cinema: eis a questão – o janela indiscreta no vestibular
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PROMOÇÃO
REALIZAÇÃO
Índice
Apresentação................................................................. pág.03
Filmes Exibidos............................................................. pág.05
Leituras.......................................................................... pág.12
O Menino e o Mundo..................................................... pág.13
Relatos Selvagens........................................................ pág.22
Sem Pena...................................................................... pág.33
APRESENTAÇÃO
No ano de 2015, o projeto “Cinema: Eis a Questão – O Janela Indiscreta no
Vestibular” chega à sua décima segunda edição. Desde 2004, a sétima arte faz parte dos
conteúdos do Vestibular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). A cada
ano, são três obras, duas brasileiras (uma ficção e um documentário) e uma estrangeira,
criteriosamente selecionadas pela equipe do Programa Janela Indiscreta Cine-Vídeo Uesb,
no amplo e riquíssimo universo da produção nacional e mundial.
Além da escolha dos filmes, fazem parte do projeto as exibições comentadas nas
três cidades- sedes da Uesb – Vitória da Conquista, Jequié e Itapetinga. Cada obra é
comentada por três convidados, geralmente professores e/ou pesquisadores de áreas
afins às temáticas, que abordam os mais distintos aspectos dos filmes e depois debatem
com a plateia.
Em 12 anos, são 36 filmes exibidos, comentados por mais de 100 convidados e
vistos por cerca de 35 mil vestibulandos. Podemos dizer que são tantas leituras possíveis
quantas pessoas presentes nas sessões, pois cada olhar é diferenciado, entrelaçando-se a
acervos e afetos que são de cada um, mas que enriquecem a partilha de conhecimentos.
E é no sentido dessa partilha de olhares e saberes que são propostos os
comentários não só nas sessões, mas também nesta publicação e nos vídeos que são
produzidos pela equipe, pois consideramos importante que os vestibulandos que não
podem participar das exibições possam ter outras formas de acesso às reflexões,
disponibilizadas, então, de forma irrestrita e gratuita na internet.
Desejamos – e aqui deixamos o nosso convite – que esse projeto seja, além dessa
janela para as inúmeras possibilidades de olhar que a sétima arte nos oferece, uma porta
de entrada para muitas outras atividades de cinema que a universidade realiza, pois
acreditamos no importante papel que ele tem para o desenvolvimento humano nas suas
mais distintas vertentes e amplitudes.
Equipe do Programa Janela Indiscreta Cine-Vídeo Uesb
2015
Filme: “O Menino e o Mundo”
Direção: Alê Abreu
Duração/Ano/País: 80 min, 2014, Brasil
Filme: “Relatos Selvagens”
Direção: Damián Szifron
Duração/Ano/País: 122 min, 2015,
Argentina/Espanha
Filme: “Sem Pena”
Direção: Eugênio Puppo
Duração/Ano/País: 87 min., 2014, Brasil
FILMES EXIBIDOS
A cada edição do projeto “Cinema: Eis a Questão”, são selecionados três filmes,
dois nacionais, sendo uma ficção e um documentário, e um estrangeiro. Para a seleção das
obras, feita criteriosamente pela equipe do Janela Indiscreta Cine-Vídeo Uesb, observam-
se as críticas, a relevância dos temas abordados, a qualidade estética e narrativa e a
possibilidade de acesso, uma vez que as obras podem ser encontradas facilmente.
Sessões comentadas
Vitória da Conquista
17, 18 e 19 de novembro
Teatro Glauber Rocha – Uesb
Itapetinga
23, 24 e 25 de novembro
Auditório Juvino Oliveira – Uesb
Jequié
02, 03 e 04 de dezembro
Auditório do CEEPRP (antigo IERP) 0504
2013
Filme: “O ano em que meus pais saíram de férias”
Direção: Cao Hamburguer
Duração/Ano/País: 110 min., 2006, Brasil
Filme: “Infância Clandestina”
Direção: Benjamin Ávila
D u r a ç ã o / A n o / P a í s : 1 1 0 m i n . , 2 0 1 2 ,
Argentina/Espanha/Brasil
Filme: “Marighella”
Direção: Isa Grinspum Ferraz
Duração/Ano/País: 90 min., 2012, Brasil
FILMES EXIBIDOS
2012
Filme: “Capitães da Areia”
Direção: Cecília Amado e Guy Gonçalves
Duração/Ano/País: 96 min., 2011, Brasil
Filme: “Persépolis”
Direção: Vicent Paronnaud e Marjane Satrapi
Duração/Ano/País: 95 min., 2007, França/EUA
Filme: “Utopia e Barbárie”
Direção: Silvio Tendler
Duração/Ano/País: 120 min., 2010, Brasil
2011
Filme: “Terra Estrangeira”
Direção: Walter Salles e Daniela Thomas
Duração/Ano/País: 100 min., 1995, Brasil
Filme: “A Cor do Paraíso”
Direção: Majid Majidi
Duração/Ano/País: 90 min., 1999, Irã
Filme: “O Homem que Engarrafava Nuvens“
Direção: Lírio Ferreira
Duração/Ano/País: 106 min., 2010, Brasil
FILMES EXIBIDOS
0706
2014
Filme: “À Beira do Caminho”
Direção: Breno Silveira
Duração/Ano/País: 90 min., 2012, Brasil
Filme: “Os Incompreendidos”
Direção: François Truffaut
Duração/Ano/País: 94 min., 1959, França
Filme: “Garapa”
Direção: José Padilha
Duração/Ano/País: 90 min., 2009, Brasil
0908
2008
Filme: “Zuzu Angel”
Direção: Sérgio Rezende
Duração/Ano/País: 110 min., 2006, Brasil
Filme: “Babel”
Direção: Alejandro González Iñarritu
Duração/Ano/País: 142 min., 2006, Estados Unidos
Filme: “Estamira”
Direção: Marcos Prado
Duração/Ano/País: 115 min., 2006, Brasil
2007
Filme: “Macunaíma”
Direção: Joaquim Pedro de Andrade
Duração/Ano/País: 108 min., 1969, Brasil
Filme: “Anjos do Sol”
Direção: Rudi Lagemann
Duração/Ano/País: 90 min., 2006, Brasil
Filme: “Balzac e a Costureirinha Chinesa”
Direção: Dai Sijie
Duração/Ano/País: 116 min., 2002, China/França
2010
Filme: “Linha de Passe”
Direção: Walter Salles e Daniela Thomas
Duração/Ano/País: 113 min., 2008, Brasil
Filme: “A Onda”
Direção: Dennis Gansel
Duração/Ano/País: 106 min., 2008, Alemanha
Filme:“Pro Dia Nascer Feliz”
Direção: João Jardim
Duração/Ano/País: 88 min., 2007, Brasil
2009
Filme: “Mutum”
Direção: Sandra Kogut
Duração/Ano/País: 95 min., 2007, Brasil
Filme: “Encontro com Milton Santos ou O mundo
global visto do lado de cá”
Direção: Silvio Tendler
Duração/Ano/País: 87 min., 2007, Brasil
Filme: “Ensaio Sobre a Cegueira”
Direção: Fernando Meirelles
Duração/Ano/País: 120 min., 2008,
Brasil/Canadá/Japão
FILMES EXIBIDOS FILMES EXIBIDOS
1110
2006
Filme: “A Marvada Carne”
Direção: André Klotzel
Duração/Ano/País: 77 min., 1985, Brasil
Filme: “Hotel Ruanda”
Direção: Terry George
Duração/Ano/País: 121 min., 2004, Itália/África do
Sul/Estados Unidos
Filme: “Terra em Transe”
Direção: Glauber Rocha
Duração/Ano/País: 115 min., 1967, Brasil
2005
Filme: “Deus e o Diabo na Terra do Sol”
Direção: Glauber Rocha
Duração/Ano/País: 115 min., 1964, Brasil
Filme: “Cidade de Deus”
Direção: Fernando Meirelles
Duração/Ano/País: 135 min., 2002, Brasil
Filme: “A Excêntrica Família de Antônia”
Direção: Marleen Gorris
Duração/Ano/País: 102 min., 1995,
Bélgica/Inglaterra/ Holanda
10
FILMES EXIBIDOS
2004
Filme: “Cinema Paradiso”
Direção: Giuseppe Tornatore
Duração/Ano/País: 123 min., 1988, Itália/França
Filme: “Abril Despedaçado”
Direção: Walter Salles
Duração/Ano/País: 95 min., 2001, Brasil
Filme: “Bicho de Sete Cabeças”
Direção: Laís Bodanzky
Duração/Ano/País: 80 min., 2000, Brasil
11
FILMES EXIBIDOS
LEITURAS...
