, São Paulo, etc. A campanha em favor da indicação de Mountains May
Depart no Oscar, parte do lobby de seus produtores e que contava com o engajamento
espontâneo de seus admiradores, em incontáveis postagens no Facebook, Twitter e Weirbo,
teve a participação do próprio cineasta (BRZESKI, 2015) visava principalmente o mercado
chinês.
Acreditava-se que se o filme estivesse no topo, o governo chinês se veria no dever de indicá-
lo como representante da China no Oscar, apesar das difíceis relações do cineasta com as
autoridades chinesas para o cinema. Os capítulos seguintes dessa história não são segredo: o
indicado foi Espírito de Lobo (2015), filme realizado pelo francês Jean-Jacques Annaud com
base no livro do chinês Lu Jiamin e rodado no Canadá. Mas Espírito de Lobo não pôde
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concorrer, tendo sido desclassificado porque contava com poucos chineses na equipe criativa
(AMY, 2015).
Até 1º de outubro, data em que são anunciados oficialmente os representantes de cada país na
disputa pelo Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, um caloroso debate se fez presente nas
redes sociais, em jornais e em revistas de cinema, opondo Jia Zhang-ke e Jean-Jacques
Annaud. Ainda que fossem notados comentários sobre as qualidades estéticas de um e outro
filme, o fundo da querela estava ligado à questões de nacionalismo e nacionalidade. Qual dos
dois filmes era o mais “chinês”? Jia, embora nascido no país, faz filmes difíceis, que pouca
gente consegue ver até o final e que são desconhecidos do grande público. Annaud é francês
e seu filme produz uma visão idílica da Revolução Cultural que pouco tem a ver com a
realidade.
Este artigo não pretende entrar nesse debate, não produz qualquer juízo de valores sobre os
dois filmes, nem se presta a analisar quão “chineses” ou “representativos” do cinema chinês
podem ser Mountains May Depart e Espírito de Lobo. Se tal anedota foi convocada para a
abertura deste texto, é porque dá prova de como a “questão nacional” ainda é importante no
cinema, apesar da crise dos conceitos de “nação” e “nacionalismo”, como veremos adiante. A
hipótese que será defendida é a de que a questão nacional é fundamental para Mountains May
Depart, assim como para outros filmes de Jia Zhang-ke e também para um conjunto de filmes
contemporâneos realizados em regiões “periféricas”2 em relação aos cânones da história do
cinema. Mas se a questão nacional é fundamental para tais filmes, isso não significa que eles
estejam, através de sua narrativa, afirmando ou reafirmando uma identidade nacional mítica.
Trata-se, na verdade, do contrário disso: de afirmar como a questão das identidades regionais
é problemática e, no limite, de afirmar que a própria identidade cinematográfica é
problemática.
De maneira semelhante a outros filmes de Jia Zhang-ke, Mountains May Depart envolve o
deslocamento dos personagens, a passagem do tempo, a trajetória de uma família ou de um
grupo social frente às mudanças – na paisagem, na política, no modo de vida – enfrentadas
2 O termo está entre aspas porque é problemático. A existência de um “centro” e de uma ou mais “periferias” na história do cinema é controversa. Levamos aqui em conta o proposto por Shohat e Stam (2003) e a noção de “policentrismo”, empregada, entre outros, por Nagib, Perriam e Dudrah (2012).
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pela China. O filme trata da vida de Tao (Zhao Tao) e de seus amigos de infância Liangzi
(Liang Jing Dong) e Zhang (Zhang Yi), que são apaixonados por ela, em três períodos: 1999,
2014 e 2025. A disputa entre dois homens pelo amor de uma mulher, um casamento, o
nascimento do filho, a travessia de um espaço... Com base nesses ingredientes, seria possível
propor uma hipótese de parentesco formal do filme de Jia com as narrativas cinematográficas
de fundação nacional3. As chamadas ficções fundacionais, em seu registro mais
característico, primeiramente literário4, costumam terminar com a reunião do par romântico
(herói e heroína se casam ou têm filhos, como se encarnassem o casal na origem da nova
nação5). Em Mountains May Depart, embora elementos característicos desse tipo de narrativa
estejam presentes, a história pouco a pouco se revela o avesso disso tudo: trata-se de
separação e de imigração. Se no western a travessia territorial aponta para o futuro de
oportunidades que os terrenos despovoados do oeste norte-americano representam, a China
de Mountains May Depart não oferece futuro para os protagonistas, que rumam para a
Austrália.
