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Alcoolismo, doença e pessoa em uma associação de ex-bebedores: O caso dos Alcoólicos Anônimos1
Venho às reuniões por mim mesmo. Eu tenho que gostar de mim, para depois gostar dos outros. Eu tenho que me reparar primeiro. (...) Quando bebia perdia tudo e deixava de lado a família, os amigos, o trabalho. Com AA consegui manter minha família, meus amigos. Agora tenho tudo (...) É preciso ter consciência da doença, o que ela causa”. (Extratos obtidos nas reuniões de recuperação do grupo Sapopemba de Alcoólicos Anônimos)
Apresentação
O objetivo deste artigo é apresentar uma reflexão sobre as estratégias terapêuticas
adotadas pelos membros da associação de ex-bebedores Alcoólicos Anônimos, visando dar
conta da chamada “doença do alcoolismo”, relacionando-as com a construção da identidade
no interior da associação, a partir dos resultados parciais da pesquisa etnográfica realizada
junto ao grupo Sapopemba de Alcoólicos Anônimos, em bairro da periferia da cidade de São
Paulo, Brasil.
Enquanto antropólogo interessado no estudo da construção social e simbólica do
processo saúde/doença e sua relação com a construção da noção de pessoa, percebe-se uma
lacuna nos estudos que tratam mais particularmente dos mecanismos simbólicos praticados
pelos membros das associações de ex-bebedores, notadamente Alcoólicos Anônimos, com o
objetivo, ao mesmo tempo, de legitimar sua condição de doente alcoólico e a conseqüente
necessidade de abstinência em relação ao álcool.
De fato, a equação alcoolismo/doença tem sido negligenciada como objeto de estudo
nas ciências sociais.2 Erigido em objeto de estudo privilegiado da medicina epidemiológica e
1 Edemilson Antunes de Campos, Doutorando em Ciências Sociais na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), autor do livro: A tirania de Narciso: alteridade, narcisismo e política, São Paulo: Annablume/FAPESP, 2001. E-mail: edicampos21@hotmail.com 2 De fato, ainda poucas obras antropológicas tratam do tema do alcoolismo. Para Douglas (1987), os antropólogos em geral se ocupam de estudos referentes às formas de beber, visando-as como um aspecto cultural e como um modo de vida. Temendo incorrer no pecado do etnocentrismo, a
2
psiquiátrica, a partir dos estudos pioneiros do médico sueco Magnus Huss no século XIX, o
alcoolismo é tratado, em geral, como problema “patológico” individual e social. Com efeito,
quer se trate do modelo médico-moral, cujas analises centram-se no chamado consumo
excessivo de bebidas alcoólicas e serviram de base para a ação do movimento de temperança
e das ligas anti-alcoólicas do século XIX, emergidos principalmente na sociedade americana
(Blumberg, 1977; Soares, 1998), ou do modelo biomédico, preocupado com o estudo da
“dependência alcoólica”, na tentativa de traçar sua etiologia e formas de tratamento (Jellinek,
1960; Descombey, 1998; Vaillant, 1998), tais estudos tratam o alcoolismo como problema
individual, entendido, respectivamente, sob a ótica do desvio e da patologia, contribuindo, ao
mesmo tempo, para fixar uma imagem negativa dos bebedores e favorecer a construção de
formas de controles sociais (Ancel & Gaussot, 1998). Com efeito, o interesse da pesquisa
sobre o alcoolismo e as formas de beber tem se concentrado, de um lado, sobre a embriaguez
e, de outro, sobre o ato de beber, compreendido sob a ótica do desvio individual ou da
patologia e não como um ato social (Neves, 2001).
Nessa perspectiva, seguindo a linha do trabalho de Fainzang (1996), esta pesquisa visa
« la manière dont les anciens alcooliques ont recours à la abstinence à la fois comme élément
d’une thérapeutique et comme príncipe organisateur de leur existence » (Fainzang, 1996: 8).
Trata-se, portanto, de entender a abstinência como um código cultural portador de valores
próprios a um meio cultural especifico, tal como os propostos pelas associações de ex-
bebedores. De fato, ao longo de nossa pesquisa junto ao grupo Sapopemba de Alcoólicos
Anônimos, essa associação de ex-bebedores revelou-se um espaço privilegiado para o estudo
antropológico da experiência do alcoolismo, a partir de um estudo das representações
culturais, das práticas sociais e da (re) construção da identidade, associadas ao par
alcoolismo/doença.3
A participação, ao longo de 12 meses (entre setembro de 2001 a setembro de 2002),
das reuniões de recuperação (abertas), além de outras atividades promovidas pela associação
(tais como: reuniões de entregas de ficha; reuniões de serviços; reuniões de unidade; reuniões
antropologia recusa-se validar as categorias médicas próprias à noção de doença do alcoolismo. Diferentemente desta démarche, Fainzang (1996) aponta que, ao contrario da leitura sociológica e epidemiológica, a antropologia deve relativizar o par alcoolismo/doença, buscando entende-lo dentro de um contexto cultural específico. 3 Vale também recuperar a advertência de Neves (2001) que chama a atenção para as dificuldades e limites da investigação antropológica no contexto da investigação sobre alcoolismo e a necessidade de se explicitar os contextos culturais e simbólicos nos quais se constroem os significados sobre as diferentes formas e maneiras de beber e suas interdições. Para a autora, « não é no bar, mas nos espaços sociais construídos pelos alcoólatras vinculados a terapias ou à instituição dos Alcoólatras Anônimos, que são dramatizados os modos de construção coletiva do alcoólico como identidade redentora, graças à entre-ajuda ou à solução coletiva. » (Neves, 2001: 6).
3
temáticas; festas de aniversário do grupo de AA etc), foi fundamental para a compreensão do
modo como as representações construídas em torno do álcool, do alcoolismo e de si mesmo
como doente alcoólico, se articulam e orientam as práticas dos membros da associação na luta
contra o alcoolismo.
Nessa perspectiva, este artigo busca compreender como o alcoolismo é pensado e
gerido no interior da associação de ex-bebedores Alcoólicos Anônimos. Com isso, pretende-
se analisar como as representações construídas em torno do alcoolismo e do álcool são
fundamentais tanto na definição da estratégia terapêutica dos Alcoólicos Anônimos para dar
conta da “doença alcoólica”, notadamente a partir da construção da identidade do « doente
alcoólico em recuperação », como para a definição dos contornos de uma representação
individualizada da noção de pessoa.
Alcoolismo: uma doença entre os domínios físico e moral
Os Alcoólicos Anônimos constituem, de acordo com sua literatura oficial - composta
pelo livro básico de Alcoólicos Anônimos, folders de divulgação e também pelar revista
Vivência, de publicação trimestral – « uma irmandade de homens e mulheres que se ajudam
mutuamente a resolver seu problema comum, isto é, o alcoolismo ». Trata-se de um programa
de recuperação, expresso nos “doze passos e doze tradições”, cujo objetivo é ajudar os
alcoólicos a evitar o “primeiro gole” e, assim, a manter a sua sobriedade.
A associação dos Alcoólicos Anônimos (AA) nasceu em 1935, em Akron, Estado de
Ohio, nos Estados Unidos após uma conversa entre um corretor da Bolsa de Nova York e um
médico de Akron, conhecidos respectivamente como Bill Wilson e Bob Smith. Eles
constataram que, por alguma razão até ali não bem compreendida, eles conseguiam ficar sem
beber durante bons períodos depois que passavam algum tempo conversando e
compartilhando seu problema. Após passar por uma verdadeira “experiência espiritual e
experimentar fortes sentimentos de triunfo, paz e serenidade”, segundo depoimento do
próprio corretor, ele decidiu trabalhar para que outros alcoólicos se beneficiassem com a
descoberta; viu que, ao falar para outros alcoólicos, “sentia-se revitalizado”, conseguindo
manter-se sóbrio.
Desde então, o AA teve uma rápida expansão em todo mundo4, constituindo-se numa
espécie de “grandparent” dos grupos de mutua ajuda (Gilbert, 1991: 353).5 Os Alcoólicos
4 Nas últimas décadas os grupos de mutua ajuda, notadamente Alcoólicos Anônimos, vêm se expandindo de forma acelerada em escala mundial e, particularmente, na sociedade brasileira. Segundo
4
Anônimos preocupam-se, única e exclusivamente, com a recuperação pessoal e individual de
seus membros que são considerados “doentes alcoólicos em recuperação”.
