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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE ADRIANA MARENCO DUMANS E MELLO O CIDADÃO ELEITOR: CRIMES ELEITORAIS E AFIRMAÇÃO DA CIDADANIA São Paulo 2013

Author: dangngoc

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

ADRIANA MARENCO DUMANS E MELLO

O CIDADO ELEITOR: CRIMES ELEITORAIS E AFIRMAO DA CIDADANIA

So Paulo 2013

ADRIANA MARENCO DUMANS E MELLO

O CIDADO ELEITOR: CRIMES ELEITORAIS E AFIRMAO DA CIDADANIA

Trabalho apresentado ao Curso de Mestrado em Direito Poltico e Econmico da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito para a obteno do ttulo de Mestre.

Orientadora: Professora Doutora Monica Herman Salem Caggiano

So Paulo 2013

M527c Mello, Adriana Marenco Dumans e

O cidado eleitor: crimes eleitorais e afirmao da cidadania. / Adriana Marenco

Dumans e Mello. 2014.

133 f. ; 30 cm

Dissertao (Mestrado em Direito Poltico e Econmico) Universidade

Presbiteriana Mackenzie, So Paulo, 2014.

Orientador: Monica Herman Salem Caggiano

Bibliografia: f. 114-133

1. Eleies. 2. Crimes Eleitorais. 3. Cidadania. 4. Democracia. 5. Transparncia. 6. Corrupo. 7. Poder Econmico. I. Ttulo

CDDir 341.28

ADRIANA MARENCO DUMANS E MELLO

O CIDADO ELEITOR: CRIMES ELEITORAIS E AFIRMAO DA CIDADANIA.

Dissertao apresentada Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Direito Poltico e Econmico.

Aprovado em:

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________

Prof. Dr Monica Herman Salem Caggiano

Universidade Presbiteriana Mackenzie

Prof. Dr. Andr Ramos Tavares

Universidade Presbiteriana Mackenzie

Prof. Dr. Dirco Torrecillas Ramos

Universidade de So Paulo

AGRADECIMENTOS

Inicialmente, com imenso e eterno carinho, agradeo minha me Mrcia e

ao meu pai Silvio (in memoriam), pelo amor incondicional, bem como ao meu irmo

Rodrigo, pelo companherismo, apoio e motivao a cursar a graduao em Direito.

Agradeo Professora Monica Herman Salem Caggiano, pela qual tive a

honra e o prazer de ser orientada no desenvolvimento da pesquisa, ante os

brilhantes ensinamentos, elucidaes e contribuies acadmicas.

Aos membros da banca de examinadores, Professor Andr Ramos Tavares e

Professor Dirco Torrecillas Ramos, pela oportunidade de conferir suas ponderaes

na avaliao do trabalho.

Ao Professor Adalberto Jos Queiroz Telles de Camargo Aranha Filho, pela

motivao a cursar o Mestrado da Faculdade de Direito da UPM, bem como pelo

valioso conhecimento e experincia transmitidos atravs de todos os anos de

faculdade, e por ocasio do Estgio Docente junto disciplina de Direito Penal

oferecida aos alunos da graduao.

Ao Professor Jos Carlos Francisco, pela oportunidade de participao junto

ao grupo de pesquisa de sua coordenao, bem como enorme colaborao ao

estudo do tema de pesquisa e bibliografia recomendada.

Ao Professor Felipe Chiarello, pelos ensinamentos e apoio concluso das

atividades do Mestrado.

Aos colegas do curso de Mestrado, pela amizade e troca de conhecimento,

fundamentais ao presente trabalho.

Cristiane, Secretria da Ps-Graduao da Faculdade de Direito, pelo

profissionalismo e imensa boa-vontade no suporte aos alunos.

Ao todos os meus amigos, pelo companheirismo, apesar de minha ausncia

nestes dois anos.

Ao Rodrigo, meu marido, pelo infinito carinho, amor e apoio na superao de todas as barreiras. s minhas filhas Julia e Luiza, razo de viver...

RESUMO

O trabalho de pesquisa, intitulado de O cidado eleitor: crimes eleitorais e afirmao

da cidadania tem por escopo o exame do ambiente democrtico do pas,

especialmente dos elementos de saneamento do exerccio da cidadania.

Apresenta panorama geral sobre o atual desenho normativo de criminalizao de

condutas pelo Direito Penal Eleitoral, em sua vertente relativa afirmao da

cidadania, objetivo precpuo da linha de pesquisa a que se vincula o presente

estudo, pois que considerada um dos instrumentos de garantia da legitimidade do

processo eleitoral.

A pesquisa se dirige a verificar os instrumentos que atuam no sentido de consolidar

o exerccio da cidadania pelo voto, em um campo eleitoral que confere elevadssimo

grau de competitividade, desafiado por diversos elementos considerados poluentes 1, tanto entre o corpo eleitoral como entre candidatos, o que no prescinde de

tratamento, atravs da sano, dos componentes que possam comprometer a lisura

e a sinceridade das eleies.

Nessa perspectiva, desponta a relevncia penal dos bens jurdicos protegidos pelo

Direito Eleitoral, que justifica a previso legal dos crimes eleitorais, que procuram

inibir e reprimir comportamentos que ofendam a democracia e o exerccio da

cidadania pelo voto. As pesquisas e consideraes que nos propomos a desenvolver

(a este tempo, sem a qualidade da originalidade), procuram enfocar essas

disposies normativas e sua relevncia na afirmao da cidadania.

Nossa proposta passa, inicialmente, pela abordagem objetiva da representao

poltica atravs do voto, como instrumento de cidadania e afirmao democrtica

para, aps, analisar os comportamentos delitivos poluentes do processo poltico

mediante classificao e anlise dos tipos penais especficos do Direito Eleitoral.

Palavras-chave: eleies, crimes eleitorais, cidadania, democracia, transparncia,

corrupo, poder econmico.

1 CAGGIANO, Monica Herman Salem. Sistemas eleitorais x representao poltica. Braslia:

Senado Federal, 1987.

ABSTRACT

The research paper titled "The voter: electoral crimes and affirmation of citizenship"

has the scope of the examination of the democratic environment of the country ,

especially the elements of sanitation of citizenship.

Brings better understanding about the current normative design of criminalization of

conduct by the Election Penal Law, in its aspects concerning the affirmation of

citizenship, main objective of the research line that binds the present study,

considered as an instrument of ensuring the legitimacy of the electoral process.

The research is aimed to check the instruments that act to strengthen citizenship by

voting in an electoral field that confers very high level of competitiveness, challenged

by several elements considered "pollutants", both between and among the electorate

candidates what does not dispense treatment by the sanction of the components that

could compromise the fairness and honesty of elections.

From this perspective, topping the criminal offense of legal rights protected by the

Electoral Law, which justifies the legal provision of electoral crimes, seeking to inhibit

and suppress behaviors that offend democracy and citizenship by voting. The

research and considerations that we propose to develop (this time without the quality

of originality), seeking to focus these regulatory provisions and their relevance in the

affirmation of citizenship.

Our proposal passes, initially, the objective approach of political representation

through voting, as an instrument of democratic citizenship and affirmation for, after

analyzing criminal behavior polluting the political process through classification and

analysis of specific types of Criminal Electoral Law.

Keywords : elections, electoral crime, citizenship, democracy, transparency,

corruption.

SUMRIO

INTRODUO .................................................................................................................... 10

CAPTULO I - CIDADANIA, DEMOCRACIA E ELEIES ................................................. 18 1.1 CIDADANIA E DEMOCRACIA: O VOTO COMO PRINCIPAL INSTRUMENTO ......... 18 1.1.1 Breve histrico do voto ..................................................................................... 28 1.1.2 Histria do voto no Brasil ................................................................................. 32

1.2 PROTEO DAS ELEIES - IMPORTNCIA E EVOLUO NORMATIVA ........... 36 1.2.1 Instrumentos assecuratrios da lisura e da qualidade do voto ..................... 37 1.2.2 Evoluo histrica das normas de proteo das eleies ............................. 39 1.2.3 Instrumentos do sculo XXI: Lei Ficha Limpa e Financiamento de campanha eleitoral ..................................................................................................... 42

CAPTULO II FATORES POLUENTES DA OPERAO ELEITORAL. PANORAMA GERAL ................................................................................................................................ 49

2.1 PROPAGANDA ELEITORAL E MDIA ....................................................................... 49 2.2 FINANCIAMENTO DE CAMPANHA: PROPOSTAS DE FINANCIAMENTO PBLICO NO BRASIL ...................................................................................................................... 54 2.3 PODER ECONMICO ............................................................................................... 64

CAPTULO III FRAUDES ELEITORAIS ........................................................................... 71 3.1 HISTRICO EVOLUTIVO DA TRATATIVA LEGAL DAS FRAUDES ELEITORAIS .... 71 3.2 INFRAES CRIMINAIS ........................................................................................... 76 3.2.1 O reconhecimento da natureza criminal de infraes no mbito eleitoral .... 76 3.2.2 O Direito Penal Eleitoral .................................................................................... 78

CAPTULO IV CRIMES ELEITORAIS. TRATAMENTO JURDICO .................................. 82 4.1 DIPLOMAS NORMATIVOS .................................................................................. 82 4.2 PECULIARIDADES HERMENUTICAS E CLASSIFICAO DOS CRIMES ELEITORAIS .................................................................................................................... 84 4.3 LIMITES CRIMINALIZAO DE CONDUTAS NO DIREITO PENAL ELEITORAL .. 94 4.4 PROPOSTA DE REDESENHO NORMATIVO DOS CRIMES ELEITORAIS APRESENTADA NO ANTEPROJETO DE REFORMA DO CDIGO PENAL (ATUAL PLS N 236/2012) .................................................................................................................. 100 4.5 PERSPECTIVAS PARA O APERFEIOAMENTO DA TRANSPARNCIA NO PROCESSO ELEITORAL BRASILEIRO ........................................................................ 105

CONCLUSO.................................................................................................................... 110

BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................. 115

10

INTRODUO

O presente projeto de pesquisa tem por escopo o exame do ambiente

democrtico brasileiro, atravs do estudo do exerccio da cidadania, sob a

perspectiva do Direito Eleitoral, com enfoque na anlise da relevncia penal dos

bens jurdicos tutelados pelo Direito Eleitoral, a justificar a imposio de sanes

criminais nesta rea do Direito, verificando sua classificao e instrumentalizao no

saneamento da operao eleitoral.

