alexis de tocqueville - a democracia na américa (livro i)

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  • Em que outro lugar poderamos encontrar maiores esperanas e maiores lies? No voltemos nossos olhares para a Amrica a fim de copiar servilmente as instituies que ela se deu, mas para melhor compreender as que nos convm, menos para a buscar exemplos do que ensinamentos, antes para tomar-lhe emprestados os princpios do que os detalhes de suas leis. As leis da Repblica francesa podem e devem, em muitos casos, ser diferentes das que regem os Estados Unidos, mas os princpios sobre os quais as constituies americanas repousam, esses princpios de ordem, de ponderao dos poderes, de liberdade verdadeira, de respeito sincero e profundo ao direito so indispensveis a todas as Repblicas, devem ser comuns a todas, e podemos dizer de antem o que onde eles no se encontrarem a Repblica logo cessar de existir.

    CAPA: Rex Design

  • A DEMOCRACIA NA AMRICA

  • A DEMOCRACIA NA AMRICA

    Leis e CostumesD e certas leis e certos costumes polticos que

    foram naturalmente sugeridos aos americanos p or seu estado social democrtico

    Alexis de Tocquevle

    Traduo EDUARDO BRANDO

    Prefcio, bibliografia e cronologia FRANOIS FURET

    Martins FontesSo Paulo 2005

  • Esta obra foi publicada originalmente em francs com o tftulo DE LA DMOCRATIE EN AMRIQUE.

    Franois Furet, introduo e notas em Alexis de TocqueviUe,De la dmocratie en Amrique, GF-Flammarion, Paris, 1981.

    Copyright 1998, Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,So Paulo, para a presente edio.

    V edioagosto de 1998

    2a ediojulho de 2005

    TraduoEDUARDO BRANDO

    Traduo do prefcioAntonio de Pdua Danesi,Preparao do original

    Luzia Aparecida dos Santos Reviso grfica

    Ana Maria de O. M. Barbosa Eliane Rodrigues de Abreu Dinarte Zorzanelli da Silva

    Produo grfica Geraldo Alves

    Paginao/Foiolitos Studio 3 Desenvolvimento Editorial

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (GP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Tocqueville, Alexis de, 1805-1859.A democracia na Amrica : leis e costumes de certas leis e

    certos costumes polticos que foram naturalmente sugeridos aos americanos por seu estado social democrtico / Alexis de TocqueviUe; traduo Eduardo Brando; prefcio, bibliografia e cronologia Franois Furet. - 2a ed. - So P au lo : Martins Fontes, 2005. - (Paidia)

    Ttulo original: De Ia dmocratie en Amrique.Bibliografia.ISBN 85-336-2170-1

    1. Democracia 2. Estados Unidos - Condies sociais 3. Estados Unidos - Poltica e governo I. Furet, Franois, 1927-. II. Ttulo. III. Srie.

    05-5299 CDD-321.80420973

    ndices para catlogo sistemtico:1. Estados Unidos : Democracia :Cincia poltica 321.80420973

    Todos os direitos desta edio para a lngua portuguesa reservados L iv r a r ia M a rtin s F on tes E d ito r a L td a .

    Rua Conselheiro Ram alho, 330 01325-000 So Paulo SP Brasil Tel. (11) 3241.3677 Fax (11) 3101.1042

    e-m ail: info@m artinsfontes.com .br http:/izoww.martinsfontes.com.br

  • NDICE

    Prefcio........................................................................................ XIbibliografia de Tocqueville.................................................... LICronologia.................................................................................. LV

    A DEMOCRACIA NA AMRICA

    Advertncia da dcima segunda edio............................ 3Introduo.................................................................................. 7

    PRIMEIRA PARTE

    I. Configurao exterior da Amrica do Norte........... 25II. Do ponto de partida e da sua importncia para o

    futuro dos anglo-americanos...................................... 35Motivos de algumas singularidades que as leis eos costumes dos anglo-americanos apresentam.... 52

    III. Estado social dos anglo-americanos......................... 55Que o ponto saliente do estado social dos anglo-americanos ser essencialmente democrtico...... 55Conseqncias polticas do estado social dos anglo-americanos................................................................. 63

    IV. Do princpio da soberania do povo na Amrica... 65V. Necessidade de estudar o que acontece nos Esta

    dos antes de falar do governo da Unio................. 69Do sistema comunal na Amrica............................... 70

  • Circunscrio da comuna............................................. 72Poderes comunais na Nova Inglaterra...................... 72Da existncia comunal.................................................. 75Do esprito comunal na Nova Inglaterra................. 77Do condado na Nova Inglaterra................................ 80Da administrao na Nova Inglaterra........... ........... 81Idias gerais sobre a administrao nos EstadosUnidos........ ....................................................................... 91Do Estado.......................................................................... 94Poder legislativo do Estado................... ..................... 95Do poder executivo do Estado................ ........... ...... 96Dos efeitos polticos da descentralizao administrativa nos Estados Unidos..................................... 97

    VI. Do poder judicirio nos Estados Unidos e de suaao sobre a sociedade poltica................................. 111Outros poderes concedidos aos juizes americanos... 117

    VII. Do julgamento poltico nos Estados Unidos.......... 121VIII. Da constituio federal.......... ....................................... 127

    Histrico da constituio federal............................... 127Panorama sumrio da constituio federal............. 129Atribuies do governo federal................................. 130Poderes federais.............................................................. 132Poderes legislativos....................................................... 132Outra diferena entre o senado e a cmara dosrepresentantes.................................................................. 135Do poder executivo...................................................... . 136Em que a posio do presidente dos Estados Unidos difere da de um rei constitucional da Frana... 138 Causas acidentais que podem aumentar a influncia do poder executivo.................................................. 141Por que, para dirigir os negcios, o presidente dosEstados Unidos no precisa ter maioria nas cmaras. 143Da eleio do presidente............................................. 144Modo de eleio............................................................ 149Crise da eleio............................................................... 152Da reeleio do presidente......................................... 154Dos tribunais federais.................................................... 157Maneira de estabelecer a competncia dos tribunais federais.................................................................. 160

  • Diferentes casos de jurisdio..................................... l6 lManeira de proceder dos tribunais federais........... 165Nvel elevado que ocupa a corte suprema entre osgrandes poderes do Estado............... ........ ................... 168Em que a constituio federal superior constituio dos Estados....................................................... 170O que distingue a constituio federal dos Estados Unidos da Amrica de todas as outras constituies federais............................................................. 174Das vantagens do sistema federativo em geral eda sua utilidade especial para a Amrica................ 178O que faz o sistema federal no estar ao alcance de todos os povos e o que permitiu que os anglo-americanos o adotassem....................................... 184

    SEGUNDA PARTE

    I. Como se pode dizer rigorosamente que nos Estados Unidos o povo que governa........................ 197

    II. Dos partidos nos Estados Unidos.............................. 199Restos do partido aristocrtico nos Estados Unidos.. 205

    III. Da liberdade de imprensa nos Estados Unidos..... 207IV. Da associao poltica nos Estados Unidos........... 219V. Do governo da democracia na Amrica................... 229

    Do voto universal.......... ..................... .......................... 229Das escolhas do povo e dos instintos da democracia americana nas suas............................................ 230Das causas que podem corrigir em parte essesinstintos da democracia................................................ 233Influncia que a democracia americana exerceusobre as leis eleitorais................................................... 236 -Os funcionrios pblicos sob o imprio da democracia americana.............................................................. 237Da arbitrariedade dos magistrados sob o imprioda democracia americana................................................240

    Instabilidade administrativa nos Estados Unidos......242 Dos cargos pblicos sob o imprio da democracia americana................................................................... ...244

  • Dos instintos da democracia americana no estabelecimento da remunerao dos funcionrios...... 248Dificuldade de discernir as causas que levam o governo americano a economizar.................................... 250Podem-se comparar as despesas pblicas dosEstados Unidos com as da Frana?............................ 251Da corrupo e dos vcios dos governantes na democracia; dos efeitos que da resultam sobre amoralidade pblica......................................................... 255De que esforos a democracia capaz.................... 258Do poder que, em geral, a democracia americanaexerce sobre si m esm a.................................................. 26lDa maneira como a democracia americana conduz os negcios externos do Estado........................ 263

    VI. Quais so as vantagens reais que a sociedadeamericana retira do governo da democracia.......... 269Da tendncia geral das leis sob o imprio da democracia americana e do instinto dos que as aplicam.... 269Do esprito pblico nos Estados Unidos................. 274Da idia dos direitos nos Estados Unidos............... 277 _Do respeito lei nos Estados Unidos....................... 280Atividade que reina em todas as partes do corpo poltico nos Estados Unidos; influncia que ela exerce na sociedade...................................................... 282

    VII. Da onipotncia da maioria nos Estados Unidos ede seus efeitos................................................................ 289Como a onipotncia da maioria aumenta na Amrica a instabilidade administrativa que natural sdemocracias..................................................................... 292Tirania da maioria........................................................... 294Efeito da onipotncia da maioria sobre a arbitrariedade dos funcionrios pblicos americanos...... 297Do pixler que a maioria exerce sobre o pensamento na Amrica.......................................................... 297Efeitos da tirania da maioria sobre o carter nacional dos americanos; do esprito corteso nosEstados U nidos............................................................... 301Que o maior perigo das repblicas americanas provm da onipotncia da maioria........................... 304

  • VIII. Do que tempera nos Estados Unidos a tirania damaioria - Ausncia de centralizao administrativa.. 307 Do esprito legista nos Estados Unidos e como eleserve de contrapeso democracia.............................. 308Do jri nos Estados Unidos considerado como instituio poltica............................................................... 317

    IX. Das principais causas que tendem a manter a repblica democrtica nos Estados Unidos................ 325Das causas acidentais ou providenciais que contribuem para a manuteno da repblica democrtica nos Estados Unidos........................................... 326Da influncia das leis sobre a manuteno darepblica democrtica nos Estados Unidos............. 337Da influncia dos costumes na manuteno darepblica democrtica nos Estados Unidos............. 337Da religio considerada como instituio poltica, como ela serve poderosamente manuteno da repblica democrtica entre os americanos 338 Influncia indireta que exercem as crenas religiosas sobre a sociedade poltica nos EstadosUnidos....................................................................... ........ 341Das principais causas que tornam a religio poderosa na Amrica......................................................... 347Como as luzes, os hbitos e a experincia prtica dos americanos contribuem para o sucesso dasinstituies democrticas.............................................. 354Que as leis servem mais manuteno da repblica democrtica nos Estados Unidos do que ascausas fsicas, e os costumes mais que as leis....... 359As leis e os costumes bastariam para manter asinstituies democrticas fora da Amrica?............. 363Importncia do que precede com relao Europa.. 367

    X. Algumas consideraes sobre o estado atual e o futuro provvel das trs raas que habitam o territrio dos Estados Unidos........................................... 373Estado atual e futuro provvel das tribos indgenasque habitam o territrio possudo pela Unio..... . 378Posio que ocupa a raa negra nos Estados Unidos: perigos que sua presena faz os brancos correrem ................................................................................. 393

  • Quais as possibilidades de durao da Unio americana? Que perigos a ameaam?................................Das instituies republicanas nos Estados Unidos: quais suas chance! 'de durao?....................... 453Algumas consideraes sobre as causas da grandeza comercial dos Estados Unidos......................... 460

    Concluso................................................................................... 469Notas do autor........................................................................... 479Notas............................................................................................ 507

  • PREFCIO

    O sistema conceptual da Democracia na Amrica?

