acp saúde modelo recente elaine

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EXCELENTÍSSIMO (A) SENHOR (A) DOUTOR (A) JUIZ ( ÌZA) DE DIREITO DA_____________VARA CÍVEL DA COMARCA DE RIBEIRÃO DAS NEVES O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS , por seus representantes infra-assinados, no uso de suas atribuições, vem, perante Vossa Excelência, com fundamento no art. 129, incs. II e III, da Constituição Federal; no art. 120, inc. III, da Constituição Estadual; no art. 25, inc. IV, alínea “a”, da Lei nº. 8.625/93; no art. 66, inc. VI, alínea “a”, da Lei Complementar Estadual nº. 34/94; no art. 1º, art. 5º, caput, art. 21, todos da Lei Federal n.º 7.347/85, no art. 81, parágrafo único, incisos II e III, art. 82, inciso I, art. 83, art. 117, todos da Lei nº 8.078/90, na Lei nº 8.080/90, e no artigo 74, inciso I, do Estatuto do Idoso, propor a presente AÇÃO CIVIL PUBLICA, com PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA contra o ESTADO DE MINAS GERAIS, pessoa jurídica de direito público interno, neste ato representado pelo Advogado-Geral do Estado, que pode ser localizado na praça da Liberdade, s/nº, Belo Horizonte-MG; 1

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EXCELENTÍSSIMO (A) SENHOR (A) DOUTOR (A) JUIZ ( ÌZA) DE DIREITO DA_____________VARA CÍVEL DA COMARCA DE RIBEIRÃO DAS NEVES

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS

GERAIS, por seus representantes infra-assinados, no uso de suas atribuições, vem,

perante Vossa Excelência, com fundamento no art. 129, incs. II e III, da Constituição

Federal; no art. 120, inc. III, da Constituição Estadual; no art. 25, inc. IV, alínea “a”,

da Lei nº. 8.625/93; no art. 66, inc. VI, alínea “a”, da Lei Complementar Estadual nº.

34/94; no art. 1º, art. 5º, caput, art. 21, todos da Lei Federal n.º 7.347/85, no art. 81,

parágrafo único, incisos II e III, art. 82, inciso I, art. 83, art. 117, todos da Lei nº

8.078/90, na Lei nº 8.080/90, e no artigo 74, inciso I, do Estatuto do Idoso, propor a

presente AÇÃO CIVIL PUBLICA, com PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA

contra o

ESTADO DE MINAS GERAIS, pessoa jurídica de direito

público interno, neste ato representado pelo Advogado-Geral do Estado, que pode ser

localizado na praça da Liberdade, s/nº, Belo Horizonte-MG;

MUNICÍPIO DE RIBEIRÃO DAS NEVES, pessoa jurídica

de direito público interno, representado pelo Prefeito Municipal, Walace Ventura

Andrade, com sede na Av. Ari Teixeira da Costa, 1.110, bairro Savassi, Ribeirão das

Neves – MG.

Pelos fatos e fundamentos a seguir expendidos.

1

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I – Dos fatos

No dia 19 de outubro de 2006, o Dr. Gustavo H. A . Caetano

enviou laudo médico sobre o estado de saúde da Sra. Hilda Moreira dos Santos,

nascida em 01 de agosto de 1946, portadora do CPF nº 522.201.336-72 e Título

Eleitoral nº 47811530264.

O médico apresentou o seguinte diagnóstico da idosa:

“Paciente acamada por seqüela de AVC, hipertensa,

diabética, com quadro de dor abdominal e constipação

intestinal.

“U.S. transversal sugere câncer de útero.

(...)

“ Paciente necessita de avaliação em serviço de oncologia

com urgência devido risco de vida (sic)”

Na mesma oportunidade, a Dra. Viviane Cristina A A Meira,

Diretora Técnica do Hospital São Judas Tadeu, informou que a Sra. Hilda Moreira dos

Santos está internada naquele nosocômio e que a paciente está cadastrada na central de

vagas sob nº 071056209. A médica relatou, ainda, que a idoso foi internada no hospital

com “quadro de neoplastia uterina avançada diagnosticada em abril de 2007”. Por fim,

a Diretora Técnica asseverou que a paciente aguarda vaga na central de leitos desde 16

de outubro de 2007 e que “necessita de avaliação oncológica urgente”.

Os exames complementares anexados demonstram que a Sra.

Hilda Moreira dos Santos apresenta um quadro de câncer de útero agravado por um

acidente vascular cerebral (AVC).

Não obstante o grave quadro clínico da paciente – o médico

aponta risco de morte -, a idosa aguarda vaga na central de leitos.

Ora, a omissão do Estado de Minas Gerais é patente. A pessoa

jurídica de direito público não forneceu, com a celeridade que o caso exige, uma vaga

em hospitais da rede pública estadual para o tratamento indispensável da idosa. Não se

pode olvidar que, caso a idosa não seja atendida com a máxima urgência, ela poderá

2

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falecer.

Por seu turno, a omissão do Município de Ribeirão das Neves

consiste em não fornecer no sistema municipal de saúde o tratamento médico

indispensável para garantir a vida da Sra. Hilda Moreira dos Santos.

As desídias do Estado de Minas Gerais e do Município de

Ribeirão das Neves, consistentes, e síntese, em não fornecer a adequada e integral

assistência à saúde do idoso, coloca em risco a vida da Sra. Hilda Moreira dos Santos,

uma vez que, sem o tratamento oncológico urgente [que não existe em Ribeirão das

Neves], ocorrerá o falecimento precoce da paciente

Ante tal quadro, não restou outra medida senão a prospositura

da presente ação, eis que a Sra. Hilda Moreira dos Santos necessita de tratamento

médico urgente, sob pena de morrer em razão das vicissitudes impostas pelo nefeasto

sistema público de saúde.

II- Do Direito

Relevante a transcrição das normas jurídicas que tratam do

direito do cidadão à saúde, para que se tenha exata compreensão da efetiva proteção

que lhe dá o ordenamento jurídico de nosso país, possibilitando aos titulares dos

direitos fundamentais o exercício, individual ou coletivamente, desse direito público

subjetivo em face do Estado.

II.1- Do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem proclamou

como princípio de Direito Internacional a dignidade da pessoa humana (artigo 1º). É

indiscutível que a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos a dignidade da

pessoa humana, que era considerada apenas um valor superior pelo direito natural,

passou a constituir-se como princípio elementar da humanidade.

Esse princípio elementar fora reiterado pelos diversos

documentos internacionais de direitos humanos. Constitui-se, portanto, em norma

3

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jurídica obrigatória, que deve ser cumprida pelos Estados independentemente de seu

consentimento.

Com efeito, as normas internacionais de Direitos Humanos, a

partir da Declaração Universal, positivaram a dignidade da pessoa humana como

princípio, transformando-o de um valor ético e moral em norma jurídica com força

vinculante e obrigatória. A noção jurídica da dignidade da pessoa humana foi

fundamental para densificar os direitos humanos fundamentais, pois estes representam

a concretização do princípio supremo de toda a ordem jurídica internacional.

Por seu turno, os direitos humanos fundamentais, como

direitos absolutos e inderrogáveis, “integram o núcleo duro dos direitos humanos”1,

por ser a expressão máxima do princípio da dignidade da pessoa humana no plano

internacional2.

Juan António Carrillo Salcedo sublinhou que a obrigatoriedade

e imperatividade das normas internacionais de Direitos Humanos tem por fundamento

a “aceitação geral da noção jurídica da dignidade intrínseca de todo ser humano”3.

Por essa razão, a dignidade da pessoa humana foi erigida como

o princípio supremo que confere unidade ao sistema dos direitos fundamentais.

Princípio que, além de seu conteúdo moral e ético, constitui norma jurídico-positiva.

Nessa linha de raciocínio, o artigo 1º, inciso III, da

Constituição Federal, erigiu como fundamento da República Federativa do Brasil a

dignidade da pessoa humana.

1 Cf. Juan António Carrillo Salcedo. Soberania de los Estados y Derechos Humanos en Derecho

Internacional Contemporáneo. 2ª ed. Madrid: Editorial Tecnos, 2001, p. 148.

2 Nesse sentido, o artigo 1º da Resolução adotada em 13 de Setembro de 1989 pelo Instituto de Direito

Internacional, sobre a Proteção dos direitos humanos e o princípio da não intervenção nos assuntos

internos dos Estados, prescreve: “Os direitos humanos são a expressão direta da dignidade da pessoa

humana. A obrigação dos Estados de assegurar os seu respeito depreende-se do próprio reconhecimento

desta dignidade que já proclamaram a Carta das Nações Unidas e a Declaração de Direitos Humanos…”

(texto extraído da obra de Juan António Carrillo. Soberania de los Estados y Derechos Humanos en

Derecho Internacional Contemporáneo…, op. Cit., p. 149).

3 Soberania de los Estados y Derechos Humanos en Derecho Internacional Contemporáneo…, op. Cit.,

p. 148.

4

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Ao incorporar o princípio da dignidade da pessoa humana no

texto constitucional, o legislador constituinte elegeu-o como o valor primário e

superior em que se baseia o Estado brasileiro. Com isso, os direitos, liberdades e

garantias e os direitos econômicos, sociais e culturais encontram o seu fundamento4

ou, segundo Jorge Miranda, “a sua fonte ética” na dignidade da pessoa humana5.

Dignidade da pessoa humana que deve ser entendida como um

atributo do homem concreto e individual, dotado de razão e consciência, como

prescreve o artigo 1º, da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Numa outra

perspectiva, podemos considerar que é esta racionalidade que fundamenta a

superioridade do ser humano sobre os demais seres que carecem de razão, sendo,

portanto, chamada de dignidade da pessoa humana6

Decorre daí as características da dignidade da pessoa humana,

que podem ser assim sintetizadas: a) a dignidade refere-se à pessoa concreta e

individual; b) universalidade, consistente na igualdade do reconhecimento da

dignidade para todas as pessoas; c) dignidade da pessoa humana como fundamento

para alcançar uma vida com qualidade7.

Dessas características extraímos que o sujeito portador do

valor dignidade é o homem e a mulher. Portanto, a dignidade da pessoa humana visa a

proteção individual do homem e da mulher concretos, sem olvidar da sua relação com

os demais membros da sociedade.

A visão antropocêntrica da dignidade da pessoa humana

implica em uma atuação dos poderes públicos voltada à proteção do homem. O Estado

deverá agir (facere) para implementar, promover e garantir os meios necessários para

4 Invocando a lição de Rusen Ergec, Francis Delpérée afirma que o “conceito de dignidade humana

repousa na base de todos os direitos fundamentais, civis e políticos ou sociais”. O referido autor

relembra que o direito à dignidade humana é a fonte “de outros direitos, e especialmente dos direitos

econômicos, sociais e culturais ( O Direito à Dignidade Humana. In Estudos em Homenagem a Manoel

Gonçalves Ferreira Filho/coordenadores Sérgio Rezende de Barros e Fernando Aurélio Zilveti. São

Paulo: Dialética, 1999, p. 155).

5 A Constituição e a dignidade da pessoa humana. Revista da Faculdade de Teologia – Lisboa, volume

XXIX, 1999. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, p. 473.

6 Jesus Gonzales Perez. La Dignidad de La Persona. Madrid: Editorial Civitas, p.24.

7 No mesmo sentido Jorge Miranda. A Constituição e a dignidade da pessoa humana…, op. cit., p. 476.

5

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que todas as pessoas – universalidade- tenham as mesmas oportunidades – igualdade –

para alcançar uma vida com qualidade.

É uma vida com qualidade que os direitos fundamentais sociais

buscam efetivar, implementar e garantir8. Mas, como uma vida com qualidade funda-

se na dignidade da pessoa humana, somente poder-se-á falar em efetiva tutela dos

direitos fundamentais sociais quando forem concedidos às pessoas todos os meios

materiais e espirituais para o desenvolvimento pleno da personalidade humana,

oferecendo a todos os indivíduos o mínimo necessário para alcançar aquele objetivo

(uma vida com qualidade).