Em filmes produzidos nos anos 2000 e 2010 em países tão distantes geográfica e
culturalmente como China, Brasil, Filipinas e Portugal, a questão da identidade nacional é
articulada na chave negativa, no oposto das chamadas “narrativas de fundação nacional”. É o
caso do cinema dos filipinos Lav Diaz e Raya Martin e, em particular, de Evolution of a
filipino family, de Diaz (2004) e de Independencia, de Martin (2009); do cinema do
3 Diversos westerns norte-americanos apresentam características das narrativas fundacionais, por encarnarem um dos mitos dos Estados Unidos. Uma delas é a presença da travessia dos territórios “virgens” – entre aspas, pois se sabe que não se tratava de desertos populacionais absolutos, mas de territórios desconhecidos pela população branca, não povoados pelos brancos. No western, essa travessia masculina e não raro solitária é fundadora do ideário dos Estados Unidos enquanto “terra de oportunidades” e, ao mesmo tempo, perfaz o caminho de peripécias enfrentado pelo herói antes de encontrar a felicidade e o amor, uma terra fértil onde poderá fundar sua família, que funciona simbolicamente como a “família originária” da nação. O filme de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, ao levar às telas a travessia de um território desértico por um homem solitário, retomaria esses elementos do western e da narrativa fundacional, fazendo o herói enfrentar um périplo árduo e solitário em que só reencontrará a amada e poderá fundar sua família no final. Mas, como veremos, o filme frustra essas expectativas e se distancia do modelo clássico. 4 Autora de um estudo seminal sobre a relação, na literatura, entre o romance e os novos estados, sobretudo no contexto latino-americano, Sommer (2004) analisa como a continuidade entre as esferas pública e privada se dá em um largo conjunto de livros, interessada nas conexões entre romance e república a partir do século XIX. Nesse desenvolvimento concomitante da literatura romântica e da história patriótica na América Latina, os autores estimulavam ao mesmo tempo o desejo de felicidade doméstica e os sonhos de prosperidade nacional, construindo histórias que ajudassem a estabelecer a legitimidade das nações emergentes e direcionando as histórias nacionais para um futuro idealizado. Como se sabe, as ficções literárias de fundação nacional não surgem no século XIX, dialogando sempre com modelos ligados à história do gênero épico e do melodrama. 5 Em Death 24x a Second, Laura Mulvey relaciona esse tipo de desfecho à necessidade de o motor narrativo retornar à stasis inicial para que o filme possa se terminar (2006).
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português Miguel Gomes e, em particular, de As 1001 noites (2015). Toda a obra de Jia
Zhang-ke entra nessa categoria. Aqui, vou me concentrar em Still Life – Em busca da vida,
que será comparado com Viajo porque preciso, volto porque te amo, de Karim Aïnouz e
Marcelo Gomes (2009), para, a partir dos questionamentos suscitados pelos dois filmes,
apresentar a ideia de “narrativa de dissolução”.
A escolha de trabalhar com filmes de diferentes origens está na base de uma perspectiva
transnacional dos estudos de cinema. Aqui, porém, o termo “transnacional” é reivindicado
não apenas pela presença de diferentes geografias na fatura de cada um dos filmes ou pelo
fato de a maioria deles ter sistemas de coprodução internacional, mas sobretudo por dialogar
com uma concepção de “estudos transnacionais do cinema”, discutida notadamente por Lu
(1997), para quem os estudos dos cinemas chineses são necessariamente transnacionais, e por
Zhang (2007), que vê no gesto analítico transnacional uma metodologia antes de mais nada
comparativa, que parte dos estudos de literatura comparada mas que se distingue dela pelas
especificidades da arte cinematográfica. Aqui, a metodologia comparativa adotada será
transnacional, posto que o objetivo é ressaltar movimentos comuns a diferentes filmografias
“periféricas”.