Uma das características que marcam a atuação do Programa Janela Indiscreta,
desde que nasceu, em 1992, é a leitura coletiva das obras que são exibidas. No projeto
“Cinema: Eis a Questão”, cada filme indicado para o Vestibular Uesb é comentado por três
professores e/ou pesquisadores convidados, que, além de apresentarem suas leituras
durante as sessões realizadas em Vitória da Conquista, Jequié e Itapetinga, também
contribuem com um texto para este livreto Leituras de Cinema. As abordagens feitas por
esses “leitores-guias” trazem distintos olhares, que, somados aos de cada vestibulando,
podem ajudá-lo a refletir sobre diversos aspectos possíveis de serem percebidos e
interpretados nos filmes.
Nesta publicação, temos a contribuição de Veruska Anacirema, Maria de Souza,
Márcio Venâncio (“O Menino e O Mundo”), Filipe Brito, Adriana Amorim, Marcelo Lopes
(“Relatos Selvagens”), Glauber Lacerda, Joaquim Novais e Luciano Tourinho (“Sem Pena”).
Boa leitura!
O MENINO E O MUNDO
Filme: “O Menino e o Mundo”
Direção: Alê Abreu
Roteiro: Alê Abreu
Ano: 2014Gênero: AnimaçãoOrigem: BrasilDuração: 80 minutosComentaristas: Veruska Anacirema, Maria de Souza, Márcio Venâncio
Sinopse
Sofrendo com a falta do pai, um menino deixa sua aldeia e descobre um mundo fantástico
dominado por máquinas-bichos e estranhos seres. Uma inusitada animação com várias
técnicas artísticas que retrata as questões do mundo moderno através do olhar de uma
criança.
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A DELICADEZA DE VER PELOS OLHOS DE UM MENINO
Veruska Anacirema*
O Menino e o Mundo, de Alê Abreu, é um desses filmes que, desde o começo,
provoca em nós um alento. É como se, com ele, pudéssemos respirar profundamente e
alcançar um estado de ânimo em que é possível contemplar, refletir, desejar o (re)
encantamento da vida que nos cerca. As animações, ao longo da história do cinema,
têm tido a capacidade de envolver plateias com alegria e emoção. Mas, aqui, não se
trata apenas de diversão. É um filme que, na sua delicadeza, constrói uma intensa
narrativa sobre a evolução de uma criança na sua busca pela compreensão de si e do
mundo. O que é isso senão a maior aventura de um ser humano?
À primeira vista, o argumento do filme parece bastante simples: é a história de
um menino que, como tantos outros, vê seu pai sair de casa em busca de trabalho em
um lugar longínquo e sofre com isso. Entretanto, diante do fato, o menino lança-se em
sua própria jornada de autodescoberta, em que a simplicidade ganha ares de
sofisticação ao contrapor duas personagens principais: o menino, com sua
ingenuidade, espontaneidade e curiosidade de um lado; e o mundo, com sua
complexidade, automação e aridez de outro. Essa oposição está posta em toda a
narrativa e nos traços e cores que contam a história.
Toda essa dualidade parece séria demais aos olhos de uma criança. Mas,
pensando bem, é só mesmo pelos olhares infantis que nos permitimos pensar sobre
determinados termos e condições da existência com mais leveza. De que outra forma
poderíamos refletir sobre a pobreza que expulsa pessoas do seu meio, sobre as
contradições entre o urbano e o rural, sobre as revoluções das máquinas e das
indústrias que tanto afetam os modos de vida das comunidades, de uma forma poética
e lúdica, senão pelos olhos de uma criança?
Aliás, o olhar aqui é o que conduz a narrativa, já que o diretor opta por raros e
incompreensíveis diálogos - palavras ditas de forma invertida - , uma maneira, quem
sabe, de chamar a atenção para aquilo que, embora bem às nossas vistas, é ocultado
pela polifonia de sons, ruídos, opiniões, informações do dia a dia. A centralidade da
imagem exige um esforço extra de concentração a fim de acompanhar e compreender
os modos diversos de comunicação e interação entre o menino e o mundo. Interação
essa que assume uma crescente: o desenho passa de linhas econômicas, minimalistas
e com poucas cores para traços mais complexos, coloridos, que expressam a hibridez
própria do mundo moderno.
A figura do menino, os desenhos e cores, a música e as referências culturais
populares formam um cadinho afetivo que nos faz equilibrar entre o conforto da vida
miúda que experimentamos na nossa casa, no nosso quintal, na nossa rua, na nossa
infância e as responsabilidades exigidas pela necessidade de sobreviver, de trabalhar,
de se ajustar. O campo de algodão cede lugar à vida noturna urbana. A água de poço é
substituída pela poluição. O menino vê e escuta uma profusão de lugares, pessoas,
sons, cores. Em cada parada, um aprendizado. Em sua viagem em busca do pai,
descobre a si próprio enquanto alguém que existe na sua relação com o mundo.
Alguns espectadores podem achar a história fragmentada demais e, por isso
mesmo, um pouco confusa em determinados pontos. Esse jeito não-linear da narrativa
pode ser encarado como algo a mais nessa obra, tendo em vista que se pede a quem
está assistindo uma participação efetiva na construção dos sentidos e no
desenvolvimento do filme. Então, também temos de acessar lembranças e
sentimentos para acompanhar o menino em sua viagem. Imaginamos com ele.
Sonhamos com ele. Por isso, o filme emociona, desde o início, quando ainda nem
sabemos a trajetória que será realizada pelo menino.
Aqui, recorremos ao alento citado no início do texto. Em um momento em que
imperam as comédias, os filmes de ação vertiginosos e outros que exibem, cada vez
mais, recursos ultratecnológicos, é bom assistir a uma obra atual que prima pela
delicadeza, por um ritmo mais lento de narração, pela simplicidade, pelo afeto. Que
possamos, sempre que possível, respirar profunda e calmamente e ver o mundo pelos
olhos de um menino.
*Veruska Anacirema é mestre em Memória: Linguagem e Sociedade (Uesb); professora da Rede
Estadual de Ensino; professora-articuladora do Programa de Educação de Tempo Integral da
Secretaria Estadual de Educação.
1716
DE CORES, SENTIMENTOS E SONS
Maria de Souza*
Sentir, sem ti
Um fundo branco e o silêncio. O Menino e o Mundo (2014) é um promissor
convite às ricas possibilidades que esta animação de Alê Abreu alcançou. A partir de um
ponto visual e sonoro, desenvolve-se uma perspectiva caleidoscópica que culmina em
uma pedra notada por um menino. Ele ouve um som que o inspira e passa a interagir
com tudo o que encontra. Animais, objetos, terra, água vão colorindo o mundo que vai
se revelando diverso, dinâmico e imenso para o pequeno menino. Sem limites, as
nuvens, os pássaros estão ao alcance, entretanto, os barulhos e o cinza - vindos de algo
como fábricas a distância - interrompem sua aventura, devolvendo-o a seu ponto de
partida.
Através de um sino, a mãe chama o menino para tomar conhecimento da crua
necessidade de que o pai deve buscar condições de trabalho além de onde moram.
Antes de partir, o pai toca a música que vai conduzir a viagem e a busca desse menino.