A dignidade da pessoa humana, portanto, é um princípio

supremo, que teve sua origem no direito natural ou uma origem divina9 como um valor

superior, e que fora introduzido no direito positivo por via da Declaração Universal

dos Direitos do Homem10, e tem por finalidade garantir aos seres humanos, dotados de

inteligência e liberdade, sem distinção de raça, cor, credo, nível sócio-econômico e

outras, um padrão de vida tal que possa ser considerada uma vida com qualidade.

Garantir uma vida com qualidade como corolário da dignidade

da pessoa humana é o objetivo dos direitos fundamentais sociais, que encontram nos

princípios insertos na Constituição Federal, assim como na Declaração Universal dos

Direitos Humanos, os fundamentos para a concretização de seus preceitos e do seu

núcleo essencial.

Urge salientar que uma vida com qualidade como fim da

dignidade da pessoa humana não significa o mero existir ou sobreviver, mas viver com

padrões mínimos de alimentação, vestuário, habitação, saúde, educação e segurança.

O mero sobreviver com fome, na miséria, sem moradia, sem educação, sem

8 Nesse sentido, Francis Delpérée aduz que o fim dos direitos económicos, sociais e culturais é o de

permitir que todos levem uma vida de acordo com a dignidade humana (O Direito à Dignidade

Humana…, op. cit., p. 158).

9 No sentido da origem divina da dignidade da pessoa humana vide Jesus Gonzales Perez. La Dignidade

de La Persona y el Derecho…, op. cit., 27-30.

10 A Declaração proclama em seu preâmbulo a fé da Carta e dos povos das Nações Unidas “na

dignidade e no valor da pessoa humana”. No artigo 1º prescreve que: “todos os seres humanos nascem

livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os

outros em espírito de fraternidade”.

6

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atendimento médico, sem medicamentos, representa a negação do próprio

direito à vida e a violação da dignidade da pessoa humana. Pertinente a pergunta de

Francis Delpérée: “Para que serve o direito à vida, se esta for desprovida de

dignidade?11”.

O Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, ao interpretar

o significado do artigo 1º, da Lei Fundamental12, destaca que a dignidade da pessoa

humana está inserida nos princípios básicos da Constituição, designando-a como o

“valor jurídico supremo da ordem constitucional”13.

A dignidade da pessoa humana é, também no Brasil, o

princípio supremo de todo o ordenamento jurídico. A supremacia do princípio da

dignidade da pessoa humana coloca-o em uma posição hierárquica superior14, isto é,

ocupa o “primeiro posto” dessa hierarquia normativa”15.

O princípio da dignidade da pessoa humana gera, ademais, um

direito subjetivo público de todas as pessoas terem acesso às condições necessárias

para uma vida com qualidade. Em contrapartida e em virtude do efeito vinculante do

princípio fundamental, há uma obrigação correlata dos poderes públicos, os quais têm

a obrigação de respeitar, proteger e garantir a dignidade de todas as pessoas. Respeitar

a dignidade da pessoa humana significa que o Estado deve omitir-se de todas as

condutas que possam violar o princípio fundamental. Por seu turno, proteger significa

que os poderes públicos devem impedir, através de comportamentos de fato e de atos

normativos, ataques de terceiros à dignidade da pessoa humana. E, por fim, garantir

materializa-se no dever de implementar (dever de agir, fazer) os meios

11 O Direito à Dignidade Humana…, op. cit., p. 152.

12 Artigo 1º, parágrafo 1º, nº1: “A dignidade da pessoa humana é intangível. Todos os poderes do Estado

estão obrigados a respeitá-la e protegê-la”.

13 Cf. Ingo Von Munch, citando a decisão BVerfGE, 6, 32 e ss e BVerfGE, 45, 187 e ss. La Dignidade

del Hombre en el Derecho Constitucional. In Revista Española de Derecho Constitucional, número 5

(Maio-Agosto). Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1982, p. 11.

14 Francis Delpéré utiliza uma expressão ilustrativa para demonstrar a posição da dignidade humana na

Constituição da Bélgica. Diz o autor que a dignidade da pessoa humana “é colocada sobre um pedestal.

É o sustentáculo, é o ponto de referência” da Constituição (O Direito à Dignidade Humana…, op. cit., p.

159)

15 Cf. Ingo Von Munich. La dignidade…, op. cit., p. 11.

7

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necessários para que todos tenham uma vida com dignidade, removendo os

obstáculos que dificultem ou impeçam a sua plena realização 16 , tais como a fome,

a miséria, a falta de educação e de atendimento médico-hospitalar, etc.

A dignidade da pessoa humana gera, então, obrigações de non

facere e de facere para o Estado, consistentes no dever de omissão de atos atentatórios

à dignidade; comportamentos fáticos e jurídicos para impedir a ofensa à dignidade da

pessoa humana por terceiros; e comportamentos positivos para implementar as

condições necessárias para a promoção da dignidade da pessoa humana17.

O Estado, ao omitir-se quando deveria agir e vice –versa (agir

quando deveria omitir-se), viola o princípio da dignidade da pessoa humana. Por

ilação, a concretização da dignidade da pessoa humana está intimamente vinculada ao

respeito, à proteção e à garantia dos direitos econômicos, sociais e culturais e dos

direitos, liberdades e garantias. Sem o respeito, a proteção e garantia da unidade dos

direitos fundamentais, em última análise, estar-se-á violando o princípio supremo do

ordenamento jurídico: a dignidade da pessoa humana.

Nesse sentido, o Conselho Europeu de Luxemburgo afirmou,

em 29 de Junho de 1991, que a promoção dos direitos fundamentais econômicos,

sociais e culturais e civis e políticos é fundamental para a realização da dignidade da

pessoa humana18. O Conselho Europeu reiterou a concepção da unidade,

indivisibilidade, inter-relação e interdependência dos direitos fundamentais,

ressaltando o seu papel fundamental na efetivação, proteção e garantia da dignidade da

pessoa humana.

Decorre justamente do princípio da dignidade da pessoa

humana os deveres do Estado de Minas Gerais e do Município de Ribeirão das Neves,

ora réus, de garantirem o mínimo necessário à existência digna de da Sra. Hilda

16 No mesmo sentido, Jesus Gonzalez Perez. La Dignidad de La Persona…, op. cit., p. 63.

17 No mesmo sentido, Jesus Gonzales Perez. La Dignidad de La Persona…, op. cit., p. 59.

18 Eis o teor do texto: “A promoção dos direitos econômicos, sociais e culturais, como aquela dos

direitos civis e políticos, (…) são de uma importância fundamental para a plena realização da dignidade

humana e para as aspirações legítimas de todo indivíduo” (texto extraído da obra de Francis Delpérée.

Direito à Dignidade Humana…, op. cit., p. 159).

8

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Moreira dos Santos, que, no caso em apreço, materializa-se no fornecimento de

atendimento médico integral para tratar o câncer de útero diagnosticado.

Em outro enfoque: a omissão do Estado e do Município no

fornecimento de tratamento viola o princípio da dignidade da pessoa humana.

Sobreleva salientar que a obrigação do Estado e do Município

de garantir o tratamento médico integral e com qualidade da idosa decorre, segundo

nosso entendimento, da interpretação do princípio da dignidade da pessoa humana

como núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais.

A Constituição Federal, no entanto, foi além e determinou no

artigo 196 o seguinte:

“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido

mediante políticas sociais e econômicas que visem à

redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso

universal e igualitário às ações e serviços para sua

promoção, proteção e recuperação”- grifei

No mesmo sentido, o artigo 186, da Constituição do Estado de

Minas Gerais, prescreve:

“A saúde é direito de todos, e a assistência a ela é dever do

Estado, assegurada mediante políticas sociais e

econômicas que visem à eliminação do risco de doenças e

de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às

ações e aos serviços para sua promoção, proteção e

recuperação”.

II.2- Do Direito à Saúde.

As normas insertas nas constituições Federal e Estadual, que

definem o direito fundamental social à saúde (artigo 196 e 186), são dirigidas aos

9

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órgãos estatais, informando, desde o seu nascimento, a atuação do Poder Legislativo,

da Administração Pública e do Poder Judiciário19. É justamente a supremacia da

Constituição que fundamenta esse efeito vinculante dos direitos fundamentais, de

maneira que os seus preceitos são obrigatórios para todos os poderes públicos20. Logo,

as normas constitucionais definidoras dos direitos sociais não se dirigem apenas ao

Poder Legislativo, que as deve densificar através da elaboração de leis, mas também à

Administração Pública, para a sua concretização por via de políticas públicas. Daí

surge o papel da Administração como “guardiã da Constituição”21.

Para que a Administração Pública possa concretizar os direitos

sociais e cumprir o dever que decorre da própria Constituição é preciso que o conteúdo

dos preceitos constitucionais, respeitantes a direitos fundamentais sociais, estejam

determinados ou pelos menos sejam determináveis pelo intérprete diretamente da

Constituição.

É justamente os direitos fundamentais sociais mínimos, que

denominaremos direito ao mínimo de existência condigna, que apresenta o seu

conteúdo determinado (ou pelo menos determinável) na própria Constituição. Extrai-

se da própria Constituição um direito fundamental social a um mínimo vital, como

consectário do princípio da dignidade da pessoa humana22 e do desenvolvimento da

personalidade. Retira-se também, diretamente da Constituição, o direito a determinada

prestação social necessária para a proteção do mínimo essencial.

O núcleo dos direitos sociais é constituído pelo mínimo que,

caso seja submetido a limitações ou não sejam implementadas ações para garanti-

19 Eduardo Garcia de Enterria afirma que todos os sujeitos públicos ou privados, em razão de estarem

vinculados à Constituição, não poderiam deixar de aplicar os preceitos Constitucionais sob o

argumento de que seriam artigos meramente programáticos. No entanto, o autor enfatiza que “nem

todos os artigos da Constituição têm o mesmo alcance e significação normativas…” (La Constitución

como Norma y El Tribunal Constitucional. 3ª ed. 4ª reimpressão. Madrid: Civitas, 2001, p. 68.

20 José Afonso da Silva afirma que “das normas programáticas, em geral, derivam vínculos para o

legislador, para o administrador e para o juiz” (Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 3ª ed. 2ª

tiragem. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 174).

21 A expressão é de Paulo Otero. O Poder de Substituição em Direito Administrativo. Volume I. Lisboa:

Lex, 1995, p. 109.

22 Cf. Cristina M. M. Queiroz.Direitos Fundamentais (Teoria Geral). Coimbra: Coimbra editora, 2002.

p. 151.

10

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lo, o próprio direito fundamental torna-se impraticável, despojando-o da necessária

proteção. Esse mínimo essencial não pode ser objeto de restrição (aspecto negativo) e

deve receber a prestação necessária para a sua proteção efetiva (aspecto positivo),

sob pena de violação de valores subjacentes aos preceitos de direitos fundamentais,

mormente o princípio da dignidade da pessoa humana. O mínimo necessário à

existência condigna estará satisfeito, por exemplo, com uma casa digna, educação,

saúde e alimentação, enfim com aquelas prestações sociais que, se forem excluídas

ou negadas pelo poder público, colocarão em risco a realização do próprio direito

fundamental social, o direito à vida e à dignidade da pessoa humana.

Assim, pode-se definir o núcleo dos direitos fundamentais

sociais a partir da “teoria dos interesses juridicamente protegidos”, nos termos da lição

de Perez Luño23.

Viera de Andrade reconhece, primeiramente, de maneira

implícita, e, depois, de forma explícita, que o conteúdo do direito ao mínimo de

existência condigna está definido na Constituição. Ao estabelecer o critério da

determinação do conteúdo do direito pela Constituição como forma de definir se se

aplica ou não o regime dos direitos, liberdades e garantias a determinado direito

fundamental, o aludido autor afirma que: “(…) o regime dos direitos, liberdades e

garantias se aplica aos direitos susceptíveis de concretização ao nível constitucional,

mas já não àqueles que, para além do mínimo, (grifo nosso), só se tornam ´líquidos e

certos´ no plano da legislação ordinária24”. Posteriormente, expressa que “os preceitos

relativos aos direitos sociais têm um mínimo de conteúdo determinável por

interpretação em referência à Constituição”, decorrendo daí, segundo o autor, as

posições jurídicas subjetivas. E, por fim, diz que o conteúdo dos preceitos relativos aos

direitos sociais a prestações “é determinado pela Constituição, em regra, apenas num

mínimo (…)”25.