2. Destinos individuais, história coletiva
Uma sinopse de Viajo porque preciso, volto porque te amo (Karim Aïnouz e Marcelo Gomes,
2009) deve necessariamente evocar o tema da história de amor entre um homem e uma
mulher. Ele pensa nela a cada momento de sua viagem de trabalho, que o mantém longe de
casa por um longo período. Dirige solitário por uma região árida e pouco povoada (Fig. 3)
enquanto faz, em off, declarações para a amada, a quem não poderá rever antes do final do
trajeto. Aí estão, assim como no resumo de Mountains May Depart que aparece no início
deste texto, ingredientes comuns às narrativas cinematográficas de fundação nacional. Em
Viajo porque preciso... e nos filmes de Jia, trata-se sobretudo de separação e não de encontro
ou reencontro do par romântico. As zonas inabitadas do filme de Aïnouz e Gomes – o sertão
nordestino –, além de não se constituírem como terra de oportunidades à imagem do western,
conformam uma paisagem que deverá desaparecer, posto que as obras de transposição do Rio
São Francisco preveem sua inundação. O personagem é na realidade um geógrafo, contratado
para fazer o inventário do território que deixará de existir.
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(Fig. 3) A estrada atravessa uma região desértica em Viajo porque preciso...: motivo presente nas narrativas
fundacionais dos westerns
Como nas ficções fundacionais, em Still Life, Um toque de pecado e Mountains May Depart,
e também em Viajo porque preciso... estabelece-se um vínculo entre o destino individual de
um personagem e a história de um território determinado. Porém, enquanto as obras do
gênero estudado por Doris Sommer (2004) se afirmam no paralelo entre a promessa de
felicidade doméstica e o desenho de um futuro de sucesso para a nação, no cinema de Jia e no
filme realizado por Gomes e Aïnouz, esse paralelo é declinado na chave do fracasso. Esse
espelhamento entre história nacional e destino privado foi forjado, na chave positiva, por uma
série de escritores e realizadores, sobretudo oriundos de “jovens nações”, que, na afirmação
de sua identidade nacional, contaram com a contribuição de autores engajados na afirmação
de um projeto nacional idealizado6.
O uso de destinos individuais como estratégia de afirmação de mitos nacionais fica evidente,
por exemplo, em Young Mr. Lincoln (1939), de John Ford, filme admirado por Eisenstein e
amplamente discutido pela revista Cahiers du cinéma. Em um artigo a seu respeito, Morettin
(2011a) repertoria o uso da figura de Lincoln em uma série de produções cinematográficas e
teatrais norte-americanas para analisar como se dá, no filme de Ford, a utilização de sua
figura para afirmar a relação entre a identidade dos Estados Unidos e a democracia.
(...) a tarefa a que se propõe Young Mr. Lincoln não é propriamente a de
desmistificar o personagem principal. Pelo contrário, todo o esforço é no sentido de
6 Eric Hobsbawn (1990) e Benedict Anderson (2008) demonstram o quanto o conceito de “nação” é uma construção – os autores discutem os termos de “ficção” e de “imaginação” nacional, nem sempre compartilhando o mesmo posicionamento, mas de todo modo esclarecendo o quão pouco há de “objetivo” ou de “natural” no entendimento que cada nação pode fazer de si e das demais.
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transformá-lo em monumento. (...) Alegoricamente, o filme de John Ford reforça a
ideia de democracia a partir da figura de um líder que atu[a] como mediador entre
as diferentes forças sociais (MORETTIN, 2011a: 20-21).
No cinema das Américas e de países de passado colonial, as narrativas fundacionais estão
presentes em um vasto conjunto de filmes7. De modo geral, pode-se dizer que, nesse tipo de
narrativa cinematográfica, costumam estar mescladas a história de um herói que tenta
encontrar sua heroína, para isso tendo que vencer uma série de contratempos, e a travessia de
uma porção importante do território nacional, reedição inesgotável da trajetória de Ulisses.
No Brasil, além da literatura romântica analisada por Sommer, de que José de Alencar é autor
emblemático, cineastas ativos nas primeiras décadas do século XX como Humberto Mauro e
Silvino Santos podem ser identificados a esse conjunto (MORETTIN, 2011b).
