3º encontro da região norte da sociedade brasileira de ... · migrações para a região do ......
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3º Encontro da Região Norte da Sociedade Brasileira de Sociologia: Amazônia e Sociologia: Fronteiras do Século XXI.
GT 4- Africanidades e Negros na Sociedade Amazônica
Quilombo de Narcisa: Territorialidade, Limites de Respeito e Narrativas de Expropriação.
Petronio Medeiros Lima Filho – UFPA-PPGCS petronio.mlf@gmail.com
Manaus 26, 27, 28 de setembro de 2012
Quilombo de Narcisa: Territorialidade, Limites de Respeito e Narrativas de Expropriação.
Petronio Medeiros Lima Filho – UFPA-PPGCS
Resumo Com o artigo 68(ADCT) da C.F de 1988 centenas de comunidades quilombolas saem
da invisibilidade e solicitam ao Estado o reconhecimento e titulação do seu Território,
entretanto, a bancada ruralista apoiada por parte da mídia sugere que estas comunidades são
uma invenção e/ou que o território a ser regularizado deve ser apenas a área de moradia. O
presente artigo discute, a partir da trajetória do Quilombo de Narcisa (município Capitão
Poço, Nordeste do Pará): A resistência de um quilombo no contexto de intensa migração e de
projetos de “Desenvolvimento da Amazônia”; Os processos de territorialização e construção
de Limites de Respeito os quais ainda hoje são marcos simbólicos utilizados pela comunidade
para indicar os limites do seu Território; Os processos de expropriação que ocasionaram à
comunidade a perda de Território e como essas áreas expropriadas foram regularizadas em
lotes individuais pelo INCRA e terminaram se transformando em um novo latifúndio na
região.
Introdução
A comunidade de Narcisa, localizada no município de Capitão Poço, nordeste do
estado do Pará, se originou no século XIX a partir da apropriação de terras realizada por
negros fugitivos da escravidão. Mais de um século depois, os moradores de Narcisa se
autodefiniram como comunidade remanescente de quilombo e solicitaram ao Estado, por
meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), o reconhecimento,
delimitação, demarcação e titulação do seu território conforme está previsto no artigo 68 do
ADCT da Constituição Federal brasileira.
Nesse contexto, o presente artigo discute os processos de territorialização da
comunidade de Narcisa, buscando refletir sobre alguns contextos históricos de construção do
território, bem como sobre os processos de expropriação vividos pela comunidade ao longo de
sua trajetória. A partir da analise dos processos de territorialização o artigo busca iniciar uma
reflexão a cerca dos significados da modalidade de titulação de territórios quilombolas
instituído a partir do artigo 68 ADCT da CF. No contexto da histórica disputa por terra no
Brasil. O artigo está organizado em quatro momentos:
Inicialmente faremos algumas definições teóricas e discutiremos o primeiro processo
de territorialização feito pelos escravos fugidos do cativeiro que originaram Narcisa ainda no
contexto do final do século XIX e que permitiram a existência da comunidade até a abolição
da escravidão no Brasil, no ano de 1888. Neste tópico dialogamos com o estudo histórico
intitulado: “Narcisa: história e memória de uma comunidade negra em Capitão Poço-PA”, de
autoria de Joseline Simone Barreto Trindade e Shirley Maria Silva Nogueira. 1
Num segundo momento, discutiremos a construção de marcos simbólicos chamados
pela comunidade de: “limites de respeito” e de seus significados na construção de fronteiras
entre os moradores de Narcisa e seus novos vizinhos, que chegaram no contexto das primeiras
migrações para a região do nordeste paraense no início do século XX. Finalmente,
discutiremos os processos de expropriação ocorridos entre as décadas de 1970 e 1990 a partir
da memória e das narrativas dos moradores de Narcisa. Na conclusão faremos uma
provocação no sentido de refletir sobre a modalidade de titulação coletiva de territórios
quilombolas no contexto da luta pela terra no Brasil.
Este artigo é fruto de reflexões advindas de nossa participação no Grupo Técnico
Interdisciplinar- GTI constituído pelo INCRA, no ano de 2009, para desenvolver o Relatório
Técnico de Identificação e Delimitação- RTID da comunidade quilombola de Narcisa. Este
relatório teve como objetivo atender as normativas internas do INCRA no sentido de um
documento oficial elaborado por servidores dessa autarquia que identifique o território (ou os
limites do território) que deve ser regularizado em favor da associação que representa a
comunidade autodefinida quilombola de Narcisa.
Territorialidade, Quilombo, Campesinato.
Ao propor o debate sobre territorialidade defino este conceito seguindo a proposição
feita por Paul Little no sentido de que a territorialidade é o “esforço coletivo de um grupo
social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu
ambiente biofísico, convertendo-a em seu ´território´ ou homeland” (Little 2005:3)2.
O esforço coletivo de um grupo e a construção do sentido de homeland ocorre,
conforme estamos compreendendo com base nas indicações de Little, a partir da inter-relação
entre três elementos fundamentais que estão presentes em maior ou menor intensidade nesses
territórios: os sistemas de usos comum relacionados à utilização de recursos naturais
presentes no território; o sentido de pertencimento a um lugar específico e a história da
ocupação guardada na memória coletiva.
Essa maneira de compreender os processos de territorialização permite a inclusão
nesta definição de uma vasta diversidade de territórios, tais como territórios indígenas,
1 TRINDADE, Joseline Simone Barreto & NOGUEIRA Shirley Maria Silva. Narcisa: história e memória de uma comunidade negra em Capitão Poço – PA. CEDENPA, 2000. 2 LITTLE, Paul E, Territórios Sociais e Povos Tradicionais no Brasil: Por uma antropologia da territorialidade. UNB. Brasília, 2002.
quilombolas, extrativistas, ribeirinhos, caiçaras do litoral brasileiro, quebradeiras de coco,
entre outros grupos sociais os quais são denominados, segundo definição de Little, de povos
tradicionais. Ao nosso entender esta definição de territorialidade pode ser utilizada mesmo
para outros grupos que usualmente não são tratados como “tradicionais”.
A grande utilidade desta referência de territorialidade e território está no fato de
possibilitar unidade em meio a uma vasta diversidade; de ser uma definição que indica a
complexidade dos elementos envolvidos na formação destes territórios, e do fato claramente
evidenciado de que resultam de um esforço coletivo, e sempre renovado, de um grupo social,
pois, conforme buscaremos demonstrar a partir da trajetória da autodefinida comunidade
quilombola de Narcisa, a construção dessas territorialidades acontecem, nos diversos
momentos históricos, em contextos de conflito com os projetos do grande capital,
materializados nas ações das elites urbanas e agrárias e do controle que essas elites exercem
por meio do Estado como regulador do “Território Nacional”.