    H na viagem americana de Tocqueville um mistrio de origem: Em que data essa idia lhe ocorreu pela primeira vez? Quando o projeto tomou corpo? E por que a Amrica?

    Nem os fatos comuns, nem a documentao existente permitem responder de modo convincente a essas perguntas. Os fatos so claros, mas iluminam apenas o lado menor da questo: a misso penitenciria. Quando Tocqueville e seu amigo Beaumont embarcam no Havre, em abril de 1831, os dois jovens magistrados esto investidos de uma misso de exame das instituies penitencirias americanas1. Misso solicitada pelos interessados, no paga, mas oficial, e que ser coroada por um relatrio" remetido aos poderes pblicos, como manda a praxe, e publicado em seguida2. Mas esse estudo, seja qual for o interesse que apresenta para Tocqueville, que no cessar de se interessar pela reforma das prises francesas, no passa evidentemente, no plano intelectual, de um acessrio de sua grande viagem.

    A documentao disponvel no permite ter um testemunho irrecusvel a respeito de suas razes profundas-, com efeito, a correspondncia de Tocqueville e de Gustave de Beaumont s lhes faz aluso por uma carta de Tocqueville de 14 de maro de 18315, exatamente vspera da partida; ainda assim, essa carta menciona apenas as razes circunstanciais ligadas

    ' As referncias sobre outras obras de Tocqueville remetem edio em via de publicao das Oeuvres compltes da Gallimard.

  • XII A DEMOCRACIA NA AMRICA

    Revoluo de 1830 que colocou os dois candidados viagem, descendentes de famlias legitimistas, numa posio delicada. Alis, mesmo admitindo-se esse tipo de motivao diplomtica, por que a Amrica? Muitos outros pases poderiam oferecer-se curiosidade de dois amigos e legitimar igualmente a sua ausncia. Nessa poca, a jovem Repblica americana constitui o modelo de uma famlia de espritos estranha tradio na qual eles foram educados e que constituiu a oposio liberal sob a Restaurao: so os liberais de todos os matizes, os franco-maons, os republicanos que formam, sob a gide simblica de La Fayette, o campo das simpatias americanas4. Verdade que Beaumont era parente afastado de La Fayette, e que no plano familiar o jovem Alexis tivera a oportunidade de encontrar antigos americanos, como Chateaubriand, ou Hyde de Neuville, o antigo agente dos prncipes durante a Revoluo, ex-embaixador em Washington, amigo ntimo do conde de Bordeaux e antigo bispo de Boston4 bis.

    As instituies livres, de que Tocqueville e Beaumont procuram talvez o segredo, antes em pases menos radicalmente estranhos sua tradio, e espontaneamente mais caros ao seu corao, que eles poderiam ir estud-las: a Sua, a Inglaterra sobretudo. Mas a Sua s deve a sua reputao republicana exigidade de seu territrio, segundo a teoria poltica clssica; e a Ipglaterra, que a opinio do tempo v beira da falncia, no , de todo modo, uma democracia. Por isso Tocqueville far ali, pouco mais tarde, algumas viagens. E sua correspondncia dos anos que antecederam 1830, no momento em que ele freqenta com paixo os famosos cursos de Guizot na Sorbonne, mostra seu interesse pela histria comparada da Frana e da Inglaterra5. Por que, pois, a Amrica?

    Para essa questo, pelo menos, h uma resposta do prprio Tocqueville, bem perto de seu regresso, j que exatamente aps a publicao do primeiro volume da Democracia que ele escreve ao seu amigo Kergorlay, em janeiro de 18356. Primeiro ele lhe observa que, sendo inevitvel a marcha para a igualdade, o problema central da poca saber se ela ser compatvel com a liberdade; e acrescenta:

  • PREFCIO XIII

    No foi portanto sem ter refletido maduramente a esse respeito que me abalancei a escrever o livro que ora estou publicando. No dissimulo em absoluto o que h de incmodo na minha posio: ele no deve atrair para mim as simpatias vivas de ningum. Uns acharo que no fndo eu no gosto da democracia e qe-sou severo para com ela; outros pensaro que favoreo imprudentemente o seu desenvolvimento. O que haveria de mais feliz para mim seria que no se lesse o livro, e essa uma felicidade de que talvez desfrutarei. Sei de tudo isso, mas eis a minha resposta: h dez anos venho pensando uma parte das coisas que logo lhe exporei. Fui para a Amrica apenas para me esclarecer sobre esse ponto. O sistema penitencirio era um pretexto: tomei-o como um passaporte que me permitiria penetrar em todos os lugares dos Estados Unidos. Nesse pas, onde encontrei mil objetos que estavam fora da minha expectativa, percebi que muitos deles diziam respeito s perguntas que tantas vezes fizera a mim mesmo.

    H quase dez anos... TocqueviUe escreve isso em 1835, e ele nasceu em 1805: tinha pois uns vinte anos quando imaginou a questo que iria lev-lo Amrica e, de um modo mais geral, nortear toda a sua vida intelectual e poltica. um caso rarssimo na histria do pensamento, parece-me, um sistema cristalizado to cedo, e ainda por cima num jovem educado em um meio estreito e conhecendo pouco mais que o direito. Acodem-nos naturalmente as palavras de Sainte-Beuve: Ele comeou a pensar antes de haver aprendido o que quer que fosse.7 Retomando a mesma idia sob outra forma, po- de-se dizer que ele oferece o exemplo-limite de um intelectual que nunca aprendeu seno no mbito daquilo que previamente pensara, o que lhe d ao mesmo tempo - e sem falar nos ganhos de tempo e de energia - uma excepcional estreiteza e uma excepcional profundidade: nada registrado ao acaso, pelo mero prazer de saber. A viagem americana, como a histria da Frana ou da Inglaterra, um elemento de experimentao sistemtica desse esprito dedutivo. Resta compreender por qu, o que nos obriga a refazer a montante a histria dos seus pensamentos.

  • XIV A DEMOCRACIA NA AMRICA

    Se o sistema se constitui to cedo, parece-me que porque edificado, mesmo na sua parte explicativa, sobre um alicerce de ordem no intelectual, mas puramente existencial: Tocqueville pertence ao mundo vencido pela Revoluo Francesa, da qual tira, como toda a sua gerao, o sentimento da marcha irreversvel da histria. Mas, como um esprito impelido para a abstrao, o famoso destino romntico assume nele a forma de um conceito tirado diretamente da experincia do seu meio e que a vitria do princpio democrtico sobre o princpio aristocrtico. Toda a sua obra pode ser encarada como uma interminvel reflexo a respeito da nobreza.

    Este o seu ponto de partida, e a sua parte vivida tanto quanto pensada: uma meditao principiada na adolescncia sobre si mesmo, sua famlia, sua vida, o sentido histrico daquilo por que passaram os seus pais e daquilo que ele mesmo est vivendo, ou revivendo, em meio aos malogros da Restaurao e de 1830. Seu pai, Herv de Tocqueville, salvo da guilhotina pelo 9 de termidor, no cessou de meditar nas mesmas questes. Prova disso que publicou em 1847, sob o ttulo de uma outra poca, que trai a sua gerao, um estudo histrico das causas da Revoluo: discpulo de Montesquieu, o velho conde coloca no centro da sua anlise a degradao das relaes entre a monarquia absoluta e a nobreza e a incapacidade de Lus XV de adaptar o regime s reivindicaes liberais da aristocracia: Richelieu e Lu ^XIV fizeram prevalecer a autoridade absoluta sobre as liberdades pblicas porque a nao estava cansada das dissenses que haviam ensangentado os regimes anteriores. Lus XV desconheceu o esprito do seu tempo; as palavras de liberdade se repetiam por toda parte: elas repercutiam sob as abbadas da justia e saam da prpria boca dos cortesos. No seria a mo dbil de um monarca desconsiderado que iria sustentar o edifcio erigido por Lus, o Grande. A revoluo j irrompia na classe alta; ela descer pouco a pouco ltima9 Assim, Herv de Tocqueville, para entender o que ele viveu, invoca o esprito do tempo, encarnado pela nobreza, desconhecido pela monarquia. Alexis encontrou no seu bero essa interrogao, inseparvel do seu meio, sobre o grande drama histrico vivido e pensado a um s tempo como inevitvel e ligado todavia a dois responsveis, a nobreza e o rei da Frana.

  • PREFCIO XV

    Ora, essa interrogao nunca deixou de ser viva. Desde 1815, a monarquia restaurada a alimenta ativamente com os seus elementos, pela sua vontade de lutar contra o esprito do tempo em nome da reencontrada aliana entre o rei e a sua nobreza. No termo dessa monarquia cada vez mais aristocrtica, h as jornadas de julho de 1830: a Revoluo Francesa continua. E no por acaso que essa data cristaliza as opes profundas de Alexis de TocqueviUe, revelando a maneira por que ele reinveste a herana familiar em cacifes inditos e em pensamentos novos. O caso do juramento ao novo rei, exigido pela lei de 31 de agosto de 1830, coloca-o um pouco margem do seu meio. Seu amigo mais chegado, Louis de Kergorlay, deixa o exrcito e se misturar pouco mais tarde aventura da duquesa de Berry; ele, pelo contrrio, presta o juramento, sem alegria ( um momento desagradvel, comenta numa carta10), mas tambm sem drama de conscincia maior, lamentando simplesmente que esse ato possa ser interpretado como ditado pelo interesse, quando um testemunho de resignao. E a deciso da viagem americana, ainda que essa longa ausncia possa ter sido deliberada para fazer esquecer a situao um pouco delicada na qual o caso do juramento coloca TocqueviUe em relao ao seu meio, revela a mesma indiferena, mas num plano terico: porque est ligada a um sistema intelectual j construdo, graas ao qual a indagao paterna se v fortemente renovada, desembaraada dos conformismos da tradio e da retrica nobiliria.

