57 - emprego do tempo
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Cornelius a Lapide, sj (1597-1637)+
EMPREGO DO TEMPO
Tradução por Uyrajá Lucas Mota Diniz
O tempo é pouquíssima coisa considerado em si mesmo
O tempo é uma sombra, um vapor, um vaidade, um nada... O tempo é uma
cena de teatro na qual se contam as fábulas desta vida: os homens são os atores:
entram e saem; e o lugar do teatro é a Terra.
Uma geração passa, e sucede-lhe outra, diz o Eclesiástico: Generatio
praeterit, et generatio advenit (Eccli. I, 4).
Há duas portas para esta encenação: a porta do nascimento e a porta da
morte. Cada ator desempenha um papel.
Depois que um rei representa deixa muito prontamente suas vestes de
púrpura, e o mesmo acontece aos demais. Esta comédia acaba logo em seguida.
Deus quer que não termine senão em horrível tragédia.
Ó palácios, propriedades de recreação, cidades, casas, terra, ouro e prata,
dizei-me: quantos donos tivestes? Quantos outros tereis? Dizei-me: onde está
Salomão, tão sábio? Sansão, tão forte? Absalão, tão formoso? Cícero, tão
eloquente? Aristóteles, tão entendido? Alexandre, tão grande conquistador? E César
Augusto, monarca tão poderoso? Onde estão hoje todos aqueles amigos, aquela
abundância de coisas, aqueles homens considerados como oráculos, aqueles
exércitos fortes e numerosos, aquela multidão de nobres, de cavaleiros, de príncipes
e de homens ilustres? Em um abrir e fechar de olhos, tudo desapareceu! Ó, pasto de
vermes! Ó, gota de orvalho! Ó, vaidade! Ó, nada!
O que é a nossa vida? Um vapor que desvanece, diz o Apóstolo São Tiago:
Quae enim est vita nostra? Vapor est ad modicum parens (Iac. IV, 15). O tempo é
um vapor, um sopro, uma brisa ligeira.
O tempo é o joguete da fortuna, o despojo do homem, a imagem da
inconstância, o exemplo de debilidade, a mansão da inveja e dos arrependimentos.
O tempo representa-se também pela bolha de sabão que as crianças fazem
quando brincam, e que desaparece de repente. Nenhuma solidez, nenhuma
consistência, perpétuo movimento. O tempo é móvel como tudo o que contém. É
como uma ficção, um sonho que passa e desperta na eternidade. O tempo é
primeiramente uma tumba; depois, uma flor; e, de novo, outra tumba.
O homem, diz o Salmista, passa como uma sombra; e, por isso, cansa-se e
agita-se em vão, amontoa tesouros, e não sabe para quem chega tudo aquilo: In
imagine pertransit homo, sed et frustra conturbat. Thesaurizat, et ignorat cui
congregabit ea (Psalm. XXXVIII, 7).
O tempo é como uma roda, como a folhagem seca que o vento arrasta: Ut
rotam, et sicut stipulam ante faciem venti (Psalm. LXXXII, 14).
É como fogo que abrasa uma selva, qual chama que devora os montes: Sicut
ignis qui comburit sylvam, et sicut flamma comburens montes (Psalm. LXXXII,
15).
Ó, quanta razão tem o Eclesiastes ao exclamar: Vaidade das vaidades, tudo
não é mais que vaidade! Vanitas vanitatum, et omnia vanitas (Eccle. I, 2).
Tudo é sombra no tempo, tudo é sonho, diz São João Crisóstomo: Omnia
umbra, somnia (Epist. V ad Theodor. lapsum).
O tempo, diz São Gregório Nazianzeno, está pleno de misérias e sofrimentos;
as riquezas são enganos; todas as grandezas não são mais que sonhos; veem-se em
todas as partes somente sacrifícios de cada momento, pobreza, fome, queixas,
lágrimas, pesares e dores. A juventude não é nada, e a velhice está plena de
achaques. As palavras são levadas pelo vento, a glória não é mais que fumaça; a
nobreza, um sangue envelhecido; a força é comum com o javali; a sociedade é tão
somente agitação; e o matrimônio é uma cadeia e uma escravidão.
O tempo é uma mãe rodeada de numerosa família, a saber: os cuidados, as
perdas, as enfermidades, os vícios, a debilidade, o trabalho, os suores. Tudo é
penoso no tempo, o temor, os risos e as lágrimas; tudo é bagatela, sombra, vento,
vapor, insônia, sonho, ondas, coisas transitórias, vestígios, pó que cega ao universo,
levanta um torvelinho e desaparece (Orat. de Cura Pauper.)
O tempo é uma nuvem sinistra, carregada de tempestades, de raios e trovões;
é uma nuvem que toma todas as formas e desaparece.
A Sagrada Escritura compara o tempo:
1º a uma balança que sobe e baixa;
2º a uma gota de orvalho ao amanhecer;
3º à fumaça;
4º à sombra;
5º a uma flor que logo murcha;
6º a um grão de areia;
7º ao nada;
8º a uma teia de aranha;
9º a um fantasma
10º à vaidade (Psalm. XXXVIII, 7);
11º ao vento;
12º a uma rápida torrente que logo seca;
13º a um rápido mensageiro;
14º a um navio que fende as ondas;
15º a um pássaro que voa no ar;
16º a uma flecha lançada (Sap. V, 9-12).
O tempo não é nada; não tem forma nem consistência; toda a sua essência
consiste em passar, isto é, que toda sua essência consiste em perecer
constantemente.
Qual é a vida do tempo? É um sono parecido à morte; a infância é a vida de
um ser privado de razão. Quanto tempo quisera eu ter apagado de minha
adolescência? E quando terei mais anos; quanto, todavia? Com que poderei, pois,
contar? Porque tudo isso não é vida, diz Bossuet. Contarei o tempo em que tive
algum contentamento, porém, onde encontrá-lo? Se desconto o sono, as
enfermidades, as inquietudes etc. de minha vida, o que sobrará? Porém, aquelas
alegrias, eu já as tive alguma vez todas juntas? Eu porventura já as tive de outra
maneira a não ser em pequenas porções? E, ademais, eu as tive alguma vez sem
inquietude? E, em não as havendo disfrutado de uma só vez, já as disfrutei ao
menos uma depois da outra? Mas, o que resta dos prazeres lícitos? Uma recordação
inútil. E dos prazeres ilícitos? Um sentimento, uma obrigação à penitência ou ao
Inferno...
Depois disto, poderemos ainda estar enamorados do tempo? Em vão, diz
Santo Agostinho, quereis manifestar-vos como seus amantes. Este dono infiel vos
grita diariamente: Sou feio e desagradável; e vós, contudo, o quereis com ardor. Ele
vos grita: Sou rude e cruel, e vós o abraçais com ternura; vós o detestais porque que
o perdeis, amando-o somente a ele. Ele vos grita: Sou ligeiro e volátil; e somente a
ele vos apegais. O tempo é sincero, confessando-vos francamente que não está
muito convosco, e que prontamente ele virá a vos faltar como um falso amigo em
meio de vossos empreendimentos; e, mesmo assim, vós confiais nele, como se fosse
muito seguro e fiel àqueles que nele confiam. Mortais, desenganai-vos, já que não
deixais de vos atormentar, e tantas coisas fazeis para morrer um pouco mais tarde.
Dedicai-vos ao bem, diz o mesmo Santo Doutor, em fazer algo para não morrer
nunca: Qui tanta agis, ut Paulo serius moriaris, age aliquid ut numquam moriaris
(Serm.).
Descontando a vida da infância e do sono, em que não temos conhecimento
de nós mesmos; as enfermidades, em que não vivemos; e todo o tempo perdido ou
mal empregado, sobra algo, sobretudo em comparação com a eternidade? Pois, se o
tempo comparado com o próprio tempo reduz-se a nada, até se comparado com a
vida dos homens antes do Dilúvio, o que acontecerá se compararmos esta vida com
a eternidade, na qual não há nem medida nem término? Contabilizemos, pois, como
nada tudo aquilo que seja finito, posto que, por fim, ainda que se multiplicassem os
anos de nossa vida mais além de todos os números conhecidos, visivelmente nada
seria o tempo para nós ao chegar o término fatal. Assim, pois, já que o tempo é
nada, é preciso que nos desprendamos dele unindo-nos tão somente a Deus que é
eterno.