Nesse contexto, e considerando a forma de apropriação da terra realizada pelos
fundadores da comunidade de Narcisa e o próprio título deste artigo: “quilombo de Narcisa”,
passamos a definição, com a ajuda de Simone Raquel, do que estamos compreendendo por
“quilombo”:
“remetendo a uma história de luta de uma população negra escravizada, o quilombo constitui-se numa concretude de resistência territorial frente ao modelo econômico dominante. (...) Os territórios quilombolas aparecem, então, enquanto espaços apropriados por esses grupos humanos antes escravizados, num processo de ruptura em relação ao contexto predominante. ( FERREIRA 2006:62)3
Mesmo considerando que: “o termo quilombo tem assumido novos significados na
literatura especializada e também para grupos, indivíduos e organizações. (...), o mesmo vem
sendo “ressemantizado” para designar a situação presente dos segmentos negros em
diferentes reuniões e seguimentos no Brasil” (O´DWYNER 2002:18) utilizo a definição de
Raquel, sobretudo, para evidenciar o fato bastante significativo: o quilombo continua a
constitui-se ainda hoje numa concretude de resistência territorial frente ao modelo econômico
dominante. No contexto atual os territórios quilombolas ou os quilombos são empecilhos à
expansão do agronegócio ligado a monocultura. Definimos agronegócio junto com Ariovaldo
Umbelino, segundo este:
"o monocutivo de exportação até então chamado agribusiness, ganhou sua expressão na lingua portuguesa: agronegocio (...) tratava-se de substituir e diferenciar a agri-cultura do agro-negócio. Ou por outras palavras, tratava-se de distinguir entre a atividade econômica milenar de produção dos alimentos necessários e fundamentais para existencia da humanidade, e a atividade econômica de produção de commodities (mercadorias). Para o mercado mundial.Definia-se assim, na prática da produção econômica, uma distinção importante entre a agricultura tipicamente capitalista e a
3 FERREIRA, S.R.B. GEOgrafia, ano VIII-. 16 – 2006.
agricultura camponesa. (...) nascia assim, uma concepção neoliberal para interpretar esta agricultura de pequeno porte, a agricultura familiar. O neoliberalismo invadia desta forma, o mundo da intelectualidade. E, como se isso não bastasse, invadiu também o mundo dos movimentos sindicais e sociais do Brasil. Julgaram os neoliberais do estudo agrário que era preciso tentar sepultar a concepção de agricultura camponesa e com ela os próprios camponeses. Afinal, era preciso no plano teórico e político afastar de vez o velho fantasma da questão camponesa que já assustava os latifundiários brasileiros da UDR – União Democrática Ruralista, e agora assustava também lideranças sindicais e de partidos políticos progressistas e de esquerda.(OLIVEIRA 2007:147)4
Este modelo de exploração do universo agrário brasileiro tem se sofisticado, mas não
é nenhuma novidade histórica, continua na mesma matriz de produção de monocultura em
grandes latifúndios, utilizando defensivos químicos e visando a exportação, ainda que
atualmente sejam recorrentes por parte desses grupos as tentativas de “pintarem a besta fera
de verde”. É justamente neste confronto e nesse contexto em que a definição de “quilombo”
se relaciona com campesinato.
A luta pela conquista dos territórios quilombolas deve ser situada dentro de um
quadro mais amplo do campesinato brasileiro, historicamente caracterizado pelas lutas, pela
conquista da terra (FERREIRA 2006:62)5. No Brasil o campesinato nasceu e se criou
marginal à grande propriedade como nos ensinou Wanderley, nas palavras da pesquisadora:
É preciso considerar, antes de tudo, que o modelo original do campesinato brasileiro reflete as particularidades dos processos sociais mais gerais, da própria história da agricultura brasileira, especialmente seu quadro colonial, que se perpetuou como uma herança após a independência nacional; a dominação econômica, social e política da grande propriedade; a marca da escravidão e a existência de uma enorme fronteira de terras livres ou passiveis de serem ocupadas pela simples ocupação e posse. (...) Assim, a história do campesinato no Brasil pode ser definida como o registro das lutas para conseguir um espaço próprio na economia e na sociedade. (...) refiro-me às lutas por um espaço produtivo, pela constituição do patrimônio familiar e pela estruturação do estabelecimento como um espaço de trabalho da família (WANDERLEY 1999:39)6.
Finalmente, buscamos fazer aqui algumas definições importantes para que possamos
com esses instrumentos navegar melhor pelas águas agitadas da compreensão dos processos
de territorialização e da construção de territórios que estão sempre se fazendo e refazendo.
Essas definições nos ajudam a pensar em unidades que envolvam grandes diversidades de
territórios, ou seja, para que mesmo em meio às múltiplas especificidades territoriais
possamos distinguir elementos comuns que diferenciem estes territórios os quais Little
chamou de “territórios sociais” e que cito na falta ainda de uma definição melhor, dos
processos de territorialização engendrados pelo capital, que possuem características próprias
com lógicas bastante diversas destas que procuramos definir. Para melhor descrever a
territorialidade engendrada pelo capital recorro novamente à Ariovaldo Umbelino, segundo
este quando o capital se territorializa:
4 OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino. Modo de produção capitalista, agricultura e reforma agrária. São Paulo, Ed. FFLCH/Labur Edições, 2007. 5 FERREIRA, S.R.B. GEOgrafia, ano VIII-. 16 – 2006. 6 WANDERLEY, M. N. B. Raízes históricas do campesinato brasileiro. In: TEDESCO, J.C (org.) Agricultura familiar: realidades e perspectivas. Passo Fundo: EDIUPF.
“ ele varre do campo os trabalhadores, concentrando-os nas cidades, quer para serem trabalhadores da indústria, comércio ou serviços, quer para serem trabalhadores assalariados no campo (boias-frias). Nesse caso o processo especificamente capitalista se instala, a reprodução ampliada do capital desenvolve-se em sua plenitude. (...) A monocultura se implanta e define/caracteriza o campo, transformando a terra num ‘mar’ de cana, de soja, de laranja, de pastagem, etc. (OLIVEIRA 1999:106).
Resistência à escravidão e a construção do território quilombola de Narcisa.