Embora o AA compartilhe com outras associações de ex-bebedores a definição do
alcoolismo como uma “doença”, sua teoria da doença alcoólica assume um aspecto
particular.6 Assim, diferentemente das sociedades de temperança do final do século XIX e
inicio do século XX, que consideravam o álcool “um dos maiores flagelos da humanidade” e
dirigiam suas baterias contra as bebidas alcoólicas (Levine, 1978; Soares, 1999: 241-249) 7,
os Alcoólicos Anônimos desenvolvem uma teoria da doença alcoólica, na qual o alcoolismo é
entendido como uma “doença inata” ao organismo do alcoólico:
O que é o alcoolismo? Existem muitas e variadas interpretações sobre o que é realmente o alcoolismo. A explicação que parece ter sentido para a maioria dos membros de AA é que o alcoolismo é uma doença; uma doença progressiva e incurável. Como algumas outras doenças, porém, pode ser detida. Indo um pouco mais longe muitos membros de AA acredita que a doença representa a combinação de uma sensibilidade física ao álcool, com uma obsessão mental pela bebida que, apesar das conseqüências, não pode ser superada somente
Gabhainn (2003), o numero de membros da Irmandade Alcoólicos Anônimos em todo mundo tem crescido em progressão geométrica, passando de 100 membros em 1940, para 476000 em 1980, para 653000 em 1983 e para 979000 em 1990. Em 2002 estimava-se que o numero de grupos de AA em todo mundo era de 100103, totalizando 2215293 membros, segundo dados do Escritório Mundial de Alcoólicos Anônimos. No Brasil, o primeiro grupo de AA surgiu em 1947 e hoje há cerca de 5700 grupos, perfazendo um total em torno de 120000 membros, segundo dados do Escritório de Serviços Gerais de Alcoólicos Anônimos. 5 Nas palavras de Gilbert (1991: 353) « offshoots of AA include not only such well-know programs an Narcotics Anonymous, Cocaine Anonymous, Gamblers Anonymous and Overeaters Anonymous ; but such recent adaptations as Emotions Anonymous, Families Anonymous, Debtors Anonymous, Parents Anonymous and Ohobics Anonymous. » 6 A teoria da doença alcoólica de Alcoólicos Anônimos se diferencia, particularmnte, da teoria da doença formulada pela associação francesa de ex-bebedores Vie Libre. Fundada em 1953, Vie Libre se define como « um movimento de bebedores curados, de abstinentes simpatizantes, trabalhando contra o alcoolismo, contra suas causas e pela promoção de antigos bebedores » (Fainzang, 1992: 6;1996). Com efeito, enquanto os Alcoólicos Anônimos ignoram a etiologia social do alcoolismo, entendendo-o como uma doença “inata”, comparada ao diabetes, situada no âmb ito físico-espiritual do individuo, o movimento Vie Libre considera o alcoolismo como uma doença cujas causas são sociais – a miséria, o desemprego etc -, atingindo principalmente o homem das classes populares (Fainzang , 1992 : 8; 1996). 7 Em fins do século XVIII e inicio do século XIX, o médico americano Benjamin Rush elabora um modelo médico-moral para compreensão do alcoolismo, no qual destaca quatro pontos considerados como essenciais: 1) a relação entre bebidas espirituosas e a intemperança; 2) a definição do alcoolismo como uma doença da vontade; 3) as conseqüências sociais e individuais do uso do álcool e 4) prescrição da abstinência total para o tratamento do alcoolismo. Essas idéias passaram a compor o núcleo central da ideologia do principal movimento de massa do século XIX, a saber: as sociedades de temperança. Dirigidas ao combate do alcoolismo e do álcool, as sociedades de temperança desempenharam um papel importante, ao mesmo tempo, na representação do alcoolismo como doença e na redefinição da imagem do bebedor. Como sublinha Levine: “Throughout the 19th century, people associated with the Temperance Moviment argued that inebriety, intemperance or habitual drunkenness was a disease, and a natural consequence of the moderate use of alcoholic beverages” (Levine, 1978: 144). O auge deste movimento foi a aprovação pelo Congresso dos Estados Unidos, através de emenda à Constituição, em 1920, da “lei Seca”, que proibia a fabricação e venda de bebidas alcoólicas em todo o pais (Soares, 1999: 242). Vale salientar que este movimento norte-americano anti-alcoólico teve uma grande influência no Brasil, principalmente nas décadas de 1920 e 1930, através de campanhas oficiais contra o uso do álcool, voltadas sobretudo para as classes populares (cf: Matos, 2000: 28-37).
5
pela força de vontade. Antes de haver sentido a influência de AA muitos alcoólicos que não conseguem abandonar a bebida se consideram moralmente débeis e possivelmente desequilibrados mentais. O AA acredita que os alcoólicos são pessoas enfermas, passíveis de recuperação se seguirem o simples programa bem sucedido para mais de 2 milhões de homens e mulheres. Uma vez que o alcoolismo se tenha fixado não há pecado algum em ser doente. A esta altura o livre arbítrio inexiste e o sofredor já perdeu seu poder de decidir se continua a beber ou não. O importante, porém, é encarar a realidade da própria doença e aproveitar-se da ajuda disponível. Também é necessário que exista o desejo de recuperar-se. A experiência nos ensina que o programa de AA funcionará para qualquer alcoólico, quando este é sincero em seu desejo de parar de beber. Geralmente não funcionará para o homem e a mulher que não estejam absolutamente seguros que querem parar”.
Ou ainda,
« O alcoolismo é, em nossa opinião, uma doença progressiva – espiritual e emocional (ou mental) tanto quanto física. Os alcoólicos que conhecemos parecem ter perdido o poder para controlar suas doses de bebidas alcoólicas »
Com efeito, o alcoolismo é representado, inicialmente, como uma “doença progressiva
e incurável” resultado de uma articulação entre uma “sensibilidade física ao álcool” e “uma
obsessão mental” para ingerir bebida alcoólica, que impede o alcoólico de parar de beber.
È comum encontrarmos, também, na literatura de AA a comparação entre o
alcoolismo e o diabetes, de modo que o alcoólico apresenta uma espécie de “alergia ao
álcool”8. Assim, segundo os Alcoólicos Anônimos, é possível ser um alcoólico sem jamais
ter bebido, bastando, para isso, não ter tido contato com a bebida alcoólica: “por exemplo,
existem pessoas aí que nasceu, viveu aí 80 anos, ele é um alcoólatra só que ele nunca ficou bêbado.
Por que? Porque ele nunca entrou em contato com bebida alcoólica. É essa predisposição orgânica”.
Nessa medida, como sublinha Fainzang (1996:34), a teoria da doença de Alcoólicos
Anônimos representa o alcoolismo a partir de uma “théorie de l’inné”, própria a uma tradição
biologizante largamente difundida nos Estados-Unidos (local de origem dos Alcoólicos
Anônimos). O alcoolismo é, portanto, representado como uma doença inata, de base
“genética”, enraizada no organismo do alcoólico.
Todavia, a representação do alcoolismo como uma doença “inata” de base “genética”,
comparada ao diabetes sugere, inicialmente, uma aproximação entre a teoria do alcoolismo de
AA e o modelo biomédico. De fato, a relação entre os Alcoólicos Anônimos e a biomedicina
tem chamado a atenção da literatura, em particular psiquiátrica, que atentam para o “caráter
8 A idéia de que o alcoolismo seria o resultado de uma a obsessão mental aliada a uma alergia do organismo do alcoólico ao álcool foi apresentada ao co-fundador de Alcoólicos Anônimos Bill Wilson pelo médico Dr. Willian Silkworth. Nas palavras do médico: «Acreditamos que a ação do álcool sobre estes alcoólicos crônicos é a manifestação de uma alergia, que o fenômeno da compulsão limita-se a essa categoria de pessoas e jamais acontece com o bebedor moderado médio. Essas pessoas alérgicas nunca podem, sem correr riscos, consumir álcool de qualquer espécie. » (Alcoólicos Anônimos : 20 ; cf. Barros, 2001: 50-52).
6
paradoxal” do modelo construído por AA. Essa fórmula pode ser sintetizada nas palavras do
psiquiatra americano George Vaillant (1999): « é um paradoxo que o principal objetivo do
AA – um sistema estritamente moral e religioso – tem sido ver o abuso de álcool como uma
doença médica, não como uma falha moral.» (Vaillant,1999: 194).
A afirmação de Vaillant, contudo, tem conseqüências importantes do ponto de vista da
antropologia da doença. De fato, ao chamar a atenção para o “paradoxo” do programa de
recuperação de Alcoólicos Anônimos, o psiquiatra permite que indaguemos, sob uma
perspectiva antropológica, sobre a relação entre a teoria da doença e a estratégia terapêutica
adotada por AA. Em outras palavras: trata-se de indagar a relação entre as representações da
doença alcoólica de AA e as práticas adotadas pela associação para dar conta da “doença do
alcoolismo”.
Nessa medida, é importante não limitar tanto a noção de “doença” como a de
“estratégia terapêutica” à acepção biomédica, mas buscar entende-las como integradas a um
meio cultural específico, tal como o proposto pela associação dos Alcoólicos Anônimos. Em
outras palavras: trata-se de entender as noções de doença e estratégia terapêutica a partir uma
perspectiva êmica, i e, considerando todas as representações e práticas, que são construídas
pelos membros de AA para dar conta do alcoolismo e do álcool, como significativas de um
aporte terapêutico. 9
Com efeito, apesar da constante e visível interação entre os Alcoólicos Anônimos e a
medicina 10 – fato presente desde o surgimento de AA e intensificado durante os trabalhos
realizados pelo Yale Center of Alcohol Studies, conduzidos por E.M. Jellinek (1960) em
interação com Alcoólicos Anônimos nos anos 30 e 40, fundamentais na consolidação do
alcoolismo entendido, ao mesmo tempo, como “dependência” e “doença” (Levine, 1978: 162)
– é importante compreendermos tanto os aspectos simbólicos que envolvem a teoria da
doença alcoólica de AA, demarcando seus limites em relação modelo biomédico como a
estratégia terapêutica construída pela associação para dar conta do alcoolismo e do álcool.
9 Como muito bem sublinha Fainzang: «l’anthropologie a pour rôle d’identifier les croyances en vertu desquelles telle conduite est jugée efficace. L’efficacité (symbolique ou non) est d’ailleurs une question centrale dans les recherches anthropologiques. Il s’agit notamment de savoir pourquoi les gens croient que leurs stratégies sont efficaces. Mais il ne s’agit pas que de cela. Si l’on s’interroge sur la finalité de ces stratégies, la question se pose également de savoir si la recherche d’efficacité thérapeutique en est toujours le but, et de quelle efficacité il s’agit. Certaines conduites à visée thérapeutique peuvent en réalité répondre à d’autres exigences que celles que le monde médical qualifierait de thérapeutiques» (Fainzang, 1997: 20). 10 Durante minha pesquisa de campo com grupos de Alcoólicos Anônimos na cidade de São Paulo - Brasil, tive a oportunidade de presenciar varias reuniões temáticas entre médicos e psiquiatras com membros de AA sobre os mais diversos temas relacionados à doença do alcoolismo.