O cinema neorrealista, cujo papel de inaugurador de um certo modernismo cinematográfico
foi amplamente discutido, marcadamente a partir de Deleuze (1983, 1985), é fundamental ao
enlaçar os destinos dos personagens aos da nação na chave da crise, o que evidentemente se
relaciona ao peso da Segunda Guerra Mundial no contexto europeu. Não por acaso, os filmes
de Jia Zhang-ke mantêm uma conexão mais ou menos explícita com o neorrealismo. Nesse
sentido, Still Life mantém um curioso parentesco com Alemanha, Ano Zero, de Roberto
Rossellini (1948), na maneira de afirmar sua inserção em uma iconologia de ruínas (RAMOS
MONTEIRO, 2015). Os planos de Jia lembram a maneira como as ruínas enquadram o
personagem principal do filme de Rossellini, o garoto Edmund, numa correspondência
desconcertante (Figs. 1 e 2): como pode um filme rodado na etapa final da construção de uma
7 É impossível limitar a um período histórico determinado a presença das narrativas cinematográficas fundacionais. Essa produção surge em paralelo com determinados momentos nacionais – enquanto em países da América Latina as narrativas fundacionais cinematográficas aparecem desde a primeira metade do século XX, em países africanos cujas independências se deram tardiamente, há um boom de narrativas cinematográficas fundacionais – evidentemente reconfiguradas – a partir dos anos 1970. Anderson (2005) faz um levantamento das origens do discurso nacional no caso filipino a partir de um romance de José Rizal e de correspondências internacionais ligadas ao movimento independentista, estabelecendo conexões com o ideário anticolonial e nacionalista em países da América Latina e com o anarquismo na Europa. No continente africano, um caso interessante é o moçambicano, em que sobretudo a produção cinematográfica tenta estabelecer as bases comuns de um discurso nacional, na esteira da independência de Portugal, em 1975 (RAMOS MONTEIRO, 2010, 2011).
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grande obra da engenharia civil mundial, um monumento, a Barragem das Três Gargantas,
alimentar-se de uma iconologia que tem sua matriz na corrosão8 dos monumentos?
(Figs. 1 e 2): Alemanha, Ano Zero (à esq.) e Still Life (à dir.): maneiras parecidas de enquadrar os protagonistas
em um cenário de ruínas
Por outro lado, a presença da consciência da crise nas alegorias nacionais forjadas por
cineastas do Cinema Novo brasileiro tem sido amplamente discutida, a partir de Alegorias do
subdesenvolvimento (XAVIER, 2012), em diálogo com a questão da alegoria nacional no
cinema norte-americano e europeu, a partir de Griffith, estudada em outros trabalhos do autor
(1984, 1999). E é dessa tradição que Viajo porque preciso... é herdeiro, embora mantenha-se
em permanente conflito com o cinema brasileiro que o precedeu, sobretudo com o Cinema
Novo.
3. Antes da inundação, antes da extinção
Pela inversão que faz de alguns dos elementos característicos das narrativas fundacionais,
Viajo porque preciso... e Still Life podem ser encarados, quando vistos por esse prisma, como
anti-narrativas de fundação ou como “narrativas de dissolução”. Em Still Life, de modo
curiosamente próximo a Viajo porque preciso..., histórias de separação são narradas sobre
uma paisagem nacional emblemática também em vias de desaparecer, de ser submersa. No
caso, dois casais separados por um longo período reencontram-se (para logo separarem-se
8 Tal corrosão pode tanto ser provocada pelo tempo (vista por exemplo na pintura chinesa, em que as ruínas têm uma presença pontual) quanto pela guerra (como no filme de Rossellini). Cf. WU (2008) e RAMOS MONTEIRO (2015).
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novamente) às margens da represa das Três Gargantas, que está prestes a inundar a cidade
onde viveram – a inundação, real, ocorre no ano seguinte à rodagem.
Ao mesmo tempo, Still Life e Viajo porque preciso... apontam, de maneiras distintas, para
uma transformação do cinema enquanto arte e instituição, num momento de transição do
cinema em película para o digital. Depois de experiências em 35mm, Jia Zhang-ke adota
formatos digitais e, em Still Life, inclui efeitos especiais criados digitalmente. Além disso, os
filmes do cineasta chinês chegam ao público por circuitos alternativos – mercado pirata,
internet e festivais –, sendo raramente exibidos em sala no país. Se Marcelo Gomes já havia
produzido um filme que reflete sobre o próprio cinema e suas formas de exibição (Cinema,
aspirinas e urubus, 2005) e Karim Aïnouz havia experimentado rodagens em diferentes
suportes (essa variedade se dá desde seus primeiros curtas, como a ficção em vídeo O Preso,
de 1992, o documentário em 16mm Seams (1993), e a ficção Rifa-me (2000), filmada em
35mm), os dois diretores reúnem-se para filmar o sertão nordestino em Super 8, num projeto
que originou inicialmente o documentário experimental Sertão de acrílico azul piscina
(2004). Ao lado do desejo de construir uma imagem contemporânea dessa zona árida do
Nordeste brasileiro, uma imagem que se distancie dos estereótipos e se diferencie do lugar
mítico que a região ocupou na história do cinema brasileiro, Viajo... traz a experiência de
coabitação de suportes e de tempos.