Ora, a afirmação de que não se aplica o regime dos direitos,

liberdades e garantias aos direitos que, “para além de um mínimo”, necessitam de

legislação densificadora, o constitucionalista partiu do pressuposto que o conteúdo do

23 Los Derechos Fundamentales. 7ªed. Madrid: Editorial Tecnos, 1998, p. 77.

24 Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 2ª ed: Coimbra:Almedina, 2001, p.

183.

25 Idem, p. 183 e 378.

11

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“mínimo” está definido na Constituição, não necessitando de legislação

infraconstitucional para ser concretizado. Tal ilação tornou-se óbvia quando o próprio

Vieira de Andrade reconheceu que o intérprete consegue extrair da própria

Constituição o conteúdo mínimo dos direitos sociais.

O direito ao mínimo de existência condigna, portanto, tem

estabelecido o seu conteúdo na Constituição justamente por encontrar o seu

fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana. Com isso, supera-se a

questão da natureza de norma programática dos direitos sociais a prestações e, por

conseguinte, da necessidade de interposição de legislação infraconstitucional para a

concretização desses direitos pela Administração Pública.

Assim, a norma constitucional definidora do direito social à

saúde é norma preceptiva e exequível por si mesma, na justa medida da proteção desse

mínimo essencial à existência condigna.

Ao garantir a eficácia plena do direito fundamental social à

saúde, na medida do mínimo indispensável à existência condigna, está-se

reconhecendo que a Constituição é um ordenamento comprometido com valores, cujo

fim supremo de todo o Direito é a proteção da dignidade humana26. Por essas razões

que o artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, elegeu o princípio da dignidade da

pessoa humana como o valor primário e superior em que se baseia o Brasil.

Ernest Benda aduz que a proteção da dignidade da pessoa

humana exige uma obrigação prestacional do Estado, com vistas a prover uma

existência humana condigna. Conclui afirmando que, ao contrário de uma anterior

interpretação do Tribunal Constitucional Alemão, hoje há uma obrigação do Estado à

procura de um mínimo existencial, donde decorre um direito subjetivo público à

assistência àqueles que, por causas alheias à sua vontade, estejam em situação de

necessidade27.

26 Cf. Ernest Benda. Dignidad humana y derechos de la personalidad (Capítulo IV). Manual de Derecho

Constitucional. Obra coletiva: Benda, Maihofer, Vogel, Hesse e Heyde. Madrid: Marcial Pons

Ediciones Jurídicas e Sociales S.A, 2001. p. 118.

27 Idem, p. 126.

12

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A jurisprudência de Portugal reconheceu também o direito de o

indivíduo não ser privado do mínimo para a sua existência condigna, bem como o

direito a exigir do Estado que implemente prestações sociais, com o escopo de garantir

esse mínimo de existência condigna. O Tribunal Constitucional de Portugal

reconheceu, no acórdão n º 509/2002, “que o direito ao mínimo de existência condigna

se encontra constitucionalmente garantido”28. Já, no acórdão n º 349/91, prescreveu

que “ a percepção de uma prestação proveniente do sistema de segurança social que

lhe possibilite uma subsistência condigna (...)” decorre do artigo 63º, da Lei

Fundamental, e do princípio da dignidade da pessoa humana, “(...) condensado no

artigo 1º, da Constituição”29

O direito ao mínimo necessário à existência condigna do

indivíduo e o correlato dever da Administração Pública decorrem diretamente da

Constituição, em razão do núcleo dos direitos sociais concretizar a igualdade material

e garantir a dignidade da pessoa humana, princípio fundamental do ordenamento

jurídico e do Estado.

A própria Constituição fundamenta o dever da Administração

Pública de implementar as políticas públicas necessárias à concretização do direito

fundamental à saúde, como conseqüência do efeito vinculante dos direitos

fundamentais. Há, pois, uma obrigação derivada da Constituição de proteção, respeito

e garantia dos direitos fundamentais. Essa vinculação implica uma ampliação do

conceito de princípio da legalidade, “que deixa de ser visto como uma mera submissão

da Administração à lei, para passar a significar a realização do Direito através da lei”30.

Vale dizer, a Administração não está sujeita apenas à lei formal, senão também aos

princípios gerais de direito.

Elucidativo o parecer da Comissão que elaborou o Código de

Procedimento Administrativo de Portugal, que, ao analisar o artigo 3º, nº 1, asseverou

que a acepção ampla do princípio da legalidade implica a submissão da Administração

28Jurisprudência do Tribunal Constitucional. Disponível em:

«http://www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudência/htm». Acesso em: 15 de Agosto de 2003.

29 Acórdãos do Tribunal Constitucional. Lisboa: Tribunal Constitucional, 19º volume, 1991 (maio a

agosto), p. 507-525

30 Cf. Vasco Pereira da Silva. Em busca do acto administrativo perdido.Reimpressão.

Coimbra:Almedina, 2003, p. 85.

13

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aos “princípios gerais de direito, à Constituição, a normas internacionais, a disposições

de carácter regulamentar, a actos constitutivos de direitos, etc”31.

No mesmo toar, Paulo Otero preceitua que o Estado não está

vinculado apenas à lei formal, mas à idéia do “Direito justo, que lhe é superior,

anterior e indisponível”. O autor afirma ainda que “o princípio da legalidade cede

perante o princípio da juridicidade”32. Este, esclarece Paulo Otero, é formado pela

integração dos princípios da constitucionalidade e da legalidade33.

Extrai-se da lição de Paulo Otero que o Estado, ao invés de

“ser escravo da lei positiva”34, está vinculado a princípios ou valores superiores e

anteriores à própria ordem Constitucional. Dentre esses princípios ou valores o

primordial é a dignidade da pessoa humana. Logo, o Estado está vinculado não apenas

a uma ordem jurídica positiva estabelecida na Constituição, senão também ao

princípio da dignidade da pessoa humana.

Com efeito, a administração pública extrai dos preceitos

constitucionais insertos nos artigos 196 e 186 e do princípio da dignidade da pessoa

humana a obrigação de desenvolver políticas públicas indispensáveis à concretização

do direito social à saúde. A vinculação de todos os poderes a uma ordem de valor

superior e anterior ao legislador constituinte determina o comportamento ativo da

Administração Pública.

Correlato ao dever da Administração Pública origina-se

também do direito fundamental à saúde e do princípio da dignidade da pessoa humana,

sem necessidade de intervenção do legislador infraconstitucional, direitos subjetivos

públicos, em princípio, de todas as pessoas verem implementadas as políticas públicas

necessárias à concretização do referido direito social. Entenda-se direito subjetivo

como o poder jurídico de fazer valer, por intermédio de uma ação, o não cumprimento

31 A Comissão era formada por Diogo Freita do Amaral, João Caupers, João Martins Claro, João

Raposo, Pedro Siza Vieira, Vasco Pereira da Silva. Apud Vasco Pereira da Silva. Em busca do ato

administrativo perdido…, op. cit., p. 85.

32 O Poder de Substituição em Direito Administrativo, Vol. II…, op. ci.t. p. 552-554.

33 Idem, p. 567.

34 Expressão utilizada pelo citado autor (op.cit., p. 552).

14

Page 15: acp saúde modelo recente elaine

de um dever jurídico35. Ou, segundo Luigi Ferrajoli, direito subjetivo é uma

expectativa a que corresponde uma obrigação: “a uma expectativa positiva

corresponde uma obrigação positiva de prestação, a uma expectativa negativa

corresponde uma obrigação negativa de lesionar”36.

Dissertando sobre direitos subjetivos públicos dos indivíduos

perante a Administração Pública, Vasco Pereira da Silva reconheceu que a titularidade

de direitos subjetivos públicos perante a Administração Pública representa a “projeção

jurídica da dignidade da pessoa humana”, constituindo um “princípio essencial do

Estado de Direito (…)”37.

Nessa linha de raciocínio, o titular do direito fundamental à

saúde possui a faculdade de exigir do Estado, por intermédio do poder judiciário, o

cumprimento da prestação necessária à concretização desse direito, isto é, o direito

fundamental social gera uma expectativa positiva para o titular, que, por sua vez,

produz uma obrigação também positiva para o destinatário, que, em caso de

descumprimento (omissão), acarreta uma pretensão dedutível em juízo.

De fato, tal concepção reconhece a relevância jurídica da

omissão da Administração Pública, o que implica uma evolução na proteção dos

direitos fundamentais, que, segundo a doutrina clássica, somente seriam violados

por comportamentos positivos dos poderes públicos. Com o Estado Social e o

surgimento da Administração Pública como prestadora de políticas públicas, o

não agir representa uma violação dos direitos fundamentais, reconhecendo – se a

faculdade do particular reagir contra a inércia mediante a busca de uma tutela

jurisdicional. A inatividade ou o não agir, portanto, contradiz o dever de atuação

dinâmica que a própria Constituição impõe à Administração Pública.

35 Cf. José Reinaldo de Lima Lopes, citando Kelsen. Direito Subjetivo e Direitos Sociais: O Dilema do

Judiciário no Estado Social de Direito. In Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. José Eduardo

Faria (organizador). 1ª ed. 3ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 114.

36 Cf. Riccardo Guastini, citando Luigi Ferrajoli. Tres Problemas para Luigi Ferrajoli.In Los

fundamentos de los derechos fundamentales. Luigi Ferrajoli. Debate com Luca Baccelli e outros.

Madrid: Editorial Trotta, 2001,p. 57

37 Em busca do acto administrativo perdido…, op. cit., p. 213.

15

Page 16: acp saúde modelo recente elaine

Daí decorre a conclusão de que são direitos subjetivos porque,

como esclarece Marcelo Rebelo de Souza, correspondem ao “poder de cada qual agir e

exigir um comportamento de outrem”38, este, no caso em testilha, corporificado na

Administração Pública.

Resumindo para esclarecer: a Constituição e os princípios

fundamentais, sobretudo o da dignidade da pessoa humana, funcionam como “lei”

habilitante do dever de agir da Administração Pública e do correlato direito subjetivo

do individuo à implementação das políticas públicas necessárias à proteção do direito

à saúde. Há, segundo Paulo Otero, a “substituição da lei pela Constituição como

fundamento de agir da Administração”39. Ousamos ir além: existe a substituição da lei

pela Constituição também como fundamento do direito subjetivo do indivíduo de

exigir um comportamento ativo da Administração, o qual fundamenta, por seu turno, a

faculdade do titular do direito de postular uma tutela jurisdicional em caso de omissão

do poder público.

Em bom rigor, o dever da Administração Pública de agir para a

concretização do direito fundamental à saúde é corolário do princípio da juridicidade,

segundo o qual a atividade da Administração não está vinculada à reserva total de lei,

mas a atuação administrativa deve ter por base uma norma jurídica prévia, “qualquer

que seja sua classe formal”40, Constituição, lei ou regulamento.

No caso em apreço, a atuação da Administração Pública e o

correlato direito subjetivo público do cidadão têm por fundamento, direta e

imediatamente, a própria Constituição41, cumprindo, dessa forma, o princípio da

38 Introdução ao Estudo do Direito. 5ª ed. Lisboa: Lex, 2000, p. 10.

39 O Poder de Substituição em Direito Administrativo, vol. II…, op. cit., p. 571.

40 Cf. Marcos Gómez Puente. La inactividad de la Administración.3ª ed.Navarra: Editorial Arazandi, p.

82.