Cores intensificam-se no céu, na paisagem. Na memória de um dia em que o pai
toca uma flauta para o filho, o menino recolhe uma bolha desse som e a guarda numa
lata. Da voz da mãe, murmurando uma canção, ele também guarda o som na lata.
Enterrada a lata preciosa, ele marca o lugar com a pedra que contemplava no início.
Ao apresentar o embrião da história, também somos apresentados à técnica de
animação em forma de desenho, similar ao feito em papel, colorido a giz de cor. O
mundo desse menino é reforçado pelo ponto de vista de quem brinca com sua
realidade. De igual importância, está a sintonia sonora como uma brincadeira
transbordada pela vocalidade sem palavras definidas e pela gama de estímulos feitos
pelo trabalho de artistas como Naná Vasconcelos e o grupo Barbatuques, notadamente
músicos cujos trabalhos se caracterizam pela experiência sensorial do som além do
ouvido.
À cor dado
Na mala, a foto do menino-pai-mãe é a principal bagagem. Estrada. Chuva. O
menino desperta numa rede, compartilhando espaço com um homem mais velho. Sai,
com ele e um cachorro, numa carroça que se junta a muitas outras iguais, como iguais
são os homens que, em pernas de pau, compõem uma multidão que labora em uma
colheita. O algodão colhido fornece uma riqueza de imagens e sensações com cenas
especiais em que predomina a cor branca.
O menino ouve o som mágico que o pai lhe tocara. Encontra um artista tocando
e, um instante depois, vê-se imerso num cortejo festivo, musical. Ele aprecia o cortejo,
flutuando sobre as bolhas coloridas do som. O cortejo segue, o menino se detém. Está
numa estrada. Carros. É o cachorro que o resgata de volta ao campo da colheita. Lá, o
dono das terras despede alguns trabalhadores, entre eles está seu atual companheiro
de jornada. Seu amigo tosse, e este parece ser o motivo de sua dispensa do trabalho.
O homem mais velho encosta-se a uma árvore. Nos galhos, o menino
contempla a foto. Vê o pai em um caminhão e corre (o homem velho apenas o observa),
mas só consegue pegar um folheto que cai do caminhão, ilustrando uma fábrica e
trabalhadores.
O menino segue até a grande fábrica, mas não vê ninguém, apenas o caminhão
que conduzia os trabalhadores. Confunde umas sucatas com a silhueta do pai. Corre de
costas e cai num floco parecido com uma nuvem. Este floco se junta a uma imensidão
de outros, são os algodões colhidos e que agora fazem parte de uma indústria têxtil
com diversos trabalhadores. Neste local, um rapaz com um gorro colorido chama a
atenção do menino que o segue. Os dois passam a compartilhar a casa e a cidade.
A realidade do menino é múltipla, com sons e formas disputando espaço. Em
uma aventura investigativa, ele e o rapaz flagram, na fábrica, uma apresentação de
uma máquina que faz todo o processo de transformar o algodão em tecido sem ajuda
humana. Demissões.
Seguem de bicicleta. Braços abertos. Olhos fechados. Entregam-se ao
caminho. Do alto de um morro veem o cortejo e, sobre eles, um imenso pássaro colorido.
Gigantescos, o pássaro e o cortejo.
O menino vê um trem e, pensando ser o mesmo que levava seu pai, corre. O
rapaz lhe cede a bicicleta. Ele vê um homem igual ao seu pai. Corre. Vê outro e outro e
outro igual.
A cidade brutal, com tropas de guerra e banda marcial, contrapõe-se ao
longínquo cortejo. O pássaro, que antes sobrevoava o festivo grupo, entra num embate
com um pássaro preto gerado pela energia da parte escura e dura da cidade. Derrotado,
o pássaro com multicores deixa escorrer seus sons pelos bueiros. Máquinas comendo
árvores. Imagens realistas (documentais) são expostas: indústrias, desmatamento,
dinheiro.
Como o som
Sem economia de aspectos de uma realidade social dificultosa e universal, ao
longo do filme, há uma coexistência de tais aspectos com a ambiência lúdica a que o
menino se permite. O mundo é espaço desta interação. Sua busca e esperança o
expõem a dores e alegrias, e ele é movido por elas.
O menino volta a sua casa de infância. O rosto sujo. O menino se aproxima da
árvore onde o homem mais velho está e desaparece. O campo, sem as cores suaves de
antes. A casa está abandonada. É o vento quem bate o sino. O velho vai até a casa: uma
recordação da mãe se despedindo do filho rapaz, entrega-lhe um pacote com um gorro
colorido. O trem parte.
O velho reencontra a pedra embaixo da qual está enterrada a lata. Deitado sob
a árvore, abre a lata e liberta o som e a memória na qual a mãe, o pai e o menino plantam
uma semente. No colo da mãe, o menino. O tecido da roupa dela é o caminho que torna
ao princípio caleidoscópico. As formas emudecem como o som. Branco. Silêncio.
*Docente na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia- Campus Jequié, nas Licenciaturas em
Teatro e Dança. Licenciada em Teatro pela Universidade Federal da Bahia (2004) Doutoranda em
Artes Cênicas (PPGAC/UFBA). Mestre em Artes Cênicas(PPGAC-UFBA/2008)
1918
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INGENUIDADE, OPRESSÃO E ESPERANÇA
Márcio Venancio *
Saudade, exploração e repressão social se entremeiam em tempos e lugares
indeterminados. É nesse contexto que O Menino e o Mundo desvela as relações de
dominação do trabalho e as condições de penúria das classes oprimidas nas
sociedades capitalistas contemporâneas. O filme é uma alquimia visual de traços
minimalistas, colagens e cenas de arquivo que impactam a cada segundo, seja pela
beleza da simplicidade, seja pela dureza de uma realidade facilmente identificada.
O cerne da história inicia-se com a saída do pai do campo para a cidade na
tentativa de trazer melhorias à vida de sua família que fica. Esse movimento
migratório, tão marcante na história do país, é uma das tônicas da obra e é o evento que
nos captura e nos insere nesse mundo a priori imaginado.
Impulsionado pela saudade, o menino também resolve seguir o caminho para a
cidade. A jornada em busca do seu pai, guiada pela memória, arrasta-o para uma dura
realidade que, outrora, era desconhecida. O mundo da exploração pelo trabalho e da
precariedade das grandes cidades contrasta-se com o carinho e a proteção familiar em
meio à vida simples, mas feliz que tinha no campo.
Na cidade inóspita, o menino inicia sua busca solitária. Perambulando de um
canto a outro, ele se depara com a dinâmica urbana, fria e pautada na produtividade e
no consumo. O morro, a favela é o lugar reservado àqueles que realmente mantêm a
roda da economia girando. No entanto, pouco é reservado a essa grande massa de
pessoas que trabalham, seja numa fazenda de algodão, seja numa grande indústria
têxtil. Metas coercitivas são cobradas de maneira quase desumana, mas isso pouco
importa, já que, para o ávido empresário, o que importa é a produtividade e,
consequentemente, o lucro. Constantemente vigiados, resta aos esquálidos
trabalhadores esperar para serem substituídos por outros mais saudáveis e produtivos
ou ainda por máquinas que não precisam parar a linha de produção para descansar.
Tudo isso é apreendido pelo olhar ainda inocente da criança que vê as máquinas – ou os
grandes animais/monstros de metal – tomarem o lugar das pessoas, aumentando cada
vez mais o exército de desempregados.
Em contrapartida, a ordem da cidade cinza e opressora é desafiada por um
movimento de cores alegres acompanhado de uma música que se alastra livre pelo ar.
Livre como um pássaro. Uma fênix que surge de um povo que é belo, é forte, um
impávido colosso¹ que resolve contestar a lógica imposta por poucos para muitos. Os
dispositivos de repressão – notadamente militares – e seus equipamentos de guerra
são responsáveis por debelar qualquer possibilidade de contestação ou levante por
condições mais igualitárias. O embate se inicia. O movimento de contestação é
esmagado, e tudo volta à ordem desejada pelos mandatários do sistema.