    Nesse sistema, acerca de cuja elaborao no sabemos quase nada, uma vez que TocqueviUe j TocqueviUe aos vinte anos, pouco importa que a dinastia reinante seja legtima; pouco importa mesmo, no limite, que haja uma dinastia. A questo central no a das relaes entre a nobreza e a monarquia; , sim, a da compatibilidade entre nobreza e democracia. Com os trs elementos dspares com os quais o seu meio produzia a infelicidade da histria - monarquia, nobreza e esprito do tempo - , TocqueviUe erigiu um sistema extremamente simples, dotado de duas dimenses. Ele mantm o plo da nobreza, ponto de partida obrigatrio, experincia social primeira, enraizamento vital de sua teoria: tipo de governo, ou de sociedade, ou de cultura, a aristocracia

  • XVI A DEMOCRACIA NA AMRICA

    ser o dever-ser da nobreza, O outro plo, esse herdeiro de um princpio vencido, deve figurar o princpio vencedor: a democracia, que inseparavelmente governo do povo, sociedade igualitria e, para retomar o vocabulrio paterno, esprito do tempo.

    H nessa elaborao uma parte de fatalismo, uma submisso ao inevitvel que corresponde experincia histrica do meio; a marcha para a democracia cada vez mais completa que define o sentido da evoluo posta em evidncia pela Revoluo Francesa. Mas Tocquevle no procura as razes disso, pelo menos nessa poca. Diversamente de Marx, por exemplo, para quem o sentido da histria demonstr- vel, e o fim do capitalismo dedutvel das leis econmicas que o governam, ele coloca como axioma ou como evidncia a idia de que a humanidade caminha a passos largos para a era democrtica. No se trata de um raciocnio, mas exatamente da traduo abstrata, conforme natureza do seu gnio, da experincia de vida sua e de seu meio. Idia que alis no nova (embora ele tenha contribudo poderosamente para difundi-la) e que se encontra em muitos autores da poca e mesmo no seu meio (seu parente Chateaubyand, por exemplo), mas que ele o nico, uma vez que a exps como ponto de partida, a querer aprofundar e explorar em todos os seus matizes. Ele a entende em nveis diversos, cultural, social, poltico, mas dos quais os dois primeiros definem para ele a parte do inevitvel: de fato, se as sociedades do seu tempo lhe parecem impelidas por uma espcie de fatalidade para uma crena cada vez mais geral na igualdade e para uma igualizao cada vez maior das condies, as formas polticas de que essa evoluo pode acompanhar-se continuam a depender das opes humanas. O problema que vai dominar sua vida intelectual de ponta a ponta , pois, menos o das causas da igualdade do que o das suas conseqncias sobre a civilizao poltica. Mtodo e problemtica, ainda aqui, nos antipodas dos de Marx. Marx se interessa pelas leis da estrutura econmica e pelas relaes entre o econmico e o social, donde a tendncia a deduzir o poltico. Tocqueville explora as relaes entre o princpio que governa as sociedades e o tipo de regime poltico que da

  • PREFCIO XVII

    pode decorrer, sem que esse encadeamento jamais seja necessrio.

    Assim, Tocqueville mistura incessantemente dois tipos de anlise e dois tipos de convico. No plano do raciocnio ele justape uma lgica da tipologia, a partir da oposio aristocracia/democracia, e uma lgica da evoluo, fundada no triunfo inevitvel da democracia. Tratando-se de sua concepo geral do mundo, ele compensa a sua aceitao racional da democracia com o combate pelos valores inseparveis do mundo aristocrtico, em primeiro lugar a liberdade. Toda a sua vida est estruturada desde muito cedo sobre esse problema, misto de teoria e de vivncia, ou sobre essa teoria da vivncia familiar, que mesclar sem cessar os fatos e os valores e juntar a riqueza conceptual e a mincia documental s convices polticas.

    E se a viagem americana j se liga a essa explorao porque a Amrica oferece ao jovem aristocrata e ao esprito sistemtico que ele um duplo laboratrio, existencial e conceptual; ptria construda e fundada sobre a negao da nobreza (isto , onde a possibilidade da sua existncia excluda), a Amrica oferece o exemplo de uma experincia qui- micamente pura da democracia: achado propriamente genial por sua simplicidade e audcia, Tocqueville vai fazer dele o espao de verificao e enriquecimento de uma idia. Imagino que ele tinha pressentido, quando embarcou, o grande segredo que confiar pouco mais tarde ao conde Mol ao regressar de sua segunda viagem Inglaterra, em 1835, numa carta que responde com algum atraso pergunta de 1831: por que a Amrica? [...] Seria preciso ser dotado de grande fatuidade filosfica para imaginar que se pode julgar a Amrica em seis meses. Um ano sempre me pareceu um espao demasiado curto para poder apreciar convenientemente os Estados Unidos, e ir)finitamente mais fcil adquirir idias claras e noes precisas sobre a Unio americana do que sobre a Gr- Bretanha. Na Amrica, todas as leis procedem de certo modo do mesmo pensamento. Toda a sociedade, por assim dizer, est fundada sobre um nico fato; tudo decorre de um princpio nico. Poder-se-ia comparar a Amrica a uma grande floresta atravessada por uma infinidade de estradas em linha

  • XVIII A DEMOCRACIA NA AMRICA

    reta que confluem para o mesmo ponto. Trata-se apenas de encontrar a praa circular, e tudo se descortina com um nico relance de olhos.

    Assim, a Amrica permite por excelncia a anlise in vivo do princpio democrtico em ao: dos riscos que ele faz correr e das vantagens que oferece liberdade. As naes europias esto a meio caminho entre aristocracia e democracia, dilaceradas pelo conflito dos dois princpios e dos dois mundos, no raro s voltas com essa forma extrema da democracia que a revoluo; o exemplo americano no cons-

    -ttui o-futuro delas, necessariamente diverso, mas lhes d motivos para pensar nesse futuro, de modo a tirar da um mximo de vantagens e um mnimo de inconvenientes para a liberdade. TocqueviUe resigna-se com o fim da nobreza, se o legado aristocrtico da liberdade puder sobreviver aos tempos democrticos.

    Se se quiser, alis, compreender o vnculo estreito que existe entre a viagem americana e a anlise francesa de TocqueviUe, pode-se tambm reportar, a jusante, Democracia, inteiramente orientada para a comparao entre a Amrica e a Europa. O texto mais explcito a esse respeito o fim do Captulo IX, no Livro II do primeiro volume. TocqueviUe se interroga inicialmente sobre a importncia das leis e dos costumes na manuteno da democracia americana, por oposio ao que ele chama de causas materiais, isto , as particularidades do Novo Mundo e seus privilgios no que concerne relao do homem com o espao. Est diante, de um problema clssico - talvez do problema central - das cincias sociais, que consiste em isolar o papel e a influncia de uma varivel ou de um conjunto limitado de variveis sobre um processo de conjunto. Ele discerne muito bem a dificuldade da questo. Prova disso que procura como ponto de comparao um pas fora da Amrica, portanto privado dos benefcios geogrficos que lhe so inseparveis e provido, em compensao, de leis e costumes comparveis: mas no o encontra. Conclui da que, na falta de objeto de comparao, s se pode arriscar opinies12.

    Passagem tpica na medida em que expressa o seu modo fundamental de pensamento e de demonstrao, que o

  • PREFCIO XIX

    mtodo comparativo. Uma vez que h uma ou vrias idias como hipteses de explicao do fenmeno cujas razes ele Investigou, Tocqueville as submete prova dos diferentes terrenos. Quando no encontra terrenos pertinentes em relao ao problema colocado, ele arrisca opinies, ou seja, 110 seu entender, proposies no-demonstrveis que so quando muito verossmeis. Ora, a^Afnrica configura um dos plos desse vaivm intelectual que forma a trama de todo o seu livro.

    Mas, como sempre acontece nas cincias humanas, no existem termos de comparao rigorosos. A Europa no apenas est privada das vantagens fsicas de que se beneficiaram os anglo-americanos. Ela comporta traos histricos que a diferenciam radicalmente do Novo Mundo: Tocqueville cita o nmero de seus habitantes, suas grandes cidades, seus exrcitos e as complicaes de sua poltica. Essas heranas bastariam por si ss para impedir que se possa transpor as leis da democracia americana para a Europa, j que ali elas se chocariam com outros costumes, outras idias, outras crenas religiosas. Os Estados Unidos no constituem pois para a Europa, no pensamento de Tocqueville, que nunca distingue nitidamente entre os fatos. os valores, nem uma experincia conceptualmente comparvel nem um modelo que cumpriria seguir. Porque pode-se supor um povo democrtico organizado de uma maneira outra que no a do povo americano13.

    O que constitui, no obstante, o valor universal da sua anlise da democracia americana a existncia de um problema comum ao povo americano e aos povos europeus; problema comum ligado ao fato de que os homens no so diferentes aqui e l e de que eles conhecem aqui e l as mesmas paixes caractersticas do estado social democrtico: a impacincia do seu destino, a inquietude da promoo, a inveja de quem est por cima. Desse estado de esprito os americanos fizeram a prpria natureza de sua sociedade e o seu motor; mas a canalizaram pelo direito, pela religio, pelas instituies, pelos costumes. Os povos europeus, por estarem s voltas com paixes sociais idnticas, esto diante do mesmo problema institucional, no sentido amplo do termo: como organizar essas paixes em leis e costumes?

  • XX A DEMOCRACIA NA AMRICA

    Problema ainda mais difcil de resolver porque, como TocqueviUe explicar no segundo volume de seu livro (3* parte, Cap. XXI), requintando a sua anlise, os povos europeus so menos democrticos do que revolucionrios. Com isso ele introduz uma distino essencial, que permeia todo esse segundo volume e pela qual ele explica a estabilidade poltica e o consenso americano, Mostra que o estado social democrtico pouco propcio s revolues, em virtude do tecido muito cerrado dos microinteresses conservadores-que ele no cessa de criar e de nutrir. , pelo contrrio, a desigualdade que leva revoluo, e para destruir o estado social aristocrtico e a ideologia da desigualdade que os franceses a fizeram; mas dela eles conservaram paixes e um estado de esprito pouco propcios estabilidade das instituies. Na Amrica, tm-se idias e paixes democrticas; na Frana, temos ainda paixes e idias revolucionrias.14

    Mas, ainda que o problema europeu seja mais difcil de resolver do que o problema americano, da resulta que somente a comparao permite distinguir os seus elementos: A organizao e o estabelecimento da democracia entre os cristos o grande problema do nosso tempo. Os americanos no tm soluo para esse problema, mas fornecem teis informaes aos que querem resolv-lo. A partir desse julgamento, as pginas que se seguem do a chave das intenes de TocqueviUe. Dedicadas situao na Europa, elas antecipam uma parte das anlises que ele apresentar, vinte e cinco anos depois, no Ancien Rgime. O que ocorre ou ocorreu no Velho Mundo, aos olhos de TocqueviUe, a criao de condies histricas excepcionalmente favorveis instaurao de um poder central verdadeiramente absoluto: a est o perigo que preciso conhecer para conjurar. De fato, as antigas monarquias eram reputadas absolutas, mas no o eram nos fatos: porque as instituies polticas (principalmente as corporaes e as comunidades de habitantes), as tradies intelectuais e morais (especialmente o vnculo familiar entre o rei e seus sditos, ou a independncia e a honra aristocrticas) e finalmente a religio impediam que assim se tomassem.