7
Nessa perspectiva, uma analise mais detida da definição do alcoolismo apresentada
acima, permite relativizarmos a teoria da doença de AA. De fato, a teoria da doença de AA
representa o alcoolismo como uma “maladie de longue durée” (Saliba, 1982: 82); uma doença
crônica de base orgânica e mental, que independe da “força de vontade” do alcoólico para sua
superação e controle.
Como conseqüência, os Alcoólicos Anônimos desenvolvem uma teoria do alcoolismo,
na qual o individuo não é responsável pela aquisição da doença, mas ao contrario a remete ao
terreno da fatalidade e da aleatoriedade. A doença alcoólica é, portanto, algo inato, inerente ao
organismo do alcoólico, de modo que a doença independe tanto da vontade do individuo
como da quantidade de álcool ingerida. Como sublinha M., membro do Escritório de Serviços
Gerais de Alcoólicos Anônimos (ESG): “um alcoólico não se torna alcoólico ele é alcoólico”.
Com efeito, de acordo com a literatura de AA, “uma vez que o alcoolismo tenha se
fixado”, o individuo doente perde o “livre arbítrio”, isto é, o doente alcoólico é incapaz de
escolher se continua a beber ou não, tornando-se, então, “dependente” da bebida alcoólica.
Nesta perspectiva, a teoria da doença de AA não representa a doença alcoólica apenas
com um problema orgânico e mental, como exige o modelo biomédico, mas também como
uma doença que se articula à dimensão propriamente moral do individuo, constrangendo sua
vontade, impedindo-o de agir de modo responsável. Não por acaso, o AA também define o
alcoolismo como uma “doença espiritual”, que se liga à dimensão propriamente moral da vida
do alcoólico.
A doença alcoólica definida, ao mesmo tempo, como uma “predisposição física aliada
a uma obsessão mental” e como “doença espiritual” mobiliza representações – orgânicas e
morais - que se referem tanto aos “limites mais restritos da pessoa” (Duarte, 1976: 144),
chamando nossa atenção tanto para o que se passa no plano intrapessoal, isto é, no indivíduo,
enquanto totalidade “físico-espiritual”, como à sua repercussão no exterior, i e, no conjunto de
relações sociais, nas quais o alcoólico está envolvido.
A teoria do alcoolismo de Alcoólicos Anônimos envolve, portanto, representações que
engajam os indivíduos em toda sua complexidade físico-moral, apontando para as conexões e
fluxos que perpassam a dimensão física (corpórea), mental e espiritual, envolvendo o
individuo em sua totalidade. Neste sentido, o alcoolismo se manifesta tanto através da
deterioração física (corpórea) do alcoólico, como através da deterioração das relações sociais,
notadamente na família e no trabalho, comprometendo sua construção como “homem
responsável”.
8
Ao contrário do que afirmam a literatura psiquiátrica e sociológica, a saber, que os
Alcoólicos Anônimos não se interessam pelas causas de seu alcoolismo (Saliba, 1982;
Mäkelä, 1996)11, é possível isolar alguns aspectos na literatura produzida por AA que podem
nos ajudar a definir o modo como os membros da associação de ex-bebedores definem e
entendem a doença do alcoolismo e, ao mesmo tempo, identificam a si mesmos como doentes
alcoólicos e definem uma estratégia terapêutica para seu mal.
Nessa perspectiva, para os Alcoólicos Anônimos, a deterioração “física e moral” do
alcoólico tem uma causa bem definida, a saber: o egocentrismo12. De fato, para o AA, o
alcoolismo provoca um auto-centramento – egocentrismo -, potencializando o “narcisismo”
do alcoólico. Isolado e fechado em si mesmo, o alcoólico acredita que é capaz de controlar o
ato de beber a partir da própria vontade:“eu bebo quando eu quero”. Ora o “narcisismo” do
alcoólico, potencializado pelo uso do álcool, o faz acreditar-se “onipotente” e “senhor de seus
atos”. Com isso, o alcoólico nega para si mesmo e para os outros que é portador da “doença
do alcoolismo”. Como conseqüência de seu egocentrismo, o alcoólico não vê o Outro; nega a
alteridade exterior fechando-se em seu próprio universo.
Nessa perspectiva, movido pelo egocentrismo durante a fase ativa de seu alcoolismo, o
alcoólico vive fechado no circulo da dependência. Em outras palavras, o alcoólico vive uma
espécie de “insulamento”, de modo que seu universo reduz-se cada vez mais às relações
mediadas pelo uso da bebida alcoólica, o que só faz aprofundar, segundo AA, a dependência
do álcool, comprometendo sua responsabilidade em relação tanto à família como ao trabalho.
As narrativas colhidas durante nossa pesquisa etnográfica, junto ao grupo Sapopemba
de AA, são eloqüentes na representação do alcoolismo como uma doença que comporta uma
multiplicidade de significados, os quais deslizam entre os planos físico e moral. De fato, os
membros do grupo Sapopemba de AA mobilizam todo um leque de “categorias” para
expressar suas aflições, compondo uma espécie de “nosografia profana” (Ancel & Gaussot,
1998: 86) da doença alcoólica. Trata-se, portanto, de uma série de “sintomas”
físicos/orgânicos, tais como: “tremores”, “alergia”, “hipertensão”, “cirrose”, “ressaca”,
11 Como sublinha Fainzang, apesar da ausência de um discurso etiológico explicito, os membros das associações de ex-bebedores “ont en réalité presque toujours une explication à proposer de leur alcoolisme, même s’ils se refusent souvent à la livrer lorqu’ils sont interrogés dans le cadre de l’entretient formel” De fato, “le refus apparent, ou affiché, de rechercher les causes de leur alcoolisme n’exclut pas la production d’un discours interpretatif, voire causal, de leur maladie” (Fainzang, 1995: 73). 12 Para Alcoólicos Anônimos, o egocentrismo é “a raiz de todos os problemas” do doente alcoólico: “não está a maioria de nós preocupada consigo mesma, com seus ressentimentos ou sua auto-piedade? (...) Acima de tudo, nós, alcoólicos precisamos nos libertar desse egoísmo. Precisamos faze-lo, ou ele nos matara!” (Alcoólicos Anônimos, 82-83).
9
“náuseas”, “delirum tremens” e “perda da memória” e também de uma rica quantidade de
expressão de sintomas “morais”, relacionados tanto ao “estado de espírito do alcoólico” como
ao conjunto de relações sociais nas quais o alcoólico está envolvido, notadamente na
“família” e no “trabalho”: “egoísmo”, “orgulho”, “onipotência”, “ressentimento”, “perda dos
amigos”, “perda da família”, “perda do trabalho”, “sarjeta moral”, “sarjeta profissional” e
“doença da família”.
Nessa perspectiva, a teoria da doença de AA estabelece uma conexão entre o âmbito
físico e moral, que se articula à noção de dependência. De fato, o alcoolismo é definido aqui
como dependência, que impede o alcoólico de escolher entre beber e não beber. Trata-se,
assim, de um lado, de uma dependência física do álcool, que obriga o alcoólico a ingerir a
bebida alcoólica. Esse estado de degradação física se expressa também através de sintomas
tais como: “ânsias e dores de estomago” que, em geral, só passavam após a ingestão de bebida
alcoólica: “Eu acordava de manhã e sentia aquelas dores na barriga, no estômago, eu precisava
vomitar e só depois que eu bebia aquilo passava”. “Eu comecei a ter ânsias às três horas da manhã,
constantemente, mesmo se eu não tivesse bebido, vinha aquela ânsia. Me dava água na boca.
Chegava oito e meia da manhã não dava e eu tinha que beber para ficar legal. Já tinha que beber. Eu
já bebia de manhã mesmo. Eu era muito relaxado com meu físico”. Mas são, sobretudo, os
tremores e as tremedeiras os sintomas mais característicos da dependência física: “Às vezes eu
acordava de manhã tremendo, minhas mãos não paravam, e só depois que eu bebia é que eu
melhorava”. Nota-se, assim, que o ato de beber deixou de ser um ato de vontade e de prazer e
tornou-se uma necessidade física: “Às vezes eu saia de casa e dizia para mim mesmo que eu não ia
beber, mas de repente quando eu percebia, eu já estava com um copo na mão bebendo”. Com efeito,
os tremores são um signo de que o alcoólico está “refém do álcool”, isto é, dependente. Nas
palavras de Fainzang: “Le tremblement de la main est stigmatisé en tant qu’expression
tangible d’une non-maîtrise de soi, et par extension, d’une dépendence” (Fainzang, 1996: 56).
A perda de controle sobre o álcool é narrada simbolizando o estado de dependência em que o
alcoólico se encontra: “Eu percebi que eu estava dependente do álcool quando tentei parar de beber
e não consegui. Eu não conseguia dar sustentação a esse parar de beber”.
Por outro lado, a dependência do álcool também impede o alcoólico de assumir suas
“responsabilidades”, notadamente em relação à família e ao trabalho. Neste sentido, a doença
alcoólica extravasa o limite intrapessoal, possibilitando a representação do alcoolismo como,
por exemplo, uma “doença da família”. Nas palavras de P., secretario do grupo Sapopemba:
“Nós temos nossa terceira tradição que diz: ‘para ser membro de AA o único requisito é o desejo
de parar de beber’. Agora nem todos chegam em AA com esse desejo de parar de beber. A maioria
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chega aqui forçado, porque a doença ela não é individual, a doença é da família, a doença é da
coletividade. A doença é do individuo, só que afetando esse indivíduo ela afeta tudo”. Logo para P.:
“a recuperação de um alcoólico significa também a recuperação da família”.