Haveria uma correspondência entre a inversão operada por essas “narrativas de dissolução”
em relação às narrativas fundacionais presentes por exemplo no western, e o momento de
crise vivido pelo próprio cinema, que se vê desprovido de componentes que até pouco tempo
serviam para defini-lo? Assim, esses filmes em que a questão da identidade nacional se
manifesta na chave negativa, distanciando-se de mitos e emblemas, afirmariam ao mesmo
tempo a crise de identidade do próprio cinema enquanto arte e instituição. Se o cinema
clássico encontrou na película de 35mm e na projeção em sala escura os pilares de sua
definição, e nas ficções fundacionais a forma narrativa que o consagrou, o cinema
contemporâneo estaria enfrentando seu próprio esfacelamento nessas formas periféricas, que
oscilam entre a textura da película e a do vídeo, e em narrativas que afirmam o desmonte de
uma ideia de nação tal como era conhecida.
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Antes de Mountains May Depart, Jia Zhang-ke havia realizado Um toque de pecado (2013),
longa composto de episódios rodados em distintas regiões da China, regiões estas
anteriormente visitadas pelos filmes do cineasta, oferecendo desse modo uma continuação
para as histórias que ele havia iniciado anteriormente e constituindo-se assim ao mesmo
tempo como síntese e prolongamento de sua filmografia precedente. Se em Still Life, Um
toque de pecado e em outros filmes de Jia o destino dos personagens é inseparável do destino
nacional – o cineasta e seus comentadores apontam que seu objetivo constante é filmar as
consequências das transformações na economia e na política chinesas na vida das “pessoas
ordinárias” –, e se “a transformação da nação” é fato na China que Jia filma, é difícil hoje
falar em “cinema chinês” sem problematizar a questão do “cinema nacional” ou da
“cinematografia nacional”9. Berry e Pang (2008) discutem o problema, ao afirmar a
necessidade do uso do “s” na expressão “cinemas chineses” (“Chinese cinemas”) e ao discutir
sua qualidade eminentemente transnacional. Não se trata apenas de afirmar as distintas
geografias recobertas pelos cinemas chineses (a que alguns autores também se referem como
“cinemas em chinês”, embora tampouco haja homogeneidade nas línguas e dialetos falados),
reconhecendo a existência de diferenças entre o cinema que se faz na China continental, no
de Taiwan, no de Hong Kong e no da diáspora mas, mais profundamente, de entender que
não há ideia comum de cinema e nação nem mesmo no interior dos territórios.
Alguns autores optam por estudar os cinemas chineses dentro de uma perspectiva
transnacional – o transnacional seria uma característica do cinema produzido na China
contemporânea, conforme propõe Sheldon Hsiao-Peng Lu já em 1997, discussão prolongada
por Berry e Pang (2008), Higbee e Lim (2010), entre outros. Monvoisin (2013), que discute a
questão do “s” em seu trabalho sobre os cinemas asiáticos, mantém o nacional como
categoria nos estudos que propõe do cinema japonês, chinês e taiwanês (no singular),
excluindo do que considera “cinema chinês” a filmografia de Jia Zhang-ke, por não ser
suficientemente “representativo”. Ainda no que se refere a Jia, Mello (2013a, 2014a), sem
9 Ainda que por vezes apareçam como sinônimos, os termos “cinema nacional” e “cinematografia nacional” têm uso diferenciado. O último aparece sobretudo no contexto francófono (cf. por exemplo DUMONT e TORTAJADA, 2007), onde parece haver elementos comuns com a distinção entre história e historiografia. “Cinema nacional” daria mais ênfase à produção fílmica de um determinado país, enquanto “cinematografia nacional” estaria mais ligado às maneiras de organizar, narrar essa produção. Essa discussão, menos profícua no contexto anglófono e brasileiro, precisará ser aprofundada no decurso da pesquisa.