Dentre as formas de efetivao do regime democrtico, a participao do

cidado no processo eleitoral, atravs do voto, representa a forma representativa do

regime, conferindo-lhe efetividade, tendo em vista a escolha direta dos

representantes polticos, em pleno exerccio da soberania popular. A dinmica da

composio poltica estatal, por sua vez, determinar a constante evoluo

legislativa, no sentido de adequar o Direito s demandas sociais dos diferentes

momentos histricos.

A evoluo histrica do regime democrtico, desta forma, conduziu ao atual

sistema de escolha eleitoral, cujo enquadramento jurdico definido por Monica

Herman Salem Caggiano, que aponta, especificamente em referncia s suas

funes:

[...] a importncia do processo eleitoral, na condio de mecanismo para a seleo dos governantes/representantes desponta, notadamente, em climas democrticos, em razo das funes que lhe so prprias. que a plasticidade da sua configurao lhe confere uma gama variada de verdadeiras tarefas, amoldando-se ao ambiente em que est sendo aplicado e aos interesses a dominantes. Com efeito, em panoramas democrticos, as eleies, qualificadas de competitivas, comparecem em cenrio poltico decisional como fonte de legitimidade dos governantes, concorrendo para assegurar a constituio de corpos representativos, de sua parte, timbrados pela legitimao do voto popular. Demais disso, atuam como instrumento para, por

11

um turno, promover o controle governamental e, por outro, expressar a confiana nos candidatos eleitos.2

O atual cenrio poltico e social evidencia a importncia do Direito Eleitoral e

respectivo sistema penal, que, portanto comporta constante reviso e

aprimoramento luz das regras constitucionais, sempre no sentido de

preponderncia da plenitude e qualidade dos resultados do processo eletivo,

atendendo s perspectivas do corpo eleitoral, e conferindo fidelidade poltica aos

cidados, de sorte que criminaliza determinados comportamentos perpetrados por

personalidades indignas ocupao de postos pblicos.

Em vista do crescente nmero de inquritos policiais 3 e aes penais

envolvendo crimes eleitorais, notadamente relacionados propaganda poltica,

transporte de eleitores, e ao financiamento de campanhas, faz-se necessria uma

reviso do desenho normativo, aplicando peculiaridades hermenuticas dos crimes

eleitorais.

A preocupao no recai unicamente sobre a observncia das regras que

determinam a conduo do procedimento eleitoral, mas sobre a pessoa do

candidato e o preenchimento de requisitos de elegibilidade, de forma a aferir a

adequao ao exerccio do mandato junto ao Poder Pblico.

Podemos citar, como demonstraes da crescente relevncia do Direito

Eleitoral, especialmente na seara criminal, e tambm sob a perspectiva da

importncia da efetivao da democracia atravs da representao poltica, a

iniciativa popular do projeto que culminou na edio da Lei Complementar n

135/2010, comumente denominada Lei Ficha Limpa, ou ainda a propositura, pelo

Ministrio Pblico, da Ao Penal n 470 perante o Supremo Tribunal Federal

(Mensalo), cujo julgamento ocorreu em dezembro de 2013, e houve condenao

2 CAGGIANO, Monica Herman Salem. Direito eleitoral em debate: estudos em homenagem a

Cludio Lembo. So Paulo: Saraiva, 2013. p. 28 3 Carvalho, Jailton de. PF j abriu 661 inquritos para apurar crimes eleitorais. Disponvel em: <

http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2010/09/30/pf-ja-abriu-661-inqueritos-para-apurar-crimes-

eleitorais-328700.asp, 30/09/2010>. Acesso em: 01 maio 2013.

12

de diversos parlamentares na prtica de crimes contra a administrao pblica,

contra o sistema financeiro, formao de quadrilha, dentre outros delitos, todos com

o desgnio de violao das regras democrticas.

A credibilidade do processo de escolha eleitoral deve permear o regime

democrtico, o que pressupe tratamento normativo atento aos comportamentos

fraudulentos, com previso de sanes penais, objetivando a afirmao da cidadania

e a fidelidade dos resultados obtidos expectativa do corpo eleitoral, na medida em

que cobem prticas que visam ao desequilbrio e leso deste processo.

Desponta a dvida com relao criminalizao na esfera eleitoral: em um

campo que confere elevadssimo grau de competitividade, tanto entre o corpo

eleitoral como entre candidatos e, portanto, enfrenta diversos elementos

considerados poluentes 4 , correto tratar, atravs da sano penal, os

componentes que possam comprometer a lisura e a sinceridade das eleies, de

forma a efetivamente consolidar o exerccio da cidadania pelo voto? Em outros

termos, disputam relevncia penal os bens jurdicos que figuram como objeto de

ataque pelas infraes observadas no mbito eleitoral? Em caso positivo, quais os

instrumentos que atuaram e devem atuar, impedindo que a ao fraudulenta seja o

fator determinante do sucesso do pleito, no sentido de assegurar a lisura e a

legitimidade da operao eleitoral?

A resposta que se coloca, de plano, positiva, e no por outra razo que se

afirma a necessidade de constante estudo do ordenamento jurdico penal eleitoral,

de sorte que atenda s regras constitucionais vigentes, e observe limites relativos a

direitos e garantias fundamentais, de forma a efetivamente inibir e reprimir

comportamentos que ofendam a democracia e o exerccio da cidadania pelo voto. E

neste ponto sero analisadas algumas peculiaridades sobre as condutas tipificadas,

uma vez que o direito de sufrgio representa um dos principais instrumentos de

afirmao da cidadania e da democracia.

4 CAGGIANO, op. cit.,1990.

13

essencial, neste sentido, que a norma incriminadora atenda ao princpio

constitucional da proporcionalidade, e seja dotada de eficcia, ou seja, que se preste

ao alcance da finalidade a que se prope, notadamente no sentido de preveno de

prticas ilegais, sendo socialmente observada, o que justifica a constante anlise

com vistas plenitude da cidadania e do modelo representativo de democracia, que

disponha de um sistema de regras perfeitamente adequadas ao cenrio

constitucional.

O tema abarca, ainda, a questo do financiamento de campanhas, das

inelegibilidades estabelecidas pela Lei Complementar n 135/2010, e da propaganda

eleitoral, cuja transparncia ao eleitor vital para o acesso aos verdadeiros

interesses dos pretendentes ocupao de postos pblicos.

E recai justamente sobre este tema a pesquisa aqui proposta, cujos objetivos

principais so: a) estudar os comportamentos agressores da democracia e da

cidadania exercida pelo voto, bem como a relevncia penal dos bens jurdicos

tutelados pelo Direito Eleitoral e b) analisar os tipos penais eleitorais, notadamente

quanto classificao doutrinria e constitucionalidade, apontando neste sentido, os

mais relevantes afirmao da cidadania.

Para o estudo e alcance dos objetivos propostos, foi utilizado o mtodo

hipottico-dedutivo, ou seja, a pesquisa inicia-se pelo exame geral acerca da

importncia do Direito Eleitoral e evoluo normativa, procedendo a um recorte para

anlise dos poluentes e fraudes na operao eleitoral, que conduz, por fim,

confirmao da hiptese estudada, qual seja, a correta atribuio de sano penal a

alguns bens jurdicos violados pelas infraes cometidas no mbito eleitoral, que

justifica, pois, ao final do trabalho, o estudo mais detido dos crimes eleitorais em

espcie e seu tratamento jurdico, objeto do quarto captulo da obra, com vistas ao

aperfeioamento da legislao.

Evidenciando a vertente afirmativa da cidadania e do regime democrtico, no

estudo dos crimes eleitorais, sero apontadas algumas peculiaridades

hermenuticas aplicveis a esta rea especial do Direito Penal, em relao aos tipos

14

previstos no Cdigo Penal, analisando ainda a sua validade luz das regras

constitucionais, tais como a observncia reserva estrita de lei e pormenorizao

na definio da conduta incriminadora, momento em que ser apresentada

argumentativa com lastro no espao constitucional dos crimes eleitorais. Em

seguida, necessrio apontar os traos comuns aos delitos eleitorais, e a

apresentao de classificaes doutrinrias, anotando a que entendemos mais til

pesquisa, sempre com fulcro na linha de pesquisa a que se vincula o trabalho.

Sero traados, ainda que de forma sintetizada, alguns limites

criminalizao de condutas no Direito Penal Eleitoral, cuja argumentao baseada

nos direitos fundamentais deve permear o processo de interpretao e aplicao da

normativa, apresentando perspectivas de aperfeioamento da transparncia no

processo eleitoral, bem como uma proposta legislativa de redesenho e incluso dos

tipos penais eleitorais no Cdigo Penal.

A pesquisa foi bibliogrfica, porquanto essencialmente terica, com anlise da

evoluo histrica e contexto atual do Direito Eleitoral, de forma a evidenciar a

relevncia da pesquisa relativa a crimes eleitorais. Nesse plano, foram pesquisadas

obras (livros, monografias e artigos) de autores nacionais e estrangeiros que versam

sobre os temas abordados, alm de dados jurisprudenciais. Na medida do possvel,

foi dada prioridade a autores nacionais, tendo em vista o objetivo especfico desta

dissertao, que no pretende um estudo comparado. No obstante a essncia

terica, o trabalho disponibilizou tambm supedneo emprico, com pesquisas de

dados junto a rgos oficiais.

A proposta passa, inicialmente, pela abordagem objetiva das eleies, e

especialmente do voto como instrumento de cidadania e afirmao democrtica

para, aps, analisar os comportamentos delitivos poluentes do processo poltico,

culminando na anlise objetiva dos tipos penais especficos do Direito Eleitoral; este

especfico objeto da pesquisa traz, portanto, substrato emprico importante

demonstrao dos contornos de relevncia que ganhou o tema no Brasil, nos

ltimos anos, em razo do atual cenrio poltico e social que, como dito, ressalta

escndalos de corrupo poltica e a pulverizao de aes criminais para apurao

15

de crimes eleitorais. O trabalho mostra-se assim, um instrumento fundamental a uma

boa compreenso do papel que desempenha a tipificao penal na seara eleitoral no

pas.

A doutrina brasileira apresenta o maior volume de obras sobre o tema da

corrupo eleitoral, apresentando relevncia as obras de Monica Herman Salem

Caggiano5 - Oposio na Poltica, Sistemas Eleitorais x Representao Poltica e O

voto nas Amricas, de Claudio Lembo6 - Participao poltica e assistncia simples,

de Luiz Carlos dos Santos Gonalves7 - Crimes eleitorais e processo penal eleitoral

e Mandados expressos de criminalizao e a proteo dos direitos fundamentais8, e

de Fvila Ribeiro9 - Direito Eleitoral e Abuso de poder no Direito Eleitoral10.