“A história contada pelos moradores de Narcisa não parte da doação de terra por algum patrão bondoso, mas da apropriação da terra por um negro chamado Nunhe Alves do Nascimento e Felipe. Eles construíram moradias, roças e casa de forno para viver com a família depois da segunda metade do oitocentos. A descrição do lugar construído por estes negros não difere das características de um quilombo, enquanto criação de uma forma de trabalho autônomo livre da submissão dos grandes proprietários. Assim, os quilombolas com sua produção de subsistência e comercialização forjaram uma economia camponesa que viveu na ilegalidade durante todo o período da escravidão, mas sobreviveu as perseguições das autoridades.” (TRINDADE e NOGUEIRA, 2000).
O processo de territorialização da comunidade de Narcisa se inicia em um contexto
histórico no qual o Estado brasileiro7 dirigido pelas elites agrárias buscava impedir o acesso
dos camponeses a propriedade da terra.
Ainda em 1850, com o avanço do processo de transformação da terra em mercadoria e
preocupados com o fim do trafico negreiro e com a evidente possibilidade da libertação dos
escravos, as elites agrárias dirigentes do Brasil organizadas e influenciando o Estado Imperial
Brasileiro decretaram a lei nº 601 de 18 de setembro de 1850, chamada Lei de Terras.
“Esta lei, ao mesmo tempo em que determina o fim do regime de posses e proíbe a aquisição de terras por qualquer meio que não seja a compra, estabelece que os lotes deveriam ser comprados à vista. Entretanto os preços mínimos estabelecidos ultrapassavam os preços então vigentes no país (Carvalho, 1978). Martins (1986) relata que a Lei de Terras foi criada no mesmo ano em que se extingue o tráfico negreiro por pressão da Inglaterra. Prevendo, desta forma, a abolição da escravatura (que realmente veio a ocorrer quase 40 anos após a criação desta lei) e o crescimento do número de posseiros, esta lei regulamenta, então, a situação das terras no Brasil, proibindo novas posses. A proibição de aquisições de terras que não fossem realizadas através da compra “(...) era dirigida contra os camponeses da época, aqueles que se deslocavam para áreas ainda não concedidas em sesmarias aos fazendeiros e ali abriam suas posses. Nos anos seguintes, ficará claro o sentido desta medida. Diante do fim previsível da escravidão, era previsível também, como aliás já o menciona a própria Lei de Terras, o advento de uma modalidade de trabalho livre que permitisse a substituição do escravo sem destruir a economia da grande fazenda.” (Martins, 1986, p.41/42)8
Assim, a Lei de Terras que entrou em vigor em 1850 pode ser considerada uma
reafirmação do poder do Estado e das elites dirigentes sobre a terra. Por meio desta lei a elite
agrária buscou impedir o acesso dos camponeses à propriedade da terra e com isso garantir
mão de obra para suas fazendas. Se esta lei já era excludente para os camponeses livres, para
os negros escravos a possibilidade do direito a terra ficou mais distante ainda.
É nesse contexto que a construção do território de Narcisa é realizada, a partir da fuga
do cativeiro e da formação do quilombo como nos mostra o estudo realizado por Trindade e
7O Império do Brasil foi o Estado brasileiro existente entre 1822 e 1889, que precedeu a atual República Federativa do Brasil e teve a monarquia parlamentar constitucional como seu sistema político. (wikipedia.org) 8BENTHIEN, Patrícia Faraco, “Campesinato, Lutas e Certezas”, in Rev. Bras. Agroecologia, v.2, n.1, fev. 2007.pg 581.
Nogueira (2000)9. Os negros apropriaram-se das terras de Narcisa, e nesta terra fizeram roças,
construíram suas moradas e casas de forno para beneficiamento da mandioca, resistiram a
diversos e contínuos assédios de capitães do mato, de tropas do governo e a toda série de
perseguições empreendidas com objetivo de destruir o quilombo10. A fuga para as matas e o
posterior retorno para reconstruir o quilombo era uma das estratégias de resistência dos
negros, que somado ao trabalho na terra, e a comercialização do excedente dos frutos deste
trabalho foram os fatores determinantes para construção e manutenção do território de
Narcisa.
Dessa maneira, o processo de territorialização da comunidade se deu a partir da
resistência mais radical a escravidão e apresentava-se totalmente ilegal da perspectiva do
Estado, pois contrariava as leis na época vigentes no Brasil: Narcisa era tanto contrária à
escravidão, que vigorou até 1888, quanto à Lei de Terras. O Estado Brasileiro não reconhecia
o território da comunidade tanto porque os negros não eram considerados cidadãos quanto
porque as terras não eram legalizadas, ou seja, não foram compradas do Estado, e nem
poderiam ser, dada a condição de quilombolas dos negros de Narcisa.
Quando em 1888 foi oficialmente abolida a escravidão no Brasil11, filhos e netos dos
fundadores do quilombo já viviam e trabalhavam nas terras de Narcisa. Com a abolição, os
negros conquistaram a liberdade, porém, a precária situação jurídica com a terra permaneceu.
Não houve, após a abolição, qualquer legislação na qual o Estado brasileiro reconhecesse aos
negros remanescentes de quilombos, ou a esse campesinato que resistiu a escravidão, o
direito à terra.
Somente em 1988, portanto um século depois, a Constituição Federal do Brasil no seu
artigo 68 ADCT definiu que: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que
estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado
emitir-lhes os títulos respectivos.”12, ou seja, o Estado demorou 100 anos desde o
reconhecimento da cidadania aos negros para reconhecer também aos seus descendentes o
direito a terra.
Com a não legalização dessas terras, o Estado abriu espaço para um longo processo de
expropriação sofrido pelos, na atualidade, auto-definidos remanescentes de quilombos. No 9TRINDADE, Joseline Simone Barreto & NOGUEIRA Shirley Maria Silva. Narcisa: história e memória de uma comunidade negra em Capitão Poço – PA. CEDENPA, 2000. Neste estudo as autoras mostram a construção do quilombo de Narcisa, seus primeiros ocupantes, as estratégias de resistência utilizadas pelos negros para permanecerem na terra. 10Idem anterior 11Lei Áurea (lei Imperial n. 3.353), sancionada em 13 de maio de 1888, foi a lei que extinguiu a escravidão no Brasil.(wikipedia.org). 12Constituição Federal de 1988, artigo 68 do ADCT.
decorrer desses 100 anos (1888-1988), muitos quilombos foram dizimados pela pressão e
violência do sistema capitalista; muitos remanescentes de quilombos tiveram que deixar suas
terras e migraram em busca de melhores condições de vida, territórios de comunidades
diminuíram, enfim, nestes 100 anos muitas terras de diversos quilombos foram expropriadas
de diversas maneiras, por grandes fazendeiros, grandes latifundiários, grandes empresas e
também pelo próprio poder público. É nesse espaço de tempo que situamos os processos de
expropriação de terra sofridos pela comunidade de Narcisa.