  • VRHFCIO XXI

    Ora, essas instituies, essas tradies e a prpria religio desapareceram ou vo deperecendo para dar lugar a uma sociedade na qual as classes so cada vez menos diferenciadas, os indivduos esto cada vez mais semelhantes uns aos ! >utros e isolados uns dos outros e a opinio, enfim, cada vez mais malevel e indistinta. Hoje, escreve Tocqueville numa frmula que faz eco a Montesquieu, quando a honra monrquica quase perdeu o se imprio sem ser substituda pela virtude, quando nada mais sustenta o homem acima dele mesmo, quem pode dizer at onde iriam as exigncias do poder e as complacncias da fraqueza?15

    Em outros termos; as naes europias adquiriram um estado social democrtico, um estado de esprito democrtico, sem ter as instituies correspondentes, nem ainda, por falta dessas instituies, tradies polticas ou religiosas que sirvam de contrapeso a essa democracia. Eis por que a sua histria se caracteriza pelo silncio de povos passivos e desmoralizados em face de governos fortes e organizados, preldio de uma situao comparvel ao fim da Repblica romana. De minha parte, quando considero o estado a que j chegaram diversas naes europias, e aquele para o qual todas as outras tendem, sinto-me levado a crer que logo entre elas j no haver lugar seno para a liberdade democrtica ou para a tirania dos Csares.

    No valer a pena pensar nisso? Se os homens devessem chegar efetivamente a esse ponto em que fosse necessrio torn-los todos livres ou todos escravos, todos iguais em direitos ou todos privados de direitos; se os que governam as sociedades se vissem reduzidos a essa alternativa de elevar gradualmente o fundo at eles ou deixar que todos os cidados caiam abaixo do nvel da humanidade, ainda que fosse apenas para vencer muitas dvidas, tranqilizar muitas conscincias e preparar cada um para fazer espontaneamente grandes sacrifcios.

    No cumpriria ento considerar o desenvolvimento gradual das instituies!; dos costumes democrticos no como melhores, seno como o nico meio que~nos resta de ser livres; e, sem amar o governo da democracia, no se estaria disposto a adot-lo como o remdio mais aplicvel e mais honesto que se pode opor aos males atuais da sociedade?16

  • XXII A DEMOCRACIA NA AMRICA

    Passagem a meu ver capital, porque vincula a viagem americana no s inteno fundamental de Tocqueville, no fim de sua vida, mas tambm economia interna de seu pensamento. To.cqueville , numa vertente de sua anlise, aquela que ele no explicita, um fatalista. Acredita no inevitvel, e esse inevitvel a marcha das sociedades para a democracia. Esse processo comum ao Velho e ao Novo Mundo, muito embora no aparea em sua pureza original seno na experincia americana. Mas o povo americano desenvolveu costumes e leis adaptados a esse estado social e cultural, enquanto os povos europeus foram herdeiros dos Estados centralizados, contraditrios com o desenvolvimento de instituies polticas ou de costumes nacionais democrticos. No primeiro caso, a histria subordinou o Estado sociedade. No segundo, ela entrega a sociedade ao Estado.

    Ora, esse segundo processo no inevitvel: a outra vertente do pensamento de Tocqueville que d um sentido

    ' quase militante aos seus livros. Trata-se de fazer evoluir as leis e os costumes das velhas naes europias, e em primeiro lugar da Frana, em harmonia com os progressos da democracia existente nos fatos e nos espritos: condio sine qua non para evitar a ditadura de um s, convertido em dono do Estado. Para um aristocrata como Tocqueville, h um preo a pagar, sacrifcios a fazer de sentimentos e interesses, mas ele os admite antecipadamente tendo em vista o cacife que representam: As vontades da democracia so cambiantes; seus agentes, grosseiros; suas leis, imperfeitas. Concordo. Mas se fosse verdade que logo no deveria existir nenhum intermedirio entre o imprio da democracia e o jugo de um s, no deveramos tender para um em vez de nos submeter voluntariamente ao outro? E se fosse preciso, enfim, chegar a uma completa igualdade, no seria melhor deixar-se nivelar pela liberdade do que por um dspota?17

    Tocqueville, portanto, foi buscar nos Estados Unidos no um modelo, mas um princpio a ser estudado e uma questo a ser ilustrada e resolvida; em que condies a democracia, se esta um estado de sociedade, se torna tambm o que ela deve ser por no conduzir a uma ditadura: um estado de governo.

  • 1'HEFCIO XXIII

    No fundo, seu sistema, formado muito cedo, est articulado em torno de algumas oposies simples, das quais ele faz um uso requintado, por via de uma dialtica constante entre o cultural, o social e o poltico. No nvel social e cultural, h dois Estados historicamente concebveis, o aristocrtico e o democrtico; o primeiro inseparvel, no nvel poltico, do governo local, enquantQ o segundo tende para o governo centralizado. Mas aqui se abre uma segunda alternativa, de natureza puramente poltica, a saber, que nem todo governo centralizado forosamente opressivo. Ele pode ser tirnico ou respeitador da liberdade dos cidados. Num primeiro nvel, o pensamento de Tocqueville opera sobre a oposio aristocrtico/democrtico. Num segundo, sobre a alternativa cesarismo democrtico/liberdade democrtica, isto , sobre a anlise das condies de compatibilidade entre democracia e liberdade, Isso explica por que ele passa constantemente, como tantas vezes se disse18, do sentido social para o sentido poltico da palavra democracia e vice-versa, segundo explore um ou outro desses nveis conceptuais.

    A Amrica lhe oferece, como sociedade e como cultura, uma democracia pura. E um governo deduzido dessa democracia pura. Uma anti-Europa em ambos os casos, sem herana aristocrtica, sem legado absolutista, sem paixes revolucionrias. Com, ao contrrio, uma tradio de liberdades locais coletivas. Por todos esses traos ela constitui, mutatis mutan- dis, um objeto de reflexo capital para os europeus.

    *

    * *

    Sabe-se que a Democracia foi publicada em duas vezes. O primeiro volume, dedicado essencialmente descrio analtica das instituies americanas, apareceu em 1835; o segundo, que estuda de maneira mais abstrata a influncia da democracia sobre os costumes e os hbitos nacionais a partir do exemplo americano, em 1840. O comentrio da viagem mais inteligente do sculo XIX requereu de Tocqueville quase dez anos de estudos suplementares e de ingente trabalho intelectual. As principais idias mestras, notadamente as do

  • XXIV A DEMOCRACIA NA AMRICA

    primeiro volume, o mais especificamente americano, j se encontram nas notas da viagem19: prova de que o viajante chegou com o seu sistema j em mente. Mas, se ele demorou a escrev-lo, no foi apenas pelo gosto do belo estilo; foi para esgotar o seu objeto de estudo, o que supunha muitas leituras, particularmente nos domnios constitucional, poltico e jurdico20. Foi, em seguida e sobretudo, porque ele queria pensar completamente o que aprendeu, aprofundar o seu esquema conceptuai com a ajuda dos materiais americanos e requintar a sua lio para os povos europeus. Tocqueville um esprito que trabalha indefinidamente as mesmas idias e que lhes descobre sempre novos aspectos: o segundo volume da Democracia o melhor exemplo desse tipo de pacincia intelectual.

    Alm de suas virtudes simplificadoras, a Amrica lhe d, antes de tudo, a ele para quem a questo pouco interessa, o segredo das origens. No Novo Mundo, a democracia no est oculta na noite dos tempos ou nos desgnios da Providncia. Ela foi trazida pelos imigrantes, puritanos da Nova Inglaterra ou quacres da Pensilvnia, como um princpio religioso fundador da nova ptria. H assim uma matriz cultural da democracia americana, uma lgica da evoluo inscrita na histria das origens, por uma vez clara e conhecida. Melhor: a Amrica oferece mesmo, sobre o seu territrio, a anttese dessa histria: o Sul, povoado por uma subaristocracia de fazendeiros, sem verdadeiro poder sobre a populao livre porque reinando sobre escravos. De um lado, o esprito de religio e de liberdade indissoluvelmente ligados. Do outro, uma civilizao fundada na escravido, princpio destruidor do estado social.

    Mas Tocquevile no se detm na genealogia da sociedade americana: ele insiste muito menos nesse aspecto da realidade do que, por exemplo, na mesma poca, Michel Chevalier nas Lettres sur VAmrique du Nord21. que, ainda aqui, a questo histrica lhe interessa menos, nessa poca, do que a, compreenso do presente e o diagnstico do futuro. O centro da sua anlise o estado social dos anglo-americanos, e no a sua histria. Estado social que geralmente produto de um fato, s vezes das leis, mais freqentemente das duas cau

  • PREFCIO XXV

    sas reunidas; mas, dado que ele existe, pode-se consider-lo como a causa primeira da maioria das leis, dos costumes e das idias que regulam a conduta das naes; o que ele no produz, ele modifica22. Portanto, nenhum debate escolstico sobre as causas primeiras. TocqueviUe, metodicamente, atm- se ao seu sistema de anlise. No se afasta da famosa praa circular da floresta, de onde deve descortinar todas as alamedas.

    o Captulo III, sobre o estado social dos anglo-americanos, caracterizado pela democracia levada ao seu extremo, pela tradio das origens, a sublevao pela independncia, enfim a legislao, em especial a lei sobre a partilha igual das sucesses. A igualdade, trao dominante da democracia, no quer dizer nela que as fortunas so iguais ou que os americanos querem que o sejam, pel contrrio; mas_sim- plesmente que elas no esto enraizadas na transmisso familiar e que o dinheiro circula com grande rapidez. No limite, a democracia s conhece como sano as ptides naturais, sem levar em conta, de modo algum, a hierarquia preexistente; eis por que ela atingiu uma espcie de absoluto ali ondT^nciedade ainda no existe, mas onde as paixes sociais dos habitantes so, no obstante, superexcitadas pelo hbito ou pela impacincia de um lao social anterior: na fronteira da colonizao europia. Alis, a igualdade no reina apenas atravs da mobilidade das fortunas e da distribuio da abastana; ela uniformiza tambm os nveis de instruo e at as inteligncias, dando a todos uma educao mnima sem conceder a ningum o privilgio de classe que o prazer ou o gosto de se dedicar por inteiro s coisas do esprito.