Em vista da mencionada edio da Lei Complementar n 135/2010, diversos

delitos eleitorais passaram a gerar inelegibilidades, de sorte que, por esta tica,

tambm parece adequado um estudo atento e tcnico sobre os tipos penais,

sobretudo na quantidade de pena cominada, sendo o que nos propomos a fazer no

estudo ora apresentado.

O captulo inaugural relaciona os temas da cidadania, da democracia e das

eleies, analisando a importncia do voto como principal instrumento de alcance

dos objetivos democrticos, sua diferenciao do sufrgio e do escrutnio, e sua

natureza jurdica. Tambm sero traadas algumas ponderaes - ainda que breves,

pois no perfazem o objetivo especfico da obra sobre as modalidades de 5 CAGGIANO, Monica Herman Salem . Oposio na poltica. So Paulo: Madras / Angelotti, 1995.

CAGGIANO, op. cit., 1990.

CAGGIANO, Monica Herman Salem (Org.). O voto nas Amricas. Barueri: Manole, 2008. 6 LEMBO, Claudio Salvador. Participao poltica e assistncia simples. Rio de Janeiro: Forense

Universitria, 1991. 7 GONALVES, Luiz Carlos dos Santos. Crimes eleitorais e processo penal eleitoral. So Paulo,

Atlas, 2012. 8 ______. Mandados expressos de criminalizao e a proteo dos direitos fundamentais. Belo

Horizonte: Frum, 2007. (Coleo frum de direitos fundamentais). 9 RIBEIRO, Fvila. Direito eleitoral. Rio de Janeiro: Forense, 1996. 10 ______. Abuso de poder no direito eleitoral. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

16

escrutnio, sistemas eleitorais em vigncia e sobre a presena dos partidos polticos,

j que intimamente relacionada afirmao do regime democrtico e ao exerccio da

cidadania atravs da participao poltica

Importante tambm a apresentao do breve histrico do direito ao voto, tanto

no Brasil como no mundo, e quais so os principais desvios que ocorrem nesta

seara.

Passando abordagem da evoluo normativa de proteo das eleies,

indispensvel o estudo dos meios assecuratrios da lisura e da qualidade do

processo eletivo, bem como da sinceridade do voto, com desenvolvimento da

histria das normas de proteo, evidenciando a preocupao com a credibilidade e

fidelidade dos resultados eleitorais em relao vontade do corpo eleitoral, por fim

analisando dois importantes instrumentos do sculo XXI: a Lei da Ficha Limpa e os

debates polticos sobre o tema do financiamento de campanha eleitoral.

No segundo captulo, ser elaborado um panorama geral dos principais

poluentes da operao eleitoral, ressaltando a influncia da mdia na propaganda

eleitoral, assim como do financiamento de campanhas. Neste ponto, exsurge o tema

do abuso do poder econmico na arrecadao de recursos pelas formaes polticas

e a necessidade de detida regulamentao e fiscalizao neste campo, o que ser

examinado, junto s propostas normativas de financiamento pblico no Brasil. No

obstante no seja o objeto especfico do trabalho, com este se relaciona

diretamente, o que justifica a anlise de tais atividades.

Para o alcance dos objetivos gerais do trabalho, consubstanciados no estudo

dos comportamentos agressores da democracia e da cidadania exercida pelo voto,

no terceiro captulo trataremos das fraudes eleitorais, com um breve histrico dos

tipos de fraudes cometidas no Brasil e das normas jurdicas de proteo, em seguida

passando a dispor sobre o tratamento das principais infraes criminais, sendo tal

anlise realizada em um plano terico e geral, abordando a sua relevncia penal dos

ilcitos cometidos.

17

Confirmando a hiptese da pesquisa, qual seja, a afirmao da relevncia

penal da tutela de alguns bens jurdicos de talhe eleitoral, procederemos, no quarto

captulo, ao tratamento jurdico dos crimes eleitorais, mencionando inicialmente os

diplomas normativos vigentes, aplicveis matria, aqui includos, subsidiariamente,

os Cdigos Penal e Processual Penal.

Como estudo prvio dos tipos penais, sero apresentadas peculiaridades

hermenuticas, em constante comunicao com as regras constitucionais e

ordenamento jurdico penal, verificando eventuais avanos a serem aplicados ou

retrocessos a serem evitados na legislao vigente. Tambm sero traados

caracteres comuns aos delitos eleitorais, bem como propostas de classificao

doutrinria, diferenciando-os com relao a diferentes critrios, apontando o mais til

ao objeto da pesquisa. Necessrio, neste ponto, apontar limites criminalizao de

condutas no Direito Penal Eleitoral, que devem ser permeados pelo sistema protetivo

de direitos individuais fundamentais contido na Constituio Federal Brasileira.

Por fim, o trabalho abordar as perspectivas para o aperfeioamento da

transparncia no processo eleitoral brasileiro, trazendo tambm anlise sobre uma

proposta legislativa11 de redesenho e incluso no Cdigo Penal, de sorte que atue

nesta melhoria da qualidade do regime democrtico, expondo as tcnicas que

permitem esta concretizao, e qual o panorama atual do direito brasileiro nesta

seara.

11 GONALVES, op. cit., 2012.

18

CAPTULO I - CIDADANIA, DEMOCRACIA E ELEIES

1.1 CIDADANIA E DEMOCRACIA: O VOTO COMO PRINCIPAL INSTRUMENTO

Os conceitos de cidadania e democracia esto intrinsecamente relacionados,

de sorte que a concretizao do regime democrtico no prescinde do efetivo

exerccio da cidadania, que por sua vez, s poder ser plenamente proporcionado

neste ambiente democrtico.

O regime democrtico ganhou nova contextualizao positiva, em contraponto

ao desprestgio verificado na Antiguidade clssica caracterizado por Aristteles

como forma ilegtima de governo 12 - a partir da filosofia poltica do contrato social, de

Rousseau 13, que coloca em nova perspectiva o ideal democrtico de governo, posto

que deve concretizar a participao direta do povo nas escolhas e decises

polticas, atravs da expresso da vontade geral. Sua filosofia poltica, portanto, no

preconiza a forma representativa da democracia, e sim a modalidade de governo

direto, ou auto-governo.

Em Montesquieu 14 , por sua vez, a democracia representada pela

participao do povo atravs do governo representativo, destacando que o

autogoverno do povo invivel no apenas por razes prticas, impossibilitando

reunio de todos para deliberao, mas notadamente porque a capacidade de tomar

as decises polticas pertence somente a uma parcela da populao, devendo ser

escolhidos pelos representados.

12 Interpretada no contexto da demagogia. Poltica. Traduo de Pedro Constantin Tolens. So

Paulo: Martin Claret, 2006, p. 125. 13 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social: ou princpios do direito poltico. So Paulo: Martin

Claret, 2007. 14 MONTESQUIEU, Charles-Louis De Secondat. Do esprito das leis. Traduo de Cristina

Murachco. 4. ed. So Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 20-21.

19

Sobre o pensamento filosfico poltico de Montesquieu, Manoel Gonalves

Ferreira Filho15 ressalta a necessidade de escolha do representante por meio de

eleies, no proposto modelo de representao.

Atravs da obra de John Stuart Mill16, por fim, a democracia expressamente

vinculada ao chamado governo representativo, dada a impossibilidade prtica de

participao direta de todos na esfera pblica.

No sculo XX, reconhecendo a deficincia da democracia representativa na

efetiva expresso da vontade geral, e em busca do aperfeioamento desta forma, a

filosofia jurdica de Hans Kelsen 17 preconiza a intermediao dos partidos polticos

como elemento necessrio participao dos representados, passando a definir no

apenas seus representantes, como tambm seu vis ideolgico de governo.

A partir de tais estudos, a cincia poltica contempornea d enfoque

escolha de governantes, em detrimento da abordagem direta de autogoverno.

Tratando de definir os conceitos, vale anotar a doutrina de Robert Dahl18

sobre democracia, em que afirma a existncia de diversas formas de utilizao do

termo, para diferentes tipos de organismos sociais. No entanto, verifica-se, na

essncia das diferentes associaes humanas com finalidade democrtica, algo em

comum:

a exigncia de um princpio elementar: todos os membros devero ser tratados (sob a constituio) como se estivessem igualmente qualificados para participar do processo de tomar decises sobre as polticas que a associao seguir. Sejam quais forem as outras

15 FERREIRA FILHO, Manoel Gonalves. A democracia no limiar do sculo XXI. So Paulo:

Saraiva, 2001. v. 1. p. 14. 16 MILL, John Stuart. Consideraes sobre o governo representativo. Traduo de E. Jacy

Monteiro. So Paulo: Ibrasa, 1964. 17 KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. So Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 63. 18 DAHL, Robert. Sobre a democracia. [S.l.]: Editora UNB, 2001.

20

questes, no governo desta associao todos os membros sero considerados politicamente iguais19.

Estabelecem-se, neste sentido, critrios inerentes ao processo democrtico,

quais sejam a participao efetiva, a igualdade de voto, o entendimento

esclarecido, o controle do programa de planejamento e, finalmente, incluso dos

adultos20.

Interessante observar que os critrios estabelecidos permitem que os

membros de qualquer associao sejam politicamente iguais, finalidade precpua de

qualquer sistema democrtico.

Dentre os critrios apontados pelo autor, a participao efetiva, a igualdade

de voto e o entendimento esclarecido conduzem, de plano, ideia central do

presente trabalho, porquanto somente sero atendidos em um cenrio poltico livre

de atividades que pretendam corromper o sistema, o que no prescinde de regras

de preveno de comportamentos considerados lesivos a este sistema.

A cidadania, por seu turno, relaciona-se democracia na medida em que o

pleno exerccio daquela pressupe uma srie de direitos e deveres a que se reporta,

dentre os quais os direitos de eleger e de ser eleito. Em um dos conceitos

elaborados por Jorge Miranda21, Cidadania significa ainda, mais vincadamente, a

participao em Estado democrtico [...] A determinao da cidadania de cada

indivduo equivale determinao do povo (e, portanto, do Estado) a que se

vincula.

19 Idem, pg. 49: na elaborao de um conceito de democracia, o autor inicialmente desenvolve uma

proposio hipottica acerca da criao de uma associao de pessoas interessadas em atingir

determinadas metas em comum, iniciando pela elaborao e adoo de uma constituio. O que se

nota de plano, observando as diversas associaes deste tipo, a adoo de constituies

diferentes, do que se conclui que no h apenas uma constituio democrtica. No entanto, a tarefa

se concretiza na elaborao de um conjunto de regras e princpios que determinem como sero

tomadas as decises do grupo, de onde extrai o citado princpio elementar. 20 Idem, p. 49. 21 MIRANDA, Jorge. Teoria do estado e da constituio. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p.