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negar a dimensão transnacional de seu cinema, vem afirmando a presença de elementos da
cultura e das artes “nacionais” chinesas na filmografia do autor.
Como se sabe, o “nacional” é uma categoria da historiografia clássica, seja por fornecer uma
estrutura para as histórias gerais, seja para descrever cinematografias específicas, como
aponta por exemplo Tortajada (2008: 9). Se há pelo menos três décadas o conceito de
“cinema nacional” vem sendo questionado, nomeadamente pela “nova história”, que traz
reflexões metodológicas sobre as histórias nacionais do cinema10, influenciadas por trabalhos
sobre o conceito de “nacionalidade”, “nacionalismo” e “nação”11, o “nacional” enquanto
categoria cinematográfica está longe de tornar-se obsoleto. Sua importância é atestada em
festivais de cinema internacionais, em que os filmes são representantes de seus países, assim
como em retrospectivas organizadas por cinematecas e instituições culturais, que não raro
propõem recortes nacionais ou regionais em seus programas. Além disso, o critério nacional
continua sendo usado pela historiografia12 e mais amplamente pelos estudos de cinema, do
Atlas du cinéma de Labarrère (2002) à coleção dirigida por Hayward para a Routledge13. As
expressões “cinema nacional” e “cinematografia nacional” seguem correntes no léxico de
cineastas e críticos de regiões “periféricas”14, como um contraponto em relação ao que seria o
“cinema imperial”, feito em Hollywood – ainda que, historicamente, o conceito de cinema
nacional tenha sido nutrido por produções norte-americanas.
Tomaremos como parâmetros cinemas nacionais estabelecidos na primeira metade do século
XX, assim como a literatura sobre eles, que ajudou a conformá-los, já na segunda metade do
século XX. É o caso, marcadamente, do cinema alemão realizado no período entre as duas
Guerras Mundiais, analisado por Kracauer (1988), e do cinema japonês, estudado por Burch
10 A literatura a esse respeito é abundante, sobretudo no mundo anglófono (cf. ROSEN, 2006 [1984]; HJORT & MACKENZIE, 2000; VITALI & WILLEMEN, 2006), mas também presente no universo francófono (FRODON, 1997; SORLIN, 1996a). O tema é central nos estudos do cinema asiático, sobretudo na China. 11 A esse respeito, nos referimos aos trabalhos de Anderson (2005; 2008), Gellner (1993) e Hobsbawn (1990). 12 São interessantes os estudos sobre cinema silencioso que levam em conta a questão do “nacional”, já que, nas primeiras décadas do cinema, por não haver diálogos falados, os filmes circulavam mais facilmente entre os países. Por outro lado, estudos do cinema silencioso apontam para as bases da relação entre cinema e sentimento nacional, como é o caso dos artigos de Morettin tanto sobre cinema brasileiro sobre como cinema norte-americano (2011a e 2011b). 13 HAYWARD, 1993; SORLIN, 1996b; GITTINGS, 2002; TRIANA-TORIBIO, 2003. 14 A expressão “periféricas” é problemática e denota uma visão eurocêntrica do cinema. Aqui, nos referimos à produção não europeia e não estado-unidense. Shohat e Stam (2006) discutem a questão do eurocentrismo nos estudos de cinema e propõem um estudo em bloco de filmografias “não-canônicas”, interessados nomeadamente no cinema latino-americano, do Oriente Médio e da África. O nosso recorte segue o caminho aberto pela dupla.
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(1979), além, é claro, do cinema hollywoodiano e do western. Kracauer, Burch e outros
estudiosos de cinemas nacionais15 trabalham portanto a partir da identificação de
características comuns a um conjunto de filmes (em geral de um determinado período), e da
relação entre essas características e questões como identidade nacional, situação histórica,
tradição cultural, etc. Nesse sentido, a exemplo do que ocorre na literatura do século XIX
com as narrativas fundacionais, não é raro que cinematografias nacionais apropriem-se de
mitos de fundação nacional (ou mesmo os criem), repetindo-os de um filme a outro, em geral
dentro de gêneros, como no caso dos Estados Unidos ocorre com o western e o melodrama16.