Rapidez e brevidade do tempo
Da tumba vou à tumba, diz São Gregório Nazianzeno: A tumulo tumulum
peto (Orat. De Cura Paup.), isto é, que do seio de minha mãe, que é uma verdadeira
tumba, avanço para a morte.
O tempo, diz Santo Agostinho, não passa de uma corrida para a morte.
Morremos a cada dia, porque a cada dia perdemos uma parte de nossa vida;
descendo decrescemos, e partimos com a morte no dia que cremos desfrutar por
inteiro. Assim, ao entrar na vida, já começamos a caminhar para a morte e a sair da
vida: Omnino nihil aliud tempus quam cursus ad mortem. Quotidie morimur;
quotidie enim demitur aliqua pars vitae, et tunc quoque cum crescimus, vita
descrescit; hunc, quem agimus, diem, cum morte dividimos. Ergo cum primum
vitam intramus, in mortem statim tendere, et a vita egredi incipimus (Lib. XIII. De
Civit. Dei, c. X).
Assim, portanto, é preciso viver para a eternidade.
Em um instante tudo passa, diz Santo Ambrósio; e, muitas vezes, a glória do
século desapareceu antes mesmo de ter chegado. Que pode haver de estável em um
século se os mesmos séculos deixam de ser? In momento cuncta praeterunt. Et
saepe honor seculi abiit antequam venerit. Quid enim seculi potest esse diuturnum,
cum ipsa diuturna non sint secula (Lib. I, Offis.).
Lembremo-nos de que o tempo é curto, e de que o juízo de Deus está a nossa
porta, diz São João Crisóstomo: Recordemur quod tempus breve est, et judicium
proe foribus est (Homil. ad pop.).
Nossa vida, diz São Gregório, parece-se a um navegante que ora está de pé,
ora sentado, ora andando impulsionado pelos ventos. Tal é a nossa vida; ora
velemos, ora durmamos, seja guardando silêncio, seja falando, ou passeando;
queiramos ou não, cada dia e cada instante, aproximamo-nos ao término de nossa
viagem (Lib. VI, Epist. XXVI ad Andraeam).
O aspecto deste mundo passa rapidamente, diz o grande Apóstolo: Praeterit
figura hujus mundi (I Cor. VII, 31).
O dia atual passa, diz o poeta, e ignoramos se veremos a luz do dia seguinte;
será um dia de calma ou de trabalhos? Não o sabemos. Assim passa a glória do
mundo:
Praeterit ista dies, nescitur origo secundi,
An labor, na requies; sic transit gloria mundi.
Comentando aquele versículo do Salmista: De torrente in via bibet - Beberá
da torrente durante o caminho (Psalm. X, 7), Santo Agostinho diz: A rapidez das
ondas representa a mortalidade dos homens; porque, assim como uma torrente,
aumentada pelas abundantes chuvas, contorna, faz ruído, corre, diminui correndo, e
chega ao final de sua corrida, assim também o homem nasce, vive um momento e
morre; e com sua morte cede lugar a outro que prontamente morrerá também. Que
estabilidade há no tempo? Que coisa vemos que não marche veloz? Toda esta
chuva, todas estas torrentes e rios vão a sepultar-se no abismo (In Psalm. supra).
A palavra momento vem de moveo, movimento.
A vida aqui na terra são os cuidados, as perdas, as enfermidades, os vícios, a
debilidade, o trabalho, os suores. Laboriosa, diz São Gregório; é mais frívola que as
fábulas, mais rápida que um corcel; plena de instabilidade e de debilidade, não tem
força nem consistência nas resoluções; não tem repouso, e sempre está agitada e
turbada, sempre sobrecarregada de trabalhos: Laboriosa est vita temporalis, levior
fabulis, velocior cursore, instabilitate fluctuans, inbecilitate nutans, cui nulla est
fortitudo, nulla propositi constantia, nulla a trubationibus requies, nulla a
laboribus reclinatio (Lib. VI, epist. XXVI).
A vida é como um vapor, diz São Tiago (Iac. IV, 15). E todos sabem que:
1º o vapor sobe, condensa-se durante um momento e desaparece: tal é a vida
na terra;
2º o vapor não tem força, é transparente; ligeiro e quase invisível: assim é a
vida;
3º o vapor é tão ligeiro e tão débil, que o vento mais insignificante o arrasta
a seu capricho: tal é a vida;
4º o vapor é obscuro: assim esta nossa vida plena de ignorância, de erros e de
imprudência;
5º o vapor dissolve-se: assim sucede com nossa vida;
6º assim como o vapor convertido em chuva desce e volta à terra da qual
saiu, assim também é a vida; e
7º assim como o vapor da terra corrompe-se algumas vezes, o mesmo
sucede também com nossa vida.
Ó homens cegos, que amanhã deveis morrer ou talvez hoje ainda; andais,
agora, e não tratais mais que dos bens de vossa família, não pensais mais que em
obter títulos, em construir casas, palácios, cidades, fortalezas! Vós acreditais ser
eternos? Amanhã morrereis! A morte encerrará vosso último ato, e acabarão as
honras, as riquezas, a ambição e vossos prazeres; a avareza não achará lugar; e
todas as cobiças restarão apagadas para sempre.
O tempo foge, diz Sêneca, e abandona aquele que o persegue com ardor. O
futuro não me pertence, e o passado não é meu; dependo do momento presente; o
qual, aliás, já deixou de existir. Somos arrebatados da mesma maneira que as águas
de um rio; tudo o que vemos desaparece com o tempo. Nada permanece imóvel.
Enquanto trato de mudar algo, eu mesmo já me vejo mudado: Ego ipse, dum loquor
nutare ista, mutatus sum (Lib. XVII, Epist. CII).
Dentro de pouco tempo, hei de abandonar a tenda do meu corpo, diz o
Apóstolo São Pedro: Velox est depositio tabernaculi mei (I Petr. I, 14).
O que significa uma vida longa? A mais longa vida tem setenta ou oitenta
anos, diz o Salmista, e possui disso a experiência. Se vivemos mais tempo, não é
vida o que temos, senão uma longa morte. E quantos homens não chegam àquela
idade! Chegam um ou dois 9ou poucos mais) em mil, no máximo. E o que são
oitenta anos, e ainda mil anos comparados com a eternidade?
Dormis, e o tempo que se vos foi concedido passa, diz Santo Ambrósio: Tu
dormis, et tempus tuum ambulat (In Psalm. III).
Ó meu Deus, exclama o Real Profeta, não reduzas o homem ao abatimento,
pois que dissestes: Convertei-vos, ó filhos dos homens! Porque mil anos são para
vossos olhos como o dia de ontem que já passou, e como uma das vigílias da noite.
O homem é como uma torrente que corre, como um sonho que desvanece; pela
manhã, ergue-se como a erva dos campos; pela manhã, floresce e passa; pela tarde,
inclina a cabeça, desfolha-se e logo seca: Mane sicut herba transeat; mane floreat
et transeat, vespere decidat, induret et arescat (Psalm. LXXXIX, 6).
Meu coração está ferido, e murchou-se como a erva; meus dias
desapareceram como fumaça, e áridos estão meus ossos como lenha seca:
Defecerunt sicut fumus dies mei, et ossa mea sicut cremium aruerunt (Psalm. CI, 4).
Meus dias passaram como sombra, e eu estou seco como o feno: Dies mei sicut
imbra declinaverunt, et ego sicut foenum arui (Psalm. CI, 12).
O tempo traz rapidamente a velhice, a decrepitude, a morte e o fim de tudo.
Nossa vida passa como o rastro da nuvem, e desaparece como névoa ferida
pelos raios do sol e dissolvida com seu calor, diz a Sabedoria, nossa vida é uma
sombra que passa: Et transibit vita mostra tamquam vestigium nobis; umbrae enim
transitus est tempus nostrum (Sap. II, 3.5).