Aqui cabe perguntar: o alcoolismo é uma doença contagiosa? Os alcoólicos anônimos
entrevistados nos mostram que são na família e nas relações de trabalho que se situam o
terreno em que o alcoolismo se mostra “contagioso”: “Eu vejo o pessoal preocupado com a AIDS
e há realmente a necessidade de ter essa preocupação com a AIDS, porque é uma doença também
super contagiosa. Mas, o alcoolismo é mais contagioso do que a AIDS. Por exemplo, se eu fosse um
aidético eu só transmitiria minha doença para uma outra pessoa se eu tivesse um contato direto. E o
alcoólatra? É indiretamente que ele atinge as pessoas. É indiretamente que aquela empresa, que
aquele alcoólico trabalha começa a não produzir. Ele tá afetando os companheiros de trabalho. E o
contágio dentro de sua própria casa. Porque o alcoolismo é a doença da família.”(P. secretario do
grupo Sapopemba AA).
As palavras de P. permitem que façamos algumas reflexões sobre as representações
construídas em torno o problema do contágio da doença alcoólica. Com efeito, P sugere uma
comparação entre o alcoolismo e a AIDS de modo que, enquanto no primeiro, o contágio se
faz de forma “indireta”, a segunda só se transmitiria em um contato “direto” (pelo esperma,
ou pelo sangue) entre o portador do HIV e outra pessoa.
Essa comparação, contudo, carrega importantes representações sobre o problema do
contágio e da transmissão tanto da AIDS como do alcoolismo. Assim, ao contrário do que
supõe as concepções médicas sobre o contágio, que o circunscreve no âmbito biológico e
fisiológico atestado clinicamente, P. supõe que o alcoolismo, embora não seja transmitido,
possa ser contagioso, afetando, sobretudo, aqueles que são mais próximos do alcoólico, isto é,
seus familiares, seus amigos e seu ambiente trabalho. Nota-se também que a definição do
contágio estabelecida por P. mostra-se plenamente coerente com a teoria da doença alcoólica
de AA, pois sendo o alcoolismo uma doença inata ela não pode ser transmitida a ninguém.
Entretanto, o contágio pode ocorrer, afetando principalmente a esfera familiar e o ambiente de
trabalho do alcoólico.
Assim, sob a ótica do contágio opera-se uma inversão entre o alcoolismo e a AIDS:
enquanto o alcoolismo seria contagioso, mas não transmissível, a AIDS seria transmissível,
mas não contagiosa.13 Essa definição do alcoolismo como “doença contagiosa” só pode ser
suficientemente entendida se avançarmos no sentido do que Fainzang muito bem chama de
13 Fainzang nos mostra que a classificação da AIDS como uma “doença transmissível e não contagiosa” traduz, em grande medida, “la crainte des réactions de peur et d’évitement qu’engendrerait son usage dans la population” (Fainzang, 1996: 93).
11
uma “définition anthropologique de la contagion” (Fainzang, 1996: 83), distante das acepções
biomédicas 14.
Com efeito, analisando-se as representações sobre o alcoolismo, presente nas
associações de ex-bebedores podemos avançar no sentido da compreensão do aspecto
contagioso da doença alcoólica. Em nossas entrevistas encontramos outros relatos que
sinalizam nessa direção: “Eu tenho um filho que é doente mental, acho que fui eu que criei
essa doença nele devido o álcool”. Ou ainda: “minha mulher está nervosa, ficou neurótica
com meu problema de alcoolismo”. Em uma carta escrita pela filha de um membro de AA, à
qual tive acesso durante a pesquisa, pode-se ler: “Quando Você desce para o bar, eu morro de
preocupação, porque se Você chega ruim será mais uma dia de briga, olho no relógio de 5 em 5
minutos. A minha mãe às vezes chora de nervoso.” Ao final ela pergunta: “Será que Você não cansa
de viver em brigas com a família?” Percebe-se, assim, que é na esfera familiar que o contágio
torna-se mais intenso, provocando “sintomas”, tais como: “nervoso”, “angústia”, “neuroses”
etc. Por isso o alcoolismo é concebido também como uma doença da família.15
Mas, qual a lógica subjacente à concepção de contágio elaborada por membros de
associações de ex-bebedores e seus cônjuges?
Fainzang (1996) sublinha, em sua pesquisa com cônjuges de ex-bebedores, membros
da associação de ex-bebedores francesa Vie Libre, que é na relação conjugal, à qual supõe
proximidade física e social entre o cônjuge e o bebedor que o contágio se manifesta, tendo
como vetores principais: os “nervos”, o “odor” e, mais particularmente o “hálito” do alcoólico
(Fainzang, 1996: 87). Nas palavras de Fainzang: “si les conditions de possibilité de la
contagion comportent le partage d’un même espace physique, du même air, elles impliquent
nécessarement, de surcroît, le partage d’un même espace social. La transmission de la maladie
d’un corps à un autre ne se fait pas au hasard, par simple proximité corporelle. Il y faut une
proximité social, celle du conjoint étant à cet égard exemplaire, puisqu’il partage avec le
buveur non seulement le même air, le même espace domestique, pollué par l’haleine du
buveur, mais aussi le même destin, l’espace domestique étant superposable au lien
matrimonial ou à celui créé par la vie commune.” (Fainzang, 1996: 87,88). Vale salientar que
14 Seguindo a trilha aberta por Mary Douglas em seus estudos em que examina a “teoria cultural do contágio” desenvolvida no contexto da AIDS, Fainzang parti “de l’exemple d’une maladie non contagieuse d’un point de vue médical, pour montrer ce que recouvre l’idée de son caractère contagieux dans les représentations des sujets et, par extension, ce que peut contenir l’idée de contagion d’un point de vue anthropologique” (Fainzang, 1996: 83). Com efeito, “la définition anthropologique de l’idée de contagion doit s’affranchir des dimensions médicales de ce concept et rendre compte des representations dont elle fait l’objet pour en proposer une nouvelle acception” (Fainzang, 1996: 93). 15 Não é por acaso que existem Irmandades paralelas ao AA destinadas ao tratamento dos familiares (Alanon) e para os filhos (Alateen) dos alcoólicos.
12
em nossa pesquisa no grupo Sapopemba, vários membros em suas partilhas salientaram as
reclamações de suas esposas durante a fase ativa de seu alcoolismo. Assim, “minha esposa
reclamava do meu mau cheiro, já que eu não tomava banho”. Ou, “Às vezes eu bebia e chupava uma
bala para tirar o cheiro, mas certo dia cheguei em casa e minha esposa disse ‘Você bebeu hoje’, eu
disse que não, mas ela sentiu o cheiro. Acho que pelo nariz que esse cheiro sai”. É, portanto, o odor
exalado pelo alcoólico que revela seu estado patológico e, conseqüentemente a
poluição/impureza de seu corpo.
Outro dado relevante presente nas narrativas diz respeito ao momento em que a esposa
se afasta do marido alcoólico, passando a dormir em cama separada: “eu passei a beber pesado,
e comecei a implicar com a mulher, minha mulher não agüentava o cheiro, o bafo de bebida e eu
queria ter relação e ela não aceitava. Ela começou a dormir para os pés e eu ficava revoltado.”
Como sublinha Fainzang: “l’épouse perçoit son corps comme evahi, investi par l’alcool dont
elle craint de porter la trace: l’odeur. L’odeur du buver (exemplifiée par son halaine) est donc
à la fois le témoin de son état pathologique (elle est un signe que les conjoints traquent, et à
partir desquels ils sont à même de diagnostiquer une rechute) et de la souillure du corps du
buver. Dès lors, la contagion est autant celle de cette souillure que de la maladie” (Fainzang,
1996: 88). Dormir em camas separadas passa, assim, a ser um signo da possibilidade mesma
de contágio tanto da doença como da impureza representada pelo odor do alcoólico.
Nessa perspectiva, mesmo na ausência de relações sexuais ou de qualquer contato
físico entre os cônjuges, o alcoolismo pode ser contagioso devido fundamentalmente ao laço
social estabelecido entre o casal.16 Ou seja, no alcoolismo o contágio não se faz pelo sangue
ou esperma, mas fundamentalmente pela vivência em comum, pelo laço social estabelecido
pelo casal (Fainzang, 1996: 94).
Mas, como romper o ciclo da dependência do álcool? Quais os mecanismos
simbólicos colocados em pratica pelos Alcoólicos Anônimos para dar conta da “doença
físico-espiritual” alcoolismo e combater seus “sintomas” físicos e morais?
A estratégia terapêutica de AA liga-se estreitamente à sua teoria da doença alcoólica.
Trata-se, portanto, de uma estratégia terapêutica própria a um meio cultural especifico, cuja
eficácia envolve o indivíduo em toda sua complexidade físico-moral. De fato, a estratégia
terapêutica desenvolvida em Alcoólicos Anônimos funda-se num programa de recuperação do
alcoolismo altamente individualizado – “o programa de Alcoólicos Anônimos é um programa
egoístico” (Na opinião do Bill, 1995: 87) - cujo foco central é o indivíduo tomado em sua
16 Vale aqui a equação proposta por Fainzang: “Soit A=l’Alcool, B= le Buveur, C= le Conjoint. Si A est en relation avec B, et B en relation avec C==A entre en relation avec C” (Fainzang, 1996: 93).
13
singularidade entendido, ao mesmo tempo, como unidade “físico-espiritual”, no interior da
qual “situa-se” a doença alcoólica, e como valor articulador de uma ordem de sentido, na qual
a experiência do alcoolismo pode ser resignificada.
Todavia, se é certo que os Alcoólicos Anônimos participam de uma tradição
biologizante largamente difundida nos Estados Unidos, na qual « l’abstinence équivaut (...) à
la décision de ne pas consommer un produit auquel on est naturellement allergique, pour
échaper aux conséquences graves d’une maladie dont on ne guéri jamais » (Fainzang : 1996,
21), é necessário avançarmos tanto na caracterização dos mecanismos simbólicos próprios à
teoria do alcoolismo de AA, bem como na compreensão da maneira pela qual a definição do
alcoolismo como uma doença « inata, incurável, progressiva e fatal » se integra no interior de
seu sistema simbólico contribuindo para a construção de uma estratégia terapêutica, a partir
da qual elabora-se a identidade do “alcoólico em recuperação”.