    Dessa situao social absolutamente nica na histria, duas conseqncias polticas podem advir, incompatveis entre si: a liberdade ou a servido, a soberania do povo ou a de um senhor. Passa-se assim ao segundo nvel da conceptualizao de TocqueviUe, nvel claramente deduzido do primeiro (j que se trata explicitamente das conseqncias polticas do estado social), mas no determinado por ele, porque opera, ao contrrio, uma alternativa: os anglo-americanos souberam tirar da democracia social a democracia poltica.

  • XXVI A DEMOCRACIA NA AMRICA

    Entender como e por que permite passar em revista a srie de mediaes entre as duas articulaes de anlise. Tocqueville no as explicita sistematicamente, ao menos no imediato, uma vez que passa do captulo sobre o estado social para a clebre e minuciosa descrio do sistema poltico americano; mas vamos encontr-las no Captulo IX do segundo livro e tambm nas notas de viagem, nas quais se v que os elementos de sua explicao j esto presentes desde 1831. O que mantm, aos seus olhos, a democracia poltica americana, depois que as circunstncias histricas lhe deram nascimento, no apenas a fidelidade s origens; algo como um estado de esprito, to geralmente difundido e to profundamente arraigado que se pode tambm cham-lo de costumes nacionais e que produz, dia aps dia, a independncia do social e o seu primado sobre o poltico.

    Em primeiro lugar a religio desempenha um papel admiravelmente regulador em ambos os sentidos, pelo que recomenda e pelo que probe. Enquanto o catolicismo, segundo Tocqueville, inclina os espritos para a igualdade e a obedincia (salvo quando separado do Estado, o que lhe d outras caractersticas), o protestantismo, principalmente sob a sua forma sectria e pluralista, os conduz igualdade e independncia: a religio americana feita de um conjunto de cris- tianismos republicanos. Mas por outro lado ela fixa limites ao que pode ser conhecido e ao que pode ser transformado no homem, o que mescla audcia americana uma espcie de moderao coletiva. Impedindo os cidados de tudo conceber, ela faz obstculo, em outros termos (que Tocqueville no emprega), ao esprito revolucionrio, essa negao da democracia em nome da democracia: paradoxo acerca do qual ele se interroga durante toda a sua vida, sem jamais dominar a sua vertigem, mas cuja atrao, na Amrica, se desvaneceu em virtude do consenso religioso.

    Outro elemento-chave da independncia da sociedade americana: o nvel elevado de cultura. Aqui Tocqueville se afasta de Montesquieu: a mola das repblicas no a virtude, so as luzes - ele entende por tal a democratizao dos conhecimentos, notadamente em matria poltica. Indagando-se a respeito das mil razes que fazem os Estados Uni-

  • VREFCIO XXVII

    ilos suportarem a liberdade republicana, ele escreve nos seus cadernos de viagem: H uma razo maior que domina todas as outras e que, depois que todas elas foram expostas, prevalece por si s na balana. O povo americano considerado cm massa no s o mais esclarecido do mundo mas - o que eu coloco bem acima dessa vantagem - aquele cuja educao poltica prtica a mais avanada. essa verdade, na qual acredito firmemente, que faz nascer em mim a nica esperana que tenho para a felicidade futura da Europa.23 Apesar da grosseria dos seus costumes, da vulgaridade das suas maneiras, da sua obsesso pelo dinheiro, o povo americano para o aristocrata francs o mais civilizado da Terra: Tocqueville mede aqui o valor do investimento humano, preparado por dezoito sculos de histria europia. A Amrica uma nao de homens das cidades empenhados na conquista da natureza, pondo em curto-circuito a interminvel maldio camponesa da Europa. O pioneiro desse encontro improvvel entre a extrema civilizao e a extrema selvage- ria, o que h de mais histrico e o que h de mais natural. Sobre esse tema, Tocqueville escreve, nos seus cadernos de viagem, pginas de uma beleza inefvel24, das quais no retoma seno uma pequena parte no seu livro.

    esse alto grau de civilizao que d unio - se pusermos de parte o Sul, minado desde o interior pela escravido- este componente essencial dos costumes democrticos: a uniformidade. Tocqueville, nas suas notas, confessa sua surpresa diante desse trao da existncia americana: habituado que est a observar diferenas de vrios sculos entre as provncias, ou as partes de provncias das naes europias, ele esperava ver esse desnvel tanto mais acentuado no interior do Novo Mundo quanto este se achava em via de po- voar-se e devia portanto oferecer, segundo os lugares, a imagem da sociedade de todos os tempos [...] desde o opulento patrcio das cidades at o selvagem do deserto25. Ora, o que ele constata o contrrio. Como os americanos que vm povoar a fronteira chegam no diretamente da Europa, mas dos territrios mais antigamente explorados, eles sofreram os efeitos do esprito de igualdade e foram submetidos uniformizao dos gostos e dos costumes. O homem que voc

  • XXVIII A DEMOCRACIA NA AMRICA

    deixou nas mas de Nova York, voc o reencontrar no meio dos ermos quase impenetrveis: o mesmo traje, o mesmo esprito, a mesma lngua, os mesmos hbitos, os mesmos pra- zeres.26 TocqueviUe no acredita, como Michel Chevalier27, que a fronteira constitui uma terceira Amrica, depois da do business puritano e da dos fazendeiros proprietrios de escravos. que os critrios do saint-simoniano so econmicos, ao passo que os seus so morais e culturais.

    Na realidade, em sua anlise do Oeste e de um modo mais geral do esprito americano (pois o Oeste nada mais faz que lhe revelar a quintessncia) ele reutiliza, porm transformando-o, um conceito que data do sculo anterior, o de civilizao. Entende-o efetivamente, como os filsofos do sculo XVIII, no sentido de um conjunto de aspectos culturais que tomam as sociedades ao mesmo tempo mais policiadas e mais ativas; mas no faz dele, como Voltaire, a culminncia de uma sucesso de ciclos ou, como Condorcet, o termo de um progresso linear. Ele arranca o conceito histria, vetor indefinvel, outro nome da Providncia, para o reintegrar no seu sistema intelectual prprio: a civilizao essa forma particular de atividade social estendida a todos os cidados pela democracia quando esta livre. E de pronto essa definio lhe permite relativizar o campo de sua reflexo e restringir os seus benefcios linhagem europia da humanidade. a famosa passagem de seus cadernos de viagem sobreo genocdio dos ndios, passagem que no resisto ao prazer de citar longamente, no porque diga coisas que esto na sensibilidade de hoje, mas porque esclarece bem as virtudes excepcionais do sistema de interpretao que estou analisando: As raas indgenas fundem-se em presena da civilizao da Europa como s neves debaixo do sol. Os esforos que elas fazem para lutar contra o seu destino s faz acelerar para elas a marcha destrutiva do tempo. A cada dez anos, aproximadamente, as tribos indgenas que foram repelidas para os desertos do Oeste se do conta de que nada ganharam ao recuar e que a raa branca avana ainda mais rapidamente do que elas recuam. Irritadas pelo sentimento de sua prpria impotncia, ou inflamadas por alguma nova injria, elas se renem e se fundem impetuosamente nas regies onde

  • 1'KIFCIO XXIX

    habitavam outrora e onde se erguem agora as habitaes dos europeus, as cabanas rsticas dos pioneiros e mais adiante as primeiras aldeias. Percorrem o pas, queimam as habitaes, matam os rebanhos, arrancam algumas cabeleiras. A dvilizao recua ento, mas recua como a onda do mar que sobe. Os Estados Unidos tomam em mo a causa do ltimo ilos seus colonos, declaram guerra a essas tribos miserveis.I lin exrcito regular marcha ento ao encontro delas e no somente o territrio americano reconquistado como os brancos, repelindo os selvagens, destroem suas aldeias, tomam os seus rebanhos e vo colocar o extremo limite de suas posses cem lguas mais longe do que antes. Privados de sua nova ptria adotiva pelo que a Europa sbia e esclarecida se com- prazia em chamar de direito da guerra, os ndios retomam sua marcha para o Oeste at se deterem em alguns novos ermos, onde o machado do branco no tardar a se fazer ouvir de novo. No pas que eles acabam de devastar, e doravante ao abrigo da invaso, elevam-se aldeias recentes que logo (o habitante pelo menos tem conscincia disso) formaro populosas cidades. Marchando frente da imensa famlia europia da qual ele forma como que a vanguarda, o pioneiro apode- ra-se por sua vez das florestas recm-habitadas pelos selvagens, onde ele constri a sua cabana rstica e espera que a primeira guerra lhe abra o caminho para novos desertos.28

    Assim a democracia no o fim da histria, ou uma das suas figuras universais, menos ainda a reconciliao da humanidade consigo mesma. Esse um conceito que permite a Tocqueville pensar um estado de sociedade e de costumes prprio da Europa, e mais particularmente prprio desse prolongamento ingls no Novo Mundo que a Repblica americana. Ali, com efeito, a experincia histrica da democracia foi feita de um modo to radical, no nvel social e cultural, que toda a esfera da poltica por ela penetrada e investida, a ponto de lhe estar completamente subordinada. Porque um dos sentimentos mais fortes de Tocqueville, durante a sua viagem, a quase-inexistncia do poltico na sociedade americana: ele fala em suas notas da ausncia de governo29, benefcio que o homem no pode encontrar seno nas duas extremidades da civilizao, seja no estado

  • XXX A DEMOCRACIA NA AMRICA

    selvagem, quando est sozinho s voltas com suas necessidades, seja, depois que a sociedade se formou, quando os indivduos que a compem so suficientemente esclarecidos e independentes de suas paixes (ou respeitadores das leis, o que vem a dar no mesmo) para delas prescindir. Pouco mais adiante30 ele distingue entre o que chama de dois estados sociais claramente diferenciados: Num, o povo suficientemente esclarecido e se encontra em circunstncias tais que pode govemar-se a si mesmo. Ento a sociedade age s o bre si prpria. No outro, um poder exterior sociedade age sobre ela e a fora a marchar numa certa via." A Amrica corresponde, claro est, primeira definio, a de uma sociedade auto-administrada. Ela oferece no apenas o que se poderia chamar de democrtico puro mas tambm, no limite, o social puro, com excluso do poltico.

    Essa anlise vai naturalmente muito longe, j que: boa parte do primeiro volume da Democracia dedicada descrio do sistema poltico americano. Mas tem a vantagem de enfatizar a aprovao intelectual que TocqueviUe d democracia poltica, apesar do que lhe aparece como seus excessos. Porque, se esta assegura pela descentralizao administrativa (que ele distingue cuidadosamente, como se sabe, da descentralizao governamental) a liberdade e a responsabilidade dos cidados, ela comporta fundamentalmente as vantagens de um regime poltico aristocrtico, multiplicando os seus beneficirios. Assim o problema, no duplo nvel administrativo e governamental, est n comparao das respectivas vantagens e inconvenientes dos dois tipos de regimes, um nas mos de toda a sociedade, o outro dirigido por uma elite hereditria: essa parte do livro, justamente clebre e apai- xonante, no traz nada de novo ao meu tema, na medida em que permeada de ponta a ponta por essa oposio con- ceptual, explcita ou implcita. O que constitui seu interesse a excepcional minudncia com a qual TocqueviUe a explora e a revolve em todos os sentidos, a partir do exemplo das instituies americanas; mas nem por isso ele modifica a sua articulao central.