Trabalhadores resignados, futebol para alegrar as massas e o consumo como
imperativo da sociedade, os pobres indesejados são varridos para as periferias, favelas
e lixões. Assim, a paisagem volta à ordem do dominante. Uma cidade marcada por uma
publicidade agressiva e trabalhadores conformados. Todos são iguais. São apenas
provedores de mão de obra barata. Pessoas sem aspirações ou identidades, iguais ao
pai do menino, que é apenas mais um anônimo em meio à multidão. Cidadãos taxados
como de segunda classe e, por isso, sem direito a voz ou opinião.
As cidades ricas e isoladas ditam o ritmo da exploração das cidades pobres,
meras provedoras de matérias-primas que ainda servem de mercado consumidor, ou
seja, duplamente exploradas em uma relação desigual de produção de riquezas. Esse é
o paradigma capitalista que opera no mercado internacional, é uma metáfora das
relações dos países ricos com outros de economia mais frágeis. É um paralelo possível
entre os países desenvolvidos e os da América Latina, por exemplo, que padecem com
suas necessidades, mas que não têm autonomia ou liberdade para se livrar dessa
dependência, porque, neles mesmos, há opressores a mando dos detentores do poder
militar, político ou econômico que queimam – os ricos recursos das nações
verdadeiramente detentoras desses bens naturais em benefícios de alguns poucos.
Após a jornada pelo mundo, que se finda como fuga dessa cidade cruel e
insaciável, o menino retorna a seu antigo lar, mas já sem a inocência de antes. Resgata
suas poucas lembranças – a árvore plantada anos antes e a lata onde guarda o afetuoso
som da flauta que o acompanhou pela infância – percebendo que, como seu pai, foi
apenas mais um a cumprir esse ciclo. Um caminho de perdas e desilusões, mas em que,
20 21
¹BRASIL. Lei 5700/1971: Hino Nacional. Composição: Joaquim Osório Duque Estrada. Música: Francisco Manuel da Silva. [s.l.], 1971.
mesmo em meio a uma trajetória sofrida e submissa, ainda há esperança. A fênix
renasce na juventude de um povo oprimido, porém, que não desiste de lutar por uma
vida justa.
* Graduado em Radialismo pela Universidade Federal de Sergipe e pós-graduado em Animação e
Modelagem Digital 3D pela Universidade Veiga de Almeida/RJ.
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RELATOS SELVAGENS
Filme: “Relatos Selvagens”
Direção: Damián Szifron
Roteiro: Damián Szifron
Ano: 2015
Gênero: Suspense, Comédia, Drama
Origem: Argentina/Espanha
Duração: 122 minutos
Comentarista: Filipe Brito, Adriana Amorim, Marcelo Lopes
Sinopse
Diante de uma realidade crua e imprevisível, os personagens deste filme caminham sobre a linha tênue que separa a civilização da barbárie. Uma traição amorosa, o retorno do passado, uma tragédia ou mesmo a violência de um pequeno detalhe cotidiano são capazes de empurrar estes personagens para um lugar fora de controle.
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Filipe Brito Gama*
O ano de 2014 foi marcado por um grande acontecimento na produção
cinematográfica da Argentina. Um longa-metragem destaca-se por atrair significativa
quantidade de pessoas para os cinemas do país, além da chamar a atenção de críticos
e espectadores ao redor do mundo, com participações e premiações em diversos
festivais importantes. Este filme é Relatos Selvagens (Relatos Salvajes, 2014), uma
coprodução entre Argentina e Espanha que conta com a direção do jovem Damián
Szifron, além do nome de Pedro Almodóvar (importante cineasta espanhol), dentre os
vários produtores. Nos cinemas argentinos, o filme fez mais de três milhões de
espectadores, superando obras de grande orçamento, como as produções de
Hollywood exibidas no país, e tornando-se o filme argentino recente mais visto no
próprio território. Relatos Selvagens superou a bilheteria do recente sucesso O
Segredo de seus Olhos (Argentina, 2009, direção de Juan José Campanella, vencedor
do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro) sendo outra produção de grande sucesso de
público e crítica. No Brasil, segundo dados da Agência Nacional de Cinema (Ancine), o
filme conseguiu levar aproximadamente 450 mil espectadores para as salas de
cinema entre 2014 e 2015, número relevante para uma produção latino-americana, já
que os filmes dos países da América Latina raramente conseguem figurar entre os
maiores públicos por aqui, mesmo com a proximidade geográfica.
O filme é estruturado de forma pouco usual se observada a maior parte das
produções cinematográficas contemporâneas: é construído através de uma série de
episódios independentes, como filmes de menor duração compilados para formar um
longa-metragem. Os enredos e personagens das diversas histórias não se cruzam,
configurando, assim, um conjunto de segmentos distintos, com atores e personagens
diferentes, ambientes específicos e situações peculiares. Mas, mesmo assim, pode-
se perceber uma intensa relação entre as histórias. Qual seria, portanto, a relação
entre essas narrativas? Por que esse filme ganhou tanto destaque nacional e
internacional?
Em que pese à qualidade técnica presente em todos os episódios (realizados
pela mesma equipe) e a montagem dinâmica e atraente, o filme possui como grande
RELATOS SELVAGENS: UMA EXPERIÊNCIA DISTANTE?
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atrativo o enredo (ou os enredos). Entre atores consagrados internacionalmente,
como Ricardo Darín, e outros menos conhecidos fora do território argentino, os
diversos segmentos de Relatos Selvagens impressionam pela performance intensa
dos atores, com os personagens expostos em situações-limite, que se colocam entre
eventos singulares e estranhos, mas, ao mesmo tempo, factíveis, isto é, possíveis de
acontecer no mundo ao nosso redor. O filme trata da vingança, da raiva, das crises
pessoais, dos dramas vividos pelo cidadão comum, do preconceito, das relações de
gênero e de classe, mas tem o elemento humor (junto às situações dramáticas)
permeando os diálogos e os conflitos, humor este repleto de sarcasmo, como pode ser
visto no último episódio (Hasta que la muerte nos separe), o do casamento.
Dentre essas diversas “situações do possível” apresentadas no filme, vários
dos conflitos apontados estão presentes em nossa sociedade, não se tratando,
portanto, de problemas existentes apenas na Argentina, mas que podem ser
observados em qualquer outro país. São conflitos internos dos indivíduos,
estimulados por fatores externos, e que “transformam” os personagens em figuras
selvagens, com ações que os aproximam do limite da insanidade, provocando reações
e comportamentos fora do que pode ser considerado aceitável ou inserido em um
padrão social. Um bom exemplo dessas ações “fora do normal” está no episódio da
rodovia (El más fuerte), quando os personagens Diego e Mario entram em um
confronto que os leva à morte, iniciado por um insulto proferido pelo proprietário do
carro de luxo ao motorista do carro antigo.
Em Bombita, destaca-se a relação entre um cidadão comum, Simón Fisher, e a
Prefeitura da cidade em que reside (o conflito não é com outra pessoa, portanto).
Chama a atenção, nas diversas situações passadas por Fisher, a burocracia e a falta de
diálogo entre este cidadão e governo, o que provoca dias de fúria no personagem
diante da burocracia e rigidez das ações do Estado. A insatisfação com o Estado
também é comentada em outras partes do filme. As situações de vingança,
provocadas por diferentes motivos, podem ser observadas claramente nos dois
primeiros episódios (Pasternak e Las ratas), em que os envolvidos na história decidem
sobre a vida ou a morte de pessoas relacionadas a seus passados. O episódio (La
propuesta) da família rica - cujo filho atropela uma mulher grávida e foge do local do
crime, fazendo com que os pais proponham para o jardineiro assumir a culpa do delito -
nos revela uma série de debates éticos e morais atrelados às condições sociais dos
indivíduos além de apresentar as relações e as decisões pautadas no dinheiro
25
(subornos e propinas).