A Escritura compara nossa vida a uma flecha lançada pelo arco, ao voo de
um pássaro, a um navio que fende as ondas, ao relâmpago e ao raio.
Nascemos e, de repente, deixamos de existir, diz a Sabedoria: Nos nati,
continuo desivimus esse (Sap. V, 13).
A criança torna-se adolescente; o adolescente, jovem; o que ontem era, está
hoje mudado; e o que hoje “é” amanhã também terá mudado; nada fica no mesmo
estado; a cada instante tudo muda como um sonho.
Meus dias, diz Jó, são mais rápidos que um corcel. Fugiram e não viram
felicidade, passaram como navio que atravessa os mares, como a águia voando que
se deixa cair sobre a presa: Dies mei velociores fuerunt cursore; fugerunt, et non
viderunt bonum, pertransierunt quase naves, sicut aquila volans ad escam (Job. IX,
25-26).
Meus curtos anos estão contados, e percorro um caminho pelo qual não
voltarei nunca mais: Ecce enim breves anni transierunt, et semitam, per quam non
revertar, ambulabo (Job. XVI, 23). Lembrai-vos, ó meu Deus, que minha vida é um
sopro (Job. VII, 7). O homem nascido de mulher vive um curto tempo, e está
repleto de misérias: Homo natus de muliere, brevi vivens tempore, repletur multi
miseriis (Job. XVI, 1). Ele sai como a flor, e logo é cortado; e murcha-se; foge e
desaparece como sombra, e jamais permanece em um mesmo estado: Qui quase flos
egredietur, et conteritur, et fugit velut umbra, et nunquam in eodem statu permanet
(Job. XIV, 2). E vos dignais, Senhor dar uma mirada a semelhante ser? Et dignum
ducis super hujuseemodi aperire oculos tuos? (Job. XIV, 3).
Quando reconheceremos de boa fé que o tempo é curto e que se escapa? Os
dias afugentam-se uns aos outros. O tempo passa rapidamente, e deste tempo tão
rápido não há nem um instante certo.
Todo o meu ser depende de um momento; eis aqui o que me separa do nada;
passa aquele momento, e toma, todavia, outro. Passam uns momentos atrás dos
outros, e cada um procura me assegurar, e não percebo que me arrastam
insensivelmente consigo, e que não serei eu o que falte ao tempo; e, não é o tempo
que me falte a mim.
Agora bem, minha alma, considera que é uma grandiosa coisa a vida? Não! E
se é, pelo contrário, tão pouca coisa – porque passa – o que serão os prazeres, que
não representam mais que alguns instantes da vida e que se desvanecem em breve
momento? Acaso isto vale em troca da condenação? Isto vale a pena, para entregar-
nos a tantos cuidados e para tratar de engrandecer-nos?
A vida humana, diz Bossuet, é semelhante a um caminho cujo ponto final é
um horrível precipício: tudo nos adverte a respeito disso, desde o primeiro
momento; porém, a lei está pronunciada e é preciso avançar sempre. Eu quisera
retroceder; porém, é-me preciso andar, andar. Um peso invencível, uma força
invencível arrasta-nos; e é preciso avançar sempre até o princípio. Mil
contratempos, mil penas fatigam-nos e inquietam-nos no caminho. Se, ao menos, se
pudesse evitar aquele precipício horrível. Não, não, é preciso andar; é preciso
correr. Tal é a rapidez dos anos.
Consolamo-nos, contudo, porque de tempos em tempos encontramos objetos
que nos divertem, águas que correm, flores que passam, distrações agradáveis.
Gostaríamos de deter-nos; porém, é preciso andar, andar. E, sem embargo, vemos
cair atrás de nós tudo o que havíamos passado: ruído horrível, inevitável ruína!
Consolamo-nos porque levamos, por acaso, algumas flores colhidas ao passar, as
quais vemos murchar em nossas mãos, nas poucas horas, desde a manhã até à noite.
Algumas frutas perdem-se ao serem provadas: feitiço! Sempre arrastado, tu te
aproximas do abismo fatal; já tudo começa a desaparecer: os jardins são menos
floridos, as flores menos brilhantes, suas cores menos vivas, as pradarias menos
risonhas, as águas menos claras; tudo murcha, tudo desaparece. A sombra da morte
apresenta-se, e já começamos a sentir a aproximação do abismo fatal. Porém, é
preciso chegar à margem; e, todavia, falta um passo. Já o horror turba os sentidos, a
cabeça desvanece-se, os olhos extraviam-se; e, sem embargo, é preciso andar;
quiséramos voltar atrás; porém já não há meio: tudo caiu, tudo desvaneceu, tudo
escapou.
O tempo é curto; e, se não deixais o mundo, ele vos deixará. Não resta outro
meio, como diz São Paulo: Que aquele que tem mulher, viva como se não a tivesse;
e os que choram, como se não chorassem; e os que se alegram, como se não se
regozijassem; e aqueles que fazem compras, como se nada possuíssem, e aqueles
que gozam do mundo, como senão gozassem dele; porque a figura ou aparência
deste mundo passa em um momento (I Cor. VII, 29-31).
Porque quereis viver no que é transitório? Credes que é um corpo e uma
verdade, quando não é mais que uma sombra e uma figura que passa e desaparece.
Por isso, em qualquer estado em que vos encontrardes, não vos detenhais nunca.
Tudo encontra sua dissolução na morte; os sentimentos passam como as alegrias;
aquilo que credes possuir com mais justo título, escapar-vos-á; qualquer quer seja o
preço que vos tenha custado cada bem, não o podeis guardar. Tudo passa, por mais
façamos para impedir.
O tempo zomba de nós e engana-nos
O tempo surpreende-nos; é preciso vigiar. Deus dispôs de tal modo o curso
imperceptível do tempo, que não sentimos sua fuga, nem seu voo, nem os roubos
que vagarosamente nos faz; de maneira que a última hora sempre nos surpreende. É
preciso aqui conhecer esta ilusão enganosa do tempo, e a maneira que tem de driblar
nossa débil imaginação.
O tempo, diz Santo Agostinho, é uma pequena imitação da eternidade (In
Psalm. IX). Esta sempre é a mesma, diz Bossuet. O que o tempo não pode
arremedar por sua constância, trata de imitá-lo pela sucessão. Se nos rouba um
instante, dá-nos sutilmente outro parecido, que nos impede de considerar aquele
fugitivo que acabamos de perder. Assim é como o tempo engana, ocultando-nos
sua rapidez; talvez nisto consista também aquela malícia do tempo de que o
Apóstolo São Paulo nos adverte com estas palavras: Resgatai o tempo, diz ele,
porque os dias são maus: Redimentes tempus, quoniam dies mali sunt (Ephes. V,
16).; isto é, enganosos e pérfidos.
Com efeito, manifesta-nos quase sempre um mesmo rosto, e o ano que
passou, parece renovar-se no ano seguinte. Sem embargo, descobre-nos ao final
toda a sua impostura. As rugas de nossa fronte, os cabelos brancos, as enfermidades,
demasiadamente nos fazem notar que uma grande parte de nosso ser já está perdido
e sepultado.
Porém, em tão grandes mudanças, o tempo afeta sempre alguma imitação da
eternidade; por que, como é próprio da eternidade conservar as coisas no mesmo
estado, o tempo, para parecer-se com ela, vai nos despojando pouco a pouco, e leva-
nos aos extremos opostos por uma inclinação tão doce e de tal maneira
imperceptível, que achamo-nos comprometidos em meio das sombras da morte,
antes de havermos pensado devidamente em nossa conversão.
Ezequias não sentiu como passavam os anos; e no quadragésimo, acreditava
que acabava de nascer: Dum adhuc, ordirer, succedit me (Isai. XXXVIII). Cortou o
fio de meus dias, quando não fazia mais que começar. Assim é como a malignidade
enganosa do tempo faz que caiamos, de repente e sem o pensar, entre as mãos da
morte.