Com efeito, o programa de AA não é um programa apenas para parar de beber. Como
sublinham os membros de AA: “parar de beber é fácil, o difícil é manter-se sóbrio”. Nessa
perspectiva, a estratégia terapêutica de AA visa, sobretudo, a conquista da “sobriedade
serena”, i e, um “despertar espiritual”, na linguagem do AA, capaz tanto de alterar os
comportamentos do alcoólico, devolvendo-o à sobriedade como de possibilitar sua construção
como um “homem responsável”, ao mesmo tempo, pelo cuidado de si mesmo e pelo provento
de sua família pelo trabalho. Para os Alcoólicos Anônimos, o alcoólico que para de beber,
mas não altera outros comportamentos e atitudes, é considerado um “bêbado seco”, isto é, o
individuo que está em abstinência, mas, por exemplo, continua sendo “egoísta”,
“irresponsável”, “auto-centrado”, “hostil”, “ressentido” e “descompromissado” etc 17.
Para Alcoólicos Anônimos, portanto, uma doença individual exige um controle
individual. Os Alcoólicos Anônimos redefinem, então, os termos da responsabilidade do
17 Um exemplo, ao mesmo tempo, sugestivo e curioso sobre a síndrome do “bêbado seco”, foi sugerido pela professora Katerine van Wormer (2002) ao analisar a biografia e discursos do presidente americano George W Bush, notadamente sobre a guerra do Iraque e o combate ao terrorismo internacional. Como é sabido Bush é alcoólatra e deixou de beber depois de freqüentar o AA, mas com o passar do tempo deixou de participar regularmente das reuniões de recuperação. Como vimos na teoria da doença do alcoolismo de AA, os dependentes de álcool, mesmo que passem o resto da vida sem tocar em bebida, continuam sendo alcoólatras, pois o alcoolismo é uma doença incurável, a exemplo do diabetes e, por isso, o dependente deve, para o resto da vida, ao mesmo tempo, praticar o programa dos Doze passos e freqüentar as reuniões de recuperação. Assim, o alcoólico pode desenvolver o comportamento do “bêbado seco”, cujas características Wormer descreve: « Dry drunk traits consists of : exaggerated sel-importance and pomposity , grandiose behavior ; a rigid, judgmental outlook , impatience ,childish behavior , irresponsible behavior ;irrational rationalization, projetion, overreaction » (Wormer, 2002 :2). Para Wormer, o presidente americano apresenta “clearly has all these traits (...) Bush manifest all the classic patterns of the alcoholics in recovery call “the dry drunk” » (Wormer, 2002: 7). De fato, sem negligenciar outras variáveis importantes e fundamentais para se entender o cenário internacional, tais como de ordem geopolítica e econômica, a leitura de Wormer sugere um interessante aporte aos estudos sobre as relações entre a subjetividade e política.
14
doente alcoólico, pois se o individuo não é responsável pela aquisição da doença do
alcoolismo, ele o é por sua recuperação. “Ninguém tem culpa de ser alcoólico, eu não tenho culpa
de ser alcoólico, meus pais não tem culpa, ninguém tem culpa. Agora eu teria uma grande culpa de
ter conhecido Alcoólicos Anônimos e ter morrido bêbado”, afirma P, membro de Alcoólicos
Anônimos ha mais de 20 anos.
Com isso, o que se observa é a constituição de um modelo para compreensão do
alcoolismo cuja ênfase central está na necessidade de um controle individual (self-control), i
e, uma disciplina individual, conseguida através da abstinência em relação ao álcool, única
maneira capaz de manter a doença sob controle. Com efeito, além de pertencerem a uma
tradição biologizante, pode-se dizer que os Alcoólicos Anônimos participam também de um
processo de individualização, característico da sociedade americana em geral, mas que se
mostra bem revelador sob o ângulo do debate em torno do alcoolismo.
Mas, se é certo que, o programa de AA é um “programa egoístico”, tal como expresso
na literatura de AA, exigindo um autocontrole (self-control) por parte do “doente alcoólico”,
por outro lado os Alcoólicos Anônimos consideram que a recuperação do alcoolismo é uma
tarefa árdua demais para o alcoólico empreender sozinho, pois grandes são os riscos de uma
“recaída” e do “primeiro gole”, capaz de reascender a chama da dependência do álcool.
Para os Alcoólicos Anônimos, portanto, a ruptura com o circulo da dependência
alcoólica só é possível através da abstinência, da pratica do “programa de recuperação” - dos
doze passos e doze tradições – e pela participação nas reuniões de recuperação, ao lado de
outros alcoólicos que se encontram na mesma situação. De fato, é na reunião de recuperação,
partilhando suas experiências na presença de outros alcoólicos, que o membro de AA pode, ao
mesmo tempo, exercitar a mutua-ajuda, atribuindo novos significados aos eventos vividos e
(re) construir sua identidade reconhecendo-se como um “doente alcoólico em recuperação”.
Portanto, é para esse momento, no qual teoria e pratica se encontram, que devemos
lançar nosso olhar, na tentativa de compreender os mecanismos simbólicos construídos pelos
membros de Alcoólicos Anônimos para dar conta da doença alcoólica « inata, progressiva e
fatal » e de seus efeitos físicos e morais, na tentativa de alcançarem a sobriedade.
Alcoolismo, doença e identidade em Alcoólicos Anônimos.
A reunião de recuperação é o momento no qual homens e mulheres, membros de AA,
compartilham suas experiências individuais - histórias de vida do tempo alcoolismo ativo e da
recuperação -, falam também de seus conflitos, perdas e conquistas, atualizando os princípios
15
que presidem o programa de recuperação de AA. Trata-se, portanto, de um momento, no qual
a doutrina se faz ato; em que a “teoria” e a “pratica” se unem para celebrar os princípios
inscritos no programa de Alcoólicos Anônimos.
Com efeito, é no interior dessa atmosfera que a estratégia terapêutica de AA constrói
sua eficácia. As reuniões de recuperação constituem, portanto, um poderoso mecanismo para
a ritualização dos princípios da associação, possibilitando aos membros de AA construírem,
ao mesmo tempo, uma interpretação para seu mal e uma representação de si mesmos como
“doentes alcoólicos em recuperação”. De fato, é através das “praticas ritualizadas”18 nas
reuniões de recuperação, que os membros do grupo podem (re) atualizar o programa de
recuperação de AA, comunicando e legitimando sua condição, ao mesmo tempo, de “doente
alcoólico” e de “alcoólico em recuperação”.
Nas reuniões, o espaço e o tempo atuam como categorias coletivamente construídas,
delimitando uma ordem de sentido, na qual cada gesto, palavra e atitude desempenham um
papel significativo para a sua concretização. Trata-se, portanto, de uma configuração espaço-
temporal, que permite aos membros de AA reconhecerem-se como parte de uma cultura,
regida por valores próprios que orientam suas práticas em direção à manutenção da
sobriedade.
Nessa medida, pode-se dizer que as narrativas feitas durante a reunião de recuperação,
embora fundadas na experiência intransferível da dor e do sofrimento, compartilham entre si
de um código comum e específico, para expressar os dilemas e embaraços da prática social e
o confronto cotidiano entre as situações vividas e os valores próprios da vida em sociedade.
18 Ao analisar os mecanismos simbólicos e práticas que fundamentam a cultura de abstinência, Fainzang (1996) considerou as reuniões das associações de ex-bebedores não como ritual, mas como uma “prática ritualizada”: Para a autora: « Tout n’est pas du rituel (...) un rituel n’est pas n’importe quel comportement stéréotypé ou répétitif. Il se définit comme un ensemble d’actes formalisés, expressifs, porteurs d’une dimension symbolique. Il est caractérisé par une configuration spatio-temporalle, par le recours à une série d’objets, par des systèmes de comportements, des langages et des signes à fonction emblématique, dont le sens codé constitue l’un des biens communs du groupe. J’ajouterai volontiers que si ces éléments sont porteurs d’un sens spécifique, la suppression de l’un d’eux est de nature à modifier ou à supprimer le sens du rituel. En effet, il ne suffit pas qu’une parole ou un geste se trouve jouer un rôle spécifique pour constituer un rituel. Il faut que ces éléments soient à ce point porteurs de sens que leur suppression retire du sens à la cérémonie ou à l’acte accompli. Le fait qu’ils se répètent et aient une fonction ne suffit dons pas à les faire entrer dans la catégorie des rites. Il est donc bien plus exact de parler, le plus souvent, de pratiques ritualisées, que de rituel au sens strict, dans la mesure où la répétitivité des gestes et des éléments qui les composent ne suffisent pas à donner un sens spécifique et univoque à l’ensemble de la séquence. » (Fainzang, 1996: 96 – grifos meus). Embora as reuniões de recuperação de AA siga uma ordem especifica e sejam portadoras de significados como um ritual, elas parecem se enquadrar melhor na descrição que Fainzang faz das « praticas ritualizadas ». As possibilidades de alteração, previstas na programação terapêutica da instituição e a autonomia de cada grupo permitem que as reuniões sofram alterações e retematizações, de acordo com o contexto e os elementos que a compõem. De fato, como pudemos observar, a periodicidade das reuniões varia entre os grupos, a critério destes, podendo ser: semanal, somente nos dias úteis, em dias alternados, durante a semana ou diária.
16
Com efeito, a experiência do alcoolismo se constrói no interior de um campo semântico
próprio a uma ordem de sentido, dentro da qual seus conteúdos significativos são construídos,
ao mesmo tempo, em que se afirma a identidade do “doente alcoólico em recuperação”.