Essas situações representadas podem, por vezes, soar como cômicas e, ao
mesmo tempo, absurdas, mas não parecem ser tão distantes da realidade que nos
cerca (basta assistir com atenção ao noticiário). E este é um dos fatores que favorece a
aproximação de espectadores de diferentes nacionalidades à obra. Respondendo à
pergunta feita anteriormente neste texto, além dos já comentados aspectos técnicos
e estéticos, talvez seja a aproximação com as situações possíveis (reconhecendo que
isso pode acontecer com qualquer um) o que provoque no espectador admiração por
Relatos Selvagens.
* Professor do Curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
(Uesb). Graduado em Arte e Mídia pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e mestre em
Imagem e Som pelo Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som da Universidade Federal de São
Carlos (UFSCar).
SELVAGEM MOMENTO DE CURA
Adriana Amorim*
“O mundo está doente!”
É o que se escuta a todo o momento, que o mundo está perdido, que o ser
humano está cada vez pior, que não é mais sensato pôr filhos no mundo, um mundo de
crueldade e malvadeza... blá-blá-blá. Assistindo ao excelente filme Relatos Selvagens,
de Damián Szifron, talvez a sensação descrita acima piore... e muito. Mas, quando se
trata de um relato, e, sobretudo, de um relato selvagem, como o título da película
sugere, é bom estar atento ao meio pelo qual esse relato se apresenta.
Ora, estamos diante de uma obra de arte. Aristóteles, aquele filósofo grego, há
muito já nos revelou que o artista e o historiador, apesar de terem em comum o fato de
contarem histórias, diferenciam- se um do outro pela forma através da qual contam sua
história. Se o historiador conta o que aconteceu, o artista conta o que poderia ter
acontecido. Se o historiador fala de um evento particular, o artista sempre tratará de
assuntos de ordem universal, daquilo que concerne a todo e qualquer ser humano.
Desse modo, quando nos deparamos com histórias similares às do filme em questão
nos noticiários, somos convocados muito mais a temê-las do que a refletirmos sobre
elas. No entanto, expostos assim, de forma deliberadamente organizada para causar
uma estranheza dura e crua, os casos apresentados em Relatos Selvagens nos levam a
pensar profundamente sobre o momento em que vivemos. Primeiro, porque eles nos
tocam de várias formas. Ao mesmo tempo em que ficamos impactados com a frieza das
situações, encontramos, em alguma delas, um toque de comicidade, um “não-sei-o-
que” de ridículo e um inevitável “o que eu faria se fosse comigo?” durante e ao fim de
cada história.
Esses sentimentos me fazem crer que estamos passando por um momento
extremamente importante de mudanças, não apenas no Brasil como em todo o mundo.
Primeiro, porque, se estamos tratando deste assunto, a doença do mundo, através de
uma obra que se autodefine como um relato, é porque temos a capacidade de nos
distanciarmos do acontecido e falarmos dele, refletirmos sobre ele. Isso é de um valor
inestimável.
26 27
Até aqui estivemos imersos nas situações que o filme nos revela, sem nos
darmos conta, no entanto, do quão graves os nossos problemas cotidianos iam se
tornando. Falar deles é o primeiro sinal de que nos damos conta de que eles existem, e
a consciência do problema é, talvez, o primeiro passo para solucioná-lo. E de que
doença do mundo o filme trata? De uma doença que, até aqui, não sabíamos que era
uma doença. O cotidiano, conforme o temos vivido nas últimas décadas, era, pra nós, o
“normal”. Trabalhar incansavelmente em busca de dinheiro; estar o tempo todo por um
fio, à beira de um colapso; não compreender o outro como um de nós; colocar falsos
sonhos em nossas listas de desejos e prioridades; entender comportamentos abusivos
e criminosos como acontecimentos normais e, sobretudo, pautar a existência pela
posse de bens, reduzindo os planos de vida a ter uma profissão que nos dê dinheiro:
essa é a grande doença que adoece não apenas cada um de nós como indivíduos como
também a toda a sociedade em geral. Nunca se vendeu tanto antidepressivo na
história da medicina mundial. Nunca se diagnosticou tanta doença emocional. Estamos
todos doentes? É nossa sina ficar doente? Vejamos.
O que sente uma pessoa diagnosticada com problemas emocionais? O principal
sintoma da depressão, da ansiedade, do pânico e de outras doenças da alma é uma
incapacidade crônica de adaptar-se ao convívio social. Ora, será que somos nós
mesmos que estamos doentes ou será que produzimos uma sociedade doente, na qual,
para nos sentirmos adaptados a ela, precisamos tomar remédio? O remédio deve nos
curar ou nos adaptar? O que parece doença, essa certeza de que não cabemos nesse
mundo, não será apenas um grito da vida de que está tudo errado? A depressão e seus
similares não são a doença. Ela é o sinal de que as exigências que a nossa sociedade faz
estão em desacordo com o que somos. E, a esse desacordo, nós decidimos chamar de
doença. Por isso, essa doença não se cura, porque ela não existe! Doente está a
sociedade.
Um jovem de dezessete anos vê-se obrigado a fazer direito, medicina ou
engenharia para ter garantias no futuro. E nem digo que tenha sido obrigado pelos
pais, mas por si mesmo, impulsionado por aquilo que ele aprende a entender como “ter
sucesso na vida”. Aí, ele passa por um severo processo de seleção, por longos anos de
estudos e privação de prazeres, entra num mercado com o qual não se identifica, vive
num meio em que não se reconhece. Casa-se porque precisa constituir família. Presta,
antes dos trinta anos, um concurso público, porque precisa conseguir estabilidade.
Compra um imóvel, que nome cruel (Não se mova! Não se mova!). Coloca os filhos em
escolas-presídios, compra-lhes todos os brinquedos que aparecem na TV. Posta fotos
felizes nas redes sociais. Não viajou. Não acampou. Não foi às festas com os amigos.
Não apertou a campainha dos vizinhos e saiu correndo. Não desceu a ladeira com
carrinho de rolimã. Não comeu fruta no pé. Não pegou bicho de porco. Nunca plantou
uma árvore. Não conhece animais de verdade a não ser cachorro e gato. Não tomou um
porre. Não virou a noite na farra. Não fez loucuras na juventude, aquelas que eu não
devo escrever aqui. Não desistiu do curso errado no sétimo semestre. Não investiu
uma grana em algo que só lhe daria prazer. Não experimentou a doce e educativa
presença dos amigos e dos parentes mais velhos. Como não tomar remédios
controlados quando chegar aos quarenta? Como não explodir o estacionamento do
guincho? Como não jogar a amante do marido contra o espelho? Como não pegar todos
os inimigos e botar num mesmo avião para arremessá-lo contra os pais? Como não
descer a ladeira do bom senso e acabar explodindo, abraçado ao seu inimigo, numa luta
completamente sem sentido?
Relatos Selvagens não é um relato sobre a selvageria da humanidade. É
apenas um selvagem relato de como temos vivido até aqui. A agressividade do relato é,
em si, terapêutica. A Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia acerta na escolha
desse filme para o vestibular de 2015 por compreender que este talvez seja o ano em
que tenhamos que parar de lamentar os problemas do mundo e decidir de qual lado
ficaremos: do lado que já entra no jogo fracassado, que é o lado do imutável, da luta
pelos comportamentos obsoletos, pela concorrência desenfreada, por um modelo de
vida que há muito definha; ou ficaremos do lado que, custe o que custar, vai vencer,
demore o tempo que demorar: o lado da transformação, o lado do novo, o lado de uma
evolução humana que significa mais afeto, menos pressa, mais contato com a natureza,
mais vida. Um lado que prima pela vida real, pelo prazer concreto e menos pela projeção
de um modelo de vida dito perfeito, que, quanto mais tentamos nos aproximar, mais
nos afastamos daquilo pelo qual a vida realmente clama: humanidade. Mas não uma
humanidade projetada enquanto tal, racional e asséptica. Uma humanidade holística,
integrada com a natureza, consciente do nosso princípio de seres coletivos. Nosso
grande problema, ao que me parece, é que nos tornamos demasiadamente domésticos.