Não sentimos nosso fim, senão quando a ele chegamos. E há uma coisa que
nos acusa: por mais longe que estendamos nossa vista, sempre vemos tempo diante
de nós. E é verdade, está diante de nós; porém, podemos nós alcança-lo? Porque
temos de apegarmos assim ao tempo? Vemos nele algo que nos possa satisfazer?
Os falsos deleites, atrás dos quais correm com furor os ignorantes mortais, o
que são depois de tudo, senão uma ilusão que dura muito pouco? Ao ponto que este
primeiro ardor que lhes cumula de agrado apaga-se um pouco; os mais entusiastas
para gozar admiram-se, na maioria das vezes, de haver aspirado tão vivamente
aquilo que deixa em seu coração um vazio tão grande. A idade e a experiência nos
demonstram quão vazias são as coisas que mais havíamos desejado; e mesmo estes
prazeres, tais como são, quão raros se apresentam na vida!
Que alegria podemos experimentar na qual a dor não venha a perturbá-la?
Porém concedamos aos loucos amantes deste século que aquilo que amam seja
digno de ser amado. Então, quanto dura esta felicidade? Foge, foge como um
fantasma que depois de nos haver dado certo contentamento, enquanto permaneceu
conosco, não deixa mais que perturbação ao murchar-se.
A verdejante juventude não durará sempre; chegará a hora fatal que há de
cortar todas as esperanças enganosas, com irrevogável sentença; a vida há de
abandonar-nos como um falso amigo em meio de nossos empreendimentos.
Ali todos os nossos formosos desígnios cairão por terra; ali, desvanecer-se-ão
todos os nossos pensamentos. Os ricos da terra que gozam durante a vida com a
ilusão de um sonho agradável, imaginando-se ter grandes bens, ficarão surpresos de
se verem com as mãos vazias ao despertar, de repente, naquele grande Dia da
eternidade, como diz o Salmista: Et nihil invenerunt omnes viri divitiarum in
manibus suis (Psalm. LXXV, 6).
A morte, esta fatal inimiga nossa, arrastará consigo no esquecimento e no
nada os prazeres, todas as honras e as riquezas. Ai! Não falamos mais que de passar
o tempo; e o tempo passa, com efeito, e passamos com ele; e aquele que passa a
respeito de nós mesmos, por causa do tempo que corre, entra na eternidade, que não
passa jamais.
A morte está sempre à nossa porta
Pouquíssima coisa é o homem, e tudo o que fica é também muito pouca
coisa. Tempo virá em que aquele homem que vos parece tão grande não haverá de
existir, não será nada. Por mais tempo que estejamos no mundo, ainda que aqui
estivéssemos mil anos, chegaríamos finalmente a este término.
Somente o tempo de minha vida é o que me faz diferente de tudo o nunca
existiu: esta diferença é muito pequena, posto que, ao final, hei de ser confundido
novamente com aquilo que não existe. Isto acontecerá no dia em que nem sequer
parecerá que eu tenha existido, e já pouco me importará qual tenha sido o tempo de
minha existência, posto que não existirei.
Entro na vida com a lei de abandoná-la. Venho a representar meu papel;
venho a colocar-me em evidência como os demais; e depois, desaparecer. Vejo a
alguns que passam diante de mim, e outros que me verão passar. Minha vida é
curta, sem segurança de um instante sequer, porque a morte não me deixa nunca;
está em meu sono; e acompanha-me, quando desperto, em minhas viagens, e em
meu alimento, e em todas as minhas idades.
Minha vida é curta; e quanto tempo houve em que eu não existia! E quanto
tempo haverá em que eu não mais existirei! E que pouco lugar ocupo neste grande
abismo dos anos! Não sou nada! Este pequeno intervalo de tempo que se me foi
concedido não é capaz de distinguir-me do nada, em que hei de parar
irremediavelmente.
Não vim senão para fazer número; e, ainda assim, não faria falta. E não se
havia representado pior a comédia, ainda que eu tivesse ficado atrás das cortinas do
teatro.
O tempo é um hospital, um cárcere, e não tem mais que uma porta de saída,
que é a morte. Todos os homens estão encarcerados neste cárcere, e todos saem pela
mesma porta.
Preço do tempo
O tempo tem um preço infinito, porque somente o tempo pode comprar a
eterna bem-aventurança.
O tempo, em certo sentido, vale tanto como o mesmo Deus, diz um Santo
Padre, porque o tempo bem empregado põe-nos na posse de Deus: Tantum valet,
quantum Deus, quia tempore bene consumpto comparatur Deus.
Com um só momento de tempo podemos comprar o Céu, a visão e a
possessão inteira e eterna de Deus; enquanto que a eternidade inteira não poderá
comprar nunca o Céu nem a Deus. A eternidade é para desfrutar do Céu, da ventura
suprema; porém, não serve para alcançá-la.
Porém, se em um momento bem empregado podemos ganhar o Céu e ao
próprio Deus, em um só momento podemos também podemos perder o Céu e a
Deus, e precipitar-nos na eterna desdita.
De um momento bem ou mal empregado depende nossa eternidade feliz ou
desgraçada. E, se um só momento tem tanto preço, que preço não terão, portanto, as
horas, os dias, as semanas, os meses, os anos e toda a vida do homem? Assim, pois,
a sabedoria suprema consiste em fazer um bom uso do tempo, assim como perdê-lo
é uma suprema loucura.
Quereis saber quão precioso é o tempo? Quereis conhecer seu valor?
Perguntai-o aos condenados. Eles dariam todas as riquezas. Mil vidas, e se creriam
infinitamente felizes em sofrer todos os tormentos, toda espécie de martírios e mil
mortes, se a tal preço pudessem ter um ano, um dia, uma hora, somente um instante
para poder sair do inferno e conquistar o Céu. Entregar-se-iam a penitências de um
rigor sem precedentes. E o mesmo fariam as almas do Purgatório.
Perguntai aos bem-aventurados no Céu; e eles vos dirão: Ó felizes mortais! Ó
vós, se soubesses o preço do tempo, quantos méritos poderíeis conseguir... quão
bem o empregaríeis! Ó, se nos fosse lícito voltar ao tempo para merecer mais,
compraríamos uma hora com os mais duros suplícios, com o ferro e o fogo!
Caso fosse possível aos eleitos enviar-nos algo, seria a felicidade de poder
aumentar nossos méritos e nossa coroa a cada instante! Ó momentos preciosos, dos
quais depende a nossa salvação e nossa eternidade!
A velhice é venerável, diz a Sabedoria; porém, não temos de medi-la pelo
número de dias, nem pelo número de anos; o bom emprego do tempo é a formosa e
rica velhice do homem. Idade avançada é a vida imaculada: Senectus venerabilis
est, non diuturna, neque annorum numero computata. Est aetas senectutis vita
immaculata (Sap. IV, 8-9).
Santo Ambrósio diz de Santa Inês que ela era muito jovem em anos, porém
muito idosa em santidade: Computabatur in annis infantia, sed erat senectus mentis
inmensa (Serm.).
O tempo é o melhor médico para todos os males. O tempo aplaca a ira, o ódio
e a concupiscência. O tempo descobre os segredos e põe às claras a verdade oculta.
O tempo dá-nos a experiência, conselhos, prudência.
O tempo, apreciado em si mesmo por horas, dias e anos, não é nada; porém,
considerado como meio de chegar à eternidade, ao gozo de Deus pela graça e,
sobretudo, pela glória, é de um preço inestimável.
O tempo não é nada em si mesmo, e sem embargo tudo se perde ao perdê-lo;
porque este tempo que não é nada, é um passo fixado por Deus para chegar à
eternidade. Por esta razão, disse Tertuliano: O tempo é como um grande véu e uma
grande cortina colocada diante da eternidade para no-la ocultar (Lib. de Resurrect.).
Para ir a esta eternidade, é preciso abrir este véu. O bom uso do tempo é o
que nos dá direito ao que está além do tempo. Todos os momentos, tomados em si
mesmo, são menos que um vapor e uma sombra; porém, considerados como
caminho da eternidade, tem, segundo São Paulo, um peso infinito; e nada há, por
conseguinte, mais criminoso que receber em vão a graça: Momentaneo et leve
tribulationis nostrae, aeternum gloriae pondus operatur in nobis (II Cor. IV, 17).