    H entretanto um captulo do primeiro volume da Democracia - o ltimo - no qual ele se v na obrigao de renunciar

  • PREFCIO XXXI

    a esse centro dos seus pensamentos: porque nesse extraordinrio Captulo X ele abandona a democracia americana para examinar o futuro do que chama de as trs raas que povoam os Estados Unidos; portanto, alm dos anglo-americanos, os ndios e os negros. Da o sentimento de que deve afastar-se ao menos uma vez do seu sistema de anlise, que no tem nenhuma pertinncia para essas duas raas marginalizadas, esses dois povos por definio no-democrti- cos; e, como a existncia deles no deixa de ter conseqncias sobre o futuro da Unio, esse mesmo futuro no est totalmente contido no prognstico sobre a democracia. Curiosamente, alis, e quase como um remorso, TocqueviUe acrescenta a essa lista temas deixados de parte por seu tipo de anlise, a atividade comercial que reina na Unio e sua importncia para o futuro, como se se tratasse para ele de enumerar, mesmo na desordem intelectual, as questes de que no tratou e dizer por qu: Esses objetos, que se relacionam com o meu tema, no entram nele; so americanos sem serem democrticos, e foi sobretudo a democracia que eu quis retratar. Tive, portanto, de afa'st-los no princpio; mas devo voltar a eles ao terminar.51

    Sobre os ndios, j se viu, lendo os seus cadernos de viagem, que ele utiliza para fazer a anlise de sua sociedade o conceito de civilizao", herdado do sculo XVIII, mas re- manejado: serve-se dele para designar menos o atraso histrico desse mundo selvagem do que o seu estado de imper- meabilidade em relao ao mundo civilizado, isto , democracia americana. Uma vez mais ele parte do estado social dos ndios, vale dizer, de um mundo nmade, tribal, guerreiro, caador, para chegar aos seus costumes e s suas crenas, que lhe lembram, mutatis mutandis, as dos antigos germanos segundo Tcito: assim sua viso da histria, longe de se encerrar no sentimento de uma evoluo necessria da humanidade, reencontra por esse vis o raciocnio tipolgico. TocqueviUe no acredita que as sociedades indgenas vo ser, pela virtude do contato, mesmo conflitante, aladas pouco a pouco ao nvel da civilizao anglo-americana. Pensa, ao contrrio, que seu estado social nmade, solidificado pelo sistema dos costumes e das crenas, as isola de maneira dura

  • XXXII A DEMOCRACIA NA AMRICA

    doura, definitiva: de fato, ou os ndios reagem pela guerra e so vencidos, rechaados para o Oeste, ou aeeitam civilizar- se e entram num mundo que lhes estranho, onde se sentem irremediavelmente inferiores, explorados, perdidos. O recurso aos exrcitos e a obedincia s leis os condenam igualmente. O gnio sociolgico de Tocqueville poupa-lhe a iluso humanista sobre os benefcios da civilizao europia quando ela chega aos outros continentes.

    O destino dos negros, ao contrrio, no pode ser selado to dramaticamente, porque est ligado ao dos brancos. Mas ele suscita para a Unio um duplo problema em relao ao qual Tocqueville no nutre tampouco sentimentos otimistas. Parque a conjuno de uma instituio to anacrnica quanto a escravido num sculo de igualdade e de sua limitao a uma raa particular da populao, os negros, lhe parece acarretar ao mesmo tempo efeitos catastrficos sobre a atividade da sociedade branca ali onde a escravido existe e uma inevitvel luta para o seu desaparecimento sobretudo ali onde ela no existe. Mas essa luta, que tem por base o interesse dos brancos e no o dos negros, no ocasiona o desaparecimento dos preconceitos de raa, pelo contrrio; porque a emancipao dos negros no traria nem a mestiagem das populaes, recusada com paixo pelos colonos anglo-americanos, nem a igualdade, impossvel entre dois povos estranhos um ao outro. E h tudo para apostar em que a abolio da srvi- do levaria por um efeito de compensao ao fortalecimento dos preconceitos de cor e daquilo que chamamos hoje de racismo. Assim, mesmo a hiptese na qual a escravido seria abolida por obra do senhor, e no pela violncia dos negros, comprta um risco grave para a coeso da Unio,

    Nessas pginas cintilantes sobre os ndios e os negros, nas quais Tocqueville no abandona o seu conceito de democracia, visto que este no explicaria nada acerca das duas sociedades de que ele faia, o que vincula entretanto as suas anlises ao seu sistema intelectual geral a prioridade que ele d idia de estado social e ao princpio que o define. Os ndios ou os negros so, no seu entender, menos raas distintas dos anglo-americanos do que grupos sociais organizados de acordo com princpios incompatveis com a democracia reinante na Unio, Mas incompatveis em sentidos di-

  • PREFCIO XXXIII

    ferentes. Os ndios formam uma sociedade particular, fechada em si mesma, cujas regras, opinies e costumes selvagens" traduzem menos uma origem da humanidade, como se acreditava no sculo XVIII, do que um tipo de organizao social que ignora a agricultura e a sedentarizao. Os negros, escravos, so uma no-sociedade, uma vez que a servido por definio uma pura relao de fora, e no um vnculo social; mas o princpio da escravido compromete a existncia da sociedade livre que a instaurou e que, por hav-la instaurado e perpetuado, encontra-se minada desde o interior. Os ndios podem ser e sero destrudos pela lei, como uma sociedade situada fora dela. Os negros existem, pelo contrrio, em funo de uma instituio da democracia americana, contraditria consigo mesma, mas por ela desejada: so ao mesmo tempo indispensveis e inassimilveis, necessrios e destruidores do pacto social de base. A Amrica igualitria incorporou um princpio inconfessvel e nocivo; e, se esse paradoxo perigoso para a sua prpria existncia, porque destri ainda mais a sociedade democrtica branca do que a populao dos escravos negros.

    Esse diagnstico pessimista acerca do problema negro acompanha-se, como se sabe, de certo nmero de dvidas sobre a durao da soluo federal americana. Mas em nada afeta a admirao de TocqueviUe pelo esprito no qual se fez a colonizao inglesa da Amrica, o estado social a que ela conduziu, os usos e as idias que decorrem desse estado social. Muito se,falou da sua resignao de aristocrata democracia. Parece-me que a Democracia no justifica essa palavra, sem dvida mais apropriada ao seu julgamento sobre a situao europia. Da democracia americana ele na realidade um admirador crtico, e haver muitas passagens do livro para mostrar que ele lhe d no conjunto e apesar de tudo preferncia sobre o regime aristocrtico, ao mesmo tempo como estado social e como tipo de governo. Sob essas rubricas, a Amrica lhe mostrou o poder da sociedade sobre si mesma: lio ou , exemplo que ele fora precisamente buscar ali.

  • XXXIV A DEMOCRACIA NA AMRICA

    Cinco anos depois, em 1840, Tocqueville publica o segundo volume da Democracia. Agora j pode supor que o sistema poltico americano conhecido dos seus leitores, pois constitui o objeto essencial do livro de 1835. Seu problema, ento, aprofundar a questo mais difcil que ele j aflorou, delimitada no primeiro volume, mas de que no tratou sistematicamente: a influncia do estado social democrtico sobre o esprito americano e, de um modo mais geral, sobre o esprito dos povos entre os quais ele reina. No que queira fazer desse estado social democrtico, isto , da igualdade, a causa nica das caractersticas da sociedade americana, ou de tudo o que acontece no nosso tempo3*: sabe muito bem que o contrrio verdadeiro e que cumpre levar em conta as mil circunstncias independentes da igualdade. Mas, por um lado, atravs desse trao comum ao Velho e ao Novo Mundo que ele pode comparar Amrica e Europa. Por outro, o seu tema, o ponto a partir do qual ele examina o social e o histrico, porque a seu ver o mais apto a esclarecer o estado atual do mundo. Pois o que h de mais surpreendente na espcie de obsesso intelectual com a qual Tocqueville gira em tomo do conceito de igualdade a evidncia que possui aos seus olhos esse conceito do seu futuro. Ora, sob o primeiro desses aspectos, o menos que se pode dizer que as sociedades de seu tempo, em particular a sua, a Frana da monarquia de Julho, no ofereciam o espetculo da igualdade. Alis, sua vida, no que ela tem de exterior, inteiramente governada32 bi* pelo esprito de conformidade aos valores do seu meio familiar e pela mais estrita observncia dos princpios da hierarquia social: basta dar uma olhada na sua correspondncia para perceb-lo. Mesmo depois da Revoluo de Julho, a Frana de Lus Filipe esse pas onde homens como ele, descendentes da antiga aristocracia, continuam a exercer, sem precisar solicit-lo, um magistrio quase natural de opinio e de poder. Donde lhe vem ento uma certeza intelectual que a sua prpria existncia desmente todos os dias?

    Menos do estado atual da sociedade do que da sua histria, o que quer dizer: do seu passado. provavelmente difcil imaginar hoje o que representou para uma famlia como a sua a catstrofe da Revoluo Francesa, a massa de lembran

  • PREFCIO XXXV

    as e de relatos dramticos que lhe embalou a infncia, os sentimentos de fascinao horrorizada que ele deve ter concebido muito cedo. Muito jovem, desde a sada da adolescncia, ele conseguiu transformar essa vivncia familiar num problema intelectual: seu gnio se vincula a essa apropriao precoce da herana, a um outro nvel e de outra maneira. com o que a tradio lhe transmitiu como sendo a desgraa que ele constri ao mesmo tempo a idia da igualdade e a idia do inevitvel.

    As duas idias no so dissociveis precisamente porque esto enraizadas no mesmo hmus existencial: o sentimento de que a Revoluo Francesa est inscrita num senso da histria, noutras palavras, porque ela no terminou e porque, tendo-se manifestado pr uma hostilidade to radical nobreza e mesmo a qualquer idia de superioridade social, ela s pode ser definida pela paixo da igualdade. Pouco importa que essa igualdade no seja realizada nas sociedades que lhe sucederam: porque, se verdade que Tocqueville no con- ceptualiza seno a sua experincia - e provavelmente isso que o separa da maioria dos grandes espritos filosficos, formados sobretudo pelo estudo abstrato das doutrinas e das idias, e tambm o que explica a sua obstinao em aprofundar uma nica idia, que se pode muito bem considerar, como se diz de uma mulher, como sendo a de sua vida essa experincia lhe diz, com efeito, que a Revoluo Francesa continua atravs do Imprio, da Restaurao e de 1830 e que a igualdade permanece como o centro dos debates e dos acontecimentos polticos. Na realidade, essa convico constitui a sua maneira de apropriar-se da famosa tristeza da gerao romntica, da qual ele tambm um dos filhos. Mas ela ao mesmo tempo um conceito.