Quem sabe, no fundo no fundo, o que sirva como remédio para um mundo doente seja
exatamente uma experiência como a dos bichos apresentados na abertura do filme. Vá
2928
lá dentro de você, olhe fundo na sua alma, e eu tenho certeza que não é um
animalzinho domesticado que você vai encontrar. Você, lá dentro, é isto: selvagem. E
esse bicho selvagem não deve ser aprisionado, ele quer e precisa respirar. Deixe que
ele converse com você, deixe que seja seu parceiro, ouça seu humano-selvagem, não o
ignore, não o subestime, para evitar o risco de, mais adiante, ele vir a se tornar seu
inimigo.
*É professora Assistente da Universidade do Sudoeste da Bahia, do Curso de Cinema e Audiovisual.
Licenciada em Teatro também pela Universidade Federal da Bahia. Doutora e mestra em Artes
Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da Universidade Federal da
Bahia.
3130
ALGUMAS GARRAS EXPOSTAS DO MUNDO CIVILIZADO
Marcelo Lopes*
Num texto intitulado O Recital, o escritor Luis Fernando Veríssimo argumenta
que uma boa maneira de tornar um conto interessante é imaginar uma situação formal,
como a de um quarteto de cordas, e, depois, começar a desfiá-la, como um pulôver
velho. Esse é o espírito de Relatos Selvagens (Relatos Selvajes, 2014), do diretor
Damián Szifron.
Assim como no pressuposto de Veríssimo, o que existe de mais interessante
no filme é a desconstrução, fio por fio, do mundo civilizado. Mas, diferente do recital
descrito pelo escritor, onde o espaço categórico e a rigidez dos personagens
contrastam com a ação surreal que move a história, no filme argentino, a ação e os
personagens estão mais que integrados ao ambiente cotidiano, e o que nos
surpreende é que o absurdo emerge justamente disso. O dia a dia é o estopim do
estouro.
São seis histórias de pessoas comuns em situações possíveis: um homem que
coleciona rancores; uma filha que encontra o responsável pela destruição da sua
família; um motorista que confronta o sujeito que o ofendeu na estrada; uma vítima da
indústria da multa de trânsito; o pai super-protetor que quer livrar o filho de uma
acusação de atropelamento e morte; e uma noiva que descobre a traição do marido
durante a festa do casamento.
Os episódios são magistralmente desfiados até o ponto em que as escolhas
dos protagonistas se resumem em continuar a puxar o fio ou tocar fogo na roupa.
Longe das parcimônias civilizadas, estes fios tornam-se pavios, e os indivíduos não só
os queimam, dinamitam, envenenam, “tocam o terror” e ferem com as garras expostas
como se expõem nus, selvagens e eufóricos na opção de negar o mundo que, de muitas
formas, oprime-os. Numa comédia muito bem produzida, eles escolhem, com primor, a
tragédia e a hecatombe.
A crueza das atitudes violentas dos personagens só tem sentido porque este
mundo é aquele que não inspira confiança, em que a justiça é falha, o socorro não chega
a tempo, o dinheiro é traiçoeiro, os pilotos de avião não garantem a segurança do voo, a
polícia não prende quem deve prender e o casamento não garante o final feliz. As
figuras quase alegóricas do filme, desapegadas das noções estáveis da vida, das
instituições que, em tese, garantiriam a ordem social, escolhem desenhar suas próprias
alternativas a partir do caos. Respondem, de caso pensado ou não, à pergunta
primordial que qualquer um de nós, alguma vez na vida, poderia fazer: “por que não ver
o circo pegar fogo”?
Os méritos de Relatos Selvagens não estão apenas nas ações tresloucadas e
nonsense dos episódios que, por si mesmos, garantem o riso com situações
tragicômicas, regadas a violência e humor negro à la Quentin Tarantino. O filme
respeita o tempo necessário ao engate de um humor sofisticado e costura bem os seis
episódios sem usar de artifícios baratos, dando ênfase a todas as histórias, que, aliás,
podem ser consideradas todas realmente muito boas.
Além do elenco talentoso - com destaque para Ricardo Darín, um dos atores
mais famosos da atualidade na América Latina, e Erica Rivas, intérprete da noiva -, o
filme argentino soube trabalhar bem com as emoções de seus personagens, com a
passionalidade precisa de cada um deles. Isso se deve, talvez, a alguma influência -
direta ou indireta - de Pedro Almodóvar e seu irmão, Agustín, que são creditados como
produtores do longa pelo selo El Deseo. Com mais de três milhões de espectadores, a
carreira de sucesso do filme reforça a marca das boas produções argentinas.
Como brasileiros, a força desse filme também nos coloca na berlinda para
pensar sobre o que vem sendo feito da nossa cinematografia no que se refere às
comédias. Relatos Selvagens mostra que não é preciso construir narrativas
escatológicas ou acéfalas como a maioria dos filmes do gênero (em linguagem de TV)
que vêm ocupando nossas salas de exibição nos últimos anos. Há um abismo no Brasil,
aparentemente encoberto, entre a criação para o cinema e a aceitação do público,
reforçando a ideia de que o popular - para ser popular - precisa ser superficial. Não há
3332
nada mais popular que histórias que não subestimem a capacidade de diversão das
plateias sem deixar de desafiar a inteligência de quem assiste a elas (vide O Auto da
Compadecida, de Guel Arraes). No teatro, na televisão, na literatura e no cinema,
sobretudo, não nos faltam talentos nem recursos para mudar isso. E esta é,
possivelmente, a nossa maior “tragicomédia”.
*Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (1997),
especialização em Educação, Memória e Cultura pela Uesb (2006) e mestrado em Memória:
linguagem e Sociedade também pela mesma instituição (2015)
SEM PENA
Filme: “Sem Pena”
Direção: Eugênio Puppo
Roteiro: Eugênio Puppo e Marina Dias
Ano: 2014
Gênero: Documentário
Origem: Brasil
Duração: 87 minutos
Comenteristas: Glauber Lacerda, Joaquim Novais e Luciano Tourinho
Sinopse
Documentário sobre o sistema jurídico e prisional brasileiro. A precária vida nas prisões do
país e os medos, preconceitos e equívocos que assombram o tema. A população carcerária
brasileira é uma das maiores do mundo e só aumenta.
3534
UM SOCO SEM PENA
Glauber Lacerda*
Sem Pena (2014), de Eugenio Puppo, faz parte de uma série de filmes –
ficcionais e documentais – que tratam das mazelas do sistema carcerário brasileiro.
Dentre esses filmes, podemos citar o drama De Menor (2013), de Caru Alves, a ficção
Carandiru (2003), baseada em fatos reais, de Hector Babenco, e a comédia ácida
Estômago (2007), de Marcos Jorge. Os contrastes nas escolhas narrativas desses três
filmes revelam-nos as infinitas possibilidades de expor um mesmo tema na tela do
cinema. E, assim, para montar o documentário, Puppo articula sons e imagens de
maneira peculiar a fim de denunciar um problema grave da sociedade brasileira.
Não se vê no filme pessoas dando depoimentos para uma câmera, construção
muito comum nos documentários. São vozes de diversos agentes que expõem os
problemas das cadeias brasileiras sobre imagens que, de alguma maneira, relacionam-
se com o tema falado. Para cada fala, existe um conjunto de imagens coerentes entre
si. A ausência de “cabeças falantes” não é por acaso, segundo Eugênio Puppo: “É a ideia
de colocar todo mundo num mesmo patamar, não influenciar as pessoas pela figura de
'A' ou 'B'. Ocupar um pouco esse espaço sensorial – que é muito difícil de ocupar - que
fica entre o filme e o espectador”¹. Os donos das falas só são apresentados nos créditos
do filme, relacionados ao conjunto de imagens que ilustram suas vozes.
O único momento do filme em que os donos das vozes são mostrados
enquanto falam é no julgamento de Dona Glória, senhora acusada de tráfico de drogas.