41 Sempre esclarecedoras as palavras de Paulo Otero, segundo as quais “a subordinação dos órgãos

administrativos à Constituição não é mera delicadeza do texto constitucional, antes constitui a

afirmação de um princípio que coloca na Constituição, em paralelo com a lei, uma fonte habilitadora do

agir da Administração”. Entendimento contrário, conclui o autor, acabaria “por conduzir a um

fenómeno de inferioridade ou menoridade da Constituição perante a lei”, bem como tornaria o poder

administrativo como o “único Poder do Estado imune a uma relevância directa do princípio da

constitucionalidade” (O Poder de Substituição em Direito Administrativo, vol. II…, op. cit., p. 573).

16

Page 17: acp saúde modelo recente elaine

juridicidade, que se caracteriza pela conjugação dos princípios da legalidade e da

constitucionalidade.

Estabelece-se, como isso, uma relação jurídica entre o titular

do direito fundamental à saúde e a Administração Pública, que encontra o seu

fundamento na Constituição e nos princípios fundamentais. Não há, nesse caso,

qualquer supremacia fática ou jurídica da Administração Pública, mas uma relação

jurídica em que dois sujeitos de direito se relacionam de “igual para igual”: a) um

deles é o indivíduo como titular do direito fundamental à saúde; b) e o outro a

administração pública como pessoa jurídica de direito público interno, que pauta sua

atividade pela busca do interesse público. Essa relação jurídica implica o

reconhecimento de um direito subjetivo do particular a omissões e ações dos poderes

públicos, e um correlato dever da Administração de omitir-se e de agir, tendo

como fonte direta os direitos fundamentais e o princípio da dignidade da pessoa

humana. Donde se infere que a dignidade da pessoa humana fundamenta o

reconhecimento de direitos subjetivos frente à Administração Pública, porquanto o

indivíduo não pode ser tratado como um objeto, mas deve sê-lo como um sujeito de

direito.

No entanto, a atuação complexa e interventora da

Administração Pública no Estado Social e Democrático de Direito não fica

simplificada subjetivamente à situação singular de um indivíduo (Administração –

cidadão)42. A própria Constituição ampliou a incidência do direito fundamental à saúde

para além da relação jurídica subjetiva Administração – indivíduo, “fixando objetivos

de caráter coletivo ou social e impondo à Administração deveres que não podem

conter-se no molde individualista direito e obrigações subjetivos”43. Constata-se,

assim, que os deveres da administração, além da satisfação de interesses

subjetivos, devem representar a concretização de interesses gerais ou coletivos.

É importante esclarecer, como já fizemos, que o direito do

cidadão e o correlato dever da Administração nascem da própria Constituição (artigo

196 e 186), sem necessidade de norma densificadora.

42 Cf. Marcos Gómez Puente. La inactividade…, op. cit., p. 75.

43 Idem, p. 74

17

Page 18: acp saúde modelo recente elaine

A eficácia imediata do preceito constitucional definidor do

direito fundamental à saúde fundamenta o comportamento ativo da Administração

Pública, visando a tutela dos princípios da igualdade e liberdade, em seu aspecto

material, e da dignidade da pessoa humana.

Em outro enfoque, mas não menos importante, o direito

fundamental à saúde, segundo a classificação de Gomes Canotilho, é um direito

originário a prestações, porquanto da norma constitucional decorre, sem a necessidade

de interposição de lei infraconstitucional, a obrigação de a Administração Pública

implementar e concretizar o referido direito social e a correlata faculdade de o cidadão

exigir as prestações necessárias à defesa do seu direito fundamental. A Administração

Pública tem, então, o dever, imposto diretamente pela Constituição, de implementar

uma política de bem-estar social e não apenas acudir as necessidades dos desvalidos44.

Essa política converte-se em ações dos poderes públicos, necessárias à proteção da

dignidade da pessoa humana, da liberdade e da igualdade materiais.

Destarte, do artigo 196, da Constituição Federal, e do artigo

186, da Constituição do Estado de Minas Gerais, derivam (a) um domínio jurídico-

subjetivo que fundamenta um direito fundamental subjetivo definitivo à saúde; e (b) o

dever da Administração Pública de implementar as prestações públicas necessárias

para garantir a fruição do respectivo direito pelo titular, bem como a efetivação do

princípio da dignidade da pessoa humana.

Além disso, o direito fundamental à saúde constitui a

extensão da proteção do direito à vida. Donde se conclui que esse direito social é

análogo aos direitos, liberdades e garantias e goza do respectivo regime reforçado

de proteção, mormente a aplicabilidade imediata 45 .

Aceita a tese de que o direito fundamental à saúde, como

direito a prestação, tem como fim a proteção do direito a vida e a dignidade da pessoa

humana, não há como questionar a sua natureza de direito subjetivo público; a sua

aplicabilidade imediata; e a sua justiciabilidade.

44 Nesse sentido, Cristina M. M. Queiroz, citando Frist Ossenbühl, Direitos Fundamentais, op.cit., p.

156.

45 Nesse sentido J. C. Vieira de Andrade. Os Direitos Fundamentais..., op. cit., p. 388.

18

Page 19: acp saúde modelo recente elaine

Nestes termos, impende concluir que o direito fundamental à

saúde tem natureza de direito subjetivo público definitivo vinculante e constitui a

extensão do próprio direito à vida e da dignidade da pessoa humana. Decorre daí a

faculdade do titular do direito de exigir, independentemente de qualquer opção

legislativa, as ações necessárias à implementação e concretização do direito

fundamental social.

Para ilustrar o nosso raciocínio tomemos como exemplo a

situação que até pouco tempo vigorava no Brasil com relação aos doentes com AIDS

(SIDA), para demonstrar a imprescindibilidade e a plausibilidade jurídica de retirar-se

direitos subjetivos públicos a prestações diretamente da Constituição, assim como o

correlato dever da Administração Pública de implementar prestações destinadas a

concretizar os direitos sociais.

No Brasil não havia qualquer legislação que concretizasse o

direito fundamental dos doentes de AIDS (SIDA) receberem gratuitamente a

medicação, denominada “coquetel” por ser constituída por vários remédios, que

garantiria a sobrevivência (não a cura) com dignidade dessas pessoas; que

determinasse os meios e os recursos necessários à concretização específica desse

direito fundamental; nem tampouco de quem era a atribuição para fornecer a

medicação, ou seja, qual dos três níveis da Administração Pública - municipal ,

estadual ou federal- estaria obrigada a cumprir a norma constitucional.

Existiam apenas os preceitos constitucionais, que assim

prescreviam: “art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado…”; “art. 197. São

de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor,

nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle…”.

Analisando apenas esses dois artigos da Constituição do Brasil,

alguns operadores do direito concluíram que a norma constitucional exigia uma lei

infraconstitucional para concretizar o direito à saúde.

Com efeito, quando um doente de AIDS (SIDA) postulasse

perante o Poder Judiciário que lhe fosse fornecida, gratuitamente, a medicação

necessária à sua sobrevivência, o magistrado não poderia condenar a Administração

Pública na obrigação de fazer ou de dar, porque não havia lei infraconstitucional

19

Page 20: acp saúde modelo recente elaine

concretizadora do preceito previsto na Constituição. Utilizando uma linguagem

coloquial, seria o mesmo que afirmar: “ o senhor, doente de AIDS (SIDA), que não

possui condições financeiras para comprar os medicamentos que compõem o

“coquetel”, vá para casa e aguarde a morte, pois não há lei que regulamente a norma

constitucional e determine o fornecimento de medicamentos pela Administração

Pública”. Ou, ainda, poderia determinar que o titular do direito à saúde postulasse, por

intermédio de um mandado de injunção, que o Poder Legislativo fosse cientificado

pelo Poder Judiciário para legislar e, caso se quedasse inerte, não haveria como

compeli-lo a cumprir o seu dever. Em suma, seria o mesmo que decretar uma sentença

de morte ao doente.

Ora, o Estado não poderia relegar à morte uma pessoa, pelo

simples fato de não possuir condições financeiras para comprar medicamentos.

Nessa hipótese, o Poder Judiciário condenou a Administração

Pública a fornecer os medicamentos, extraindo diretamente da Constituição, sem

necessidade de aguardar a ação do Poder Legislativo, o conteúdo concreto do direito

ao mínimo necessário à existência condigna dos doentes de AIDS (SIDA). Tal

determinação judicial representa a concretização do princípio da dignidade da pessoa

humana e encontra fundamento no dever de proteção do próprio direito à vida.

O Supremo Tribunal Federal prescreveu que:

“Medicamentos para Pacientes com AIDS (Transcrições) RE

267.612-RS* RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO EMENTA: PACIENTES

COM HIV/AIDS. PESSOAS DESTITUÍDAS DE RECURSOS FINANCEIROS.

DIREITO À VIDA E À SAÚDE. FORNECIMENTO GRATUITO DE

MEDICAMENTOS. DEVER CONSTITUCIONAL DO ESTADO (CF, ARTS. 5º,

CAPUT, E 196). PRECEDENTES (STF). - O direito público subjetivo à saúde

representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas

pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico

constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira

responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas

sociais e econômicas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e

igualitário à assistência médico-hospitalar. - O caráter programático da regra

inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes

políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado

20

Page 21: acp saúde modelo recente elaine

brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob

pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela

coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável

dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental…”

E prossegue o Ministro relator:

“(…)Na realidade, o cumprimento do dever político-

constitucional consagrado no art. 196 da Lei Fundamental do Estado, consistente

na obrigação de assegurar, a todos, a proteção à saúde, representa fator, que,

associado a um imperativo de solidariedade social, impõe-se ao Poder Público,

qualquer que seja a dimensão institucional em que atue no plano de nossa

organização federativa. A impostergabilidade da efetivação desse dever

constitucional desautoriza o acolhimento do pleito recursal ora deduzido na

presente causa. Tal como pude enfatizar, em decisão por mim proferida no exercício

da Presidência do Supremo Tribunal Federal, em contexto assemelhado ao da

presente causa (Pet 1.246-SC), entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à

saúde, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela

própria Constituição da República (art. 5º, caput e art. 196), ou fazer prevalecer,

contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do

Estado, entendo - uma vez configurado esse dilema - que razões de ordem ético-

jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o

respeito indeclinável à vida e à saúde humana “(grifo nosso).

Em conclusão, o v. aresto preleciona:

“ (…)O sentido de fundamentalidade do direito à saúde - que

representa, no contexto da evolução histórica dos direitos básicos da pessoa

humana, uma das expressões mais relevantes das liberdades reais ou concretas -

impõe ao Poder Público um dever de prestação positiva que somente se terá por

cumprido, pelas instâncias governamentais, quando estas adotarem providências

destinadas a promover, em plenitude, a satisfação efetiva da determinação ordenada

pelo texto constitucional. Vê-se, desse modo, que, mais do que a simples positivação

dos direitos sociais - que traduz estágio necessário ao processo de sua afirmação

constitucional e que atua como pressuposto indispensável à sua eficácia jurídica

(JOSÉ AFONSO DA SILVA, "Poder Constituinte e Poder Popular", p. 199, itens

21

Page 22: acp saúde modelo recente elaine

ns. 20/21, 2000, Malheiros) -, recai, sobre o Estado, inafastável vínculo institucional

consistente em conferir real efetividade a tais prerrogativas básicas, em ordem a

permitir, às pessoas, nos casos de injustificável inadimplemento da obrigação

estatal, que tenham elas acesso a um sistema organizado de garantias

instrumentalmente vinculado à realização, por parte das entidades governamentais,

da tarefa que lhes impôs a própria Constituição. Não basta, portanto, que o Estado

meramente proclame o reconhecimento formal de um direito. Torna-se essencial

que, para além da simples declaração constitucional desse direito, seja ele

integralmente respeitado e plenamente garantido, especialmente naqueles casos em

que o direito - como o direito à saúde - se qualifica como prerrogativa jurídica de

que decorre o poder do cidadão de exigir, do Estado, a implementação de prestações

positivas impostas pelo próprio ordenamento constitucional. Cumpre assinalar,

finalmente, que a essencialidade do direito à saúde fez com que o legislador

constituinte qualificasse, como prestações de relevância pública, as ações e serviços

de saúde (CF, art. 197), em ordem a legitimar a atuação do Ministério Público e do

Poder Judiciário naquelas hipóteses em que os órgãos estatais, anomalamente,

deixassem de respeitar o mandamento constitucional, frustrando-lhe,

arbitrariamente, a eficácia jurídico-social, seja por intolerável omissão, seja por

qualquer outra inaceitável modalidade de comportamento governamental desviante.