    Da sua ambigidade permanente e que se situa em dois nveis distintos. O emprego do termo democracia, como substituto aproximado de igualdade, mas com uma acepo ainda mais vasta, leva, para Tocqueville, a usos semnticos diversos da mesma palavra, especialmente pelo fato de no separarem o domnio social do domnio poltico. Mas a ambigidade existe tambm, e talvez de maneira mais profunda, porque mais escondida, no interior do emprego da palavra

  • XXXVI A DEMOCRACIA NA AMRICA

    democracia para designar urr estado social igualitrio - o que alis o emprego mais freqente. Que , para o nosso autor, uma sociedade ou um estado social caracterizado pela igualdade? A resposta no fcil de dar.

    A mais simples a do senso comum: uma sociedade em que reina a igualdade uma sociedade em que desapareceram entre os indivduos as barreiras das classes. Ora, Tocqueville s vezes d essa definio. Por exemplo, quando escreve: Um povo que viveu durante sculos sob o regime das castas e das classes s chega a um estado social democrtico por via de uma longa srie de transformaes mais ou menos penosas E...]. Ou, pouco mais adiante, em nota ao Captulo XXVI, mais explicitamente ainda, porque o isto introduz uma definio: Quando um povo tem um estado social democrtico, isto , quando j no existem no seu seio nem castas nem classes Citaes de todo em todo concordantes que assimilam as classes sociais e as castas, pelo menos sob o aspecto do seu carter contraditrio com a democracia e que faz da sociedade sem classes a condio da igualdade. Reencontra-se em outros lugares esse tipo de definio a um s tempo maximalista (a igualdade como estado social real) e ingnua (a igualdade conforme representao que dela fazem os atores sociais): por exemplo, na comparao que ele faz entre o casamento aristocrtico e o casamento democrtico35. Tocqueville ope o primeiro, socialmente programado - oferecendo alis, de qualquer maneira, pouca liberdade de escolha e unindo antes bens que pessoas ao segundo, resultante de uma escolha livre, fundada na inclinao dos cnjuges e na similitude dos seus gostos (alis, nessa medida, mais exigente sobre a fidelidade conjugal). V-se por exemplo como, para as necessidades de um pensamento que procede por oposio, ele pode ser levado a confundir o que chama de o estado social democrtico e a representao que esse estado social tem e deseja dar de si mesmo, Numa poca em que o casamento burgus como aliana dos patrimnios um dos temas preferidos da literatura romanesca, Tocqueville mostra-se bizarra e provisoriamente cego, para as necessidades do seu sistema conceptual, evidncia do casamento de classe, mascarada pela aparente liberdade das inclinaes individuais.

  • PREFCIO XXXVII

    Bizarra e provisoriamente: porque sem dvida ele sabe, e o diz em outra parte, que ainda no se viram sociedades em que as condies fossem to iguais que nelas no se encontrassem ricos e pobres; e, por conseguinte, senhores e servos. Nessa situao, qual a mudana introduzida pelo estado social democrtico? A democracia no impede em absoluto que essas duas classes de homens existam, mas muda-lhes o esprito e modifica-lhes as relaes.56 Passagem essencial para se compreender o que ele entende mais freqentemente por democracia: no um estado social real, mas a percepo igualitria da relao social, normalmente hierrquica (ao menos a julgar pela histria humana), pelos atores dessa relao. Percepo igualitria que por sua vez modifica a natureza dessa relao, mesmo quando ela permaneceu totalmente desigual. Por exemplo, a relao senhor-servo: ela existe na sociedade democrtica constituda pelos Estados Unidos, mas a no faz parte, como nas sociedades aristocrticas, do princpio da ordem social. Portanto ela no criou a, com base na sujeio pessoal, um povo parte, caracterizado de pai a filho por costumes e um modo de ser particulares. , pelo contrrio, o resultado de um contrato livremente consentido, pelo qual o interessado negocia a sua obedin: cia provisria e os limites dessa obedincia. A igualdade das condies", diz Tocqueville, faz do servo e do senhor seres novos e estabelece entre eles novas relaes.57 Assim, a igualdade das condies, que uma das suas expresses favoritas para caracterizar a democracia, no significa que senhor e servo sejam realmente iguais, mas que podem s- lo, ou ainda que a relao de subordinao provisria no constitutiva de um estado que os defina a ambos por inteiro, j que ela pode, por exemplo, inverter-se um dia em funo das suas conquistas recprocas. Como o servo pode tornar-se senhor, e aspira a isso, ele no diferente do senhor. Alis, fora da esfera de contrato revogvel que o liga ao seu senhor, ele , como este, e exatamente na mesma qualidade, com os mesmos direitos, um cidado. A igualdade das condies no deve portanto ser entendida no sentido material da frmula, mas como um princpio constitutivo da ordem social democrtica, por oposio ao mundo aristocrtico: uma norma, e no uma constatao.

  • XXXVIII A DEMOCRACIA NA AMRICA

    Tocqueville percebe que essa norma uma espcie de objetivo inatingvel, indefinidamente fugidio, jamais uma realidade: da o carter perpetuamente instvel dos indivduos e das sociedades democrticas. Como no possvel que um exemplo venha a tomar todas as condies perfeitamente iguais no seu interior, e como sempre existem situaes dominantes cobiadas pelas ambies, a presena de uma regra igualitria da existncia social, abrindo teoricamente todas as carreiras a todos os homens, agua os seus desejos e suas lutas. o que explica por que Tocqueville passe tantas vezes da igualdade como estado social dominante, isto , como norma, igualdade como paixo, isto , ao mesmo tempo como sentimento e como ideologia. No limite, o estado social democrtico existe mais pelas paixes que induz do que pela situao que criou, visto como a igualdade real das condies nunca atingida, mas sempre cobiada. Quando a desigualdade a lei comum de uma sociedade, as mais fortes desigualdades no ferem o olho; quanto tudo quase nivelado, as menores o ferem. por isso que o desejo de igualdade se toma sempre mais insacivel medida que aumenta a igualdade.58

    O que quer dizer que, na realidade, essa igualdade real, meta confessada mas evanescente, referncia norma mas matria do desejo, se decompe em inumerveis objetivos parciais de diferenciao social: Tocqueville compreendeu que a crena na igualdade como valor no suprime o que ele chama de orgulho particular dos indivduos, isto , a paixo de se distinguir dos demais. Ela agua, pelo contrrio, a sua intensidade, ao mesmo tempo que lhe modifica e lhe aumenta os pontos de aplicao. A tendncia distino ainda mais legtima, com efeito, porque as classes so menos fixadas pelo costume ou pela lei, como nas aristocracias. Por outro lado, a democracia multiplica os sinais de diferenciao porque ao igualar as condies, e mais ainda ao uniformizar os cidados, ela valoriza a mais nfima vantagem; e porque, ao tornar as situaes sociais mais mveis, ela substitui as hierarquias tradicionais dos privilgios recentes e provisrios, que os beneficirios fazem tanto mais questo de exibir durante o tempo em que deles desfrutam. H em fili

  • PREFCIO XXXIX

    grana na Democracia (notadamente nos captulos XIV e XVI do segundo volume) uma teoria da produo das desigualdades simblicas pela igualdade, causa da inquietude e da inveja que so os sentimentos caractersticos das democracias.

    Para essa instabilidade de natureza Tocqueville percebe, no entanto, corretivos que permitem o funcionamento harmonioso do sistema. H a religio, que no seu entender um elemento-chave do consenso social e que protege os cidados democrticos contra as pretenses insensatas de tudo conhecer, portanto de tudo mudar; mas existe tambm um corretivo interno, oculto no interior mesmo do desejo da igualdade e da paixo de se elevar: que no estado democrtico, caracterizado por carreiras relativamente lentas e pelo hbito adquirido dos esforos cotidianos para ascender pouco a pouco na escala social, os desejos tendem a se conformar aos meios e as ambies s oportunidades. Tocqueville o primeiro a descobrir essa lei fundamental das sociedades modernas, segundo a qual os homens no interiorizam pelo desejo seno um destino provvel, no sentido estatstico do termo. Eles s antecipam o que lhes pode acontecer, o que evita ao mesmo tempo as ambies desenfreadas e as decepes inevitveis.

    , alis, a inexistncia desses corretivos para a igualdade que caracteriza um estado social intermedirio entre a aristocracia e a democracia, e que a revoluo. Estado social intermedirio no sentido cronolgico, uma vez que a revoluo meio pelo qual se efetua a passagem da aristocracia para a democracia; mas tambm no sentido sociolgico, visto que a revoluo cria brutalmente os elementos de democracia sem no entanto reunir as condies de seu funcionamento, ao mesmo tempo pela ruptura que opera nas mentes e pela tradio que ela veicula sem sab-lo. Os indivduos revolucionrios herdam o descomedimento das ambies aristocrticas; seu sentimento de criar um mundo totalmente novo participa desse descomedimento, e a renovao dos homens e das leis barra o caminho ao mecanismo de ajustamento dos desejos sobre as oportunidades. A revoluo prende-se assim ecloso mais do igualitarismo do que da igualdade; ela explora uma vasta distoro entre o que os homens desejam e

  • XL A DEMOCRACIA NA AMRICA

    o que a sociedade pode oferecer. Ela cria, por sua vez, uma tradio que sobrevive aos anos excepcionais e que explica a instabilidade ps-revolucionria: As paixes que a revoluo havia sugerido no desaparecem em absoluto com ela. O sentimento da instabilidade se perpetua no meio da ordem- a idia da facilidade do sucesso sobrevive s estranhas vi- cissitudes que o tinham feito nascer.39

    A democracia na Frana no exprime portanto, para Tocqueville, o regime normal desse estado social: o seu estado revolucionrio. Essa distino essencial permeia todo o segundo volume da Democracia e constitui o fio condutor da comparao cujos elementos o viajante viera buscar. Ele encontrou nos Estados Unidos uma democracia pura, vale dizer, conforme ao seu ideal-tipo: tendo sido fundada como tal, a partir de uma matriz religiosa que lhe exaltava os valores, e nunca tendo, portanto, de lutar contra um estado aristocrtico anterior. O conceito de revoluo, que ele constri inteiramente a partir da experincia francesa, lhe parece assim estranho histria americana (salvo no que ela comporta de guerra civil potencial entre a aristocracia sulista e a democracia ianque). Mais ainda, ele lhe parece contraditrio em relao ao funcionamento da democracia, na medida em que a igualdade constitui um tecido social mais homogneo e mais resistente do que a sociedade aristocrtica. Tocqueville redige um captulo40 para explicar por que o estado social democrtico, pela uniformizao social e cultural que ele cultiva e pela rede de microinteresses conservadores ao qual ele liga os cidados, oferece pouco terreno para a ecloso das revolues; , ao contrrio, a destruio da desigualdade aristocrtica que oferece o pretexto e o objetivo, como o mostra a experincia europia.