Talvez, isso seja uma pequena amostra de como determinados sujeitos, quando
colocados em julgamento, encontram-se muito fragilizados. No caso da ré em questão,
o documentário deixa a entender que se trata apenas da ponta do iceberg, e que, por
trás dela, há uma rede que sustenta o tráfico e que se aproveita de pessoas
aparentemente insuspeitas. O trecho em questão destoa da estética do filme e, ao
mesmo tempo, faz lembrar os documentários Justiça (2004) e Juízo (2008), ambos de
Maria Augusta Ramos, que também coloca o dedo na ferida sobre as questões penais
no Brasil.
Outro aspecto interessante que se destaca entre as escolhas do diretor é o uso
¹Em entrevista ao canal do Youtube “Justificando”
da música de John Cage (1912-1992) na trilha sonora. O compositor americano tornou-
se notável por pensar os limites entre música – conjunto de sons organizados em
melodia, ritmo e harmonia – e ruídos, a massa caótica de sons vivenciada no cotidiano.
Logo nos primeiros minutos do filme, pouco antes de aparecer o título, há uma
sequência de imagens que mostram detentos movendo-se dentro de uma
penitenciária; a paisagem sonora marcada por sons metálicos de grades que se abrem e
fecham e o burburinho reverberante dos presos no pátio da penitenciária fundem-se à
música de maneira uníssona. A trilha musical soa como algo seco, empático ao
ambiente, sem apelos emotivos, mas, sem dúvidas, muito provocante.
Eis um documentário que assume uma postura clara e militante diante das
necessidades de se pensar políticas efetivas para transformar a situação desumana da
população carcerária brasileira. O filme foi realizado em parceria com o IDDD (Instituto
de Defesa do Direito de Defesa), organização que luta pelo acesso à defesa de
qualidade para todos. Assim, as escolhas do diretor na edição se pautam em denunciar
o problema. As vozes se complementam entre si, não há, entre os depoentes, quem
defenda a manutenção dos presídios como estão. Não se deixam dúvidas para a
urgência de a sociedade civil se sensibilizar para o tema, afinal de contas, como o filme
mesmo destaca, a população carcerária do Brasil é a que mais cresce no mundo e não há
um movimento inversamente proporcional da violência.
* Professor do Curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb).
Mestre em Memória: Linguagem e Sociedade pela mesma universidade
3736
PARA QUE SERVEM AS PRISÕES?
Joaquim Antonio de Novais Filho*
“A prisão não coíbe os atos antissociais; pelo contrário, aumenta seu número.
Não reabilita quem prende, podem reformá-la o quanto quiserem, será sempre uma
privação de liberdade, um sistema falso, como um convento, que torna o prisioneiro
cada vez menos apto à vida social. Não atinge o que propõe. Mancha a sociedade. Deve
desaparecer por consequência.” Com essas palavras, o geógrafo anarquista russo Piotr
Kropotkin (1842-1921) define, de maneira sumária, a prisão. Para ele, que esteve
preso por fazer parte de círculos libertários na Rússia czarista, a “distribuição da
justiça” seria a mais relevante de todas as questões de sua época, depois da questão
econômica e do Estado. Em nosso tempo, passada a primeira década do século XXI,
essa questão ainda se mostra relevante. O Brasil – o qual o senso comum, estimulado
pela mídia, intitula de “país da impunidade” – mantém um sistema prisional onde o
encarceramento em massa é uma realidade. Esse é um dos aspectos desentranhados
pelo documentário Sem Pena, de Eugenio Puppo.
O documentário, lançado em 2014, consiste numa sequência de relatos sobre
a experiência da prisão, análises de especialistas em segurança pública, considerações
sobre a justiça penal e o registro de um julgamento. A opção dos realizadores de não
mostrarem o rosto dos entrevistados, exceto no final do filme, instiga o espectador e
causa um efeito de ênfase no que é dito pelos diversos personagens. Essa ênfase
possibilita uma mirada crítica do sistema penal brasileiro.
É fato reconhecido, e amplamente divulgado pelas pesquisas, que os cárceres
brasileiros estão cada vez mais superlotados e apresentam péssimas condições. Aliado
a esse contingente cada vez mais numeroso de presos, está um dos aspectos mais
tenebrosos da justiça brasileira: a sua morosidade. No documentário, um dos
entrevistados testemunha sobre a demora no julgamento dos processos. Demora que,
muitas vezes, ultrapassa a própria pena prevista para o delito. Há, portanto, nos
cárceres brasileiros, uma quantidade considerável de pessoas que já cumpriram a pena,
mas que não foram julgadas e permanecem mais tempo nas prisões.
Além disso, um dos entrevistados registra que, no Brasil, é uma prática
recorrente o encarceramento desenfreado de suspeitos e jovens pobres, sinal de que o
sistema penal atua de maneira seletiva. Outro depoimento sugere uma mudança de
paradigma das polícias, propondo que elas deixem de seguir um modelo produtivista e
passem a objetivar o bem-estar geral da população. Seria uma utopia?
Uma das falas, no entanto, ousa esboçar uma crítica filosófica do sistema penal
ao associá-lo com “sentimento de vingança [que] é a base material para o capitalismo
funcionar”. Nessa aguda reflexão sobre a causa da injustiça nas sociedades modernas,
o entrevistado observa que a passividade diante da vida torna a “ofensa […] um grande
negócio”.
Além da alta taxa de encarceramento, da seletividade do sistema penal e da
falta de acesso à justiça no Brasil, o documentário Sem Pena possibilita o
questionamento sobre a utilidade da prisão. Uma interessante resposta a esse
questionamento encontramos nas considerações de Michel Foucault sobre a produção
da delinqüência pelo próprio sistema penal. Em seu livro Vigiar e Punir, Foucault
observa que o “circuito da delinqüência não seria o subproduto de uma prisão que, ao
punir, não conseguisse corrigir; seria o efeito direto de uma penalidade que, para gerir
as práticas ilegais, investiria algumas delas num mecanismo de 'punição-reprodução'
de que o encarceramento seria uma das peças principais.”
Essa consideração ecoa, de alguma maneira, na recorrente ideia apresentada
no documentário de que a prisão é “escola do crime”. Mas, além disso, o próprio sistema
penal funciona como uma engrenagem na fabricação do crime. Esse sistema é
bastante útil na gestão e exploração das ilegalidades. Portanto, é importante
repensarmos a questão: para que servem as prisões?
Certamente, a gestão e exploração das ilegalidades são bastante úteis para a
manutenção do Estado. Só isso já é uma justificativa para a existência dele, e talvez aí
resida uma das grandes questões de nosso tempo.
***
“O sistema penal é polícia, prisão, tribunal, burocracia, ideias de reformadores,
mídias; carcereiros, técnicos em humanidades, identificação de periculosidades,
intelectuais, seletividade, pena, punição, castigo; juízo, juiz, promotor, advogado,
defensoria pública, ministério público, intimação, processo, larápios, espias, sicários,
alcaguetes, gansos, esquadrões da morte, milícias paramilitares; copeiras, cozinheiros,
secretárias, vítimas, testemunhas, delatores, denunciadores; jovens, mulheres,
homens: velhos, muito velhos, muito jovens; medidas socioeducativas, situação de
risco, liberdade assistida, semiliberdade, vulnerabilidade; medida de segurança,
prevenção geral, coação, intimidação; sistema penal é... Por qualquer lugar que você
iniciar o trajeto você acabará no mesmíssimo lugar, o lugar da punição, do
38 39
encarceramento, do medo e da morte. O sistema penal é uma falácia utilitarista e um
grande negócio que serve a legalidades e a ilegalismos.“¹
* Professor de História na Educação Básica. Mestre em Memória: Linguagem e Sociedade pela
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB.
¹Abolicionismo libertário – verbetes. Disponível em: < http://www.nu-sol.org/verbetes/index.php?id=58>
COMENTÁRIOS SOBRE O FILME
Luciano Tourinho*
A produção cinematográfica Sem Pena é apresentada como documentário
dirigido por Eugenio Puppo e revela a crise do sistema prisional pátrio. Construído em
formato de denúncia, o filme traz uma proposta que insere vários relatos acerca de
casos reais e, ainda, posicionamentos críticos sobre a aplicação da lei e a seletividade
penal, bem como a atuação da polícia e do Poder Judiciário no que se refere à esfera
criminal.