A histórica construção dos “limites de respeito” e fronteiras étnicas
Nas décadas que se seguiram a abolição da escravidão (1888), a região onde se
localiza a comunidade quilombola de Narcisa13, assim como outras regiões da Amazônia,
recebeu milhares de migrantes. Em uma análise inicial poderíamos supor que a chegada
dessas muitas famílias levaria a um aumento na pressão sobre as terras, e estaria na gênese
dos processos de expropriação sofridos pela comunidade, ou seja, somado a insegurança
jurídica que a comunidade tinha em relação à terra (ausência de demarcações e documentos
de terra), o aumento populacional causado pela migração para a região, exerceria uma
pressão nas fronteiras de Narcisa gerando conflitos e provavelmente as primeiras
expropriações no território da comunidade. Entretanto, a experiência de Narcisa, cujo
trabalho etnográfico realizado nesta comunidade ajudou a esclarecer, aponta em outra
direção.
Estudos de Regina Vânia Vieira de Carvalho14 apontam que as ocupações mais
antigas de Capitão Poço, município no qual está localizada a comunidade de Narcisa, são de
famílias oriundas de Ourém, Bragança, Viseu e Capanema, ou seja, vieram de regiões
circunvizinhas. Segundo esta autora:
“Inicia-se, em meados da década de 40, a ocupação de parte do município (de Capitão Poço) por nordestinos. Eles se assentaram mais ao sul dos paraenses e fundaram a vila de Capitão Poço. Lá encontraram descendentes de famílias nordestinas que moravam no Pará desde o início do século (...). A trajetória de migração de nordestinos para Capitão Poço foi bem mais diversificada do que a dos paraenses. Uma parte migrou diretamente do Ceará para Capitão Poço e outra parte passou por outros estados da Amazônia e vários municípios do Pará.”15
Como se pode notar, nas décadas após a abolição da escravidão, os remanescentes de
quilombos de Narcisa não ficaram sozinhos, os migrantes chegaram e passaram a viver na
região. Entretanto, durante as pesquisas realizadas pela equipe do INCRA para elaboração do
13A área da comunidade quilombola de Narcisa estava ligada a Ourém. A lei N° 2.460 de 29 de dezembro de 1961 criou o município de Capitão Poço, na re-divisão territorial o território de Narcisa passou a fazer parte deste município. 14De Carvalho, Regina Vânia Vieira, “Dinâmica inovativa entre camponeses do nordeste do Pará”. Paper do NAEA 88. Maio de 1988. 15Idem anterior
RTID16 os relatos da comunidade sobre processos de expropriação das terras de Narcisa se
referem ao período a partir da década de 1970. Não existiram relatos de expropriação antes
deste período, essa ausência de relatos sobre expropriações de terra, ocorridas antes da
década de 1970, é bastante significativa com relação ao processo de territorialização da
comunidade de Narcisa. Contraria, portanto, a suposição inicial de que a chegada de novas
famílias na área, que antes era habitada apenas por membros da comunidade, resultaria em
conflitos por terra e redução do território quilombola, e suscita outra questão: o que poderia
explicar o fato do território de Narcisa ter se mantido, mesmo com todas essas migrações para
a região?
Os estudos sobre Narcisa indicam que o fator determinante para a garantia do
território da comunidade foi o processo de construção de “limites de respeito” estabelecidos
entre a comunidade quilombola e os novos vizinhos. Essa expressão: “limites de respeito”
utilizada pelos próprios moradores de Narcisa se refere aos limites de terra definidos em
conjunto pelos próprios vizinhos sem a interferência de Órgãos do Estado.
Esses limites possuíam como referência acidentes geográficos ou marcos tais como
uma árvore específica ou outro símbolo físico presente na paisagem que ganhava status de
marco de limite, de fronteira, e, portanto, passava a ser respeitado e cuidado como tal. Assim,
mesmo distante das ações de demarcação empreendidas pelo Estado, as famílias migrantes e
os quilombolas souberam construir limites de terra que eram respeitados pelos antigos e
novos moradores.
É evidente que a construção desses limites de respeito aconteceram através de
negociações, por vezes tensas, e é provável que algumas partes do território inicial da
comunidade tenham sido delimitadas novamente nas negociações com os novos vizinhos,
mas o fato é que na memória coletiva da comunidade não ficou marcada nenhuma referência
à expropriação das terras de Narcisa nesse período.
As referências a expropriações de terras da comunidade estão associadas aos anos
posteriores, a partir da década de 1970, quando o Brasil passou a ser governado pelos
militares, os quais no seu projeto de integração da Amazônia, iniciaram intervenção
sistematizada na região. Paradoxalmente, os relatos de expropriação de terras da comunidade,
estão associados não aos momentos de ausência do Estado na região, mas sim, ao momento
de maior presença.
16RTID- Relatório Técnico de Identificação e Delimitação, relatório que identifica e delimita o território da comunidade remanescente de quilombos com base em estudos interdisciplinares. (estudos sócio-histórico-antropológicos e estudos agro-ambientais).
Durante os trabalhos de campo empreendidos pela equipe interdisciplinar do Serviço
de Regularização de Territórios Quilombolas INCRA-SR01 objetivando a construção do
RTID17, ficou evidente a importância que esses limites de respeito, construídos pelos
“antigos”18, representam até hoje para a comunidade quilombola.
Em reunião do dia 12 de dezembro de 2009, nossa equipe técnica apresentou a planta
oriunda do levantamento preliminar do perímetro do território da comunidade, na ocasião, os
remanescentes de quilombo de Narcisa identificaram que a linha norte do território estava
incidindo nas terras de um vizinho.
Ao identificar esse fato, a comunidade foi incisiva na solicitação para que a equipe do
INCRA refizesse aquela linha, o que foi atendido. No entanto, chamou atenção dos
pesquisadores a veemência com que a comunidade se posicionou para que a linha fosse
refeita. Quem seria aquele vizinho? Seria algum grande fazendeiro com grande poder político
e econômico com o qual a comunidade não quisesse entrar em conflito? Seria algum político
local com poder político que pudesse prejudicar a comunidade? Essas foram algumas de
nossas hipóteses iniciais.
Essas hipóteses, entretanto se mostraram equivocadas. Nas entrevistas que realizamos
com os comunitários de Narcisa objetivando conhecer mais sobre este vizinho, descobrimos
que os vizinhos eram filhos e netos de um pequeno agricultor chamado Alcindino Farias, este
chegou com sua família na região do município de Capitão Poço “no tempo dos pais de
Macedônio Lucas”19, entre as décadas de 1930-1940.