    Assim a idia de democracia, tal como Tocqueville no cessa de vir-la e revir-la, se confunde efetivamente, no mais das vezes, com a de igualdade: mas ela lhe acolhe tambm os significados mltiplos e as ambigidades. No h praticamente seno um dos seus aspectos que no interessa a Tocqueville: o da realidade objetiva. De fato, basta-lhe a esse respeito a convico de que as condies sociais reais se igualaram e continuam a se igualar progressivamente. Ele no

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    lenta jamais precisar essa idia, e menos ainda medi-la: uma evidncia existencial, e no estatstica. Quando fala desse aspecto da questo, como descendente de uma grande famlia do Antigo Regime: tem em mente a igualizao das condies de existncia entre a nobreza e a classe mdia (exatamente como Guizot, que partilha o seu diagnstico, mas partindo da classe mdia).

    Porm o que interessa mais, e quase sempre, ao mesmo tempo a igualdade como norma da existncia coletiva e o mecanismo mental de que o aparecimento dessa norma inseparavelmente a conseqncia e a causa: a paixo da igualdade. Sob a primeira dessas relaes, a democracia no cessa de comportar, incorporado a ela prpria, indissocivel dela, um horizonte que ameaa a sua histria, um alm em nome do qual ela no pode recusar sua contestao permanente: a igualdade um valor que por definio nenhum estado social realiza (exatamente como a democracia na acepo corrente do termo, no sentido do governo do povo pelo povo, um tipo ideal de poder cujas condies nenhuma coletividade moderna pode preencher); e nessa distncia inevitvel entre os valores e os fatos, entre a sociedade e sua norma, que se enraza a igualdade como paixo social, que um dos traos caractersticos da democracia tocquevilliana. De fato, as sociedades aristocrticas no comportam distncia desse tipo, j que vivem imperturbavelmente os seus prprios valores, a subordinao e a hierarquia; se estas so invertidas, em nome de uma legitimidade inversa, a da igualdade, mobilizando em seu proveito paixes de idntica natureza e visando ao mesmo objetivo. Mas a sociedade igualitria, uma vez aparecida, no pode viver os seus prprios valores sem se negar constantemente a si mesma em seu estado real; e as paixes que ela decuplicou por sua vitria ou por sua mera existncia a levam a questionar a si prpria em seu funcionamento cotidiano41. Eis por que a democracia, tendo embora a vantagem sobre os outros estados sociais de mobilizar a atividade dos cidados por meio de suas paixes igualitrias, apresenta igualmente um problema desconhecido das aristocracias: o de sua viabilidade cotidiana.

  • XLII A DEMOCRACIA NA AMRICA

    Problema, em todo caso, de difcil soluo e que se torna dramtico quando a paixo da igualdade toma a dianteira a todas as outras, notadamente aquela que faz os homens adorarem a liberdade: porque esse desnivelamento de preferncia que cria para as democracias o principal perigo. De fato, se as duas paixes fossem igualmente fortes, igualmente gerais, elas conjugariam os seus efeitos e cada cidado teria efetivamente um direito igual de concorrer ao governo. Ora, a experincia sugere que pode haver igualdade e paixo da igualdade na sociedade civil, no porm na sociedade poltica: o caso dos regimes censitrios, por exemplo. Ou ainda igualdade e paixo da igualdade na sociedade poltica sem que haja liberdade: o caso do despotismo.

    A relao da paixo igualitria com as outras paixes da vida democrtica aparece assim como um dos elementos essenciais desse tipo de sociedade. No fundo, Tocqueville pensa que essa paixo configura sempre nos povos democrticos a paixo principal, distintiva, e que todo o problema que ela coloca justamente o de sua gesto dentro de limites compatveis com a liberdade. Por que ela mais forte do que todos os outros sentimentos polticos? O Captulo I da segunda parte do segundo volume oferece uma srie de razes: o conformismo da poca, o enraizamento nos hbitos profundos do estado social, o fato, sobretudo, de a paixo igualitria ser conforme lgica da democracia, j que pode ser partilhada por todos, enquanto as vantagens da liberdade s so sensveis a uma minoria. Inversamente, os abusos da liberdade (a anarquia, por exemplo) so evidentes para todos, enquanto os da igualdade so imperceptveis e s aparecem para uns poucos espritos. Enfim, Tocqueville jamais esquece o exemplo francs, porquanto esse o problema da sua vida; na Frana, a paixo da igualdade ainda mais forte porque preexiste por longo tempo liberdade e foi favorecida pela ao niveladora dos reis absolutistas. A tradio de liberdade frgil, intermitente, limitada; a da igualdade constitutiva da nao.

    O que no ocorre na Amrica. Tocqueville encontra a, ao contrrio, uma democracia em que a paixo igualitria contida ao mesmo tempo pelo consenso religioso, que reserva

  • PREFCIO XLIII

    divindade a questo dos fins ltimos da humanidade, e pelas Instituies polticas, que cedem o passo e mesmo o poder .sociedade sobre o Estado: o famoso captulo do segundo volume sobre as associaes42 mostra que estas desempenham na sociedade democrtica um papel comparvel ao da aristocracia na sociedade aristocrtica, constituindo outros tantos corpos coletivos que manifestam a iniciativa do social independentemente do Estado. Por isso a anlise de Tocque- ville consiste no apenas em estudar a paixo igualitria, ainda que esta seja central, mas em compreender como, no caso americano, a democracia teceu uma rede de sentimentos, de idias e de costumes que confere sociedade suas caractersticas distintivas e sua vida particular. A arquitetura intelectual do livro de 1840 se v assim clarificada. No se trata de recompor a histria da democracia americana, suas origens ou suas causas; trata-se de consider-la, ao contrrio, como o fato central dessa histria, seu elemento-chave de interpretao, sob o duplo aspecto de seu papel como norma das relaes sociais e de sua existncia como conjunto de paixes e de desejos individuais. a montante, e no a jusante, que interessa a Tocqueville nesse segundo trabalho: como a democracia tende a criar aquilo que chamaramos de um esprito pblico sui generis, isto , ao mesmo tempo idias e costumes, que contribuem, por seu turno, para a solidez do sistema.

    Esse segundo volume a bem dizer to brilhante e to denso que se toma completamente impossvel entrar nos pormenores de suas anlises: preciso deixar ao leitor o prazer e o trabalho de os descobrir, sob a aparente clareza do estilo, a profundidade e a complexidade. Em nenhuma parte o gnio conceptual de Tocqueville aparece melhor do que nesse texto, que trata do problema de sua vida no seu nvel mais elevado de generalidade e de ambio intelectual45. Pelo estudo sucessivo do movimento intelectual, dos sentimentos e dos costumes do povo americano, Tocqueville enfrenta na realidade a questo mais importante das cincias sociais, aquela sobre a qual no deixamos de viver desde ento: qual a relao entre a produo das idias e das representaes e os demais nveis da existncia social? a questo que quase na mesma poca o jovem Marx tambm procura deslindar,

  • XLIV A DEMOCRACIA NA AMRICA

    pressupondo de sua parte um vnculo entre as idias e o estado social em geral. Mas em Marx esse estado social se caracteriza unicamente por elementos objetivos e por assim dizer materiais, as foras produtivas e s relaes de produo que elas induzem. J Tocqueville se instala diretamente no cerne do social, sem antes passar pelo econmico, inexistente no seu tipo de anlise; e esse social , na realidade, cultural.

    Porque, se ele a examina no seu sfentido objetivo, a igualdade nada mais que a igualizao das condies: um processo para o qual no se pode predizer nenhum fim, visto que a meta evanescente. No um estado, mas uma histria que d o seu sentido aos comportamentos dos indivduos e s representaes que guiam fesses comportamentos. Ela existe mais pela significao que d s relaes sociais do que pelas transformaes que introduz nessas relaes. Ao constituir uma legitimidade, ela imprime a todo o social esse movimento de autonomia conflitual que caracteriza a democracia americana. A tudo o social, incluindo as representaes: no h em Tocqueville essa lacuna, que Marx. nunca conseguiu preencher, entre produo da vida material e produo das idias. Como o seu instrumento analtico central menos a igualdade do que as representaes da igualdade, no duplo nvel da norma social e das paixes individuais, no h nenhum mal em descer, a partir da, at a produo das idias e das tradies morais e intelectuais.

    Essa descida no implica forosamente um vnculo central nico ou constante entre estado social e idias. E mesmo esse vnculo tanto menos nico quanto se trata de domnios mais cientficos; a propsito da literatura, por exemplo, Tocqueville pe o seu leitor em guarda contra essa espcie de determinismo pelo estado social, democrtico ou aristocrtico: Eu iria mais longe do que o meu pensamento se dissesse que a literatura de uma nao sempre subordinada ao seu estado social e sua constituio poltica. Sei que, independentemente dessas causas, existem muitas outras que do certas caractersticas s obras literrias: mas aquelas me parecem as principais.

    As relaes que existem entre o estado social e poltico de um povo e o gnio dos seus escritores so sempre muito

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    numerosas: quem conhece um jamais ignora completamente o outro.44

    Assim, sejam quais forem as precaues que toma para abrandar o seu carter sistemtico, a natureza do pensamento de Tocqueville dedutiva: da democracia decorrem os traos intelectuais, os hbitos mentais e os costumes dos americanos. Proposio que parcialmente tautolgica, visto que a definio da democracia inclui a norma e as paixes igualitrias; mas da qual Tocqueville tira variaes de uma finura e de uma riqueza quase infinitas, na medida em que se trata, para ele, de retrabalhar incessantemente, atravs dos seus correlatos, sua definio central. t

    No pois muito importante, a meu ver, que o plano desse admirvel segundo volume tenha apenas a aparncia do rigor; que a distino entre as idias, os sentimentos e os costumes seja freqentemente discutvel; que no prprio interior de cada uma das partes, em especial a terceira, a distribuio das matrias possa ser pouco lgica. O que conta a transparncia excepcional do objeto Amrica com respeito definio da democracia que Tocqueville utiliza para explor-la. Por sua origem, ao mesmo tempo recente e homognea, por seu estado social, por suas instituies polticas, os americanos renem as condies de uma experincia de laboratrio da democracia. Que tudo, entre eles, proceda da democracia uma facilidade de exposio para dizer que tudo pode ser compreendido a a partir do consenso social sobre a igualdade. Essa associao de homens novos, para explorar um territrio virgem, sem outra sedimentao histrica que no essa crena comum, ofereceu