Todas essas considerações - que ressaltam o caráter incensurável da decisão

emanada do Tribunal local…”46

A decisão do órgão supremo do Poder Judiciário é

emblemática e de fundamental importância para o caso em análise. Decorrem dela

várias ilações, que podem assim ser sintetizadas:

a) o tribunal reconheceu o direito subjetivo público de exigir o

cumprimento de prestações positivas pelo Estado, necessárias à concretização do

direito social (saúde). O direito subjetivo decorre diretamente do artigo 196, da

46 Decisão proferida em recurso extraordinário interposto pelo Estado do Rio Grande do Sul, com o objetivo de

buscar a reforma de decisão proferida pelo Tribunal de Justiça local, que reconheceu incumbir, a essa unidade

federada, com fundamento no art. 196 da Constituição da República, a obrigação de fornecer, gratuitamente, aos

doentes de AIDS (SIDA), medicamentos necessários ao tratamento da moléstia, eis que se refere a pacientes

destituídos de recursos financeiros e portadores do vírus HIV. Recurso extraordinário 267612. Disponível em:

«www.stf.gov.br/jurisprudência». Acesso em: 14 de Setembro de 2003.

22

Page 23: acp saúde modelo recente elaine

Constituição Federal, sem necessidade de intervenção legislativa. Ou seja, o tribunal

prescreveu que o direito à saúde é um direito originário à prestação;

b) como consequência da conclusão anterior, o Supremo

Tribunal Federal reconheceu o dever do Poder Público de implementar políticas

públicas, isto é, um dever de prestação positiva, que visa a garantia de um direito

social (saúde);

c) o tribunal esclareceu que, apesar do caráter programático da

norma constitucional, todos os entes políticos estão vinculados ao cumprimento do

preceito, sob pena de, em caso de omissão, o Poder Público “substituir, de maneira

ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável

de infidelidade governamental”;

d) o Supremo Tribunal Federal afirmou, também, que, no

conflito entre a proteção de um direito fundamental inviolável e inalienável - no caso

o direito à vida e à saúde – e o interesse financeiro do Estado, deve prevalecer o direito

fundamental. Com espeque no conflito entre princípios constitucionais, o Tribunal

apresentou uma solução para afastar o caráter absoluto que alguns doutrinadores

atribuem ao princípio da reserva do possível.

e) por fim, o acórdão traz em seu bojo o reconhecimento da

legitimidade do Ministério Público e do Poder Judiciário para atuar, com a finalidade

de suprir a omissão do Poder Legislativo, que, arbitrariamente, frustra a eficácia

jurídico-social da norma constitucional. Extrai-se dessa conclusão e, utilizando-se uma

expressão de Robert Alexy, o seguinte: “(…) de modo algum um tribunal

constitucional é impotente frente a um legislador inoperante”47.

Do v. aresto dessume-se que, mesmo em caso de omissão do

Poder Legislativo, a Administração Pública deve (não é uma faculdade) implementar

as políticas públicas necessárias para garantir o gozo efetivo do direito fundamental à

saúde (prestação positiva do Estado), no limite do mínimo necessário à existência

47 Citando W. Schmidt. Teoria de Los Derechos Fundamentales. 2ª reimpressão.Madrid: Centro de

Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001, p. 496

23

Page 24: acp saúde modelo recente elaine

condigna, pois esse mínimo pode “considerar-se, em regra, constitucionalmente

determinado, em termos de ser judicialmente exigível”48.

Assim, a atuação positiva da Administração Pública assume

um papel de extrema importância para a concretização do direito fundamental à saúde,

tendo a conduta do Município o objetivo de proteger o princípio superior do sistema

jurídico – princípio da dignidade da pessoa humana - e de garantir uma vida com

qualidade a todas as pessoas.

Nesse sentido, a Constituição Federal atribui aos municípios o

dever de prestar serviços de atendimento à saúde da população:

“Art. 30. Compete aos Municípios:

VII- prestar, com cooperação técnica e financeira da União e

do Estado, serviços de atendimento à saúde da população” –

grifei.

Apesar do dever do Município de fornecer serviços de

atendimento à saúde da população decorrer da própria Constituição (artigos 30, 196, e

198), como forma de concretização e proteção da dignidade da pessoa humana (artigo

1º, inciso III, da Constituição Federal) e do direito à vida (artigo 5º, caput, da

Constituição Federal), o legislador infraconstitucional densificou os preceitos insertos

na Carta Magna por via da Lei nº 8.080/90.

48 Cf. José Carlos Vieira de Andrade. O mesmo autor suscita algumas dúvidas pertinentes ao caso que

citamos como exemplo. Ei-las: “ não deverá defender-se que é constitucionalmente insuportável a

situação do cidadão cujas necessidades mínimas em matéria de habitação, de tratamento médico e

sanitário, de alimentação, de educação, não são satisfeitas? Não deverá, então reconhecer-se a todas as

pessoas o direito a esse mínimo, independentemente de quaisquer opções legislativas?”. Ademais, o

constitucionalista traz à baila outras dúvidas, as quais concretiza em duas indagações: (a) o direito ao

mínimo não constitui a concretização da dignidade da pessoa humana?, e (b) o direito ao mínimo não

implica a proteção do próprio direito à sobrevivência, “enquanto direito social de personalidade,

entendido como um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias (…)?” ( Os direitos

fundamentais na Constituição Portuguesa…, op. cit., p. 386-388).

24

Page 25: acp saúde modelo recente elaine

II.3- Da Lei nº 8.080/90

O artigo 2º, da norma sob comento, prescreve que

“A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo

o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno

exercício”.

“§1º: O dever do Estado de garantir a saúde consiste na

formulação e execução de políticas econômicas e sociais que

visem à redução de riscos de doença e de outros agravos e no

estabelecimento de condições que assegurem acesso

universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua

promoção, proteção e recuperação.”

Já o artigo 4º reza que:

“O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por

órgãos e instituições públicas federais, estaduais e

municipais, da Administração Direta e Indireta e das

fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema

Único de Saúde – SUS”.

Por seu turno, o artigo 5º preleciona:

“São objetivos do Sistema Único de Saúde – SUS:.

...

“III- a assistência às pessoas por intermédio de ações de

promoção, proteção e recuperação da saúde, com a

realização integrada das ações assistenciais e das atividades

preventivas.”

No mesmo sentido, o artigo 7º:

“As ações e serviços púlicos de saúde e os serviços privados

contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de

25

Page 26: acp saúde modelo recente elaine

Saúde – SUS, são desenvolvidos de acordo com as diretrizes

previstas no artigo 198 da Constituição Federal, obedecendo

ainda aos seguintes princípios:

I_ universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os

níveis de assistência;

II integralidade de assistência, entendida como conjunto

articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e

curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em

todos os níveis de complexidade do sistema;

IV igualdade da assistência à saúde, sem preoconceitos ou

privilégios de qualquer espécie;

...

XXII- capacidade de resolução dos serviços em todos os

níveis de assistência”.

Extrai-se dos preceitos citados que o legislador

infraconstitucional apenas concretizou, na lei ordinária, a proteção do direito à saúde,

inserto na Constituição Federal como direito fundamental social.

II.4. Do Estatuto do Idoso

O artigo 2º, da Lei nº 10.741, de 1º de Outubro de 2003,

prescreve que o idoso é titular de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa

humana, sendo-lhe assegurado todas as “oportunidades e facilidades, para a

preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual,

espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade”.

Para garantir que o idoso goze de todos os direitos

fundamentais, o estatuto estabelece, com absoluta prioridade, a responsabiliade da

família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público de assegurar a efetivação

do “direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao

26

Page 27: acp saúde modelo recente elaine

lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência

familiar e comunitária” (artigo 3º).

O artigo 9º reitera a obrigação do Estado de garantir à pessoa

idosa a proteção à vida e à saúde, “mediante efetivação de políticas sociais públicas

que permitam um envelhecimento saudável e em condições de dignidade”

Já o artigo 10 impõe ao Estado a obrigação de assegurar à

“pessoa idosa a liberdade, o respeito, a dignidade, como pessoa humana e sujeito de

direitos civis, políticos, individuais e sociais, garantidos na Constituição e nas leis”.

Ora, o legislador infraconstitucional apenas concretizou na lei

ordinária o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos à vida, à liberdade e

à saúde previstos na norma constitucional.

Com relação ao direito à saúde, cuja importância se mostra

capital no caso do fornecimento de medicamentos aos idosos, o artigo 15 prescreve

que:

“É assegurada a atenção integral à saúde do idoso, por

intermédio do Sistema Único de Saúde – SUS, garantindo-

lhe o acesso universal e igualitário, em conjunto articulado e

contínuo das ações e serviços, para a prevenção, promoção,

proteção e recuperação da saúde, incluindo a atenção

especial às doenças que afetam preferencialmente os idosos.

“§ 1º A prevenção e a manutenção da saúde do idoso serão

efetivadas por meio de:

 “I – cadastramento da população idosa em base territorial;

 “II – atendimento geriátrico e gerontológico em

ambulatórios;

 “III – unidades geriátricas de referência, com pessoal

especializado nas áreas de geriatria e gerontologia social;

27

Page 28: acp saúde modelo recente elaine

 “IV – atendimento domiciliar, incluindo a internação, para

a população que dele necessitar e esteja impossibilitada de se

locomover, inclusive para idosos abrigados e acolhidos por

instituições públicas, filantrópicas ou sem fins lucrativos e

eventualmente conveniadas com o Poder Público, nos meios

urbano e rural;

 “V – reabilitação orientada pela geriatria e gerontologia,

para redução das seqüelas decorrentes do agravo da saúde.

“§ 2º Incumbe ao Poder Público fornecer aos idosos,

gratuitamente, medicamentos, especialmente os de uso

continuado, assim como próteses, órteses e outros recursos

relativos ao tratamento, habilitação ou reabilitação (grifo

nosso)..

Analisando-se a Constituição Federal e o Estatuto do Idoso

conclui-se que o Município de Campestre está obrigado a fornecer medicamentos aos

idosos, não só para tratamento da osteoporose, mas para combater outras

enfermidades, a fim de garantir o direito à saúde, proporcionando uma vida com

qualidade e digna aos idosos.

O artigo 4º preceitua que qualquer atentado aos direitos do

idoso, por ação ou omissão, deve ser punido na forma da lei.

Nessa linha de proteção, o artigo 5º estabelece que a

“inobservância das normas de prevenção importará em responsabilidade à pessoa

física ou jurídica nos termos da lei”.

Os documentos juntados ao Procedimento Preparatório n°

_______ nos mostram que o Município de Ribeirão das Neves não tem cumprido o seu

dever Constitucional e legal. Dessa forma todas as pessoas idosas, sobretudo as de

baixa renda, encontram-se tolhidas em seu direito de acesso à saúde, com grave

prejuízo à vida e à dignidade desses hipossuficientes. Tal omissão do réu viola, de

28

Page 29: acp saúde modelo recente elaine

forma frontal, os artigos 2º, 3º, 4º, 5º, 9º, 10 e 15, da Lei nº 10.741/03 (Estatuto do

Idoso), bem como os artigos 1º, inciso III; 5º, caput; 196; e 230, caput, da Constituição

Federal.

Contemplada a ação da Administração Pública como um dever

jurídico e constatada a relevância jurídica da omissão, é importante ressaltar que o

dever de fornecer medicamentos aos idosos não se insere no poder discricionário da

administração pública.

II.5- Da responsabilidade do Município de Ribeirão das Neves.

Analisando-se a Constituição Federal e a Legislação ordinária

em vigor conclui-se que o réu está obrigado a fornecer o atendimento integral ao

paciente Washington Campos Prado, a fim de garantir-lhe o direito à saúde, como

forma de proporcionar-lhe uma vida com qualidade e digna.