205.

21

Pelo que se depreende do quanto mencionado, a cidadania no se limita

dita participao ativa ou passiva nas eleies, igualdade de voto e ao

entendimento esclarecido, devendo se operar de forma efetiva, ou seja, garantindo

aos cidados, conforme Robert Dahl22, a prerrogativa de controle do programa de

planejamento. Acerca deste controle, o autor dispe:

Os membros devem ter a oportunidade exclusiva para decidir como e, se preferirem, quais as questes que devem ser colocadas no planejamento. Assim, o processo democrtico exigido pelos trs critrios anteriores jamais encerrado. As polticas da associao esto sempre abertas para a mudana pelos membros, se assim estes escolherem.

O controle, ainda que indireto, atravs da representao poltica, essencial

a modelar a composio poltica do Estado, bem como as polticas pblicas de

interesse da sociedade, de sorte que no se contesta ser o regime democrtico apto

a proporcionar o melhor exerccio da cidadania.

Tornando ideia de composio por membros politicamente iguais, como

pressuposto democrtico, pode-se relacionar a igualdade poltica a uma srie de

exigncias e previses constitucionais e legislativas, mas, sobretudo igualdade e

universalidade do voto, o que conduz e relaciona os conceitos de democracia e

cidadania s eleies.

E no havia de ser diferente, como ensina Claudio Lembo23, pois o sistema

poltico democrtico est essencialmente ligado ao exerccio da cidadania atravs do

voto, independentemente de suas transformaes histricas:

No obstante as profundas transformaes introduzidas nos sistemas polticos democrticos pelo pluralismo e pelos partidos de massa, a forma representativa e a legitimao popular, por meio de eleies, dos detentores dos poder permanecem a base do ordenamento constitucional das democracias ocidentais. [...] De fato, em todos os sistemas democrticos a designao dos governantes por eleies suportadas no voto se caracteriza como elemento essencial e insubstituvel.

22 DAHL, op. cit., 2001. p. 49. 23 LEMBO, op. cit., p. 52.

22

Esta a finalidade das eleies, conforme assevera Monica Herman Salem

Caggiano, ou seja, concretizar a representao poltica24:

Sob este traado, a eleio passa a configurar um verdadeiro sistema: um arranjo poltico-constitucional, envolvendo o processo de escolha e designao dos representantes/governantes pelos integrantes do grupo social os representados/governados. Estes, nesse contexto, pronunciam-se politicamente por intermdio de consulta eleitoral, selecionando seus representantes e preservando, to s, o direito de no reelege-los na hiptese de no ver suas expectativas atendidas.

Tal sistemtica de fato traz a igualdade formal entre os cidados e sua

atuao na formao do Estado, sendo todos sujeitos de direitos polticos, exceto

nas hiptese legais de suspenso. No entanto, no se ignora que esta formalizao

da participao poltica insuficiente, sendo imprescindvel que seja permeada pela

igualdade material, qual seja, excedendo a mera tutela legal deste direito, para o

alcance da efetiva participao poltica, de forma livre, esclarecida e justa, isenta de

fatores negativamente influentes neste processo.

Concluindo a relao entre os temas da democracia, cidadania e eleies, a

autora registra a observncia das free and fair elections como requisito plenitude

de operabilidade da democracia25:

Em verdade, constitui este elemento um dos caracteres de maior peso na definio do modelo democrtico, que repousa sobre bases preordenadas ao atendimento da exigncia de eleies livres e amplamente competitivas para a seleo dos representantes e dos dirigentes dos postos executivos.

Antes de indicar a natureza jurdica do voto, instrumento de concretizao da

cidadania e, em ltima instncia, uma das formas de afirmao do regime

democrtico, impende trazer breve apontamento acerca da definio e

24 CAGGIANO, op. cit., 2013, p. 28. 25 CAGGIANO, Monica Herman Salem. Eleies 2002, o financiamento das campanhas eleitorais e

seu controle: enquadramento jurdico. Revista Direito Mackenzie, So Paulo, ano 3, n. 1, 2002. p.

5.

23

deferenciao de sufrgio e escrutnio, termos comumente utilizados como

referncia ao voto, bem como das principais formas de escrutinao - as

modalidades de sistemas eleitorais - e ainda mencionar, como de rigor, o papel dos

partidos polticos.

O termo sufrgio refere-se ao direito de votar e de ser votado, sendo o voto a

forma de exercer o sufrgio, e o termo escrutnio relacionado ao procedimento

eleitoral.

Como registra Monica Herman Salem Caggiano26,

o direito de sufrgio incorpora a prerrogativa de livre manifestao e expresso de posicionamentos polticos e, no campo operacional, revela-se como frmula concretizadora da representao poltica, um arranjo poltico-constitucional, cujo quadro alberga o processo de eleio dos representantes/governantes pelos integrantes do grupo social os representados/governados. [...] Por uma de suas perspectivas, conduz o estudioso diretamente ao conceito de cidadania, visualizando o nacional no exerccio dos direitos polticos e, consequentemente, envolve os dois aspectos do bifacial status civitatis o direito de votar e o de ser votado, isto , a perticipao ativa e passiva no processo poltico decisional.

Por sua vez, o escrutnio, isto , o procedimento pelo qual so apurados os

votos, com vistas distribuio das funes representativas, representa campo

extremamente frtil ao desenvolvimento de pesquisas, sendo bastante diversificados

os ordenamentos jurdicos sobre o tema, tendo em conta o interesse poltico e

parcialidade em sua elaborao.

Segundo Cottonet e Erien 27 , as leis eleitorais relativas aos modos de

escrutnio jamais sero neutras. Isto porque elas so elaboradas por parlamentares

que tem o interesse poltico em manter suas cadeiras.

26 CAGGIANO, Monica Herman Salem. Do direito de sufrgio ativo: do corpo eleitoral. In: ______.

(Coord.). Direito eleitoral em debate: estudos em homenagem a Cludio Lembo. So Paulo:

Saraiva, 2013.

24

Da se apresentar como questo tormentosa as maneiras de escrutinao dos

votos, tendo em vista que a modalidade e o clculo matemtico adotado podem

conduzir a desvios na distribuio representativa dos cargos postos disposio no

pleito.

De qualquer maneira, contemporaneamente existem basicamente trs

modalidades de escrutnio: a majoritria, comumente utilizada para escolha de

cargos na administrao, e realizada em dois turnos, confrontando os dois

candidatos mais votados na primeira rodada eleitoral, com vistas ao maior alcance

da maioria absoluta; a proporcional, mais adequada ocupao de cargos nos

parlamentos, porquanto permite a disponibilizao de assentos tambm s minorias;

e a mista, utilizada por exemplo na Alemanha, em que cada eleitor vota duas vezes,

uma para a escolha do candidato da circunscrio e outra para uma das listas do

Estado-federado (land), sendo inclusive desnecessrio que sejam do mesmo

partido.28

Sem destoar do tema em debate, cabe ento trazer colao algumas

ponderaes sobre a presena dos partidos polticos, j que intimamente

relacionada afirmao do regime democrtico e ao exerccio da cidadania atravs

da participao poltica.

Segundo Maurice Duverger29, ao final do sculo XIX, somente os Estados

Unidos da Amrica j haviam formado partidos polticos no sentido moderno da

palavra, pois esses comearam a se estruturar to somente em 1831 com o Reform

Bill do Reino Unido. Atualmente, figuram como protagonistas do regime democrtico.

27 COTTONET, Jean-Marie; ERIEN, Claude. Les systemmes lectoraux. [S.l.]: Presses

Universitaires de France, 1978. p. 47. apud LEMBO, op. cit., p. 52. 28 Sobre o tema, URBANO, Maria Benedita. A nova vaga dos sistemas eleitorais compostos ou

combinados: o sistema de representao proporcional personalizada. Separata de homenagem ao

Prof. Doutor Andr Gonalves Pereira. Lisboa: Coimbra, 2006. 29 DUVERGER, Maurice. Os partidos polticos. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.

25

A universalizao do voto e o fortalecimento dos partidos polticos, segundo

Paulo Ferreira da Cunha 30 , so essenciais afirmao da democracia como

referncia positiva, objetivo a ser perseguido por todas as sociedades que desejem

ter um bom governo, em oposio democracia em Aristteles, que apresenta

conotao negativa, vindo a ter, somente no sculo XX, seu sentido reconstrudo.

Assim, pode-se afirmar que os partidos polticos formaram-se e se desenvolveram, a

partir do sculo XIX, em decorrncia da gradual afirmao da democracia, do

aumento da extenso do sufrgio popular e da conquista e concretizao de

prerrogativas parlamentares.

Est, portanto, absolutamente correlacionado ao tema da designao popular

na composio poltica do Estado, a presena dos partidos polticos, bem como o

sistema eleitoral adotado.

Ainda segundo Maurice Duverger31, a importncia dos partidos polticos, nas

democracias ocidentais, levou autores a afirmar que os regimes polticos

contemporneos se constituem em Sistema de Partidos, demonstrando, segundo

Claudio Lembo32:

[...] a ampla extenso atingida pela presena dos partidos na operacionalidade do Estado contemporneo. Ainda mais. Com a tendncia existente de transform-los em titulares do monoplio eleitoral, os partidos polticos passam a se constituir em personagens indispensveis da cena poltica, no exerccio de funo mediadora ou de intermediao.

Por fim, passando natureza jurdica do voto, o direito de votar pode se

revelar em um dever, se considerado como mnus pblico para garantia da

soberania nacional, como contemporaneamente est disposto em diversos

ordenamentos constitucionais, sem ignorar o carter de direito, quando analisado

sob a perspectiva de que os cidados so os titulares da soberania.

30 CUNHA, Paulo Ferreira da. Da constituio antiga constituio moderna: repblica e virtude.

Revista Brasileira de Estudos Constitucionais RBEC, Belo Horizonte, n. 5, jan./mar. 2008. 31 DUVERGER, op. cit., 1970. 32 LEMBO, op. cit., 1991.

26

o sentido atribudo pela Constituio italiana de 1947, que dispe, em seu

artigo 48, o dever cvico de votar, assim como pela portuguesa e a brasileira, que

expressamente vincula o voto soberania popular, sendo obrigatrio por fora de lei

(Cdigo Eleitoral de 1965), recepcionada pelo legislador constituinte de 1988, que

configurou o voto como um direito pblico subjetivo funo eleitoral, nas palavras

de Claudio Lembo33.