Um fato importante e que merece destaque é que o senhor Alcindino e sua família,
assim como outras famílias que chegaram na região, não foram incorporadas ao quilombo,
mas se tornaram vizinhos da comunidade e construíram a partir das negociações com os
quilombolas, os limites onde terminava o território de Narcisa e iniciava a área deles.
A história da construção do limite de respeito entre a comunidade quilombola e esse
vizinho e, sobretudo, o respeito a esses limites manifestados pela atual geração de
quilombolas, ou seja, pelos netos dos que definiram esses limites, nos mostram a relevância
que essas fronteiras construídas no passado, com base nas relações mantidas pelas famílias,
possuem ainda hoje na conformação do território reivindicado por essa comunidade.
17 Idem anterior 18 Expressão utilizada pelos comunitários de Narcisa quando se referem aos que fixaram estes limites de respeito. 19Macedônio Lucas é uma figura lendária na comunidade, foi o líder de Narcisa durante muito tempo, segundo contaram os comunitários ele teria sido o único a permanecer na vila de Narcisa durante os anos que as famílias se mudaram para as extremidades do território da comunidade, Macedônio ficou sozinho, manteve o que restou da comunidade e recebeu as famílias de volta quando retornaram para a antiga vila.
Mesmo tendo sido preteridos durante décadas com relação aos seus direitos territoriais
e neste momento em que o Estado Brasileiro, por meio do INCRA, se apresenta no intuito de
regularizar o território quilombola, a comunidade reafirma os limites de respeito constituídos
há muito tempo no passado.
Assim, a construção dos chamados “limites de respeito” está intima e profundamente
associado ao processo de territorialização da comunidade de Narcisa, conforme a pesquisa
indicou. Estes limites de respeito são marcos historicamente construídos por meio de
negociações com outras famílias, e sem a interferência do Estado, cujas significações
atravessam gerações e são elementos fundamentais na definição do território quilombola.
O Estado desenvolvimentista e a expropriação das terras de Narcisa
Um dos elementos mais importantes envolvidos no processo de territorialização, e
uma das fontes fundamentais para trazer a tona histórias que não estão registradas em papel
algum, é a história da ocupação guardada na memória coletiva da comunidade. É a esta
memória que os quilombolas de Narcisa recorrem para falar sobre seu território, indicar seus
limites, e também para tratar dos processos de expropriação que a comunidade sofreu.
Segundo Maués é construção social dessa memória que permite a construção do sentido de
pertencimento (MAUÉS 2010:24)20 a um lugar, portanto a memória coletiva e o processo de
territorialização estão, desta maneira, profunda e intimamente inter-relacionados.
Conforme já nos referimos, a memória coletiva dos quilombolas de Narcisa associa os
processos de expropriação de terras que a comunidade sofreu ao período a partir da década de
1970, deste modo, o processo de expropriação das terras de Narcisa coincide com os projetos
de “desenvolvimento” da Amazônia, implementados pelos governos militares a partir de
1970. Esses projetos de desenvolvimento partiam da idéia de que a Amazônia era um vazio
demográfico e que deveria ser ocupada.
“Terras sem homens para homens sem terra, com este discurso o presidente Emílio Médici prometeu resolver o problema do Nordeste, oferecendo terras amazônicas. Estabeleceu então o PIN (Plano de Integração Nacional) segundo o qual deveriam ser reservados 100 km de cada lado da estrada para o assentamento prioritário de nordestinos. Ao mesmo tempo, a Sudam começou a aprovar grandes projetos agropecuários e o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) aumentou o índice de distribuição de terras para os fazendeiros. Isso fez com que a taxa de desmatamento subisse assustadoramente. Apesar dos amplos financiamentos concedidos, na época – que abrangiam a mineração na serra dos Carajás, a construção de hidrelétricas, a implantação do pólo tecnológico e industrial da Zona Franca de Manaus e a construção de rodovias – o resultado mais evidente da nova política desenvolvimentista não foi a prosperidade econômica da Amazônia, mas a degradação e o acirramento das relações sociais em toda a região.”21
20 MAUÉS, R. Heraldo. Comunidades “no sentido social da evangelização”: CEB´s Camponeses e Quilombolas na Amazônia Oriental Brasileira. 21
História da ocupação da Amazônia, site: www.todaamazônia.org.br /biblioteca/files/cad.prof-4-história.pdf
Imagem nº 01: Cartaz de propaganda do Ministério do Interior
relativa ao projeto de desenvolvimento econômico da região
amazônica na década de 70: “chega de lendas vamos faturar”.
“muitas pessoas hoje estão sendo capazes de tirar proveito das
riquezas da Amazônia. Com o aplauso e incentivo da SUDAM.
Com o aplauso e incentivo do Banco da Amazônia. O Brasil
está investindo na Amazônia e oferecendo lucros para quem
quiser participar desse empreendimento. A transamazônica está
aí, a pista da mina de ouro. Comece agora faça sua opção pela
SUDAM, aplique a dedução de seu imposto de renda em um
dos 464 projetos econômicos já aprovados pela SUDAM. Ou
então apresente seu próprio projeto (seja ele industrial,
agropecuário ou de serviço) você terá todo apoio do governo
federal e dos governos dos Estados que compõem a Amazônia.
Há um tesouro a sua espera. Aproveite, fature enriqueça.
Informe-se nos escritórios da SUDAM ou nas agencias do Banco da Amazônia.”)
Acima, o cartaz (imagem 1) do Ministério do Interior publicado no final de 1970
oferecendo apoio do governo federal para projetos econômicos na Amazônia evidencia o tipo
de “integração” que os governos militares incentivaram nesta região.
Objetivando reduzir os conflitos por terra no nordeste do Brasil, os governos militares
estimularam a migração em massa de nordestinos para a Amazônia, que vieram com a
promessa do governo de que teriam um “pedaço de chão”. José de Sousa Martins (2000)
traduz o que a comunidade quilombola de Narcisa e muitas outras populações viveram em
relação ao projeto de desenvolvimento da ditadura, segundo Martins a fronteira:
“É o território do novo e o lugar em que os civilizados domesticam os bárbaros. Na verdade a fronteira tem sido entre nós o lugar em que o capital revela a barbárie, a sua ação corrosiva sobre os povos tribais, populações enraizadas, culturas refinadas e antigas e população não-indígenas, ambientes e patrimônios naturais22”(MARTINS, 2000),
Durante as entrevistas realizadas com as pessoas da comunidade uma frase foi bastante
enfatizada pelos comunitários acerca do território reivindicado: “o que agente quer é
retornar23 a área que era (da comunidade)”24. Essa referência marcante no discurso dos
moradores está diretamente relacionada ao processo de expropriação de terra, no sentido de
22MARTINS, José de Souza. Onde o arcaico e moderno se combinam. Diário do Pará. Belém. 04/06/2000. 23Em certo momento na entrevista quando nos referimos às áreas reivindicadas pelos comunitários utilizando o termo “retomar as terras”, os quilombolas prontamente nos corrigiram: “retomar não, retornar as áreas para a comunidade”. 24Entrevista com remanescentes de quilombos de Narcisa, dia 10/03/2010.
evidenciar que a comunidade busca, no processo de regularização, recuperar as terras que
antes faziam parte do território de Narcisa.