Ó momento, do qual depende a eternidade! Ó eternidade, que depende de um
momento!
Pela Encarnação do Verbo, a eternidade aliou-se com o tempo, a fim de que
aqueles que estão sujeitos ao tempo, possam aspirar a eternidade.
O que fazemos no tempo, vai com o tempo para a eternidade, porquanto o
tempo está dominado pela eternidade e a ela conduz. Não gozamos dos prazeres
mais do que no momento de sua passagem; e ainda que seja muito certo que
passem, costumamos considerá-los como se fossem permanentes. Não é bastante
que digamos: “Já passaram, não pensarei mais neles...” Passaram, sim, para nós;
porém, não diante de Deus, que é Quem nos pedirá estreitas contas deles.
A nosso grande Deus suplico convencer aos míseros mortais da perda
contínua de seu ser pelo tempo que irremediavelmente desprezam; e convençamo-
nos de que este mesmo tempo que se nos escapa e nos aniquila é um passo para a
eternidade, que é permanente.
Compremos, pois, com tempo as incomparáveis riquezas da bem-aventurada
eternidade, e não esqueçamos que, para este fim, Deus colocou-nos no tempo.
Felicidade que experimenta o homem nesta vida e, sobretudo, na hora da morte,
quando empregou bem o tempo.
O tempo bem empregado enche o coração de consolos!
Ainda que arrebatado por uma morte prematura, diz a Sabedoria, com o
pouco que viveu, (o justo) encheu a carreira de uma larga vida: Consummatus in
brevi, explevit tempora multa (Sap. IV, 13). E, ao contrário, aquele que perde seu
tempo, vê-se obrigado na hora da morte a repetir aquelas palavras de Jó: Fugiram
meus dias felizes, meus pensamentos dissiparam-se como fumaça, deixando no
tormento meu coração: Dies mei transierunt, cogitationes meae disspatae sunt,
torquentes cor meum (Job XVII, 11).
Na hora da morte, o bom cristão diz com o grande Apóstolo: O bom combate
combati, terminei minha carreira, guardei a fé. Agora, resta-me somente esperar a
coroa da justiça que me está reservada, e que o Senhor, que é justo Juiz, haverá de
dar-me naquele dia: Bonum certamen certavi, cursum consumavi, fidem servavi. In
reliquo reposita est mihi corona justitiae, quam reddet mihi Dominus in illa die,
justo judex (II Tim. IV, 7-8).
Durante a vida, diz o Rei Profeta, aqueles que empregam bem tempo,
espalham chorando suas sementes; mas, quando voltarem, virão com grande
regozijo, trazendo os feixes de suas messes: Euntes ibant et flebant, mittentes
semina sua; venientes autem, venient cum exultatione, portantes manipulos suos
(Psalm. CXXV, 6). Tem dois feixes: o da honra e o da virtude; um terceiro será o
do repouso eterno na glória eterna.
Se obedecerem e forem dóceis à Lei do Senhor, diz Jó, acabarão seus dias
infelizes, e seus anos com glória: Si audierunt et observaverint, complebunt dies
suos in bono, et anos suos in gloria (Job XXXVI, 11). E sua morte é a morte dos
justos! Felizes os que morrem de tal morte!
Recompensas resultantes do bom uso do tempo
Meu amo, diz o primeiro servo na parábola do Evangelho, vós me
entregastes cinco talentos; e eis aqui outros cinco que eu ganhei com eles. Seu
senhor responde-lhe: Muito bem, servo bom e leal; fostes fiel no pouco, eu te
confiarei muito mais; vem tomar parte na alegria do teu senhor. E aquele que havia
recebido dois talentos, veio e disse: Meu amo, vós me destes dois talentos; eis que
vos trago outros dois que lucrei com eles. Seu amo disse-lhe: Muito bem, servidor
bom e leal; pois, fostes fiel em poucas coisas, e eu te farei senhor de muitas; vem
participar da alegria de teu senhor (Matth. XXV, 20-23).
Se a terra, diz Santo Ambrósio, dá-vos mais do que lhe confiais, muito maior
do que corresponde ao que haveis feito será a misericordiosa recompensa: Si terra
tibi reddit fructus uberiores quam acceperit, quanto magis misericordiae
remuneratio reddet multipliciora quam dederis! Deus enim liberalior est quam
terra, vel natura (Serm.).
Um repouso eterno por um momento de trabalho! Um oceano de delícias por
uma lágrima!
Ah! exclama o grande Apóstolo, os sofrimentos, as penas e os trabalhos da
vida presente não são de comparar com aquela glória que deve resplandecer um dia
em nós: Non sunt condignae passionais hujus temporis ad futuram gloriam quae
revelabitur in nobis (Rom. VIII, 18).
É preciso aproveitar o tempo presente
Façamos como os negociantes; examinam as mercadorias, tomam-nas em
troca, compram-nas; apropriam-se delas. O tempo presente é tempo de negócio:
compremos, pois, e vendamos; façamos câmbios. Vendamos a terra e compremos o
céu!
Nossa vida é um mercado, diz São Gregório Nazianzeno; e, se deixais passar
esta ocasião, já não achareis mais tempo para alcançar o que desejais: Vita mostra
est quase mercatus, cujus dies cum abierit, tempus amplius non erit ementdi quae
velis (In Sentent.).
É preciso que possamos dizer com o grande Apóstolo: Não corri em vão,
nem trabalhei em vão: Non in vacum cucurri, neque in vacum laboravi (Philipp. II,
16).
Corramos, dizia aos penitentes São João Clímaco, corramos, irmãos meus; é
necessário aqui uma corrida, e uma grande corrida, porque caímos de nossa grande
elevação por causa do pecado; corramos, não tenhamos nunca considerações a esta
carne de pecado, a esta carne de iniquidades; matemo-la, posto que ela também tem-
nos matado (In Vit. Patr.)
Imitemos o Real Profeta que disse: Agora, começo a respirar – Dixi: Nunc
coepi (Psalm. LXXV, 11). Imitemos ao filho pródigo quando voltou: Levantemo-
nos, e vamos ao encontro de nosso Pai: Surgam, et ibo ad patrem meum; et surgens
venit ad patrem suum (Luc. CV, 18-20).
Que não se atreva nenhum de vós, disse São Bernardo, a depreciar um só
momento, perdendo-o com palavras inúteis. A palavra escapa, e não pode voltar
atrás; o tempo voa e não pode ser reparado; e o insensato não vê aquilo que perde.
Lícito é divertir-se, dizem alguns, para fazer passar uma hora! Para fazer passar uma
hora? Esta hora que a indulgencia de vosso Criador vos concede para fazer
penitência, para obter o perdão de vossos pecados, para adquirir a graça e merecer a
glória! O donec praetereat hora quam tibi ad agendam poenitentiam, ad
obtinendam veniam, ad acquirendam gratiam, ad promerendam gloriam, miseratio
conditoris indulget (Serm. de Trip. Custod.).
É licito divertir-se enquanto corre o tempo, este tempo durante o qual
deveríeis excitar a misericórdia de Deus, preparar-vos para a sociedade dos anjos,
suspirar pela perda, excitar vossa vontade entorpecida, e chorar vossos pecados?!
Donec transeat tempus, quo divinam debueras propitiare pietatem, properare ad
angelicam societatem, suspirare ad amissam hereditatem, excitare remissam
voluntatem, flere comissão iniquitatem? (Ut supra).
Nada é tão precioso como o tempo; porém, nada é hoje tão depreciado; o dia
da salvação passa sem que ninguém pense que este dia perdido não pode jamais
voltar: Nemo sibi perire diem, et numquam redditurum cansatur.
Porém, sem embargo, assim como não pode perecer nunca nem um só cabelo
da cabeça, assim tampouco nenhum momento perdido pode escapar à justiça de
Deus: Sed, sicut capillus de capite, sic nec momentum peribit de tempore (Ut
supra).
Foge o tempo, voa o irreparável tempo, exclama Virgílio: Et fugit interea,
fugit irreparabile tempus.