Devemos iniciar a análise da produção a partir de considerações jurídicas,
notadamente por uma ótica que revela ser a dignidade da pessoa humana, erigida, na
ordem constitucional brasileira de 1988, como fundamento de existência do Estado
Democrático de Direito, o núcleo essencial a ser observado. O seu significado é
consubstanciado no valor essencial do homem como condição de existência humana.
Apesar de ser considerada como valor jurídico fundamental do Estado
Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana é constantemente violada pelo
sistema prisional da América Latina, sobretudo, na realidade brasileira, o que coloca em
risco os pilares do Estado moderno.
No zelo pela dignidade humana do preso, a Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 tratou de elencar garantias à integridade física e moral
deste, ao declarar, nos incisos III e XLIX, do artigo 5.º, respectivamente, que “ninguém
será submetido a tortura ou a tratamento desumano ou degradante” e que “é
assegurado ao preso a integridade física e moral.”
Ocorre, no entanto, que a realidade do sistema prisional pátrio se distancia
daquela perspectiva deontológica. Em que pese à aceitabilidade da aplicação de uma
sanção que prive o homem de sua liberdade, atualmente, a eficácia dessa sanção é
questionada, apresentando diversos problemas que se perpetuam: o sistema
penitenciário não serve para o que diz servir, pois neutraliza a formação ou o
desenvolvimento de valores, estigmatiza o ser humano, contribui de forma singular à
reprodução da carreira criminosa, estimula a despersonalização, além de legitimar o
desrespeito aos direitos humanos. As prisões não diminuem os índices de
criminalidade, podendo gerar um efeito inverso, quando da sua transformação a partir
da potencialização de sua gravidade.
A prisão é uma instituição deteriorante, símbolo de uma patologia social que
não contribui para a promoção das finalidades penais, ao contrário, promove um
verdadeiro desajuste na política criminal ressocializante. A prisionização ou
aculturação do detento conduz a uma potencialidade criminalizante do cárcere a partir
do condicionamento a futuras carreiras delitivas, em razão dos efeitos da
estigmatização, o que aumenta as cifras da reincidência.
O sistema jurídico-penal institucionalizou a violência por um discurso de
defesa social. Nesse aspecto, não se pode olvidar que a pena privativa de liberdade se
insere, na atualidade, como uma das formas mais severas de controle social.
O sistema prisional, em especial, o brasileiro, apresenta falhas que denotam
uma ideia de falência. A construção do ideal humanista foi fundada em alicerces
arenosos, o que levaria, posteriormente, à decadência da pena privativa de liberdade.
Os problemas apresentados são inúmeros, e, com raras exceções, não se conseguem
alcançar as finalidades principais das sanções impostas pelo subsistema penal.
Somados aos gastos abissais dos governantes para a manutenção de presídios e
estabelecimentos afins, estão a prostituição, o tráfico de drogas, a formação de
quadrilhas, a superlotação, a corrupção interna, a violência, a segregação, a mitigação
de direitos fundamentais, dentre muitos outros problemas. Trata-se de uma verdadeira
crise!
A incapacidade e o insuficiente número de funcionários são fortes aliados da
problemática que ora se apresenta: fugas são empreendidas com o auxílio de agentes
penitenciários ou similares, que são, em sua maioria, desprovidos de capacidade
técnica para ocupar a função que exercem.
Em linhas gerais, as condições dos estabelecimentos penais pátrios são
precárias. Os condenados permanecem em assombrosas condições de vida,
amontoados em celas sujas, sem assistência médica adequada, higiene, educação e
profissionalização. Em muitas unidades, os dormitórios chegam a ter de duas a cinco
SEM PENA
4140
vezes mais o número de detentos por cela, os quais são obrigados a dormir amarrados
nas grades, sobre buracos sanitários, sem estruturas elétrica e hidráulica adequadas,
com ventilação precária, sem entrada de luz solar. A alimentação é insuficiente e de
qualidade muito inferior, e, em muitos estabelecimentos, os sentenciados dependem
de seus familiares para abastecê-los dos mantimentos necessários à sua subsistência.
Várias doenças infectocontagiosas se tornaram características nos
estabelecimentos prisionais. Como não existem tratamentos adequados, tampouco
médicos e enfermeiros em número suficiente, os níveis epidêmicos são elevados, o que
é agravado com o uso de drogas injetáveis, o estresse do encarceramento, o contato
físico contínuo e o abuso físico, tão comumente presentes nas prisões. Observa-se,
ainda, a hierarquização, reflexo da formação de gangues. Na verdade, há um conjunto
de “regras” próprias, gerador da violência alimentada pela corrupção e outros
problemas, como o tráfico de drogas interno. Todos esses fatores acabam por culminar
nas explosões de rebeliões em diversos presídios, sempre se encerrando com
tragédias.
Numa perspectiva dos direitos fundamentais, é autorizado afirmar que a pena
privativa de liberdade constitui verdadeira afronta à dignidade humana: da
relativização da liberdade, chega-se à mitigação de uma série de direitos que estão
diretamente interligados e relacionados com o núcleo essencial da dignidade humana.
A prática intracarcerária deveria ser direcionada à proteção dos direitos do
homem. Contudo, a atual realidade prisional se distancia desse propósito
protecionista, vulnerando direitos fundamentais, seja com relação à integridade física
das pessoas que se encontram privadas da liberdade, seja com relação às garantias
básicas do homem, como alimentação, saúde, comunicação e acesso a um processo
justo.
A conjuntura atual autoriza afirmar que o sistema prisional brasileiro alcançou
sua fase mórbida, em razão de sua estrutura funcional, da impossibilidade de garantir
os direitos dos condenados e, principalmente, pela ineficácia em alcançar os objetivos
principais da pena, gerando, por conseguinte, um aumento da violência e da
criminalidade, além de efeitos indiretos, como a pobreza, as epidemias e a corrupção.
Além disso, ferem-se os princípios constitucionais, e, de forma direta e indireta, os
direitos fundamentais que deveriam ser prestados pelo Estado.
CRÉDITOS
Esta é uma publicação especial da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), referente ao projeto “Cinema: Eis a Questão – O Janela Indiscreta no Vestibular”, realizado pelo Programa Janela Indiscreta Cine-Vídeo Uesb, em parceria com a Pró-Reitoria de Graduação, a Comissão Permanente de Vestibular, a Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários e o Programa Universidade Para Todos. Disponibilização on line e gratuita. Permitida a reprodução dos textos ou parte deles, desde que citados os autores e a fonte.
Cinema: Eis a Questão – O Janela Indiscreta no Vestibular/Ano 12/2015
Coordenação-geral: Sérgio de Oliveira Silva
Coordenação Acadêmica:Milene Gusmão
Produção Executiva/Coordenação Financeira: Rayssa Coelho
Assistente de Produção Executiva (Gravações e Livreto):Tamara Chéquer
Assistente de Produção Técnica:Georgen Pereira
Apresentador / Moderador:Eveline Mota
Organização e Revisão do Livreto:Ramone Costa
Programação Visual:Ana Luiza Dias
Produção de Vídeo:Renato Fernandes
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIAPRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO E ASSUNTOS COMUNITÁRIOS
PROGRAMA JANELA INDISCRETA CINE-VÍDEO UESBEstrada do Bem-Querer, km 04 – Campus Universitário
Vitória da Conquista-Bahia – CEP 45.083-900 | Tel.: (77) 3425.9330E-mail: janelaindiscretacinevideo@gmail.com
Site: www.janelaindiscretauesb.com.br
*Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito Público e
em Ciências Criminais. Graduado em Direito Penal pela Universidade Estadual do Sudoeste da
Bahia. Professor do Curso de Direito da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB
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