Pesquisador (P): Quando começaram a vir essas ocupações de fora? Como é que a área começou a ser reduzida, o começo disso quando foi? Domingos Lucas dos Santos(D): Essa área aí foi... de 1970 pra cá. Nessa época aí esse professor ele comprou uma terra aí embaixo, onde tem aquela fazendazinha. Aí quando foi na hora do corte da terra ele meteu aqui (diz riscando o chão) e tirou logo comendo essa área aqui de Narcisa, sem nós saber, sem o velho (Macedônio Lucas dos Santos) tá sabendo, o velho que tomava de conta. Então o prefeito de Capitão Poço Apolônio (Manoel Apolônio) pegou um bocado de cearense e botou aqui nessa cabeça de área, quando nós soubemos o pessoal já tava aí dentro, tinha um caso de 10 (famílias). P: Quando foi isso? D: Isso foi... 1978, 1977... Foi uma base de 1978, foi em 1978 mais ou menos. P: O senhor tinha quantos anos quando isso começou? D: Em 1978 eu tava com 13 P: Era menino ainda. D: Era menino, mas já era entendido. Me lembro de muita coisa antiga ainda. P: Esse momento foi o primeiro momento em que a área de vocês começou a ser reduzida? D: Foi. Aí eles pegaram logo essa cabeça aí... nos fundos. Aí foi o prefeito que tinha botado eles praí... aí sabe como é... o pessoal aqui isolado, com medo, e não tinha como, que era brigar com o prefeito né, que era o prefeito que tinha botado, num tinha como.25
No primeiro trecho da entrevista Domingos evidencia uma das primeiras formas de
expropriação sofrida pela comunidade, na qual, os antigos vizinhos, ou seja, aqueles que
migraram para região em momentos anteriores a esse e que construíram com a comunidade de
Narcisa limites de respeito, começam a vender suas terras, os novos compradores sem
nenhuma relação com a comunidade e não respeitando os marcos dos antigos, que se
baseavam em árvores e limites naturais, avançaram sobre as terras da comunidade. Apesar
desta forma de expropriação ter acontecido em menor escala, envolvendo menores
quantidades de terras, as áreas expropriadas foram significativas e, portanto, também estão
sendo reivindicadas pela comunidade.
O segundo trecho da entrevista é ainda mais elucidativo do impacto negativo causado
pelas chamadas frentes de expansão estimuladas e atualizadas pelos governos militares,
sobretudo, a partir da década de 1970. Segundo Domingos Lucas dos Santos, áreas utilizadas
há décadas pela comunidade, foram invadidas por colonos vindos do Ceará com apoio do
poder público local.
25Entrevista realizada em 10 de março de 2010 na comunidade de Narcisa.
O quilombola cita o prefeito Manoel Apolônio26 que de fato foi o terceiro prefeito a
governar o município de Capitão Poço e, conforme o relato, estimulou e apoiou a entrada e
fixação de colonos nas terras que desde o século XIX era ocupada e utilizada pela
comunidade. Essa forma de expropriação apoiada pelo poder público corresponde, como
veremos adiante, a maior parte das terras subtraídas de Narcisa (quase 50% do território
pleiteado pela comunidade).
Entre os colonos que teriam invadido as terras de Narcisa com apoio do poder público,
Domingos relata a presença de Luiz Marques da Silva conhecido como “Luiz da Mata”, assim
denominado segundo ele, por ter este colono desmatado toda a área que recebeu do poder
público. Essa atitude de desmatar a área, longe de ser um ato isolado de “Luiz da Mata”, era
comum entre os colonos que chegavam, pois o desmatamento do lote na concepção de
desenvolvimento dos militares significava que o colono estava beneficiando a sua terra. A
ação de desmatamento realizada pelos colonos era parte de uma orientação de
desenvolvimento estimulada e cobrada pelos governos militares segundo a qual a floresta
deveria dar lugar a agricultura e a pecuária.
“A ocupação ocorrida no período militar teve características distintas das anteriores. Antes, os colonizadores buscavam a região para explorar as riquezas da floresta, e agora querem a terra para expandir a agricultura e a pecuária. O modelo de latifúndio dos seringais, até então dominante na Amazônia, propiciava a permanência dos trabalhadores na floresta. O novo latifúndio, a fazenda para criação de gado, promovia a chamada “limpeza do terreno”, ou seja, a retirada da floresta e do povo que lá vivia. Repentinamente, índios, seringueiros, ribeirinhos viram suas terras invadidas e devastadas em nome de um novo tipo de progresso que transformava a floresta em terra arrasada.”27
Enquanto os colonos que chegavam eram considerados pelo Estado como sujeitos do
desenvolvimento da Amazônia, as populações tradicionais locais (não indígenas), com suas
práticas mais integradas aos ambientes e menos destrutivas a natureza eram encarados como
agentes do “atraso”, representantes do tradicional, e como nos mostrou o cartaz (imagem 1)
do Ministério do Interior, o tradicional para o projeto de desenvolvimento da ditadura era algo
que deveria acabar, pois em oposição à idéia de desenvolvimento presente nos discursos
militares, tradicional significava atraso para a região.
26 www.wikipedia.org , Segundo esta enciclopédia virtual a gestão de Manoel Apolônio na prefeitura de Capitão Poço foi de 31/01/1971 a 30/1/1973, e depois como vice-prefeito de 31/1/1983 a 30/12/1988. Durante a entrevista como se pode notar existiu dúvida apresentada pelos remanescentes de quilombos sobre o início da invasão das terras de Narcisa, Domingos fixou a data de 1978 porém acreditamos que a mesma aconteceu no início da década de 1970 quando Apolônio era o prefeito. De qualquer maneira a década de 1970 marca o período do início das expropriações das terras de Narcisa. 27
História da ocupação da Amazônia, site: www.todaamazônia.org.br /biblioteca/files/cad.prof-4-história.pdf
O modo de vida das populações tradicionais contrariava as concepções de
desenvolvimento dos governos militares, não havia, portanto, lugar para essas populações no
projeto de integração da Amazônia. Daí porque as famílias de comunidades como Narcisa,
ficaram excluídas do mesmo projeto. E, mais que isso, tiveram as suas terras expropriadas.