Apressai-vos, diz o profeta Oseias, a semear para vós na justiça, e a colher na
misericórdia; preparai vossa terra; já é tempo de buscar o Senhor: Seminate vobis in
justitia, et melite in ore misericordiae, innovate vobis novale; tempus requirendi
Dominum (Hoseas X, 12).
Sede cultivadores espirituais, e semeai o que produzirás para vós, diz Santo
Ambrósio: Esto spiritalis agricola, sere quod tibi prosit (Lib. I Offic.).
Levanta-te logo, disse o Anjo a São Pedro, carregado de cadeias no cárcere:
Surge velociter (Act. XII, 7). Desde mesmo modo, devemos agir para não perder
mais tempo.
Recordemos, diz São Paulo, que o tempo insta, e que já é hora de despertar-
nos de nossa letargia: Et hoc scientes tempus, quia hora est jam nos de somno
surgere (Rom. XIII, 11). É a hora da graça, da fé e da salvação. Não adieis para a
amanhã! O dia de amanhã talvez não vos pertença.
Sabeis o que será de vós amanhã?, pergunta o Apóstolo São Tiago. Porque...
o que é a vida? Um vapor que em um momento desaparece: Qui ignoratis quid erit
in crastino. Quae enim est vita mostra? Vapor est ad modicum parens, et deinceps
exterminabitur (Iac. IV, 14-15).
Não podemos aproveitar-nos do passado: já não existe; nem do tempo futuro,
que não temos, e talvez não o teremos nunca tampouco; somente está sob nosso
domínio o momento presente, momento que se nos escapa como um raio, momento
que desparece com a palavra.
O tempo de dar conta a Deus está próximo, diz o Apocalipse: Tempus prope
est (Apoc. I, 3). Vede que venho logo, diz o Senhor, guarda o que tens de bom em
tua alma; não aconteça que outro arrebate tua coroa: Ecce venio cito; tene quod
habes, ut nemo accipiat coronam tuam (Apoc. III, 11).
Em vez de prepara-se para receber o esposo, ignorando o momento de sua
chegada, as virgens néscias dormiram, diz o Evangelho: Dormitaverunt er
dormierunt (Matth. XXV, 5). O esposo chegou à meia noite; as virgens prudentes
que velavam para não serem surpreendidas entraram com ele na sala do festim das
bodas; porém, as virgens néscias, que haviam perdido o tempo presente, foram
rejeitadas. Senhor, Senhor, abri-nos!, disseram chamando à porta. Em verdade, Eu
vos digo que não vos conheço, respondeu-lhes o Esposo. Domine, aperi nobis.
Amen dico vobis: Nescio vos (Matth. XXV, 11-12).
Trabalhai com constância até que chegue, diz Jesus Cristo: Negotiamini dum
venio (Luc. XIX, 13).
O tempo é uma moeda que Deus pôs em nossas mãos para que sempre
tivesse valor e para que pudéssemos comprar os bens eternos.
Enquanto temos tempo, diz São Paulo, façamos o bem: Dum tempus
habemus, operemur bonum (Gal. VI, 10); e não olvidemos nunca que para fazê-lo
temos somente o tempo presente.
Quem são aqueles que fazem um bom uso do tempo
Enquanto não nos vemos, escrevia São Paulo ao seus discípulo Timóteo,
aplica-te à leitura, à exortação, e ao ensino: Dum venio, atende lectioni, exhortationi
et doctrinae (I Tim. IV, 13). Combatei valorosamente pela fé, trabalhai para ganhar
o prêmio da vida eterna a que fostes chamados: Certa bonum certamen fidei,
apprehendevitam aeternam, in qua vocatus es (I Tim. VI, 12). Suportai o trabalho e
a fadiga como bom soldado de Jesus Cristo; aquele que luta em jogos públicos, não
é coroado senão depois de haver combatido com empenho segundo as leis. É
preciso que o agricultor trabalhe antes de colher os frutos: Labora sicut bonus miles
Christi Jesu. Nam et qui certat in agone, non coronatur nisi legitimar certaverit.
Laborantem agricolam oportet primum de fructibus percipere (II Tim. II, 3.5-6).
Agir assim é fazer um bom uso do tempo, é assegurar-se a eterna bem-aventurança.
A virtude não consiste na quantidade, senão na qualidade de nossas obras;
somente um dia passado sem falta vale uma vida inteira.
Estais convencidos, diz Santo Eusébio, de que somente tereis vivido no dia
em que renunciastes à vossa própria vontade e resististes a vossos maus desejos,
passando-o sem violar a Lei; contai que não vivestes mais que aquele dia em que
amanheceu para vós a luz da pureza e da santa meditação: Illum diem tantum vixisse
te computa, in quo voluntates próprias abnegasti; in quo malis desideriis resististe;
quem sine ulla regulae transgressione duxisti. Illum diem vixisse te computa, qui
puritatis et sanctae meditationis habuit lucem (In Chronic.).
Semeai na graça, diz São Bernardo, e colhereis na glória; semeai sobre a terra
por meio do trabalho, e colhereis no Céu com alegria: Seminate in gratia, et metetis
in gloria; seminate in terra cum labore, et metetis in Coelo cum jubilo (Serm. in
Cant.).
Porque, como acrescenta aquele Santo Doutor, nossas obras não passam;
porém, o que semeamos no tempo, fica semeado para a eternidade. O insensato que
não semeia, ou que semeia mal, ficará pleno de surpresa quando constatar que uma
abundante colheita resulta na casa do justo, oriunda de uma abundante e boa
semente. Semeemos o bom exemplo com boas obras; semeemos uma grande alegria
para os Anjos com suspiros secretos: Seminemus exemplum bonum per opera bona;
seminemus angelis gaudium Magnum per occulta suspiria (Serm. in Cant.). Semeai,
seguindo o exemplo de tantos outros que, antes, semearam; aproveitai das sementes
que eles lançaram para vós: Seminate et vos; quia tam multi ante vos seminaverunt;
fructificate; quia vobis seminaverunt (Ut supra).
Ó raça de Adão!, exclama aquele grande Doutor, quantos semearam em ti, e
que preciosa é sua semente! Desgraçada, entretanto, com justiça perecereis se tão
preciosa semente se perde em vós, a despeito do trabalho dos zelosos semeadores!
A Trindade semeou em nossa terra; os Anjos semearam, assim como os Apóstolos;
os mártires, os confessores, as virgens etc. também semearam. O Pai celestial
semeou o Pão do Céu; o Filho semeou a verdade, e o Espírito Santo a caridade (Ut
supra).
Não convém, diz São Gregório, buscar riquezas, as honras perecedouras. Se
tratamos de buscar os verdadeiros bens, amemos aqueles que não terão fim; e, se
devemos temer alguns males, temamos aqueles que os réprobos sofrerão
eternamente: No honor, non divitiae quaerendae sunt, quae dimittuntur; sed bona
quaerimus, illa diligamus, quae fine habebimus: si autem mala pertimescimus, illa
timeamus quae reprobis sine fine tolerantur (Homil. XV, in Evang.). Agir assim é
fazer um uso precioso do tempo.
Quem são aqueles que fazem bom uso do tempo?
1º Aqueles cujos dias estão plenos de virtudes, diz o Salmista: Dies pleni
invenientur in eis (Psalm. LXXII, 10);
2º Aqueles que vão de virtude em virtude: Ibunt de virtute in virtutem
(Psalm. LXXXIII, 8).;
3º Aqueles que executam o que o Senhor diz no Apocalipse: Aquele que é
justo, torne-se mais justo ainda, e aquele que é santo, santifique-se mais:
Qui justus est, justificetur adhuc, es sanctus sanctificetur adhuc (Apoc.
XXII, 11);
4º Aqueles que observam o que diz São Paulo: Marchai de tal modo que
possais enriquecer-vos mais e mais para o Céu: Sic ambuletis ut abundetis
magis (I Thess. IV, 1).
Ninguém é perfeito, diz São Bernardo, se não deseja adiantar na perfeição:
Nemo perfectus est qui perfectior esse non appetit (Epist.).