Com efeito, avaliando-se os conteúdos das narrativas recolhidas em nossa etnografia,
pode-se explorar a plêiade de significados que recobrem a experiência do alcoolismo para os
membros de um grupo de Alcoólicos Anônimos. De fato, os membros de AA são unânimes
em indicar um momento; uma espécie de “limiar do sofrimento” a que chegaram antes de
entrarem para a associação. Trata-se do momento descrito, metaforicamente, pelos membros
de AA como “fundo-de-poço”. Portanto, é a partir de um “déclic” (Fainzang, 1996: 54), isto
é, da tomada de consciência das “perdas” acumuladas durante o tempo do contato com a
bebida alcoólica, que o membro de AA se da conta que está “dominado pelo álcool”; de que é
“incapaz de parar de beber”, sendo, portanto, um “dependente da bebida alcoólica”.
Essa situação limite e derradeira é representada pelos membros de Alcoólicos
Anônimos sob a forma de múltiplas perdas : « Quando bebia perdia tudo e deixava de lado a
família, os amigos, o trabalho » ; « Quando bebia eu não via meus filhos, eu não me relacionava com
minha mulher. Perdia tudo. Só queria a bebida » e do sofrimento que daí decorre.
Com efeito, a metáfora “fundo-de-poço” é central no campo semântico de Alcoólicos
Anônimos, pois denota a queda do indivíduo, sua decadência física e moral e a situação de
liminaridade social em que se encontra, permitindo ao alcoólico uma síntese de seu estado de
dependência, de que “perdeu o controle sobre o álcool”, possibilitando, ao mesmo tempo, a
expressão de suas aflições e a elaboração de um sentido para experiência do alcoolismo.
Nesse instante, como dizem os membros de AA, o bebedor percebe que é “impotente diante
do álcool” e de que é necessário procurar ajuda. A noção de “fundo-de-poço” marca, então, a
passagem do bebedor para um novo universo social: o grupo de AA, portador de valores que
possibilitam ao ex-bebedor construir a identidade de “doente alcoólico em recuperação” e, ao
mesmo tempo, romper com o “tempo do alcoolismo ativo” e a reorientar suas ações em vista
da conquista da sobriedade.
De fato, a entrada no grupo de AA introduz o ex-bebedor numa ordem de significados
que permitem a (re) construção de sua identidade. Os membros de AA reconhecem-se agora
como “doentes alcoólicos” em oposição à imagem do “bêbedo” e do “cachaceiro” dos tempos
do alcoolismo ativo. Como conseqüência o alcoólico adquire um status de doente, com uma
positividade não encontrada na representação do “bêbado” e do “cachaceiro”: “Meu nome C.
um ex-bêbado e hoje um doente alcoólico em recuperação”. A oposição bêbado/doente alcoólico
assinala a passagem de uma posição estritamente moral e estigmatizante para uma concepção
17
da “doença” que não se confunde com o modelo biomédico, pois é (re) significada no interior
de AA, assumindo uma dimensão propriamente “físico-moral”.
Com isso, através da troca de experiências no interior do grupo de AA, o alcoólico
descobre-se a si mesmo, num universo de iguais. 19 Como explica Marcel Drulhe (1988) em
seu estudo sobre mulheres alcoólicas e os grupos de ex-bebedores: “chacune se reconnaît dans
la biographie des autres et y puise la découverte d’un élément partiel mais fondamental de son
identité: le stigmate maintenant caché de l’alcoolisme” (Drulhe, 1988: 322).
Com efeito, aquele que era estigmatizado pelo uso abusivo do álcool e vivia uma
decadência física e moral, que o conduziu a um isolamento e a um estado de marginalidade e
liminaridade social, descobre-se agora igual a muitos outros com historias e trajetórias
semelhantes à sua. No interior do grupo, o alcoólico pode expor suas dores e narrar sua
experiência sem ser estigmatizado e discriminado. Com isso, o alcoólico descobre-se como
fazendo parte de um “grupo de pares”, que partilham de uma mesma ordem de significações,
o que reforça, ao mesmo tempo, sua identificação como membro de AA e portador da doença
“crônica e fatal” do alcoolismo.
A construção da identidade do “doente alcoólico em recuperação” está, portanto, no
coração dos mecanismos simbólicos construídos por AA para dar conta da “doença
alcoólica”, mantendo uma estreita ligação com o principio do anonimato. Como indica a 12ª
tradição de Alcoólicos Anônimos, os membros de AA devem permanecer anônimos, evitando
a exposição pública.20
Por que, segundo AA, os alcoólicos devem permanecer anônimos? De fato, a questão
do anonimato está integrada à teoria da doença em Alcoólicos Anônimos na qual, ao contrário
19 A associação dos Narcóticos Anônimos, que segue os mesmos princípios desenvolvidos pelos Alcoólicos Anônimos, vê também nessa relação especular entre os adictos em recuperação uma das chaves para o êxito de NA e para a construção da identidade do adicto: “Começamos a tratar a nossa adicção parando de usar. Muitos de nos procuraram respostas, mas fracassaram em encontrar qualquer solução pratica, até que encontramos uns aos outros. Quando nos identificamos como adictos, a ajuda torna-se possível. Podemos ver um pouco de nós mesmos em cada adicto e ver um pouco deles em nós. Nosso futuro parecia desesperador, até que encontramos adictos limpos, dispostos a partilhar conosco. A negação da nossa adicção manteve-nos doentes, mas nossa honesta admissão da adicção permitiu-nos parar de usar. As pessoas de Narcóticos Anônimos disseram-nos que eram adictos em recuperação, que tinham aprendido a viver sem drogas. Se eles tinham conseguido, nos também conseguiríamos (Narcóticos Anônimos, 1993: 8 – grifos meus). 20 De fato, quando membros de Alcoólicos Anônimos participam de entrevistas na mídia televisiva é comum ver apenas suas silhuetas. Todavia, o anonimato é um principio objeto de controvérsias entre as associações de ex-bebedores. Exemplo disso é a associação de ex-alcoólicos francesa Vie Libre, que rejeita o principio do anonimato, alegando que o mesmo é “sinônimo de uma concepção do alcoolismo como vicio”: “on n’a pas à se cacher d’une maladie. On ne doit pas avoir honte d’être malade. Les Alcooliques Anonymes, eux, veulent garder l’anonymat. Quand ils passent à la télévision, c’est en ombre chinoise, pour qu’on se puisse pas les reconnaître. Pour quoi? Parce qu’ils ont honte. Mais quand on a honte, c’est qu’on pense que l’alcoolisme est un vice. Ce n’est pas un vice, c’est une maladie” (apud, Fainzang, 1996: 103).
18
da associação de ex-bebedores francesa Vie libre, o alcoolismo é concebido como uma
“doença inata, incurável, progressiva e fatal”, “situada” na esfera “físico-espiritual” do
indivíduo. Em outras palavras, o alcoolismo é representado como algo que o individuo traz
em si mesmo; que é parte dele, mas que pode ser controlado, desde que o individuo aceite a
existência da doença e a impossibilidade de enfrenta-la sozinho. Por isso é necessário a ajuda
de um Poder Superior, tal como expresso no segundo passo do programa de recuperação.
Como sublinha Fainzang: “l’anonymat est donc pour les AA le signe de l’abnégation de la
personne, élément fondamental d’un programme spirituel orienté vers la reconnaissance de
son impuissance et de son besoin d’être aidé par une puissance plus grande” (Fainzang, 1996:
104).
O anonimato tem, portanto, um importante papel simbólico no sistema de AA, pois
uma vez reconhecida a impotência do eu em dar conta da doença do alcoolismo, o anonimato
é o sinal da rendição a um Poder Superior que conduz também a suavização do egoísmo.
Como sublinha Bateson (1977), retomando os termos do co-fundador de AA Bill Wilson, o
anonimato é “le plus grande symbole d’abnégation que nous connaissons”. Neste sentido,
mais do que proteger o alcoólico da vergonha ou da denuncia, o anonimato é um dispositivo
para lutar contra a “mise en vedette” pessoal, i e, uma forma de combater o cultivo da
personalidade que é, segundo Bateson, “un grand danger spirituel pour le membre en
question, car il ne peut pas se permettre un tel egoïsme”, sem que coloque em risco sua
recuperação 21 (Bateson, 1977: 292,293).
Nessa medida, o principio do anonimato impede as diferenciações no interior da
associação. De fato, não há diferenças de status entre os membros no interior do grupo de AA.
Com efeito, tanto o membro novato recém chegado ao grupo como o membro mais antigo, se
identificam como “doentes alcoólicos em recuperação”, que se abstiveram “só por hoje” do
primeiro gole. Como sublinham Lasselin e Fontan (1979) no interior do grupo, o alcoólico
“n’y trouve pas l’autre mais le “tout comme lui”, qui est différent sans pourtant être étranger
(...) Faute de se désaltérer, il se désaltérise dans son alter-ego, si besoin est, au prix de
l’anonymat dépatronymisant. Là, chacun retrouve ou plutôt y trouve ce qu’il a depuis toujours
21 Como sublinha Bateson os riscos desse cultivo do egoísmo estão sempre presentes na trajetória da recuperação: “Grâce à la reputation et au succès grandissants de l’organisation, les membres de “AA” peuvent être tentes de se servir de leur appartenance à cette organisation comme d’un atout dans les relations publiques, em politique, dans le domaine de l’education et dans bien d’autres domaines encore. Bill W, le cofondateur de l’organisation, s’est laissé lui-même prendre, au tout début, par cette tentation (...) en outre, pour l’organisation elle-même dans son ensemble, ce serait fatal que d’être impliquée dans la politique de controverses religieuses et de réformes sociales. (Bateson, 1977: 292,293).