Assim, as terras da comunidade que há várias gerações eram utilizadas como áreas de
roça pelos moradores, foram expropriadas pelos colonos com apoio do Estado, e a Luiz
Marques da Silva (Luiz da Mata) sucederam outros colonos que também se apropriaram de
terras de Narcisa. Sem documentos de propriedade e marginalizados pelo projeto de
desenvolvimento dos militares, não restaram, naquele momento, muitas alternativas aos
remanescentes de quilombos.
Na década de 1980, os moradores de Narcisa tiveram que assistir as terras que foram
expropriadas do seu território serem legalizadas, pois o Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária - INCRA, autarquia do governo federal, iniciou os trabalhos de
regularização fundiária na região28. O Instituto regularizou as áreas que os colonos, com aval
do poder público, tinham expropriado dos quilombolas de Narcisa.
Luiz Marques e Osmarino Meireles, ambos citados pelos moradores da comunidade,
entre outros colonos, foram os beneficiários do trabalho de regularização fundiária
desenvolvido efetivamente pelo INCRA a partir do ano de 1979, mas que se estendeu pela
década de 1980. Desta forma, o governo federal regularizou/legalizou a área que foi
expropriada da comunidade.
Macedônio Lucas dos Santos, na época principal liderança de Narcisa, como estratégia
de resistência procurou o INCRA e participou daquela forma de regularização. O objetivo
desta liderança quilombola foi garantir uma parte das terras de Narcisa que ainda não tinham
sido expropriadas. Em seu nome, Macedônio conseguiu regularizar um lote de terra, obtendo
o título de propriedade, documento que a comunidade possui ainda hoje tendo sido repassado
para a geração que sucedeu Macedônio e assim assegurando uma pequena área da
comunidade.
Certamente, a existência desse documento foi importante, pois, garantiu, ainda que
precariamente, o prolongamento da existência daquela coletividade, hoje contando com
apenas sete famílias.
28Segundo Cícero Custódio de Araújo, Técnico Agrícola, servidor do INCRA/SR-01/Unidade Avançada – U. A. de Capitão Poço, a gleba Capitão Poço, onde situa-se o Território, que fica à margem esquerda do rio Guamá, é uma área discriminada pelo INCRA, arrecadada e matriculada em nome da União; os trabalhos de discriminação iniciaram em 1979 com a constituição da Comissão Especial – CE/PA-15; a partir do ano de 2.000 o memorial da Gleba foi dividido em 2, Capitão Poço 1 e 2, sendo que no memorial Capitão Poço 1 está inserida a comunidade Narcisa.
Ressalta-se aqui que, a área correspondente ao título de propriedade expedido pelo
INCRA, pela exigüidade de seu tamanho, não corresponde, obviamente, às necessidades
reprodutivas das famílias quilombolas ali existentes. Apesar disso, a comunidade manteve-se
no local onde basicamente se encontram as suas moradias; essa expropriação de terras, aliada
às dificuldades de várias ordens, teria engendrado a migração da maioria das famílias
quilombolas da comunidade que buscaram formas outras de sobrevivência nas cidades ou
vendendo sua força de trabalho aos fazendeiros que hoje ocupam a maior parte da área
expropriada da comunidade.
Na década de 1990 os colonos cujas terras haviam sido expropriadas do território de
Narcisa e posteriormente regularizadas/legalizadas pelo INCRA, começaram a vender seus
lotes para um fazendeiro da região.
Segundo os comunitários de Narcisa, o colono Luiz da Mata foi o primeiro a vender o
seu lote, seguido por outros colonos. Comprando de lote em lote, a terra passou por um
processo de concentração fundiária, já desmatada e sem a maior parte da cobertura vegetal, a
área tornou-se atrativa para as atividades de criação de gado e para agricultura com base na
monocultura com uso intensivo de adubos, fertilizantes e defensivos químicos.
Assim, os lotes regularizados pelo INCRA tornaram-se uma grande área de pasto
concentrada nas mãos de um fazendeiro que detém a maior parcela das terras reivindicadas
pela comunidade. Com base nas pesquisas realizadas em Narcisa o Grupo Técnico
Interdisciplinar GTI construiu o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID da
comunidade de Narcisa, nesse relatório estão incluídas essas terras que foram expropriadas da
comunidade, legalizadas em lotes individuais pelo INCRA e que atualmente estão
concentrados por um fazendeiro da região.
Os quilombolas de Narcisa atualmente aguardam o longo e burocrático processo de
regularização para que possam acessar novamente áreas que desde a década de 1970 foram
expropriadas da comunidade, esta expectativa envolve ainda o desejo dos quilombolas de que
seus parentes que migraram possam retornar para o território.
Portanto a titulação do território quilombola de Narcisa (se concretizada) trará
significativas mudanças locais. É buscando refletir sobre as mudanças que a modalidade de
titulação de territórios quilombolas trás para a realidade do campo brasileiro que passamos ao
último tópico deste artigo, particularmente nossa intenção é refletir sobre a titulação de
quilombos, ou seja, sobre esse reconhecimento/legalização de uma territorialidade específica
no contexto do histórico conflito entre os territórios advindos desse tipo de territorialidade X a
territorialização produzida pelo capital. Neide Esterci e Kátia Schweickardt nos falam do tipo
de territorialidade específica desenvolvida pelo Estado Nacional Brasileiro atendendo aos
interesses do capital sobre região amazônica desde a década de 1950:
“A idéia subjacente a estratégia de territorialização, que já vinha sendo posta em prática desde os anos 1950, e que passou a ser sistematicamente implantada a partir dos governos militares, era a transformação de uma região – considerada como demograficamente vazia e economicamente desintegrada do resto do país – e de seus espaços de natureza- percebidos como improdutivos – em áreas de exploração voltadas para o mercado.”(ESTERCI & SCHUWEICKARDT 2010)29
A modalidade de regularização fundiária quilombola.
As elites ligadas ao latifúndio, à grande propriedade, e à produção em larga escala para
exportação tiveram sempre bastante influencia sobre o Estado Nacional Brasileiro, e
buscaram quando era de seu interesse, invisibilizar, deslegitimar, e desarticular territórios
sociais com objetivo de manter as terras desses comunitários disponíveis para o mercado, a
chamada lei de terras foi uma das primeiras normativas do Estado Nacional Brasileiro para
impedir o acesso dos camponeses a terra e garantir terras para o mercado.