Nesse sentido, o artigo 18, da Lei nº 8.080/90, diz que à

direção municipal do Sistema Único de Saúde (SUS) compete:

“I - planejar, organizar, controlar e avaliar as ações e os

serviços de saúde e gerir e executar os serviços públicos de

saúde”.

Com relação ao transporte da paciente fora do domicílio em

que reside, a Portaria /SAS/ nº 055, de 24 de fevereiro de 1999, regulamenta o TFD e

diz que:

“  Art. 1º - Estabelecer que as despesas relativas ao

deslocamento de usuários do Sistema Único de Saúde – SUS

para tratamento fora do município de residência possam ser

cobradas por intermédio do Sistema de Informações

Ambulatoriais – SIA/SUS, observado o teto financeiro

definido para cada município/estado”.

29

Page 30: acp saúde modelo recente elaine

Já o artigo 4º, da referida portaria, estabelece que:

“ Art. 4º - As despesas permitidas pelo TFD são aquelas

relativas a transporte aéreo, terrestre e fluvial; diárias para

alimentação e pernoite para paciente e acompanhante,

devendo ser autorizadas de acordo com a disponibilidade

orçamentária do município/estado”.

       Apesar de todo o arcabouço legislativo determinar a

responsabilidade do Município pelo transporte e tratamento de Washington Campos

Prado, os documentos coligidos nos mostram que o réu não tem cumprido o seu dever

constitucional e legal. Dessa forma, o paciente de baixa renda e hipossuficiente

encontra-se tolhido em seu direito de acesso à saúde, com grave prejuízo à sua vida e

à sua dignidade. É patente a violação dos artigos 1º, inciso III; 5º, caput; 196 e 198, da

Constituição Federal, e artigo 186, da Constituição do Estado de Minas Gerais.

Da Constituição e da legislação ordinária extrai-se o dever de

agir da Administração Pública e o correlato direito subjetivo público ao tratamento

médico adequado. Isso gera um direito de reação do titular do direito fundamental

frente à omissão da Administração Pública. Tal conclusão é conseqüência da

vinculação direta da Administração Pública aos direitos fundamentais sociais.

Nesse contexto, a inação, ou omissão, ou o non facere da

Administração Pública configura-se como um ato lesivo aos direitos fundamentais,

porquanto representa a negação de um direito subjetivo ao portador de cirrose

hepática e o descumprimento de um dever de agir imposto pela Constituição e pela lei.

O titular do direito subjetivo público vê-se impossibilidade de usufruir do direito

fundamental à saúde, justamente em decorrência da recusa da prestação pela

Administração Pública.

Considerando, portanto, que a obrigação de agir da

Administração Pública deriva da Constituição e da Lei, impondo ao poder público o

30

Page 31: acp saúde modelo recente elaine

dever (e não a faculdade) de implementar os meios necessários à concretização dos

direitos fundamentais sociais, a omissão administrativa é ilícita e inconstitucional49.

Decorre daí a relevância jurídica da omissão para a proteção

dos direitos fundamentais. Da mesma maneira que nos clássicos direitos de defesa

somente se consideravam violados os direitos fundamentais pela ingerência arbitrária

do Estado no âmbito das liberdades individuais, para os direitos sociais, “na lógica da

Administração prestadora, a não atuação significa a recusa de uma benefício a um

particular”50 e uma ofensa à Constituição.

Marcos Gómez Puente esclarece que, em virtude do

protagonismo da atividade administrativa na vida política e social, a “inatividade da

Administração põe em perigo a eficácia política do modelo social de Estado”. Conclui

o autor que a omissão da Administração Pública é ilegal e, se permanecer “impune”,

negaria “os postulados básicos do Estado de Direito que se resumem ao princípio da

legalidade”51.

Com espeque nas ilações do aludido autor e nos argumentos já

apresentados, conclui-se que a omissão da Administração Pública nega o princípio da

juridicidade, que congrega os princípios da legalidade e da Constitucionalidade.

Ademais, na esteira do que disse o autor espanhol, o non facere põe em perigo a

eficácia dos Direitos Fundamentais sociais.

Esse dever da Administração Pública, cuja omissão constitui

uma ofensa à Constituição e à legislação ordinária, é um dever jurídico. Donde se

depreende que há necessidade da existência de um poder que determine o

cumprimento do preceito Constitucional em caso de violação do dever de agir. Se não

existisse o poder de coação ou de sanção do comportamento, não apenas ilegal, senão

49 Rodolfo de Camargo Mancuso esclarece que as “inconstitucionalidades que podem inquinar as

políticas públicas tanto podem se revelar por via comissiva, com o fracasso dos objetivos colimados

(…), como podem ainda ocorrer por via omissiva, ante uma abstenção inescusável…” (A Ação Civil

Pública como instrumento de controle judicial das chamadas políticas públicas. In Ação Civil Pública -

Lei nº 7.347/85- 15 anos. Obra Coletiva. Coordenador Edis Milaré. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista

dos Tribunais, 2002., p. 787).

50 Cf. Vasco Pereira da Silva. Em busca do acto administrativo perdido…, op. cit., p. 101-102.

51 La inactividad de la Administración…, op. cit., p. 77.

31

Page 32: acp saúde modelo recente elaine

também inconstitucional da Administração, não seria um dever jurídico, mas apenas

moral. Essa atribuição materializa-se no Poder Judiciário.

Assim, da vinculação da Administração Pública à Constituição

no Estado Social e Democrático de Direito resultou um dever de atuação positiva do

Município de Ribeirão das Neves, que visa a concretização do direito fundamental à

saúde.

Verifica-se, pela análise da Circular CRS/GRS/BH n°

021/2009, juntada nos autos do procedimento preliminar, que o Município de Ribeirão

das Neves se utiliza da Programação Pactuada Integrada para realização, em unidade

hospitalar localizada em Belo Horizonte, de exames, consultas, cirurgias e outros

procedimentos médicos não realizados neste nosso Município.

O artigo 1° da Portaria 1.097, de 22/05/2006, do Ministério da

Saúde, define a Programação Pactuada e Integrada de Assistência à Saúde como sendo

um processo instituído no âmbito do SUS (Sistema Único de Saúde), em consonância

com o processo de planejamento, em que são definidas e quantificadas as ações de

saúde para a população em cada território, bem como efetuado os pactos intergestores

para a garantia de acesso à população aos serviços públicos de saúde.

A Programação Pactuada e Integrada representa uma garantia

aos usuários do serviço público de saúde do município de Ribeirão das Neves do

acesso aos exames e demais procedimentos de saúde não disponibilizados no

Município.

Constata-se que Ribeirão das Neves tem pactuado com Belo

Horizonte, através de coordenação do setor estadual, vários serviços de saúde de alta e

média complexidade, contemplando o exame de tomografia computadorizada, do qual

necessita a idosa.

Nesse sentido, é dever do Município disponibilizar ao idoso

____ os meios necessários para que possa realizar o tratamento médico necessário ao

tratamento do ___________ a que foi acometido, proporcinando-lhe o acesso ao

adequado atendimento médico para que seu direito fundamental à vida seja

preservado.

32

Page 33: acp saúde modelo recente elaine

Contemplada a ação da Administração Pública como um dever

jurídico, e constatada a relevância jurídica da omissão, é importante ressaltar que o

dever de pagar a realização dos exames de tomografia computadorizada do abdome e

angiotomografia ao paciente Washington Campos Prado não se insere no poder

discricionário da administração pública.

II.6. A discricionariedade mínima da Administração Pública

A Administração Pública está vinculada aos preceitos

Constitucionais e Legais definidores dos direitos sociais e à concretização dos

princípios da igualdade real e da dignidade da pessoa humana.

Decorre, outrossim, da Constituição e da Legislação ordinária

um direito subjetivo público em face da Administração Pública, consistente no dever

desta implementar as políticas públicas indispensáveis à concretização dos direitos

fundamentais sociais, mormente a obrigação de fornecer, gratuitamente,

medicamentos. Tal dever constitucional e legal visa proteger os hipossuficientes-

idosos-, garantindo-lhes uma vida com dignidade.

Amalgamados esses dois elementos – dever da Administração

Pública e direito subjetivo público dos idosos – depreende-se que, ao invés da

atribuição de um poder discricionário à Administração Pública, entendido como a

faculdade conferida por lei para escolher, mediante critérios de oportunidade e

conveniência, se implementa políticas públicas ou não52, a Constituição e a Lei

impuseram a atuação administrativa de forma a garantir os patares mínimos

necessários à proteção da pessoa humana e da sua dignidade. Logo, a Administração

Pública não tem a faculdade de decidir, por questões de conveniência ou oportunidade,

se concretiza ou não os direitos sociais por intermédio das políticas públicas, ou, como

no caso em apreço, se fornece ou não medicamentos aos idosos.

52 Maria Sílvia Zanella Di Pietro conceitua discricionariedade administrativa como: “a faculdade que a

lei confere à Administração para apreciar o caso concreto, segundo critérios de oportunidade e

conveniência, e escolher uma dentre duas ou mais soluções, todas válidas perante o direito”

(Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 67.

33

Page 34: acp saúde modelo recente elaine

María Jesús Montoro Chiner afirma que não é lícito à

Administração Pública, por decisão própria, omitir-se na prática de uma conduta

imposta por lei, porquanto, segundo ela, quando uma lei estabelece obrigações

administrativas, a Administração não goza do poder de decisão sobre a sua execução

ou não53.

Isso não significa a erradicação da discricionariedade, mas

implica uma vinculação da Administração Pública aos fins impostos pela Constituição

e pela Lei. O poder público não tem a liberdade de escolher se implementa ou não as

políticas públicas imprescindíveis à garantia do mínimo indispensável à existência

condigna, pois deve fazê-lo. A discricionariedade existe na possibilidade de escolha

dos meios que serão utilizados para alcançar os fins determinados pela Constituição e

pelo estatuto do idoso, isto é, entre várias alternativas de políticas públicas a

Administração deverá escolher uma que se adapte melhor à garantia de determinado

direito social. Mesmo nessa hipótese, a liberdade da Administração Pública não será

total, mas estará vinculada aos princípios da legalidade, moralidade, eficiência,

adequação, razoabilidade e proporcionalidade.

O que se verifica é também reflexo da evolução do Estado

Liberal para o Estado Social e Democrático de Direito, cujo resultado foi a

reformulação do antigo conceito de poder discricionário54. Hoje, há o entendimento de

que o espectro de liberdade de escolha do poder público é reduzido, pois os atos estão

vinculados aos novos imperativos fáticos e sociais. Isso nos leva a concluir que a

Administração Pública está sujeita a uma “liberdade vigiada”55. Nesse contexto, o

53 La Inactividade Administrativa en el Processo de Ejecucion de las Leys. Control Jurisdiccional

“versus” fracaso Legislativo. In Revista de Administración Publica. Madrid: Centro de Estudios

Constitucionales, maio-agosto de 1986, p. 263-365.

54 Miguel Sánchez Moron reconhece que se deixou de considerar a discricionariedade administrativa

como “um âmbito material confiado à livre disposição da Administração, injusticiável por essência”.

Esta concepção, segundo o autor, denota a ruptura decisiva com “a teoria do direito público do século

passado”. No entanto, o autor ressalta que, apesar da discricionariedade estar submetida aos limites

jurídicos gerais e a regras de organização e procedimento, não se justifica a sua eliminação no Estado de

Direito. Por fim, alerta que o controle judicial da discricionariedade administrativa tem limites e não

pode interferir nos aspectos políticos, técnicos ou não jurídicos” (Discrecionalidad administrativa y

control judicial. 1ª ed. Reimpressão. Madrid: Editorial Tecnos, 1995, p. 91).

34

Page 35: acp saúde modelo recente elaine

poder discricionário administrativo, antes ilimitado, restringe-se a um campo

delimitado pelos princípios acima mencionados.