Sobre o tema, de rigor trazer o magistrio de Monica Herman S. Caggiano34,

no estudo da organizao do sufrgio, sobre a relao entre o voto facultativo e o

voto obrigatrio, melhor elucidando o direito/dever de votar.

Segundo a autora, dentre as garantias do sufrgio, encontra-se, juntamente

liberdade na manifestao da vontade, a questo da obrigatoriedade do voto, que

teoricamente expressaria com maior entonao a vertente do dever, tolhendo a

possibilidade do eleitor de escolha quanto a exercitar ou no este direito atravs do

voto facultativo (que, por sua vez, exporia a vertente do direito).

Nas culturas democrticas ocidentais, a obrigao de votar em geral no

encontra guarida, como o caso da Frana, onde a opinio pblica tem criticado a

introduo do voto obrigatrio no ordenamento jurdico, com fulcro na idia de que

consiste em um direito do cidado, e no em funo pblica, cujo descumprimento,

alis, enseja apenas o pagamento de multa pecuniria ou mera reprovao de

ordem moral.

J no caso exemplo norte-americano, a regra do voto facultativo tem sido

acompanhada de elevado ndice de absteno, o que no entanto tambm ocorre na

Frana, inobstante a obrigatoriedade, e no acontece na Alemanha, cujo sistema

optativo.35

33 LEMBO, op. cit., p. 52. 34 CAGGIANO, op. cit., 1990. p. 45. 35 Para acesso aos ndices de pesquisa, ver Ibidem, p. 98

27

De qualquer forma, a capitulao jurdica do voto no Brasil refere-se ao

sobredito direito pblico subjetivo funo eleitoral, de sorte que a obrigatoriedade

preconizada pela lei tem o objetivo de reduo do abstencionismo; 36 destarte, cabe

consignar breve apontamento acerca das formas de participao dos cidados na

vida poltica, uma vez eleitos seus representantes, tema de essencial relevncia

concretizao da democracia e da cidadania.

A busca da participao poltica, ou seja, nas decises de governo, pelos

cidados que no o compem, ganhou fora aps a queda dos regimes absolutistas,

em que passaram os grupos sociais a valorizar e empenhar esforos na efetiva

atividade do povo nas deliberaes de interesse pblico, o que, no sendo

atualmente possvel operacionalizar-se diretamente, como o ideal modelo institudo

na Atenas clssica, ocorre mediante mecanismos que permitam a representao dos

diferentes segmentos da sociedade nas deliberaes legislativas e administrativas.

Oportuno rever as atuais formas de participao: o plebiscito, o referendo e a

iniciativa popular, com vistas a elucidar o estudo da democracia, da cidadania e do

voto.

Segundo Claudio Lembo 37 (1996, op.cit., p. 38), No interior de uma

cosmoviso democrtica, a doutrina indica o plebiscito como meio para a aprovao

ou oferecimento de contrariedade a ato de governo especfico de natureza poltica.

A Constituio Federal de 1988 (artigo 18, 3o e 4o), prev a utilizao do

plebiscito para, no mbito municipal, a criao, fuso ou desmembramento de

Municpios, ou ainda para a criao de novos Estados ou Territrios. Por seu turno,

o referendo tambm est previsto no ordenamento constitucional brasileiro, assim

como em diversas constituies europeias, e ainda nas Constituies dos Estados

Unidos e do Canad.

36 Inobstante a obrigatoriedade do voto, ver quadro relativo situao de absteno no Brasil: CAGGIANO, Monica Herman. Sistemas Eleitorais X Representao Poltica, pp.100-101 . 37 LEMBO, op. cit., p. 38.

28

Em linhas gerais, pode-se dizer que o plebiscito traduz-se na consulta popular

concernente a ato do Poder Executivo, enquanto o referendo submete mesma

apreciao popular uma medida legislativa.38

A iniciativa popular, por sua vez, permite aos cidados a elaborao e

apresentao de projetos de lei, sendo de grande importncia como caractertica do

regime democrtico. No Brasil, a edio da Lei Complementar no 135/2010,

vulgarmente conhecida como Lei da Ficha Limpa, originou-se de projeto com

iniciativa popular, cuja anlise ser pormenorizada mais adiante, na seo dedicada

ao estudo dos instrumentos de proteo das eleies, aproximando-se do tema

central do presente trabalho.

Sintetizando o raciocnio acerca da correlao entre democracia, cidadania e

voto, objeto deste captulo, de suma importncia o conhecimento necessrio boa

escolha do sistema eleitoral, o que demanda, notadamente, apreciao da cultura

democrtica do grupo social a que se dirige, estudo detido das funes exercidas

pelos partidos polticos, do fenmeno partidrio e da interao eleitor/candidato,

posto que so inmeros os fatores impactados pela forma adotada de escrutnio,

desde as despesas eleitorais e o grau de participao eleitoral, at a prpria

legitimidade do sistema poltico, podendo levar a uma maior ou menor consonncia

entre a vontade do eleitor, expressa atravs do voto, e o resultado das eleies.

Sendo o voto o principal instrumento de exerccio da cidadania, promovendo a

participao poltica e a efetivao da democracia, os prximos subttulos trazem um

breve histrico acerca do processo evolutivo do direito ao sufrgio, buscando a

melhor compreenso da atual realidade que se confere neste campo, especialmente

das dificuldades de instrumentalizar, de forma justa e livre, o exerccio da cidadania.

1.1.1 Breve histrico do voto

38 LEMBO, op. cit., p. 38-9.

29

O regime democrtico est intrinsecamente ligado ao poder deliberativo do

povo na escolha de seus representantes, que exercido atravs do voto, deve

conduzir fidelidade da composio do poder governamental em relao

expectativa dos cidados, como visto no subttulo anterior.

Como ensina Fvila Ribeiro39:

Na sociedade democrtica a legitimidade governamental baseada no consentimento do povo. As funes governamentais devem emanar da coletividade, ser exercidas em seu nome e para seu proveito. [...] na edificao de um esquema institucional democrtico, desponta a concepo do povo como autntico titular do poder soberano. Emerge, ento, a concepo de legitimidade do poder governamental, que envolve duas dimenses no regime democrtico: a) legitimidade quanto investidura; legitimidade quanto ao exerccio.

Tal raciocnio, notadamente acerca da legitimidade quanto investidura,

expe a necessidade da escolha da composio poltica do Estado atravs da

designao do povo, ou seja, por meio do voto.

No mundo, os primeiros registros histricos de eleies remetem

Antiguidade Clssica:

Para o Ocidente, os primeiros registros de eleies se fizeram na Grcia Antiga. Pelo fato de Atenas, basicamente, ser o bero da democracia, nada melhor que a escolha de seus representantes ser feita por meio das eleies.40

Sabe-se que em Atenas, por volta do sculo V a.C., havia a prtica eleitoral,

em que aproximadamente 20% da populao tinha direito a participar das eleies,

ficando excludos da vida poltica mulheres, estrangeiros, escravos e crianas.

39 RIBEIRO, op. cit., 1996. p. 1. 40 Disponvel em : . Acesso

em: 23 dez. 2013.

30

Alguns exemplos de manifestaes eleitorais observadas na democracia

ateniense referem-se a deliberaes diretas dos cidados, participando de

assembleias populares na denominada gora, ou ainda a investidura em cargos

considerados de maior expresso democrtica, como em determinadas

magistraturas por meio de sorteios, os kleros.

Em Aristteles41, a eleio - hairesis - tinha conotao mais aristocrtica do

que o sorteio, porquanto este ltimo conferia maior igualdade de oportunidades aos

cidados, sendo portanto mais democrtico, pois permitia a ocupao de alguns

cargos atravs da sorte, ainda que a sorte, para os atenienses, revelasse na

verdade um desejo divino.

Interessante observar que em Roma (sculo II a.C.), tem-se notcia da

existncia de uma urna para o depsito dos votos, com a finalidade de reduzir a

intimidao e o constrangimento da eleio pblica.42

As eleies em Roma tiveram menor alcance se comparadas a Atenas, e h

referncias de trfico de votos, em que pese a existncia de regras e sanes a tais

comportamentos ofensivos. 43

Havia significativa diferena na apurao da maioria de votos, tendo em vista

que, nas cidades gregas, a contagem era por cidado, um a um, enquanto em Roma

eram formados grupos, que por sua vez elegiam internamente um voto que

representasse a vontade da maioria dos componentes. Na Grcia, a designao

atravs do voto era considerada direito pessoal, portanto indelegvel a qualquer

grupo ou entidade intermediria, como ocorria em Roma.44

41 Apud RIBEIRO, op. cit., 1996. p. 23. 42 Disponvel em :. Acesso

em: 23 dez. 2013. 43 COULANGES, Fustel. A cidade antiga. Traduo Fernando de Aguiar. 5. ed. So Paulo: Martins

Fontes, 2004. 44 RIBEIRO, op. cit., 1996. p. 24.

31

Para Andr Aymard45 o carter democrtico na organizao romana estava

apenas na aparncia, acentuando que o sistema adotado para repartio numrica

dos cidados entre os grupos tinha decisiva influncia na composio da maioria

oficial, com possibilidade de que essa maioria formal fosse muito diferente da

maioria real, porque a maior desigualdade de fato podia existir entre os cidados

juridicamente iguais, quando exprimiam os seus votos no interior do grupo, de

elevado ou reduzido nmero..

Na Idade Mdia, as mais antigas manifestaes representativas foram

registradas por volta de 1188, em Castela e Leo, conferindo Espanha a

precedncia de um sistema eletivo, seguida da Alemanha, uma vez que os

germanos experimentaram uma forma precria de representao poltica, em que os

concidados elegiam as autoridades que desempenhavam as funes de justia e

execuo das deliberaes coletivas. 46

A Inglaterra, embora no goze da primazia cronolgica no estabelecimento de

um sistema eletivo, porquanto a primeira efetiva convocao eleitoral remonta ao

ano de 1254, merece destaque por t-la no apenas mantido, mas a aperfeioado

atravs da histria, enquanto que a Espanha conheceu posteriormente um

retrocesso do sistema, com o regime absolutista, apoiado na Igreja.47

45 AYMARD, Andr. Histoire gnrale des civilisations. 2. ed. Paris: Presses Universitaires de France,

1956. t. 2. p. 116-117 apud RIBEIRO, Fvila, 1996, op. cit., p. 24. 46 RIBEIRO, op. cit., 1996. p. 25. 47 BIEDERMAN, Charles. Les systemes reprsentatifs avec elections populaires. Trad. do alemo

Stanislas Leportier. Leipzig: F.A. Brocknaus, 1864. p. 86-8, apud Fvila Ribeiro, op.cit., p. 28, afirma

a precedncia da Inglaterra no estabelecimento de um sistema eletivo de representao, em razo

da criao do rgo denominado Wittenagemot , composto por grandes proprietrios, comissrios do

rei e juzes de cada distrito. Fvila Ribeiro (op. cit., p. 28-29), no entanto, diverge de tal entendimento,

acompanhando GUIZOT, M. Histoire des origines du governement reprsentatif et des

instituitions politiques de lEurope. Paris, Didier Libraire-diteur, 1857. t. 1. p. 319-27) e

MACLEOD, John. Manual de histria constitucional da Inglaterra. Trad. de Tobias Digenes

Travessa. Rio de Janeiro: Typografia Leuzinger, 1922. p. 46-7), considerando a natureza aristocrtica

de representao, no conferindo poder de deliberao a homens de classes inferiores. EISMEIN, A.