Exercitai-vos na piedade, escreve São Paulo a Timóteo, isto é, em todas as
virtudes: Exercere teipsum ad pietatem (I Tim. IV, 7). Meditai acerca de vossos
deveres, entregai-vos a eles, a fim de que todos vejam vossos progressos na virtude:
Haec meditare, in his esto, ut profectus tuus manifestus sit omnibus (I Tim. IV, 15).
Adverti aos fieis que estejam prontos a toda boa obra: Admone illos ad omne opus
bonum paratos esse (I Tim. III, 1).
Quem são aqueles que fazem um bom uso do tempo? Aqueles que
perseveram na prática do bem. Não deixemos de perseverar no bem, diz São Paulo:
Bonum autem facientes, non deficiamus (Gal. VI, 9).
Esqueço-me daquilo que deixei para trás, acrescenta aquele grande Apóstolo,
e avançando para o que tenho adiante, esforço-me para alcançar o fim, para ganhar
o prémio para o qual Deus me chamou desde o alto, por Jesus Cristo (Philipp. III,
14).
Paulo não retrocede, não olha para trás, não se detém; avança, corre.
Trabalhamos dia e noite, diz ele: Nocte ac die operantes (I Thes. II, 9). O servidor
de Deus deve orar sempre, ou trabalhar, ou pensar nas coisas do Céu.
O que devemos evitar para fazer bom uso do tempo
Evitai as fábulas ridículas e pueris, diz São Paulo a Timóteo: Ineptas et
aniles fabulas devita (I Tim. IV, 7).
Eis o que temos de fazer:
1º evitar o mundo;
2º fugir dos prazeres, das riquezas e das honras do mundo;
3º resistir ao demônio;
4º evitar a vida segundo os sentidos;
5º evitar, sobretudo, o pecado mortal;
6º evitar, o quanto possível, o pecado venial; e
7º evitar o abuso das graças.
Quem são aqueles que fazem mal uso do tempo
O Céu, diz Santo Agostinho, exige que andemos aqui na terra. Há três classes
de pessoas a quem Deus odeia:
1º aquele que permanece imóvel;
2º aquele que retrocede; e
3º aquele que se extravia.
Aquele que não avança, fica no caminho, aquele que abandona suas boas
resoluções e volta ao mal que havia deixado, retrocede; e aquele que abandona a fé,
não está no bom caminho. Quem é aquele que não se adianta? É aquele que se crê
satisfeito e diz para si mesmo: “Já me basta ser o que sou!” (Lib. de Cantico Novo,
c. IV).
Quem é aquele que não se adianta? O tíbio, o preguiçoso espiritual.
Quem é aquele que retrocede? Aquele que volta a cair em pecado mortal.
Quem é aquele que está desencaminhado? É aquele que persevera no mal,
quer perseverar nele, e não trata de corrigir-se.
Assim, pois, estas três pessoas perdem tempo. Não adiantar no caminho da
virtude e da salvação, é perder tempo. Retroceder no caminho da virtude é, todavia,
perder mais tempo ainda. E não se achar no caminho da virtude é, entretanto,
perdê-lo completamente. Quantos existem entre nós que se acham em algum desses
três estados!
Quantas pessoas, como diz o Salmista, consomem seus dias na vaidade e
acabam muito rapidamente os anos de sua vida! Defecerunt in vanitate dies eorum,
et anni eorum cum festinatione! (Psalm. LXXVIII, 33).
Todo o tempo passado na vaidade, na ociosidade, na tibieza voluntária, no
pecado mortal, no amor do mundo e dos prazeres pecaminosos, é um tempo que
pertence à morte e não á vida. Todo o tempo que damos ao mundo é um tempo
perdido.
Não vivemos senão quando fazemos bom uso do tempo, diz São João
Damasceno: Vixit, dum vivit bene (De Virtute).
Não nos elogiemos, diz São Gregório, por haver vivido mais tempo que o
que temos passado na inocência e na humildade; porque o tempo que temos gasto
na vaidade do século, nos cuidados terrenos e carnais, é um tempo perdido, que
nunca será contado para a recompensa, mas tão somente para o castigo: Illo solum
tempore nos vixisse gaudeamus, quo innocenter et humiliter viximus. Nam illa
tempora quae in seculi vanitate et fluxa carnis vita consumpsimus, quase perdita,
mínima memorantur (Lib. Moral.).
O tempo é perdido para aqueles que se conduzem mal, diz Sêneca. É perdido
para o ociosos, e o é também completamente para aqueles que fazem aquilo que não
devem fazer. Quem se ocupa de bagatelas e frivolidades, não faz nada! Muitos
homens deixam suas ocupações e entregam-se ao descanso, e fazem fúteis as coisas
mais sérias. Invejais a glória, as honras e o poder? Isso é ir à caça de mosquitos!
Invejais a gula e o deleite? É apanhar um inseto asqueroso! Invejais as ricas vestes
bordadas de ouro? Isso é prender aranhas! Não são estas coisas puras bagatelas?
Sem embargo, muitos homens perdem e consomem em tais ninharias um tempo que
Deus lhes deu para merecer a eternidade (Epist. I Lucilio).
Observai que foi um pagão quem disse isto!
A Sabedoria diz-nos admiravelmente que o feitiço da vaidade do século
obscurece o bem verdadeiro: Fascinatio nugacitatis obscurat bona (Sap. IV, 12).
O prazer enganoso cega o espírito; e não se vê nem mesmo a própria
vaidade, nem a falsidade, nem a degradação, nem se pode apreciar a formosura e o
preço da virtude. O mesmo Santo Agostinho confessa-o: As ninharias das ninharias
detinham-me, e as vaidades das vaidades, antigas amigas minhas, faziam-me
perder todo o meu tempo (Lib. VIII Confess., c. XI).
Amais o século? – pergunta Santo Agostinho – Ele vos absorverá: Amas
seculum; absorbebit te (Tract. II. In Epist. I, S. Johann.).
O quê? Sois criados para a eternidade, e viveis para o tempo que é tão pouca
coisa? Porque não viveis para a eternidade? Destinai-vos para o Céu. Porque vos
unis à terra? Devendo possuir a Deus, porque desejais as falsas riquezas do mundo?
Como uma teia de aranha serão reputados nossos anos, diz o Salmista: Anni
nostri sicut aranea meditabuntur (Psalm. LXXXIX, 3).
Vede a aranha, este inseto que fabrica sua teia: vai, vem, sobe, desce,
trabalha todo o dia e cansa-se; seu trabalho é considerável; e o efeito nulo; tal é a
vida dos homens que empregam mal o tempo: vão, vem, buscam gozos, riquezas,
levantam-se, encurvam-se, descem, trabalham, suam, consomem-se; e não veem
que, ao final de sua carreira, encontrar-se-ão de mãos vazias.
Os homens fazem-se justiça quando tão claramente dizem-nos que não
pensam mais que em passar o tempo; mostram-nos suficientemente com que
facilidade o perdem. Porém, de onde vem que a humanidade, que é naturalmente
avarenta e que guarda com tanta avidez seus bens, deixe escapar de suas mãos, sem
qualquer sentimento, um de seus mais preciosos tesouros? Distinguimos nisto duas
causas: uma que procede de nós, e outra, do tempo.
Relativamente aquele que se nos refere, é fácil compreender por que se nos
escapa o tempo tão facilmente: é que não queremos notar sua brevidade e sua fuga.
Seja que, observando sua duração, sintamos se aproximar o fim de nossa
existência e queiramos afastar esta triste imagem; seja que, por certa preguiça, não
saibamos empregar o tempo, sempre é verdade que nada tememos tanto como
observar seu passo ligeiro.
Que pesados são para nós aqueles tristes dias cujas horas e cujos momentos
contamos! Não são porventura duros e pesados aqueles dias cujo comprimento nos
sobrecarrega? Assim é que o tempo é para nós um peso insuportável quando o
sentimos sobre nossos ombros. Por isso, não descuidamos de empregar nenhum
artifício que nos impeça de notá-lo, e nos faça perder melhor.