Tal concepção levou Rodolfo de Camargo Mancuso a afirmar

que se deu a superação do Estado de Direito formal ou retórico “(= correspondência

teórica ou abstrata entre a conduta administrativa e a norma de regência), por um

modelo de Estado de Direito num sentido plenamente material”, segundo o qual os

atos dos poderes públicos, para terem validade, devem estar em consonância “com os

valores maiores da moralidade, eficiência, economicidade, razoabilidade,

proporcionalidade, não bastando mais, simplesmente, a mera coincidência entre o ato

ou conduta e a norma de regência”56. E justamente são esses princípios que regem a

atividade administrativa, autorizando o controle jurisdicional amplo da Administração

Pública57.

Destarte, para que o ato administrativo, especificamente o ato

que concretiza as políticas pública, tenha validade é necessário que, além de subsumir-

se à lei e à Constituição, corresponda à nota da efetividade58, isto é, adequar-se aos

valores subjacentes aos princípios prescritos na Constituição.

Para a ilustrar a concepção proposta, é importante trazer à

colação o seguinte exemplo: diante da escassez de recursos públicos, a Administração

Pública de um Município carente de políticas sociais básicas (tal como Campestre),

como saúde, educação, habitação, não pode comprometer o erário com obras de “mero

embelezamento”. Embora o ato administrativo possa cumprir o princípio da

legalidade, visto sob o prisma meramente formal, pois há uma subsunção do ato à lei,

no aspecto material, o comportamento da Administração Pública é passível de

55 Expressão utilizada por Rodolfo de Camargo Mancuso. A Ação Civil Pública como instrumento de

controle judicial das chamadas políticas públicas…, op. cit., p. 776.

56 A Ação Civil Pública como instrumento de controle judicial das chamadas políticas públicas…, op.

cit., p. 769.

57 No sentido da “jurisdicização” da discricionariedade como ideal do Estado Social de Direito Vasco

Pereira da Silva. Em busca do acto administrativo perdido…, op. cit. P. 90. Invocando a lição de Freitas

do Amaral, o autor afirma que não há, em regra, atos totalmente vinculados, nem atos totalmente

discricionários, pois “quase todos os atos administrativos são simultaneamente vinculados e

discricionários…” (op. cit., p. 88).

58 No mesmo sentido, Rodolfo de Camargo Mancuso, op. cit., p. 769.

35

Page 36: acp saúde modelo recente elaine

questionamento, justamente porque não cumpriu os princípios da razoabilidade e

eficiência.

A Administração Pública, no exercício da atividade de

implementação de políticas públicas, não tem discricionariedade para empregar o

dinheiro público ao talante do “chefe de plantão” (Prefeito) Ao contrário, para que o

ato, além de válido seja eficaz, deve cumprir o direito positivo (a lei ou Constituição) e

os princípios e valores superiores e anteriores ao Constituinte, que, muitas vezes,

encontram-se positivados nos textos constitucionais59.

Essa concepção, em última análise, demonstra a vinculação da

Administração não apenas ao princípio da legalidade, entendido este como a exigência

de correspondência entre o ato administrativo e a lei formal, mas também ao princípio

mais amplo da juridicidade, consistente na subsunção do ato à Constituição, à lei, aos

princípios e valores.

Isso não significa que a Administração não se sujeita à lei, mas

que encontra o fundamento de validade para a sua atuação na Constituição e nos

princípios fundamentais. Logo, a Administração vê-se “obrigada” a implementar

políticas públicas, sobretudo garantir o fornecimento de remédios aos idosos, à medida

em que os direitos fundamentais sociais e os princípios da igualdade real e da

dignidade da pessoa humana “exigem”, para a sua concretização e proteção, um

comportamento ativo do poder público.

De todo o exposto é forçoso reconhecer que a Administração

Pública, no Estado Social e Democrático de Direito, não tem a função apenas de

executar a lei. Além dessa função, a Administração tem o dever de agir para satisfazer

os interesses públicos, submetendo-se à Constituição e aos princípios fundamentais.

Estes operam como fundamento da atuação da Administração Pública e como limite

negativo da discricionariedade administrativa. Discricionariedade que consiste, não na

análise da oportunidade e conveniência da implementação da política pública, mas na

59 A Constituição do Brasil, no artigo 37, caput , prescreve que a Administração Pública deve obedecer

“os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência…”. No mesmo

sentido, a Constituição de Portugal, no artigo 266º, nº 2, determina que os órgãos e agentes

administrativos devem atuar com respeito “pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da

justiça, da imparcialidade e da boa-fé”.

36

Page 37: acp saúde modelo recente elaine

escolha de qual, entre duas ou mais opções, adapta-se melhor ao objetivo proposto

pela própria Constituição e pelo Estatuto do Idoso.

Nessa hipótese, a discricionariedade administrativa não está

isenta de controle, o qual deve ser exercido não só pelo Poder Judiciário, senão

também pela própria Administração Pública (auto-controle), pelo Poder Legislativo

(controle político) e pela sociedade.

Daí que não há discricionariedade do Município de Ribeirão

das Neves, ora réu, em escolher se fornece medicamentos ou não aos idosos, segundo

a sua conveniência e oportunidade. Vale dizer, o réu tem o dever de fornecer

medicamentos, porquanto a própria Constituição Federal e a Legislação Ordinária

assim impõem.

Com efeito, como o réu omitiu-se e não cumprir o seu dever

constitucional e legal, o Ministério Público detém legitimidade para postular a defesa

dos direitos dos idosos.

II.7- Da condenação do Município na obrigação de fazer e a não violação da

separação de poderes.

As transformações ocorridas pela instauração do Estado Social

e Democrático de Direito, como um “Estado Constitucional” e provedor do bem-estar,

determinaram também modificações na relação entre os poderes Executivo,

Legislativo e Judiciário. Com isso, o princípio radical da separação de poderes, que

não previa um controle jurisdicional efetivo da atividade administrativa, transforma-se

em um modelo próprio do sistema democrático de direito, que autoriza a plenitude do

controle da Administração Pública pelo Poder Judiciário60.

A mutação da relação entre os poderes do Estado, com o

conseqüente controle pleno das atividades administrativas pelo Poder Judiciário61, está

60 No mesmo sentido Marcos Gómez Puente. La Inactividad de La Administración…, op. cit., p. 74.

61 António- Carlos Pereira Menaut aduz que “ no Estado Constitucional submete-se ao escrutínio

judicial todos os âmbitos da atuação política e administrativa” (Rule of Law o Estado de Derecho.

Madrid: Marcial Pons, 2003, p. 89).

37

Page 38: acp saúde modelo recente elaine

ligada à teoria da vinculação positiva da Administração Pública ao princípio da

juridicidade, segundo o qual os poderes públicos estão subordinados à Constituição e

aos princípios gerais de Direito, extraindo-se das normas constitucionais obrigações

positivas para a Administração Pública. Constitui uma evolução do princípio da

legalidade como limite negativo da atuação administrativa, que se caracterizava pela

imposição de obrigações de não fazer à Administração Pública. Logo, o controle pleno

da Administração Pública pelo Poder Judiciário, tanto com relação ao comportamento

ativo quanto ao negativo, deve-se à mudança da supremacia da lei pela supremacia da

Constituição.

Da supremacia da Constituição extrai-se também que o direito

fundamental à saúde é um direito subjetivo público, que legitima a pretensão do

indivíduo em face da Administração Pública.

A partir daí começa a ser objeto de conhecimento judicial a

omissão administrativa lesiva dos direitos fundamentais sociais.

Contudo, como a atuação da Administração Pública não se

restringe à esfera individual do titular do direito subjetivo, porquanto visa salvaguardar

também interesses coletivos, é necessário ampliar o controle jurisdicional para tutelar

os direitos individuais homogêneos.

Esses direitos são direitos individuais que, em razão de uma

origem fática comum, podem ser tutelados coletivamente em juízo, quando a

Administração Pública não cumprir o dever de agir imposto pela Constituição.

Impende concluir que a sindicabilidade judicial da omissão da

Administração pública tem por fundamento a vinculação positiva da Administração

Pública ao princípio da juridicidade e a natureza de direito subjetivo público do direito

fundamental à saúde, que, por seu turno, pode ser defendido coletivamente em razão

da sua característica de direito individual homogêneo.

Nessa linha de raciocínio, diante de uma Administração

prestadora de serviços públicos, a recusa em agir configura uma lesão ao direito

fundamental do cidadão e à própria Constituição. Por conseguinte, a inatividade da

Administração Pública assume relevância jurídica, autorizando os titulares do direito

38

Page 39: acp saúde modelo recente elaine

fundamental à saúde buscar, individual ou coletivamente, a proteção jurisdicional

indispensável para afastar a lesão ao seu direito subjetivo.

Em outro falar, a lesão do direito subjetivo decorre da omissão

da Administração Pública. Sendo assim, para restaurar a legalidade e para a satisfação

do direito subjetivo do cidadão impõe-se uma atuação do Poder Judiciário.

Além da lesão ao direito subjetivo, a inatividade da

Administração Pública é inconstitucional, porque a omissão viola o dever de atuação

material deduzido da Constituição62 e da Lei.

Configurada a atuação da Administração Pública como um

dever jurídico e o correlato direito subjetivo do cidadão, assim como a

inconstitucionalidade da omissão, cabe ao Poder Judiciário exercer o poder coativo

para fazer cumprir a norma constitucional e os preceitos legais.

Nesse sentido, a atividade jurisdicional é ampliada para

solucionar conflitos coletivos e suprir a omissão inconstitucional da Administração

Pública, por intermédio de sentenças condenatórias em obrigações de fazer. Esse

comportamento do magistrado demonstra a superação do dogma da separação rígida

de poderes, pois no modelo jurídico-constitucional francês era proibido ao juiz

condenar a Administração a um fazer determinado63. Segundo o modelo de separação

de poderes do Estado Liberal, ao juiz caberia apenas fazer a subsunção do fato à

norma, dirimindo conflitos individuais.

62 Gomes Canotilho esclarece que “o princípio da conformidade dos actos do estado com a Constituição

(…) exige desde logo a conformidade intrínseca e formal de todos os actos dos poderes públicos (…)

com a constituição (art. 3º/2)”. O autor afirma ainda que os atos políticos também devem sujeitar-se aos

“parâmetros constitucionais e ao controlo (político ou jurídico) de conformidade (cf. Art. 3º, 3)”. Por

fim, o autor reconhece que o princípio da constitucionalidade não se restringe apenas à exigência de

atos que não violem positivamente à constituição, mas também a omissão inconstitucional…” (Direito

Constitucional e Teoria da Constituição…, op. cit., p. 246). Apesar de Canotilho aduzir que a omissão

inconstitucional refere-se à “falta de cumprimento do dever de legislar contido em normas

constitucionais”, entendemos que a amplitude do princípio da constitucionalidade e a força da

vinculação da Administração aos Direitos Fundamentais Sociais justificam a concepção que aceita a

inconstitucionalidade por omissão da Administração Pública.

63 Cf. Marcos Gómez Puente. La Inactividade de la Administración…, op. cit., p. 167.

39

Page 40: acp saúde modelo recente elaine

Com a evolução ao Estado Social e Democrático de Direito, o

juiz não é somente a “boca que pronuncia as palavras da lei”64. A atuação do

magistrado vai além e assume um caráter concretizador dos direitos fundamentais

sociais, devendo suprir as omissões dos poderes Executivo e Legislativo.

Para cumprir essa função o magistrado deve, em razão da

omissão do réu, determinar que a Administração Pública implemente as prestações

necessárias à consecução dos fins previstos nos preceitos constitucionais e legais.

A atuação do magistrado não representa intromissão indevida

na esfera de atuação política da Administração Pública, mas apenas exercício da

função jurisdicional, decorrente do modelo de Estado de Direito. Trata-se, em poucas

palavras, da aplicação da norma constitucional ao caso concreto. Em consequência,

como a omissão da Administração Pública viola a Constituição e a Lei, e como cabe

ao Poder Judiciário velar pela constitucionalidade das ações ou omissões estatais, esse

poder deve afastar a inconstitucionalidade derivada da omissão da Administração

Pública e condená-la na obrigação de fazer.