19
raté, une approximation d’identité. Parmi des alcooliques, il existe; il est alcoolique et
alcoolique toujours” (Lasselin & Fontain, 1979: 86).
Como conseqüência, o alcoólico pode construir sua identidade, acrescentando à sua
identidade pessoal uma identidade coletiva fornecida pela irmandade. O que pode ser notado
na própria maneira como os membros de AA se identificam durante as reuniões de
recuperação: « Meu nome é P., um alcoólico em recuperação » ou « Meu nome é I., um doente
alcoólico em recuperação ». O processo de nomeação identitária caracteriza-se tanto em afirmar
o pertencimento ao grupo como a condição de doente alcoólico em recuperação.
O alcoólico pode, então, construir sua identidade afirmando sua diferença em relação
ao restante da sociedade formada por não alcoólicos. Durante uma conversa com P, secretario
do grupo Sapopemba de AA, ele me afirmou: “Sabe qual a diferença que existe entre nós dois; é
que Vc é capaz de beber uma cerveja e esquecer que bebeu; eu não sou capaz de esquecer; eu tenho
que reconhecer que sou doente e que eu sou diferente de Você”. A identificação entre os membros
do grupo de AA, proporcionada pelo pertencimento a uma nova ordem de sentido, permite a
elaboração da identidade de doente alcoólico, que passa agora a compor o referencial central
de uma verdadeira “identidade existencial” (Mäkelä, 1996: 99).
Mas, se é certo que a construção da identidade do “doente alcoólico em recuperação” e
o anonimato estão no centro da estratégia terapêutica de AA, como forma de realizar a adesão
dos indivíduos a seu programa de recuperação, é preciso ainda indagar como a representação
de si mesmo como “doente alcoólico” se relaciona com a construção de uma representação
individualizada da noção de pessoa no interior da associação.
Como vimos anteriormente, a partir dos dados de nossa pesquisa etnográfica, junto ao
grupo Sapopemba de AA, a “doença do alcoolismo” é (re) significada no interior de
Alcoólicos Anônimos, ultrapassando os limites do modelo biomédico, envolvendo o
indivíduo em toda sua complexidade físico-moral: “O alcoolismo me afetou principalmente na
família e no trabalho. Primeiro com a família porque eu passei a ser aquele homem
descompromissado; aquele homem que não se pode contar. Às vezes eu saia para fazer alguma coisa,
mas quando tomava aquela primeira bebida, a segunda, a terceira, não tinha jeito. Isso me criou um
problema muito sério, pois a própria família não acreditava mais em mim e eu também não. O
alcoolismo me atrapalhava. A bebida passou a ser dona da minha vontade. Eu não tinha mais
vontade própria. Embora eu não quisesse, mas ela me levava a beber. Aí eu perdia completamente a
noção daquilo que eu queria fazer. Na fabrica foi a mesma coisa, eu tinha minhas atribuições junto
aos demais companheiros, mas de acordo com minha bebedeira, ninguém podia contar comigo. Eu
passei a ser um homem inútil na equipe. E aí eu sinto que eu mesmo perdi o domínio, perdi a
credibilidade, eu perdi o interesse, eu perdi a força de vontade, eu perdi a força física”.
20
Com efeito, para os membros do grupo Sapopemba de AA, o alcoolismo é
representado, ao mesmo tempo, como a falência da “força física” e da “responsabilidade” do
alcoólico, constrangendo a vontade do individuo (« A bebida passou a ser dona da minha
vontade. Eu não tinha mais vontade própria »), impedindo-o de assumir os papéis sociais de
“pai”, “esposo” e “trabalhador”. O alcoólico é, sobretudo, um dependente do álcool, não
podendo ser responsabilizado por sua doença.
De fato, grande parte da tematização do alcoolismo entre os membros de AA passa
pela questão da responsabilidade. A relação entre o uso de bebidas alcoólicas e a questão da
responsabilidade já havia sido levantada por Duarte (1986), quando de sua análise do
“nervoso” nas classes trabalhadoras urbanas e sua relação com o uso de bebidas alcoólicas,
para apontar o papel ambíguo de que pode se revestir o uso do álcool para as classes
trabalhadoras, que pode ser tanto um “estimulante” para trabalhos mais pesados quanto estar
associado ao problema da “falência da responsabilidade” no cumprimento do dever (cf.
Duarte, 1986: 259).
Nessa perspectiva, a partir de nossa etnografia, nota-se uma dupla conexão: a do efeito
físico representado pela deterioração e o enfraquecimento do organismo (« eu perdi a força
física ») e a do efeito moral com que esse enfraquecimento repercute sobre a totalidade da
pessoa, fazendo brotar a irresponsabilidade no território por excelência da responsabilidade,
notadamente a família e o trabalho («eu passei a ser aquele homem descompromissado »; « a
própria família não acreditava mais em mim »; « eu perdi a credibilidade »;« eu passei a ser um
homem inútil na equipe » ; « ninguém podia contar comigo »). De fato, para os membros do grupo
Sapopemba de AA, perder a força física significa, sobretudo, a perda da qualidade moral de
prover-se a si mesmo e a família pelo trabalho.22 Com isso, o uso da bebida compromete, ao
mesmo tempo, a vida física e moral do alcoólico representada, particularmente, pela perda de
suas qualidades morais e de suas responsabilidades, notadamente, como “pai”, “esposo” e
“trabalhador”.
Nessa perspectiva, a estratégia terapêutica de AA não visa apenas a abstinência de
bebidas alcoólicas, mas visa, sobretudo, a manutenção da sobriedade do alcoólico, através da
integração do doente numa nova ordem de sentido, que possibilita uma “unidade de
experiência”: « foi depois que eu descobri uma sala de AA e que o alcoolismo é uma doença que eu
22 O grupo Sapopemba de AA é composto, fundamentalmente, por aposentados, desempregados e trabalhadores (marcineiros, motoristas de ônibus, sapateiros, taxistas, metalúrgicos etc) que, ao mesmo tempo, dependem do próprio trabalho para sua reprodução social e vêem na identidade de trabalhador uma autoidentificação positiva.
21
passei a dar um sentido a minha vida ». Com isso, o ex-bebedor pode, ao mesmo tempo, atribuir
novos significados aos eventos vividos e modular a construção de sua identidade, i e,
reconhecer-se como um individuo responsável tanto por sua recuperação como pelo provento
de sua família e de seu trabalho.
Como conseqüência, o sistema de Alcoólicos Anônimos permite ao alcoólico (re)
significar os espaços de sociabilidade, no interior do qual constrói sua experiência entre, de
um lado, o “bar”, o “boteco”; o “espaço da ativa”, no qual as relações eram mediadas pelo uso
de bebidas alcoólicas e, de outro, tanto o “grupo de AA”, o “espaço da recuperação” como a
“casa” e o “local de trabalho”, espaço das relações familiares e profissionais, respectivamente,
que são agora valorizados pelo alcoólico em recuperação. Essa resignificação dos espaços de
sociabilidade fica clara na partilha em que I. ressalta a importância de Alcoólicos Anônimos
na sua recuperação e na mudança das relações com sua e mulher e seus filhos: “antes de
Alcoólicos Anônimos eu só pensava no bar. Quando chegava do trabalho eu não parava cinco
minutos em casa e já ia para o bar. Muitas vezes eu chegava em casa bêbado e nem tomava banho;
dormia de qualquer jeito. Quando acordava era aquela ressaca (...) Hoje eu chego em casa beijo
meus filhos, converso com eles, com minha mulher. Agora, por exemplo, eu estou pagando a
formatura de minha filha. Hoje, sóbrio, eu consigo conversar com meus filhos. Tudo isso eu devo ao
Poder Superior e a Alcoólicos Anônimos.”
A estratégia terapêutica dos Alcoólicos Anônimos possibilita a recuperação do
alcoólico, através do resgate de sua responsabilidade, ao mesmo tempo, física e moral. Com
efeito, ao contrário da deterioração do organismo provocada pelo álcool, assiste-se agora uma
valorização da saúde e do bem-estar, expresso “no cuidado em fazer a barba”, “cortar os
cabelos”, “tomar banho” e no “vestir-se”.
O mesmo ocorre também ocorre em relação âmbito moral, onde ao invés do
“orgulho”, o alcoólico cultiva “humildade”; ao invés do “egoísmo”, ele cultiva o “altruísmo”;
ao invés da “hostilidade”, ele cultiva a “amizade” e ao invés do “ressentimento”, o alcoólico
pratica a “ajuda” ao outro alcoólico que ainda sofre.
O alcoólico em recuperação (re) liga, portanto, os laços que foram rompidos no tempo
do alcoolismo ativo. A estratégia terapêutica de AA possibilita que o alcoólico reconstrua os
vínculos familiares e profissionais, pelo cultivo de sua responsabilidade. De fato, para o
membro do grupo Sapopemba de AA, a responsabilidade não é uma categoria “ético-
abstrata”, mas é a “responsabilidade-obrigação” para consigo mesmo e pelos atos cometidos
nos tempos do alcoolismo ativo, sobretudo, se esses atos provocaram danos a terceiros, que
deverão, agora, ser reparados. À representação do “homem descompromissado”, “dependente
22
do álcool” e que tem sua vontade dominada pela bebida, contrapõe-se a representação do
“homem responsável”, membro de Alcoólicos Anônimos23, que se responsabiliza pelo
cuidado de si mesmo e que cumpre seus deveres de “pai”, “esposo” e “trabalhador”.
Mas, como ensina Mauss (1974), não é a questão responsabilidade uma das marcas
fundamentais da teoria da pessoa moderna? De fato, valores tais como a “escolha”,
“liberdade”, “responsabilidade”, “vontade” não foram inventados pelos Alcoólicos Anônimos,
mas compõem o campo semântico próprio à constituição do indivíduo moderno. Não
podemos nos esquecer que os Alcoólicos Anônimos surgem nos Estados Unidos, estando
comprometidos, na sua origem, com o caldo de cultura da sociedade que os produziram.