Elments de droits constitutionnel franais et compar. 8. ed., Paris: Recueil Sirey, 1927, t. 1, p.

32

Neste sentido, conclui Fvila Ribeiro48 :

Enquanto outras naes que tinham precedncia histrica assistiram o desmoronar de suas prticas eletivas, a Inglaterra pde mant-las com obstinado esforo, realizando lento e persistente trabalho de decantao das impurezas.

Impende salientar, como assevera Jos Carlos Francisco49, que at o sculo

XIX, ainda predominava o voto censitrio nos modelos de Estado Liberal, de sorte

que a representao popular nos parlamentos da poca no expressavam as

expectativas do corpo eleitoral.

Mas a evoluo histrica do voto trouxe, atualmente - e apesar da existncia

anacrnica de rarssimos modelos polticos que instituem limitaes ao voto, ou

ainda o voto plural - caractersticas comuns a praticamente todos os sistemas

polticos ocidentais: a universalidade, a pessoalidade, a igualdade de peso, o sigilo,

a liberdade de escolha, e obrigatoriedade e a natureza direta, dissociada de

qualquer intermediao ou delegao (LEMBO, Participao Polica e Assitncia

Simples no Direito Eleitoral, 1991, p. 55).

1.1.2 Histria do voto no Brasil

No Brasil, a histria das eleies tem incio 32 anos aps Cabral ter

desembarcado no Pas. Em 23 de janeiro de 1532 os moradores da primeira vila

fundada na colnia portuguesa - So Vicente, em So Paulo - foram s urnas para

eleger o Conselho Municipal.50, sendo portanto o primeiro pleito de que se tem

91), e a maioria dos autores, reafirmam o ano de 1254 como marco inicial de convocao eleitoral na

Inglaterra, para composio do chamado Great and Model Parliament, concluindo, desta forma, pela

colocao da Espanha como precursora de um sistema eletivo na Idade Mdia. 48 RIBEIRO, op.cit., p. 31. 49 FRANCISCO, Jos Carlos. Traos histricos dos partidos polticos: do surgimento at a segunda

era da modernidade. Estudos Eleitorais, Braslia, v. 5, n. 1, p. 79-86, jan./abr. 2010. 50 HISTRIA do voto no Brasil. Disponvel em:

. Acesso em: 12 jun. 2012.

33

notcia no pas, com eleies indiretas de seis representantes, que procederam

escolha dos oficiais que comporiam o Conselho.

No perodo anterior proclamao da independncia, havia no Brasil

instituies representativas transplantadas das instituies representativas de

Portugal, conforme leciona Fvila RIBEIRO 51 , porquanto j no sistema das

capitanias hereditrias, adotado por Dom Joo II, os donatrios gozavam da

faculdade de elevar vilas e convocar pleitos eleitorais para composio dos cargos

de conselheiros.

Interessante verificar a existncia, j nos primrdios da histria do pas, de

regras para assegurar a liberdade e espontaneidade na escolha dos candidatos,

tendo em vista que fora vedada a presena de autoridades do Reino no local de

votao, evitando-se a intimidao dos eleitores.

As eleies foram regidas pelas Ordenaes Filipinas, de1603, em seu Livro

I, Ttulo 67, e o direito ao sufrgio era conferido ao povo em geral, independente de

prvia qualificao.52

Em 1821, extrapolando o mbito municipal, foram convocadas eleies de

representantes junto Corte portuguesa. Nesta ocasio, homens livres, maiores de

vinte e cinco anos (ou homens casados acima dos vinte e um anos), inclusive

analfabetos, puderam votar. O voto, no entanto, no era secreto, e no havia

partidos polticos.

51 RIBEIRO, op. cit., 1996, p. 31. 52 O votante apresentava-se mesa eleitoral e, em tom de sussurro, apontava seis nomes ao

escrivo que os anotava. Logo depois eram apurados os votos, sendo designados eleitores os seis

mais votados. Esses seis eleitores escolhidos, aps juramentados, eram distribudos em trs grupos,

reunidos em trs diferentes locais, quando passavam elaborao das suas listas de votao,

compondo-as de tantas colunas quantos fossem os cargos de oficiais a escolher. In: Fvila Ribeiro,

op. cit., p. 32.

34

A primeira legislao eleitoral brasileira foi editada em 1824, para regimento

das eleies da Assemblia Geral Constituinte, com voto censitrio, podendo ser

exercido por meio de procurao (o que foi proibido a partir de 1842), dispensando-

se o ttulo de eleitor, que passa a ser obrigatrio somente em 1881, por fora da

edio da Lei Saraiva, consubstanciada no Decreto Legislativo no 3.029, de

09.01.1881.

A Lei Saraiva trouxe extensa reforma eleitoral no Brasil, no apenas pela

obrigatoriedade do alistamento permanente, mas tambm pelo reconhecimento do

direito ao voto aos analfabetos, que perderam este direito por fora do Decreto de

19.11.1889, que obrigava que os alistandos soubessem ler e escrever.

Em 1891, aps a proclamao da Repblica, a Constituio Republicana

prev a possibilidade de voto direto para Presidente e Vice-Presidente.

O Cdigo Eleitoral Decreto no 21.076, de 24.02.1932 passou a permitir o

voto da mulher, e assegurar o sigilo das votaes. Dois anos depois, fica

estabelecida a idade mnima de dezoito anos para o direito ao voto.

A Constituio de 1934, adaptada pela lei no 48, de 04.05.1935, cria a Justia

Eleitoral, extinta em 1937, somente ressurgindo em 1945.

Com o Estado Novo, em 1937, foi revogado o Cdigo Eleitoral, suspensas as

eleies livres, tornando forma indireta para Presidente da Repblica, com

mandato de seis anos, somente restabelecidas em 1945.

Em 1964, o Golpe Militar proibiu eleies diretas para os cargos de

Presidente da Repblica, Governadores, Prefeitos e Senadores (estes dois ltimos

voltando a ser diretamente escolhidos em 1972, exceto os cargos de prefeitos das

capitais), somente permitindo para os cargos de deputados federais e estaduais,

bem como de vereadores.

35

Em 1968, o notrio Ato Institucional n. 5 determina o fechamento do

Congresso, a cassao de diversos parlamentares e confere plenos poderes ao

governo.

O denominado Pacote de Abril, de 1978, estabelece a escolha de apenas

dois Senadores, um por eleies diretas, e outro por eleies indiretas, pelas

assemblias legislativas.

O ano de 1984 foi marcado pelo incio da campanha pelas eleies diretas,

muito embora as eleies de 1985 para o primeiro Presidente civil aps a ditadura

militar tenham sido indiretas. Por emenda constitucional, so restabelecidas as

eleies diretas para Presidente e Prefeitos das capitais consideradas reas de

segurana no regime militar, estendendo ainda o direito ao voto aos maiores de

dezesseis anos e aos analfabetos.

A Constituio Federal de 1988 estabelece eleies diretas (com a primeira

eleio direta para Presidente da Repblica em 1989, aps quase trinta anos), voto

facultativo para analfabetos, maiores de setenta anos e adolescentes entre

dezesseis e dezoito anos.

As urnas eletrnicas aparecem em 1996, utilizadas pela primeira vez nas

eleies municipais, sendo que o incio dos testes para identificao biomtrica de

eleitores se d em 2008.

Atualmente, em sntese, nos termos do artigo 14 da Constituio Federal, a

soberania popular ser exercida pelo sufrgio universal e pelo voto direto e secreto,

com valor igual para todos. Isso significa o direito ao sufrgio completamente

desligado de qualquer forma de discriminao, sendo, portanto, um direito universal,

exceto dos estrangeiros e os conscritos, durante o perodo do servio militar

obrigatrio, nos termos do 2 do mencionado dispositivo. O voto, sendo secreto e

direto, no permite qualquer tipo de intermediao entre eleitor e candidato.

36

O alistamento eleitoral e voto so obrigatrios para os maiores de dezoito

anos e facultativos para os analfabetos, maiores de setenta anos e maiores de

dezesseis e menores de dezoito anos, conforme regra prevista no artigo 14, 1 da

Carta Magna.

Por fim, anote-se que no Brasil a democracia do tipo semi-direta ou

representativa (artigo 1, pargrafo nico, da Constituio Federal), possibilitando,

excepcionalmente, a eleio indireta, como no caso de vacncia de cargos de

Presidncia e Vice-Presidncia da Repblica nos dois ltimos anos de mandato, nos

termos do artigo 81, 1, da Carta Magna, quando a eleio ser feita pelo Congresso

Nacional.

1.2 PROTEO DAS ELEIES - IMPORTNCIA E EVOLUO NORMATIVA

Sob a perspectiva a linha de pesquisa A cidadania modelando o Estado,

foroso convir que a idia sobre cidadania vincula-se intimamente operao

eleitoral, embora seja cedio que o termo a ela no se limita.

Desta forma, a disciplina jurdica eleitoral deve se pautar pelo importante

papel das eleies na efetivao da democracia, criando um sistema eleitoral seguro

e justo.

Neste sentido, Monica Herman Salem Caggiano53 aduz que:

[...] concordam os tericos e proclamam os analistas polticos a inutilidade da operao eleitoral, qualquer que seja a tcnica adotada, na hiptese de no vir a ser assegurada a livre manifestao da vontade em relao ao eleitor.

necessrio ter em conta a necessidade de instrumentalizao para melhor

assegurar a sinceridade na expresso do voto, conferindo-lhe garantias, como se

ver a seguir, com vistas a neutralizar presses exercidas sobre o eleitor, como a

53 CAGGIANO, op. cit., 1990. p. 96.

37

arregimentao e mobilizao atravs do poder econmico, o uso da mquina

governamental, as sofisticadas tcnicas de marketing poltico, que visam influenciar

a psique do eleitor, desviando a escolha com base em preferncias eleitorais

genunas, para uma comercializao da imagem pessoal do candidato, que em nada

atende finalidade representativa do processo eleitoral.