Porém, se tratamos de nos enganar, o tempo facilita também o nosso engano;
o tempo oculta-nos aquilo que ele nos arrebata a cada momento; e como os dias
sucedem-se, cegam-nos. Faz-nos contar muitas épocas; a infância, a adolescência, a
juventude, a idade viril, a velhice e a decrepitude.
Ó cegos mortais, que contais vossos anos em vez de pesá-los! Os prazeres e
os negócios são nossas habituais tarefas; e, por apego aos prazeres, o homem não é
de Deus; pelo afã com que cuida de seus negócios, não se pertence tampouco a si
mesmo. Tal é a vida do homem do mundo. Assim, perde todo o seu tempo,
perdendo-se, por conseguinte, a si mesmo.
Aqueles que se detém naquilo que veem ao seu redor, como nas criaturas,
nas riquezas, nos prazeres e nas honras, perdem seu tempo. Aqueles que se detém a
si mesmos por orgulho, complacência, vaidade, perdem também seu tempo.
Todos estes perdem seu tempo:
1º aqueles que nada fazem, perdem também seu tempo;
2º aqueles que trabalham, mas trabalham para a terra, perdem seu
tempo;
3º aqueles que não encaminham seu trabalho para Deus, não
trabalhando por Ele, perdem seu tempo;
4º aqueles que fazem qualquer outra coisa que não seja aquilo que
devem fazer, perdem seu tempo;
5º aqueles que não fazem as coisas em seu devido tempo, perdem
também seu tempo;
Enfim, todo o tempo que transcorre quando nos encontramos com ao menos
um pecado mortal, é tempo perdido!
Conta que temos de dar do tempo perdido
Não esqueçamos nunca que somos os ecônomos de Deus, e que Ele nos
falará como o senhor daquele ecônomo de que nos fala o Evangelho: Presta-me
contas de tua administração... Redde rationem villicationis tuae (Luc. XVI, 2).
O espantoso é que tudo aquilo que o homem faz para perder o tempo vai-se e
passa juntamente com o próprio tempo. Porém, diante de Deus não passa,
permanece entre os tesouros de sua Ira.
Aquilo que eu tiver colocado no tempo, eu o encontrarei; e, se não coloquei
nada além de iniquidades, acharei tão apenas um implacável Juízo. Aquilo que faço
no tempo, passa do tempo para a eternidade, para ser irrevogavelmente julgado.
Apenas gozo, durante algum momento, de algum prazer proibido, este passa
logo; porém, a conta que terei de dar não passa: Redde rationem villicationis tuae
(Luc. XVI, 2).
Não esqueçamos nunca que somos servidores de Deus. Recordemos como
tratou aquele patrão do Evangelho a seu criado inútil e preguiçoso. Aquele que
havia recebido um talento, diz o Evangelho, aproximou-se e disse: Senhor, eu sei
que sois um homem severo, que colheis onde não semeastes, e que recolheis onde
nada espalhastes; e, assim, temeroso de perdê-lo, fui e escondi vosso talento na
terra: aqui tendes o que é vosso. E o seu patrão replicou-lhe dizendo: Ó servidor
mau e preguiçoso, tu sabias que eu colho onde não semeei, e que recolho onde nada
espalhei (Matth. XXV, 24-26). Por tua própria boca te condeno, ó servo mau: De
ore tuo te judico, serve nequam (Luc. XIX, 22). Lançai este servidor inútil nas
trevas exteriores: ali ele encontrará o chorar e o ranger de dentes: Inutilem servum
ejicite in tenebras exteriores; illic erit fletus et stridor dentium (Matth. XXV, 30).
Assim, Deus nos tratará se perdemos o tempo, se abusamos deste dom e o
profanamos.
Meios para empregar bem o tempo
Quer comais, quer bebais, diz o grande Apóstolo, quer façais qualquer outra
coisa, fazei tudo pela glória de Deus: Sive manducatis, sive bibitis, sive aliud quid
facitis, omnia in gloriam Dei facite (I Cor. X, 31).
Tende cuidado, meus irmãos, diz em outra parte São Paulo, de vos conduzir
com grande circunspecção; não como imprudentes, senão como homens
equilibrados; recobrando de certo modo o tempo perdido, porque os dias de nossa
vida são maus: Videte, fratres, quomodo caute ambuletis; non quase insipientes, sed
ut sapientes, redimentes tempus, quoniam dies mali sunt (Ephes. V, 15-16).
Procurai ter um tempo tranquilo para desfrutar de Deus, diz Santo Agostinho:
Emas tibi quietum tempus vacandi Deo (De Coelest. Vita.). Como o Apóstolo, é
preciso que esqueçamos o que está detrás de nós, o que está acima de nós, o mundo,
as criaturas e a carne; e temos de lançar-nos até o Céu com ardentes desejos e boas
obras.
Tudo quando fizerdes, seja por palavras, seja por obras, acrescenta São
Paulo, fazei tudo em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, e para sua glória, dando
graças por meio Dele a Deus Pai: Omne quodcumque facitis in verbo, aut in opere,
omnia in nomine Domini nostri Jesu Christi, gratias agentes Deo, et Patri per
peipsum (Coloss. III, 17).
Vivei como se tivesses de morrer a cada instante, diz São Jerônimo, e
trabalhai como se houvesses de viver sempre: Sic vive tamquam semper moritus; sic
stude tamquam semper victurus (Epist.).
Temos de considerar-nos como peregrinos e hóspedes sobre a terra, à
semelhança dos Patriarcas e dos justos da Antiga Lei, diz São Paulo: Confitentes
quia peregrini et hospites sunt super terram (Heb. XI, 13).
Queridíssimos meus, diz o Apóstolo São Pedro, encarecidamente rogo-vos
que vos considereis como estrangeiros e peregrinos na terra.
Sendo nossa alma do Céu, deve ser estrangeira na terra; deve desejar o Céu e
encaminhar-se para lá. Jesus Cristo, para resgatar-nos deste desterro e levar-nos à
nossa pátria, desceu à terra, nasceu em um presépio, viveu como um estrangeiro, e
morreu em um patíbulo.
Assim é que:
1º o cristão deve recordar que é estrangeiro na terra; e há de portar-se como
um estrangeiro;
2º o viajante tudo vê, sem, contudo, apegar-se a nada; e o mesmo há de fazer
o cristão;
3º o viajante vai e acede a outro lugar; recordemos que é preciso que façamos
o mesmo;
4º o viajante dirige retamente a seu objetivo, contentando-se com o alimento
e o vestuário; não se ocupa senão de sua viagem: assim devemos agir
também nós;
5º o estrangeiro deseja sua pátria; imitemo-lo;
6º o viajante sofre com valor, a fome, a sede etc.; o mesmo nós devemos
também fazer;
7º o viajante procura não ter tropeços nem dificuldades; por isso conduz-se
com honradez e justiça; a ninguém insulta; porta-se convenientemente com
todo o mundo: tal é também o dever do cristão;
8º o estrangeiro considera a todos os homens como estranhos, seu coração
está em sua pátria, seu espírito com seus parentes, seus filhos, seus amigos:
tal deve ser também a conduta do homem que crê;
9º o viajante leva uma capa e um bastão; o cristão deve levar sua cruz e
revestir-se da capa da oração, da penitência e da modéstia; deve revestir-se
de Jesus Cristo;
10º o viajante não vai inutilmente sobrecarregado; leva somente o necessário:
o bom exemplo do tempo exige também isto no cristão;
11º o viajante não se detém em seu caminho, senão que avança para chegar
ao final de sua viagem. Façamos o mesmo.
Santo Antônio mandava dizer a cada dia a seus confrades: Hoje, começarei a
servir a Deus, e talvez será este o último de meus dias (In Vit. Patr.).
Quereis, diz Sêneca, ver-vos livres de vosso corpo, deste pesado fardo?
Acostumai-vos como devendo deixá-lo, olhai-o como a um estranho; e na morte o
deixareis sem dor (Epist. XXIV).
Não temos na terra uma habitação permanente, diz São Paulo, senão que
vamos em busca da mansão futura: Non enim habemus hic manentem civitatem, sed
futuram inquirimos (Heb. XIII, 14).
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