Em um esforço de sistematizar a reflexão sobre o cinema nacional, Rosen afirma:
Discutir um cinema nacional pressupõe não somente que exista um
princípio ou princípios de coerência entre um grande número de filmes, mas
também implica o pressuposto de que esses princípios têm algo a ver com a
produção e/ou a recepção desses filmes dentro das fronteiras legais de um
dado estado-nação (ou que eles se beneficiem de capital controlado dentro
dele). Ou seja, a coerência intertextual está conectada a uma coerência
sócio-política e/ou sociocultural, implicitamente ou explicitamente
assignada à nação. (ROSEN, 2006: 18, nossa tradução)
No mundo anglófono e também no Brasil, importantes trabalhos de revisão do conceito de
cinematografia nacional foram feitos por pesquisadores do “cinema transnacional” e da ideia
de “transnacionalidade”, atentos ao fato de que tanto no nível diegético como no nível da
produção cinematográfica, um conjunto crescente de filmes vem operando deslocamentos
15 É o caso ainda de Elsaesser (1996), sobre o cinema alemão; de Dumont e Tortajada (2007), dedicados à história do cinema suíço; Grilo (2006), Costa (2007) e Baptista (2010), no caso português, e de Monvoisin (2013; 2015), que estuda diferentes cinematografias nacionais asiáticas. Baptista (2010) trabalha a hipótese, originalmente apresentada por João Bénard da Costa, de que o cinema português não se caracteriza por um gênero específico – como o western nos Estados Unidos, o “polar” ou filme policial de baixo orçamento na França ou o cinema “metafísico” dos países nórdicos – mas por sua dedicação em investigar o imaginário nacional. 16 Sobre a força do melodrama e de elementos melodramáticos na constituição do cinema nacional dos Estados Unidos e nas narrativas cinematográficas contemporâneas do país, cf. SZONDY (2004; 2011) e MULVEY (2006). Mulvey identifica a presença de elementos característicos da narrativa melodramática em grande parte do cinema clássico dos Estados Unidos, relacionando-os com os motores da própria narrativa. Ela analisa nomeadamente o papel do casamento como abertura ou fecho de uma série de filmes, responsável pelos momentos iniciais ou finais de “stasis”, em contraponto à ação que conduz o interior da narrativa. Xavier (2014) se debruça sobre o cinema de John Ford e a ligação do ideário do western com os pressupostos da formação nacional dos Estados Unidos. Sobre o cinema de Griffith e o melodrama, Cf. igualmente XAVIER (1984; 2003).
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internacionais, de modo que classificá-los segundo critérios nacionais seria redutor e pouco
proveitoso17. Embora a literatura a esse respeito seja de grande valia para a presente pesquisa,
o caminho a ser tomado é outro, pois mais do que o critério de transnacionalidade, o que nos
importa é o questionamento de temas como “identidade nacional” e “cinematografia
nacional” no interior de filmes que, apesar de realizados por cineastas de determinada
nacionalidade e dentro de um determinado estado-nação, problematizam a cinematografia
nacional na qual estariam inseridos.
4. Nacional e periférico
Os filmes realizados por Lav Diaz, Raya Martin, Miguel Gomes, Jia Zhang-ke, Marcelo
Gomes e Karim Aïnouz nas duas primeiras décadas do século 21 ganham visibilidade no
âmbito de festivais internacionais e da crítica especializada, sem atingir grandes bilheterias
sequer em seus próprios países. Esses cineastas trabalham sob forças contraditórias: nota-se,
por um lado, a intenção de imprimir na fatura processos históricos e características culturais
(nacionais, regionais, locais) como forma de afirmação de identidade; por outro lado, essa
afirmação se dá em uma chave negativa, a chave da dissolução do mundo tal como ele era
conhecido pelos personagens (e do próprio cinema).
Um corpus como esse aponta para os limites das possibilidades de coerência e, ao mesmo
tempo, lida com questões de nação, nacionalidade, nacionalismo e identidade nacional. É
preciso fazer a ressalva de que a filmografia de Jia é problemática, excepcional e não se
incluem em um conjunto de filmes nacionais, em primeiro lugar por toda a complexidade que
envolve a questão nacional no caso da China.