Com efeito, se é certo, como afirma o sociólogo americano Levine (1978), que a
estratégia terapêutica de AA implica num processo de individualização, próprio à visão de
mundo (weltanschauung) da classe média americana do inicio do século XX, que se apóia na
necessidade do autocontrole (self-control) como forma de gerir da “doença do alcoolismo” 24,
a pesquisa etnográfica e a analise dos mecanismos simbólicos colocados em pratica pelos
Alcoólicos Anônimos para dar conta do alcoolismo e do álcool revelam que a construção de
um ethos individualista no interior de AA é parte também de um processo mais amplo de
construção social e simbólica da identidade.25
23 Na declaração do 30º aniversario de Alcoólicos Anônimos feita durante a Convenção Internacional de 1965, encontra-se a afirmação da responsabilidade do alcoólico como membro de AA: « Quando qualquer um, seja onde for, estender a mão pedindo ajuda, quero que a mão de AA esteja sempre ali. E por isso : Eu sou responsável » (Na opinião do Bill: 332). 24 Seguindo a linha dos trabalhos de Michel Foucault sobre a história da loucura, Levine (1978) sublinha que a “descoberta” da noção de dependência alcoólica pelos Alcoólicos Anônimos corresponde às exigências de individualização próprias à visão de mundo (weltanschauung) da classe média americana da passagem do século XIX ao século XX. Como sublinha Levine: « In the 19th century the ideological and structural features of life shifted the locus of social control to the individual (...) Because the United States was an especially or uniquelly middle-class nation, the redefiniton of evil or deviance as disease of the will was carried even further here (...) The invention of addiction, or the discovery of the phenomenon of addiction, at the end of the 18th and beinning of the 19th century, can be best understood not as an independent medical or scientific discovery, but as part of a transformation in social thought grounded in fundamental changes in social life – in the structure of society » (Levine, 1978 : 165-166). 25 È fundamental ouvirmos as palavras de Gilberto Velho (1981), em suas analises sobre a construção das identidades nas camadas médias brasileiras. Para Velho, é necessário “distinguir a ideologia individualista que, segundo Dumont, seria produtora e expressão da modernidade em suas diferentes manifestações e contextos. Mais ainda cumpre perceber diferentes tipos de ethos individualistas que podem ter pouco ou nada a ver com essa vertente ideológica do pensamento ocidental (...) No entanto, parece-me importante estudar situações especificas com grupos particulares para delimitar e distinguir os diferentes níveis em que a ideologia individualista pode atuar. Cabe distinguir o lugar do individuo na construção social da identidade de qualquer grupo ou sociedade e o desenvolvimento de uma ideologia individualista que, em principio, estaria vinculada a tipos particulares de experiência e história” (Velho, 1981: 44-45).
23
A estratégia terapêutica de Alcoólicos Anônimos se realiza no interior de um sistema
simbólico regido por coordenadas físicas e morais, no interior do qual o alcoólico pode dar
conta da « dependência » do álcool, reconhecendo-se como um “homem responsável”. A
categoria responsabilidade tem, portanto, um valor heurístico fundamental no sistema dos
Alcoólicos Anônimos, pois se liga estreitamente à teoria da doença do AA26, obrigando o
alcoólico a se engajar, ao mesmo tempo, em sua própria recuperação e no restauro das
relações perdidas no tempo do alcoolismo ativo, notadamente na família e no trabalho.
Neste sentido, a construção da identidade do “doente alcoólico em recuperação” se
liga estreitamente à teoria da doença de AA. Ou seja, uma “doença inata, incurável,
progressiva e fatal”, que constrange a vontade do alcoólico, tornando-o dependente do álcool
e que exige para sua recuperação que o alcoólico reconheça sua “impotência diante do álcool”
e se “submeta ao Poder Superior”. Com efeito, se é certo que há em AA um apelo à
“espiritualidade” e à “religiosidade”, este não pode ser dissociado das representações sobre o
alcoolismo, que desemboca numa teoria da doença alcoólica e das possibilidades de
tratamento.
Nessa medida, no âmbito da estratégia terapêutica de AA, o par alcoolismo/doença
remete à relação indivíduo/Poder Superior, mediatizada pelo grupo.27 Nas narrativas dos
membros do grupo Sapopemba é possível atentar para essa representação do papel do Poder
Superior e do grupo de AA nas suas vidas: “Quando cheguei em AA estava no fundo do poço e
graças ao Poder Superior e a Vocês hoje eu tenho tudo. Minha preocupação hoje é com minha
família, meu trabalho e com AA”.
Na estratégia terapêutica de AA, portanto, os ex-bebedores são parte integrante de um
sistema que os ultrapassa; uma totalidade fundada no valor da abstinência e no interior da qual
eles podem estabelecer uma relação de cooperação com seus pares (Drulhe, 1998: 323,324).
Com isso afirma-se, como sublinha Bateson, uma relação sistêmica entre a parte e o todo
(Bateson, 1977: 293). O grupo de AA opera, então, como uma matriz englobante e holística –
26 Como sublinha Bill Wilson - co-fundador de AA: “Algumas pessoas se opõem firmemente à posição de AA de que o alcoolismo é uma doença. Sentem que esse conceito tira dos alcoólicos a responsabilidade moral. Como qualquer AA sabe, isso está longe de ser verdade. Não utilizamos o conceito de doença para eximir nossos membros da responsabilidade. Pelo contrário, usamos o fato de que se trata de uma doença fatal para impor a mais severa obrigação moral ao sofredor, a obrigação de usar os Doze passos de AA para se recuperar” (Na opinião do Bill, 32). 27 Uma das representações possíveis é a que sugere Bateson (1977), na qual existe uma relação de homologia entre a noção de Poder Superior e o grupo de AA: “L’ensemble du système [des Alcooliques Anonymes] est une religion durkeheimienne, au sens où la relation entre l’homme et sa communauté est parallèle à la relation entre l’homme et Dieu” (Bateson, 1977: 292). Para Bateson, a noção mesma de um “Poder Superior tal como O concebemos” deve ser compreendida como a síntese mesma do sistema de Alcoólicos Anônimos.
24
para usar a expressão de Dumont –, no interior da qual é possível emergir uma representação
individualizada da noção de pessoa.
Nessa medida, o ethos individualista emerge no interior de uma ordem holística; numa
relação metonímica entre a parte (o alcoólico em recuperação) e o todo (Poder Superior/
Grupo de AA). Em outras palavras: é no interior de um sistema simbólico construído para dar
conta da “doença físico-espiritual” do alcoolismo, que os Alcoólicos Anônimos constroem
uma representação individualizada da noção de pessoa, de modo que o membro de AA pode,
ao mesmo tempo, reconhecer-se como um “doente alcoólico em recuperação” e atribuir novos
significados à sua existência. O alcoólico pode, então, reconhecer-se como “individuo
responsável” por sua recuperação e pela reconstrução das relações destruídas no tempo do
alcoolismo ativo.
Neste sentido, a construção do ethos individualista em AA se faz a partir de um
englobamento do físico pelo moral, no interior do qual a categoria responsabilidade
desempenha um papel seminal, operando como valor ético-moral, que permite fazer a
mediação entre o plano físico e moral da “doença alcoólica”, subordinando-o tanto a um plano
“religioso” – o Poder Superior -, quanto a um plano propriamente moral - Grupo de AA. Com
isso a estratégia terapêutica de AA pode permitir a emergência da pessoa moral, i e, o
“indivíduo responsável”, que deve, ao mesmo tempo, se submeter ao Poder Superior/Grupo
de AA e resgatar os laços na “família” e no “trabalho”.
Os Alcoólicos Anônimos visam, portanto, a “conversão” de seus membros. Trata-se
de tornar o alcoólico um Outro que, com a suavização de seu “egoísmo”, sua “hostilidade” e
seu “ressentimento”, pode (re) ligar os fios que foram rompidos com a totalidade que um dia
fizeram parte. Ao invés de buscarem a emancipação do sujeito, os Alcoólicos Anônimos
buscam recuperar seu lugar na totalidade social – expressa nas reuniões de recuperação do
grupo de AA, na família, no trabalho e nas relações afetivas, tornadas agora o lugar da
interação ideal. Trata-se, portanto, de aceitar a condição de “portador da doença inata,
incurável e fatal do alcoolismo”, tal como expresso na Oração da Serenidade e agir como um
“individuo responsável”, i e, no sentido de recuperar o lugar perdido na totalidade social nos
tempos do alcoolismo ativo. Durante uma reunião de recuperação, a fala de I. expressa bem
esse sentimento: “Outro dia conversando com minha filha ela me disse: ‘pai Vc sabe onde é seu
lugar; seu lugar é no grupo de AA’. Era isso mesmo; eu sei que meu lugar é aqui na sala de AA, com
meus companheiros”. A mesma representação pode ser também encontrada na partilha feita por
M, quando narra sua volta ao AA após um período de “recaída”: “Voltei mesmo no fundo do
25
poço, mas eu acreditei companheiros, eu acreditei que era aqui o meu lugar se eu quisesse ser gente
novamente. E hoje eu tô tão feliz, tão feliz companheiros de permanecer com vocês.”
Ordem simbólica fundada tanto no valor da abstinência como na mutua ajuda entre
seus membros, os Alcoólicos Anônimos constroem uma estratégia de recuperação, que
possibilita a seus membros participarem de uma efetiva cultura de recuperação, no interior da
qual cuidam de si mesmos, ao mesmo tempo, que (re) significam suas experiências e reforçam
seus laços, com o objetivo de alcançarem a sobriedade serena.
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