1.2.1 Instrumentos assecuratrios da lisura e da qualidade do voto

Convm registrar de plano a questo do sigilo das votaes na garantia da

plenitude e sinceridade do voto, pois diretamente ligada liberdade do eleitor na

escolha de seus representantes polticos.

A assepsia do voto, portanto, no prescinde da eliminao de presses e

ingerncias externas de quaisquer natureza sobre esta escolha, poupando o eleitor

de constrangimentos que afetem a livre expresso do pensamento poltico, o que se

tornaria inexequvel com o sistema de cdulas abertas, sendo obrigatrio o

isolamento e a urna, para o que se adotam sistemas tecnolgicos cada vez mais

avanados, como a urna eletrnica.

Vale mencionar, como exemplo de garantia do sigilo do sufrgio, as

peculiaridades condies do deficiente visual e do analfabeto, que demandam

tratamento normativo no sentido de conferir a mesma condio de sigilo.

Para os deficientes visuais, o artigo 150 do Cdigo Eleitoral assegura o uso

do sistema braille, ou assinalar a folha de votao em letras de alfabeto comum

(inciso I), ou utilizar-se de qualquer sistema (inciso II), ou ainda usar qualquer

elemento mecnico que trouxer consigo, ou lhe for fornecido pela Mesa, e que lhe

possibilite exercer o direito de voto (inciso III). E com relao aos analfabetos, a lei

7.332/85, em seus artigos 18 e 19, preconiza forma de identificao do candidato

sem a necessidade de leitura de nomes54.

54 CAGGIANO, op. cit., 1990. p. 103.

38

As garantias eleitorais, segundo Monica Herman S. Caggiano55, podem ser

classificadas de acordo com o momento do processo eleitoral, articulando-as em

garantias prprias ao alistamento, e garantias prprias ao desenvolvimento da

consulta eleitoral.

O sobredito sigilo das votaes, neste caso, amolda-se segunda categoria,

enquanto a primeira se refere busca da regular formao do quadro de eleitores,

garantindo-lhes o direito ao alistamento eleitoral, preenchidos os requisitos legais.

Como exemplos, o Cdigo Eleitoral56 confere ao empregado o direito de se ausentar

do servio para fins de alistamento, ou transferncia, assim como uma vasta gama

de medidas e procedimentos que denotam a notria preocupao do legislador em

assegurar a correta identificao do pretendente ao alistamento, ou transferncia,

de forma a coibir tentativas de fraudes nesta fase.

A preocupao do ordenamento jurdico com a liberdade no exerccio do voto

revela-se tambm pelas normas que vedam o impedimento ou embarao do

exerccio do sufrgio, chegando a criminalizar condutas, como o caso do delito

previsto no artigo 297 do Cdigo Eleitoral, assim como o cumprimento de mandado

de priso de eleitores nos cinco dias antes, e nas quarenta e oito horas aps o

pleito, nos termos do artigo 236 do diploma eleitoral, salvo em flagrante delito,

desrespeito a salvo conduto, ou ainda sentena criminal condenatria por crime

inafianvel.

Com efeito, consubstanciam-se em instrumentos que asseguram a plenitude,

a lisura e a sinceridade do voto, e revelam a preocupao do legislador neste

sentido, a adoo de regras e mecanismos de controle com vistas a coibir abusos de

toda sorte, tais como a vedao ao transporte gratuito de eleitores residentes na

zona rural (lei 6.091/74 - Lei Etelvino Lins), a limitao temporal dos debates e da

divulgao de pesquisas eleitorais, a vedao aos desvios de finalidade na

propaganda, previstos no artigo 240 e seguintes do cdigo, e no financiamento de

campanhas, todos intimamente ligados ao poder econmico, que por sua vez deve

55 Ibidem, p. 111. 56 Artigo 48

39

estar condicionado por limites de atuao no mbito eleitoral, sob pena de

desvirtuamento do regime democrtico e da esclarecida participao popular na

poltica, como ser estudado de forma mais acurada nos prximos captulos da obra.

Em concluso ao exposto, de rigor transcrever as palavras de Caggiano57 :

[...] est evidente que, entre ns, optou o legislador, apoiado em remansosa e pacfica jurisprudncia, por introduzir amplo elenco de garantias livre exteriorizao do voto, sem contudo anular a possibilidade de divulgao das ideias e programas por parte dos partidos e candidatos. Tal objetivo, porm, dificilmente alcanado, conforme retratam os inmeros casos levados apreciao dos tribunais, os quais enfatizam o degradante nvel moral a que as campanhas promocionais tem conduzido o debate poltico estabalecido por ocasio dos pleitos.

1.2.2 Evoluo histrica das normas de proteo das eleies

Em ateno ao sistema de proteo das eleies, o subttulo em epgrafe

expe as normas aplicadas na histria das eleies no pas, que revelam sua

importncia, na medida em que demonstram os moldes pelos quais evoluiu o

processo eleitoral e o regime democrtico no pas, para melhor compreenso do

atual modelo representativo que, segundo entendimento de Claudio Lembo58, [...]

que se, em todos os tempos, o problema da democracia no Brasil tem sido mal

posto, porque tem sido posto maneira inglesa, maneira francesa, maneira

americana; mas, no maneira brasileira.

Apresentando cronologia do Direito Eleitoral no pas, de rigor registrar os

principais marcos evolutivos na histria, consoante levantamento de Claudio

Lembo59, at o Golpe Militar de 1964.

57 Caggiano, op. cit., 1990. p. 119. 58 LEMBO, Claudio. Cronologia bsica do direito eleitoral brasileiro: o voto nas Amricas. [S.l.:

s.n.]. p. 73. 59 LEMBO, op. cit., [S.l.: s.n.]. p. 73-106.

40

At 1602, a legislao aplicada s eleies para juzes, vereadores e outros

oficiais no Brasil foram as Ordenaes Manuelinas Ttulo XLV. A partir de 1602,

foram as Ordenaes Filipinas Livro I Ttulo LXVII que regeram a escolha de

tais cargos eletivos.

Trao comum s regras aplicadas as eleies em 1821 e 1822 e 1824, foi a

edio de Decretos fundados em mtodos estabelecidos em Portugal e na Espanha,

inclusive na convocao da Assemblia-Geral Constituinte e Legislativa (1822), no

entanto dissolvida por Pedro I, outorgando a Constituio do Imprio por meio de

Carta de Lei.

Em 1828, as alteraes na composio das cmaras municipais, eleio dos

regentes menoridade de Pedro II (1831) e eleio de deputados com poderes para

reforma constitucional (1832) foram autorizadas por Lei.

A primeira legislao eleitoral, contendo regras gerais e assemelhando-se a

um cdigo eleitoral Lei n 387, de 19 de agosto de 1846 trouxe novas instrues

para a eleio de senadores, deputados, membros das assemblias provinciais,

juzes de Paz e Cmara Municipal, vindo a ser reformada por Decreto, em 1875.

Em 1881, a notria Lei Saraiva traz a ltima reforma da legislao eleitoral no

Imprio, com importantes alteraes, dentre elas a instituio do voto distrital

uninominal, com eleio de um deputado por distrito por maioria absoluta60.

Proclamada a Repblica, a legislao aplicada foi o Decreto n. 1, de 15 de

novembro de 1889, estabelecendo regras sobre os Estados Federados, afastando o

critrio de renda at ento adotado no pas.

Em 1891, foi determinada a dissoluo do Congresso Nacional e convocado

pleito para escolha dos novos representantes para reviso da primeira Constituio

da Repblica dos Estados do Brasil.

60 Ibidem, p. 78.

41

Novas legislaes eleitorais foram editadas em regularidade praticamente

anual, entre 1892 e 1911, merecendo destaque o Decreto n. 2419, de 11 de julho

de 1911, que estabelece causas de inelegibilidade para o Congresso Nacional,

Presidente e Vice-Presidente da Repblica, tornando inelegveis os magistrados

federais e federais, os comandantes militares, os representantes do Ministrio

Pblico junto ao Tribunal de Contas, os membros do Ministrio Pblico Estadual, o

Presidente e o Vice-Presidente da Repblica para o perodo imediatamente

seguinte, e os ministros de Estado que atuaram nos 12 meses anteriores eleio.

Editado, o primeiro Cdigo Eleitoral, em 1932, onde concedido o direito de

voto s mulheres e instituda a Justia Eleitoral, adotando-se o sistema eleitoral

proporcional, conceituando o partido poltico como pessoa jurdica, mediante

inscrio no registro.

Ainda em ateno s inelegibilidades, o Decreto de 17 de janeiro de 1933

torna elegveis os magistrados que abandonarem os cargos dois meses antes das

eleies, admitindo candidato sem partido, estabelecendo a votao em dois turnos.

Foi editada em 1937, a Constituio do Estado Novo, determinando que a

Unio legislaria sobre matria eleitoral, anotando-se que nunca foram convocadas

eleies durante o perodo de 1937 a 1945.

A Lei Constitucional de 1945 estabelece o voto obrigatrio, direto e secreto, a

representao proporcional, expressa garantias eleitorais e requisitos para a

formao de partidos polticos, com regulamentao de diversas matrias de rotina

administrativa.

Reaberto o alistamento eleitoral em 1946, novas regras sobre o alistamento e

sobre os partidos polticos, proibindo receber orientao poltica do estrangeiro ou

42

dinheiro ou qualquer outro auxlio e conter pregao contrria aos direitos

fundamentais do homem61 .

Em 1950, editado novo Cdigo Eleitoral, surgindo regras sobre a propaganda

partidria no pas.

O Ato Institucional n. 1, de 9 de abril de 1964 determinou eleies para

Presidente e Vice-Presidente da Repblica, sem inelegibilidades, suspendendo as

garantias constitucionais, e cassando mandatos legislativos sem apreciao judicial.

Expostas as regras de proteo s eleies at o perodo da ditadura militar,

no se faz necessrio novo registro relativo ao perodo subsequente, pois j exposta

cronologia no subttulo relativo ao histrico do voto no Brasil, ao qual ora se remete.