No que diz respeito aos filmes de Gomes, Jia, Diaz e Martin, eles condensam questões
evocadas em obras anteriores dos mesmos cineastas, de maneira que, através desses títulos, é
possível abordar pontos fundamentais para o trabalho de cada um deles. Assim, no caso de
Jia, se os filmes anteriores de Jia eram realizados em uma determinada localidade da China, 17 Cf. por exemplo SHOHAT e STAM (2003), DENNISON e LIEU (2006), FRANÇA e LOPES (2010) e NAGIB (2012), entre outros autores. Ainda a respeito de cinema transnacional, a pesquisa de LUSNICH (2014) aponta para uma filmografia latino-americana que alia o transnacionalismo no âmbito diegético e de produção desde a primeira metade do século XX, desconectando a questão da transnacionalidade do fenômeno da globalização e dos estágios mais avançados do capitalismo.
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este traça um percurso entre diferentes cidades, recuperando personagens presentes nos
filmes anteriores, dando-lhes continuidade, propondo desfechos para suas histórias. Um dos
protagonistas de Still Life reaparece como trabalhador imigrante de uma mina. A paisagem
das Três Gargantas também ressurge, agora já no pós-inundação. Estudar Um toque de
pecado é, portanto, uma maneira de entender todo o cinema de Jia.
Com seis horas de duração distribuídas ao longo de três episódios, As 1001 noites associa a
narrativa de Xerazade, povoada por reis, princesas, mercadores e escravos, à crise vivida por
Portugal nos dias atuais. Miguel Gomes intensifica, assim, algo que já havia realizado em
Tabu (2012) e Redemption (2013), em que valia-se de um registro formal de características
épicas para contar uma história cujo objetivo é o desmonte da mitologia nacional – no caso
dos filmes de 2012 e 2013, tratava-se de remexer nos fundamentos da memória colonial
portuguesa e europeia; com As 1001 noites, o que se produz é antes de mais nada um duro
diagnóstico do presente, diagnóstico que invalida mitos históricos com relação à (heroica)
identidade portuguesa.
De maneira reiterada, Lav Diaz e Raya Martin voltam-se a episódios marcantes da história
filipina para narrá-los não com cores grandiosas ou heroicas, mas sim na tonalidade da mais
absoluta melancolia – ambos filmam em preto e branco e com pouca luz –, como se cada fato
fosse, na realidade, um luto. Dessa maneira, o cinema dos dois também associa elementos
típicos das narrativas fundacionais históricas, mas revertidos na chave da dissolução, da
morte.
Portugal, China, Filipinas e Brasil, os países de origem dos realizadores dos filmes acima
listados, são fortemente marcados por relações de dominação, passados coloniais e situações
pós-coloniais ou neocoloniais que seguem conflituosas. Questionar códigos estabelecidos por
cinematografias nacionais paradigmáticas poderia configurar-se como uma maneira de recusa
da importação de códigos forjados por potências imperiais.
Apesar da circulação nos festivais internacionais e interesse constante da crítica especializada
internacional, Diaz, Martin, Aïnouz & Gomes, Jia e Miguel Gomes têm todos, em diferentes
escalas e por distintas razões, dificuldade de financiamento e de visibilidade de em seus
países; ao mesmo tempo, estão interessados em questões nacionais e na cultura nacional, e
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insistem em filmar em seus países. Seja pela duração longa, seja pela ideia de narrativa, ou
por elementos formais, seus filmes dialogam com o universo da arte contemporânea,
inscrevendo-se na discussão sobre “pós-cinema” (GAUDREAULT e MARION, 2013;
DUBOIS, 2015).
Em filmes realizados a partir de 2000 e oriundos de países que ocupam um lugar “periférico”
dentro da história do cinema, é possível observar os problemas que eles apresentam para o
próprio conceito de “cinema nacional” e ao mesmo tempo os empréstimos e as inversões que
operam com relação às narrativas fundacionais. Segundo a hipótese proposta, tais filmes
criam um elo entre histórias privadas e narrativas históricas, cujo modelo não é mais o de
busca da felicidade doméstica aliada à construção de um caminho de prosperidade nacional,
como foi o caso com as narrativas fundacionais, mas o de dissolução de uma e outra esfera.
É notável, nos corpus tradicionalmente estudados dentro da perspectiva das cinematografias
nacionais, a afirmação de um poder do cinema tanto para refletir questões de identidade
nacional como para interferir na formação dessa identidade (como atestam os filmes de
Griffith e as leituras que deles costumam-se fazer). O corpus da presente pesquisa contém
filmes que se colocam propositalmente na contramão: eles traduzem o esfacelamento de seus
estados-nação tal como eram conhecidos e a impotência de o cinema forjar uma identidade
nacional coerente, afirmativa.
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