As disputas e conflitos entre territórios sociais versus terras para o mercado
encontram-se hoje mais acirradas do que nunca porque a Constituição Federal de 1988 passou
a reconhecer, além de terra pública e da terra privada, também os territórios, por meio do
reconhecimento de territórios quilombolas, entre outros territórios também reconhecidos.
Ainda que a relação entre comunidades quilombolas efetivamente tituladas e as
comunidades que solicitaram a regularização quilombola seja ínfima, abissal30, o fato é que a
partir de 1988 foi incluído no dispositivo jurídico do Estado Nacional Brasileiro o
29 ESTERCI, Neide & SCHUWEICKARDT, Kátia H.S.C. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, V.5, n.1, p. 24, jan. – abr. 2010. 30 “O Placar da Titulação. No ano de 2008, 23 comunidades quilombolas tiveram suas terras tituladas. Os títulos foram concedidos pelos governos dos estados do Pará, Piauí e Maranhão. Assim, o total de comunidades quilombolas com terras tituladas no Brasil subiu para 171. Ainda um número muito pequeno se considerarmos que em nosso país existem mais de 3.000 comunidades. O governo federal não titulou nenhuma terra quilombola em 2008. Trata-se de um placar ainda pior que o do ano de 2007, quando o governo federal entregou apenas dois títulos. O Incra não tem realizado as titulações, nem tampouco conseguido avançar na condução dos processos de terras quilombolas. Em 2008 apenas 15 portarias de reconhecimento de terras quilombolas foram assinadas pelo presidente do Incra. E somente 20 Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID) foram publicados. Em agosto de 2009, mais de 800 processos estavam abertos no Incra. Desse total, somente 230 processos efetivamente se iniciaram. O restante apenas recebeu um número de protocolo. Essa realidade, infelizmente, não parece que irá melhorar em curto prazo. Especialmente agora com as novas normas do Incra que tornaram o processo de titulação ainda mais lento e difícil de ser concluído.” (Fonte: “Terra de Quilombo, boletim 05 setembro 2009, 2ª edição. Comissão Pró-índio de São Paulo.) (Site:http://www.cpisp.org.br/pdf/Boletim05_Terras.pdf)
reconhecimento e a previsão de titulação de territórios sociais que há séculos encontravam-se
invisibilizados e marginalizados.
Destacamos, entretanto, entre as diversas formas de regularização de territórios
previstos na constituição de 1988 o modelo de regularização de territórios quilombolas. Isso
porque nesta modalidade a comunidade quilombola recebe, ao final do processo de
regularização, um título de propriedade, esse, porém, é um título coletivo e não individual. E é
outorgado pelo Estado em nome da associação quilombola que representa os comunitários e
não em nome de um indivíduo. Este título não apresenta demarcações internas de lotes
individuais e não pode ser vendido.
Deste modo, as características da modalidade de regularização de territórios
quilombolas trazem no seu bojo três resultados com implicações profundas sobre a situação
fundiária nacional.
Primeiro, aparentemente, o território deixa de participar, ou a participação no mercado
de terras é dificultado sobremaneira, já que se trata de um título coletivo outorgado em nome
de uma associação: um ente jurídico de representação coletiva e não em nome de um
indivíduo. Ainda, a titulação coletiva apresenta os limites de um único território sem parcelas
internas, e por fim, por trata-se de um título que prevê a impossibilidade de ser vendido.
Segundo, o fato de que as propriedades privadas que incidem no território identificado
e delimitado devem ser, conforme consta na legislação, desapropriadas pelo Estado Nacional
e incorporadas ao território quilombola, incluindo-se as propriedades privadas legalmente
comprovadas. Nesse sentido, a legislação indica que o território quilombola, ou seja, o direito
coletivo ao território coletivo quilombola se sobrepõe ao direito individual à propriedade
privada, dessa maneira, na modalidade de regularização de territórios quilombolas previsto na
Constituição Federal de 1988 o território coletivo se sobrepõe à propriedade privada
individual.
Terceiro, o fato de se tratar de uma titulação coletiva, ou seja, na qual se realiza o
destacamento da propriedade do patrimônio público para o patrimônio privado31, porém, neste
caso a propriedade é coletiva. Essa característica apresenta implicações profundas como o fato
de propiciar, em tese, maior autonomia na apropriação, uso e controle do território pelas
comunidades já que, diferente, por exemplo, da modalidade reservas extrativistas em que o
Estado Nacional reconhece o território de povos tradicionais, porém, a terra continua a ser de
31 Incluindo-se o fato de que quando o Estado desapropria opera a anexação da propriedade privada à propriedade da União, ou seja, a terra privada passa a ser pública, sendo posteriormente destacada do patrimônio público para tornar-se uma propriedade privada coletiva no caso do formato da titulação de comunidades remanescentes de quilombos. Portanto ocorrendo o destaque do patrimônio público para o privado.
propriedade da União e, portanto, continua sob controle do Estado, ainda que, em tese, esse
considere a participação dos comunitários na gestão do território. No caso da titulação de
territórios quilombolas a terra passa a pertencer a uma coletividade, sem a tutela do Estado.
Esse fato, essa autonomia reconhecida por meio de uma titulação coletiva, de uma
propriedade coletiva reconhecida e registrada em cartório, cujo proprietário não é uma pessoa
e sim uma entidade de representação da coletividade, nos parece profundamente inovadora e
transformadora num contexto histórico, político, social, econômico e simbólico brasileiro, no
qual estes territórios foram sempre marginais, outsiders, clandestinos, ilegais, invisíveis, não
reconhecidos e deslegitimados pelas elites agrárias e, durante longo período, pela legislação
do Estado Nacional
É justamente por isso tudo que, atualmente, num contexto de um Estado Democrático
de Direito, ou seja, em “um outro jogo”, as forças políticas ligadas ao latifúndio, à grande
propriedade e ao agronegócio por meio, entre outros, das articulações da sua representação - a
bancada ruralista - agem no sentido de buscar deslegitimar, desarticular, ou reduzir os limites
do território de auto-definidas comunidades remanescentes de quilombos apenas aos locais de
moradia.
Assim, o conflito entre territórios sociais e a territorialização propiciada pelo
capital que, entre outras, busca constantemente terras para o mercado está em pauta e
ainda indefinido. Nos próximos anos poderemos observar o avanço do reconhecimento de
territórios sociais ou o influxo destes em prol da expansão do agronegócio. O jogo ainda
está aberto, os dados ainda estão rolando, as definições dependerão como sempre dos
processos políticos/sociais em andamento e das performances dos sujeitos sociais
envolvidos nesse conflito.
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