1.2.3 Instrumentos do sculo XXI: Lei Ficha Limpa e Financiamento de

campanha eleitoral

Importante marco no processo histrico-evolutivo de proteo das eleies, a

Lei Complementar n 135/2010, conhecida como Lei da Ficha Limpa, que alterou em

parte a Lei Complementar n 64/90, evidenciou uma das formas de consagrao do

exerccio da cidadania no processo eleitoral, porquanto seu projeto originou-se por

iniciativa popular.

Consiste a iniciativa popular de leis em forma de participao poltica

colocada disposio da sociedade, pois permite o exerccio da cidadania atravs

da elaborao e apresentao de projetos de lei, rompendo, assim a reserva

legislativa antes deferida ao Executivo e aos integrantes do Legislativo62..

Tratando de causas de inelegibilidade, inconteste a contribuio como

instrumento de proteo das eleies atravs do aperfeioamento da transparncia

61 LEMBO, op. cit., [S.l.: s.n.]. p. 98. 62 LEMBO, op. cit., 1991. p. 44.

43

no processo eleitoral no Brasil, levando em conta seu fundamento tico, que tem

como preceitos a preservao do regime democrtico, a moralidade, a luta contra o

abuso do poder econmico e poltico, a isonomia, os fundamentos do regime

democrtico, que no prescinde de um sistema que permita a alternncia no poder.

Em outras palavras, tem por finalidade a proteo da probidade

administrativa, da moralidade no exerccio do mandato e da normalidade das

eleies, contra a influncia do poder econmico ou abuso do exerccio de funo

ou emprego na administrao direta ou indireta, considerando, para tanto, a vida

pregressa do candidato. a regra insculpida no artigo 14, 9 da Constituio

Federal.

De modo geral, as inelegibilidades podem ser absolutas, atingindo qualquer

cargo eletivo, sem que decorram de fato antijurdico, como ocorre com os inalistveis

e analfabetos, ou relativas, atingindo certos cargos, em decorrncia de condio

jurdica do cidado ou de fato antijurdico, aplicadas somente aps o devido

processo legal.

Esta ltima, como bem anota Monica Herman S. Caggiano 63 , deve ser

interpretada de forma restritiva, e impe tratamento legislativo no mesmo sentido,

devendo ser reduzida ao menor nmero de hipteses, ante a natureza de sano

que impe pessoa do candidato, sendo ainda vedado que a condio seja

extrapolada a terceiros, como o caso de suplentes ou outros componentes de listas

eleitorais, uma vez que o vnculo de solidariedade que adjetiva tais hipteses no

importa, assim, na extenso da inelegibilidade aos demais envolvidos na relao

jurdica.64

A Lei Ficha Limpa traz sano denominada potenciada 65 , pois a

inelegibilidade perdura por mais de uma eleio, por conta da preveno do lapso

63 CAGGIANO, op. cit., 1990. p. 72. 64 Ibidem, p. 72. 65 AGRA, Walber de Moura. A taxionomia das inelegibilidades. Estudos Eleitorais, Braslia, v. 6, n. 2,

p. 29-52, maio/ago. 2011.

44

temporal de oito anos de incidncia da inelegibilidade, contados aps o cumprimento

da pena. Ampliou tambm o rol de crimes que ensejam sua aplicao, dos quais so

de interesse ao presente trabalho os tipos penais de natureza eleitoral, o que ser

visto no quarto captulo da obra.

As restries colocadas pela Lei da Ficha Limpa no tiveram aplicao s

eleies de 2010 no Brasil, e somente incidiro a partir das eleies de 2014, como

j decidido pelo Sumpremo Tribunal Federal66, em acrdo de julgamento conjunto

das Aes Declaratria de Constitucionalidade n 29/DF, e Direta de

Inconstitucionalidade, de relatoria do Ministro Luiz Fux, cuja ementa ora se

transcreve:

AES DECLARATRIAS DE CONSTITUCIONALIDADE E AO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE EM JULGAMENTO CONJUNTO. LEI COMPLEMENTAR N 135/10. HIPTESES DE INELEGIBILIDADE. ART. 14, 9, DA CONSTITUIO FEDERAL. MORALIDADE PARA O EXERCCIO DE MANDATOS ELETIVOS. INEXISTNCIA DE AFRONTA IRRETROATIVIDADE DAS LEIS: AGRAVAMENTO DO REGIME JURDICO ELEITORAL. ILEGITIMIDADE DA EXPECTATIVA DO INDIVDUO ENQUADRADO NAS HIPTESES LEGAIS DE INELEGIBILIDADE. PRESUNO DE INOCNCIA (ART. 5, LVII, DA CONSTITUIO FEDERAL): EXEGESE ANLOGA REDUO TELEOLGICA, PARA LIMITAR SUA APLICABILIDADE AOS EFEITOS DA CONDENAO PENAL. ATENDIMENTO DOS PRINCPIOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE. OBSERVNCIA DO PRINCPIO DEMOCRTICO: FIDELIDADE POLTICA AOS CIDADOS. VIDA PREGRESSA: CONCEITO JURDICO INDETERMINADO. PRESTGIO DA SOLUO LEGISLATIVA NO PREENCHIMENTO DO CONCEITO. CONSTITUCIONALIDADE DA LEI. AFASTAMENTO DE SUA INCIDNCIA PARA AS ELEIES J OCORRIDAS EM 2010 E AS ANTERIORES, BEM COMO E PARA OS MANDATOS EM CURSO.

luz dos princpios conscitucionais, importante destacar que para o

reconhecimento da inelegibilidade no h a necessidade de trnsito em julgado de

eventual condenao, bastando a deciso proferida por rgo colegiado neste

sentido, o que, por si s, j tem o condo de macular a aptido moral do candidato.

66 STF, Ao Declaratria de Constitucionalidade n 29/DF, Rel. Min. Luiz Fux, j. 16/02/2012.

45

Tal fato, como decidido pelo Supremo Tribunal Federal, no ofende o

princpio da presuno de inocncia, insculpido no artigo 5, inciso LVII, da

Constitucional Federal, vez que tal princpio no absoluto e, desta forma, deve ser

contextualizado exegese teleolgica de proteo da democracia, que pressupe a

fidelidade poltica da atuao dos representantes populares67 .

Em seu voto pela constitucionalidade da lei em comento, a Ministra Rosa

Weber68 ressaltou que a finalidade constitucional das regras de inelegibilidade

assegurar a plenitude da soberania popular, o que afasta o carter de sano ou

qualquer natureza jurdica de sano penal, porquanto o foco a preservao da

legitimidade do pleito eleitoral, sendo secundrio o foco no indivduo, o que no

impede, no entanto, a apontada necessidade de interpretao restritiva69.

Por esta razo, como sustenta Josevando Souza Andrade70, pode-se afirmar

que apenas a sano de natureza penal reclama trnsito em julgado da condenao

correspondente, por atingir a liberdade do indivduo. No mais, a condio de

inelegibilidade atinge interesses coletivos, de sorte que a incerteza milita, neste

caso, em favor da sociedade. Da mesma forma, o autor sustenta que o

reconhecimento de inelegibilidade no ofende o inciso III do artigo 15 da

Constituio Federal, uma vez que o trnsito julgado necessrio apenas

cassao de todos os direitos polticos, e no somente do direito a ser eleito.

Tomando em conta, portanto, a natureza restritiva diversa da sano penal,

com eventual interposio de recurso pelo candidato contra deciso proferida por

rgo colegiado, exceto com atribuio do efeito suspensivo em juzo de

admissibilidade, opera-se a causa de inelegibilidade, que cessar caso haja

posterior absolvio.

67 STF, Ao Declaratria de Constitucionalidade n 29/DF, Rel. Min. Luiz Fux, j. 16/02/2012. 68 acesso em 19/02/2014 69

CAGGIANO, op. cit., 1990. p. 72. 70 ANDRADE, Josevando Souza. Lei da Ficha Limpa: anlise de sua eficcia luz dos princpios

constitucionais. Estudos Eleitorais. Vol. 6, N. 2, maio/agosto 2011, p. 53-71.

46

Sob o enfoque do princpio da anterioridade eleitoral, insculpido no artigo 16

da Constituio Federal, que revela a necessidade de estabilidade do processo

eleitoral, impende mencionar - a ttulo de argumentao, posto que matria j

decidida pelo Supremo Tribunal Federal em fevereiro de 2012, nos termos do

acrdo supracitado que a admisso da eficcia Lei Complementar 135/2010

para as eleies de 2010 violaria tal princpio, porquanto introduz, mediante

sutilezas na disputa a cargos eletivos, situaes e arrazoados de carter especioso

no campo do processo eleitoral, do direito e da moral71.

Em sntese, traduz-se a Lei da Ficha Limpa em evidente consagrao da

instrumentalizao da participao popular, atravs da iniciativa popular de leis, em

exerccio da cidadania voltado ao aperfeioamento da transparncia no processo

eleitoral.

Outro moderno e essencial instrumento de proteo das eleies refere-se ao

tema do financiamento de campanhas eleitorais, cuja disciplina legal e anlise detida

sobre as propostas normativas ser um dos objetos do prximo captulo, na medida

em que restringe a extensa e desvirtuante atuao do poder econmico.

A justa competio pelo poder demanda imposio de limites verba

colocada disposio de candidatos e partidos, limites estes que abrangem tanto os

gastos em campanha como as contribuies recebidas, com a finalidade de nivelar

as condies de xito no pleito, coibindo prticas abusivas neste sentido, que

certamente conduziriam a uma distorcida representao poltica com fulcro to

somente nas condies de financiamento dos concorrentes.

No apenas a limitao de gastos impacta no resultado prtico das eleies,

mas tambm se faz benfica ao aperfeioamento da transparncia do processo

eleitoral, pois requer controle mais detido das contas partidrias.

71 ANDRADE, Josevando Souza. Lei da Ficha Limpa: Anlise de sua eficcia luz dos princpios

constitucionais. Estudos Eleitorais, Braslia, v. 6, n. 2, p. 59, maio/ago. 2011.

47

Prova disso foi a reforma poltica iniciada nos Estados Unidos da Amrica no

incio dos anos 70, pela qual o financiamento da operao eleitoral passou a

observar regras mais severas de transparncia, mediante prestao de contas e

imposio de sanes ao descumprimento, regulamentao e limitao s

contribuies e s despesas dos partidos e candidatos.72

A discusso sobre a imposio de limites aos gastos eleitorais, assim como a

propaganda eleitoral, estudada tambm adiante, no prescinde de ponderao

quanto ao direito fundamental liberdade de expresso dos candidatos e dos

partidos polticos, po