O ato emanado do Poder Judiciário não viola o princípio da

separação de poderes, pois tem por fundamento restaurar a legalidade que fora violada

pela omissão da Administração Pública, assegurando a submissão plena de todos os

poderes do Estado à Constituição e ao Direito.

O Tribunal de Justiça de São Paulo, em acórdão da lavra de

Desembargador Lineu Peinado, analisou argumento do Município de São Paulo, que

fora condenado pelo juiz de primeira instância na obrigação de prestar assistência

social básica à população de rua da Capital, acerca do Poder Judiciário “ser

transformado em co-gestor dos recursos destinados ao bem-estar social”. O relator

refutou os argumentos do Município e alegou :

“ não se estar violando a disposição constante do artigo 2º da

Constituição da República [princípio da separação de

poderes], mesmo porque cabe exclusivamente ao Poder

64 Expressão cunhada por Eros Roberto Grau. A ordem econômica na Constituição de 1988. 5ª ed. São

Paulo: Malheiros, 2000, p. 320.

40

Page 41: acp saúde modelo recente elaine

Judiciário dizer o direito. E na hipótese concreta outra coisa

não se está fazendo senão dizer o Direito, determinando-se

seja cumprida a Constituição da República em sua inteireza.

Existindo norma constitucional determinando seja prestado o

atendimento social, não há que se falar em opção da

Administração, pois a liberdade cessa ante o texto de lei”65.

Na hipótese em que há a condenação da Administração

Pública em obrigação de fazer, a decisão do magistrado, segundo Marcos Gómez

Puente, “produz uma substituição judicial da vontade administrativa de intensidade

variável que contradiz o alcance tradicional do princípio da separação de Poderes”. O

autor afirma que a substituição da vontade administrativa pela decisão judicial é

consequência do equilíbrio funcional entre os poderes do Estado, o qual fora alterado

quando a Administração Pública não cumpriu suas obrigações. “O juiz”, conclui

Marcos Gómez Puente, “não se subroga na função administrativa senão que exerce sua

função jurisdicional”. Por fim, o autor espanhol esclarece que o poder de substituição

concedido ao poder judiciário não atenta contra o princípio da separação de poderes66.

Vasco Pereira da Silva reconhece a faculdade do particular

reagir contra atitudes omissas ilegais da Administração Pública, “sobretudo, a partir

do momento em que a Administração Pública passa de agressiva a constitutiva, sendo

chamada a desempenhar uma actividade prestadora favorável aos particulares”. O

autor demonstra que, no contencioso administrativo da Alemanha, as omissões da

Administração Pública são supridas pela “criação de sentenças condenatórias (…) em

ações de cumprimento de um dever”67.

Devido ao caráter absolutamente regulado do ato omitido,

alheio a qualquer juízo de oportunidade e conveniência quanto ao agir para concretizar

o objetivo imposto pela norma constitucional, a decisão judicial que condena a

Administração Pública na obrigação de fazer não viola a discricionariedade

administrativa. Isso ocorre porque o comportamento exigido da Administração Pública

não se situa no âmbito da sua livre disposição. Ao contrário, a realização das condutas

65 Recurso de Apelação nº 61.146.5/0-00, 2ª Câmara de Direito Público, julgado em 22.06.1999.

Disponível em «http://www.tj.sp.gov.br». Acesso em 29.09.2003.

66 La Inactividade de la Administración…, op. cit., p. 171-172.

67 Em busca do acto administrativo perdido…, op. cit., p. 102-103.

41

Page 42: acp saúde modelo recente elaine

concretizadoras do direito fundamental à saúde está inserida no âmbito do poder

vinculado da Administração Pública.

A liberdade da Administração Pública, ainda que limitada,

restringe-se à eleição do “meio” que será empregado para a consecução das finalidades

determinadas pela Constituição e que foram objeto da decisão judicial. Essa

discricionariedade, porém, está limitada pelos princípios da moralidade, razoabilidade,

eficiência, proporcionalidade, dentre outros.

No âmbito restrito da discricionariedade, não cabe um

pronunciamento judicial que substitua a vontade administrativa. Todavia, após a

formação da vontade da Administração Pública, com a conseqüente escolha da política

pública que será implementada para alcançar o objetivo imposto pela Constituição, o

Poder Judiciário deve fiscalizar a legalidade e eficiência do ato administrativo, ou seja,

se o ato cumpriu a lei e a Constituição e os princípios da moralidade, eficiência,

razoabilidade, proporcionalidade, etc.

Assim, o Poder Judiciário realiza um controle positivo e

negativo da Administração Pública. No primeiro, constatada a omissão violadora de

um dever imposto pela Constituição, o Poder Judiciário profere uma decisão que

condena a Administração Pública na obrigação de fazer. No segundo, implementada a

política pública para o cumprimento da decisão judicial, o Poder Judiciário fiscaliza

apenas a legalidade e a eficiência do ato administrativo.

Em poucas palavras: o controle positivo é realizado no âmbito

do poder vinculado e o controle negativo sobre o poder discricionário limitado da

Administração Pública.

Posto isso, não pairam dúvidas que o novo modelo de Estado

Social e Democrático de Direito não só autoriza como impõe o controle jurisdicional

pleno sobre a atividade administrativa, com a finalidade de compeli-la a cumprir o

dever jurídico de agir derivado diretamente da Constituição e da Lei e, com isso,

concretizar o direito fundamental social à saúde.

42

Page 43: acp saúde modelo recente elaine

Parafraseando Robert Alexy, de modo algum o Poder

Judiciário é impotente frente a um administrador inoperante68.

II.8- Da jurisprudência.

O Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais se pronunciou

acerca da possibilidade de o Poder Judiciário condenar o município em obrigações de

fazer, em v. aresto da eminente desembargadora Dra. Maria Elza, que merece todos os

encômios na sua árdua luta na proteção dos direitos fundamentais sociais. Ei-lo:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. OMISSÃO DO PODER

EXECUTIVO NO FORNECIMENTO DE SERVIÇO DE

RELEVÂNCIA PÚBLICA DE TRANSPORTE DE

DOENTES. DETERMINAÇÃO DO PODER

JUDICIÁRIO PARA CUMPRIMENTO DE DEVER

CONSTITUCIONAL. INOCORRÊNCIA DE OFENSA

AO PRINCÍPIO DE SEPARAÇÃO DE PODERES E À

CLÁUSULA DA RESERVA DO POSSÍVEL.

“O Ministério Público, como defensor dos interesses da

sociedade perante o Estado, possui legitimidade para zelar

pelo efetivo cumprimento dos serviços de relevância pública

assegurados na Constituição, promovendo as medidas

necessárias a sua garantia (art. 129, inciso II cumulado com

art. 197, da CF). Ademais, a sua atuação para assegurar a

prestação de serviço de relevância pública encontra amparo

no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e

nos direitos sociais fundamentais à vida e à saúde. Um

pedido, que concretiza objetivos, princípios e direitos

fundamentais da República e que se harmoniza com o Estado

Social e Democrático de Direito, consagrado pela

Constituição da República de 1988, não pode ser considerado

juridicamente impossível. A judicialização de política

pública, aqui compreendida como implementação de política

pública pelo Poder Judiciário, harmoniza-se com a

68 Citando W. Schmidt. Teoria de Los Derechos Fundamentales…, op. cit., p. 496

43

Page 44: acp saúde modelo recente elaine

Constituição de 1988. A concretização do texto constitucional

não é dever apenas do Poder Executivo e Legislativo, mas

também do Judiciário. É certo que, em regra a

implementação de política pública, é da alçada do Executivo

e do Legislativo, todavia, na hipótese de injustificada

omissão, o Judiciário deve e pode agir para forçar os outros

poderes a cumprirem o dever constitucional que lhes é

imposto. A mera alegação de falta de recursos financeiros,

destituída de qualquer comprovação objetiva, não é hábil a

afastar o dever constitucional imposto ao Município de

Teófilo Otoni de prestar serviço de relevância pública

correlacionado com a área de saúde. Assim, a este caso não

se aplica à cláusula da Reserva do Possível, seja porque não

foi comprovada a incapacidade econômico-financeira do

Município de Teófilo Otoni, seja porque a pretensão social de

transporte público na área de saúde se afigura razoável,

estando, pois, em plena harmonia com o devido processo

legal substancial. Louve-se a atuação do Ministério Público

do Estado de Minas Gerais na defesa permanente dos direitos

sociais da população carente que, por ser menos favorecida

do ponto econômico, social, político e cultural, é constante

esquecida pelos donos do poder, sendo apenas lembrada em

épocas eleitorais”69.

II.9 – Da impossibilidade de o Município alegar falta de previsão orçamentária

para cumprir seu dever Constitucional

Não há que se falar em limites orçamentários ou em

observância da Lei de Responsabilidade Fiscal, como desculpa para a manutenção da

situação ilegal narrada nesta inicial. O paciente Washington Campos Prado possui

direitos extraídos do ordenamento jurídico em vigor, identificados em normas

jurídicas auto-aplicáveis. Submetê-lo ao saldo do “caixa” do Poder Público Municipal

69 Apelação cível nº 1.0686.02.040293-5/001- Comarca de Teófilo Otoni- Apelante: Ministério Público

do Estado de Minas Gerais- Apelado Município de Teófilo Otoni.

44

Page 45: acp saúde modelo recente elaine

significa, na verdade, negá-los. Note-se que a legislação alhures citada não sujeita o

direito à saúde, em nenhuma passagem, ao “saldo bancário” da Administração. O

Legislador Constituinte, sábio, percebeu que, assim não fosse, tais direitos seriam

sempre negados sob a desculpa da falta de dinheiro, o que jamais poderia ser posto em

dúvida, pois a ninguém é dado conhecer o movimento financeiro de qualquer pessoa

jurídica de direito público interno. Por outro lado, antes da “Responsabilidade Fiscal”

há a “Responsabilidade Social”, muito mais importante - quer nos direitos

hierarquicamente superiores que ampara, quer nas conseqüência legais àqueles que a

desrespeitam.

E não se pode ignorar que nenhum administrador público seria

alcançado pelas penalidades previstas na “Lei de Responsabilidade Fiscal” se

demonstrar estar agindo em defesa da vida, no cumprimento da Lei e de Decisão

Judicial.

Sobre a questão, em casos semelhantes, já se manifestaram os

Tribunais:

“O Judiciário não desconhece o rigorismo da Constituição

ao vedar a realização de despesas pelos órgãos públicos além

daquelas em que há previsão orçamentária; este Poder,

todavia, sempre consciente de sua importância como

integrante de um dos Poderes do Estado, como pacificador

dos conflitos sociais e defensor da Justiça e do bem comum,

tem agido com maior justeza optando pela defesa do bem

maior, veementemente defendido pela Constituição – A VIDA

– interpretando a lei de acordo com as necessidades sociais

imediatas que ela se propõe a satisfazer” (Apel. Cível nº

98.006204-7, Santa Catarina, Rel. Nilton Macedo Machado,

08/09/98).

Mais adiante, nessa mesma Decisão:

“Com relação à previsão orçamentária para o custeio dos

medicamentos específicos, basta relembrar que já há no

orçamento do Estado, dotação apropriada; da mesma forma

não pode o apelante pretender eximir-se de suas

responsabilidades sob a alegação de que enfrenta sérios

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Page 46: acp saúde modelo recente elaine

problemas financeiros, em face da escassez de recursos, o

que soa falso em face dos gastos publicitários que se vê nos

meios de comunicação, apregoando obras e realizações

governamentais (...)”. Citando o Ministro Celso de Mello em

caso também relativo à saúde: “A singularidade do caso (...), a

imprescindibilidade da medida cautelar concedida pelo Poder

Judiciário do Estado de Santa Catarina (...) e a

impostergalidade do cumprimento do dever político

constitucional que se impõe ao Poder Público, em todas as

dimensões da organização federativa, de assegurar a todos a

proteção à saúde CF, art. 6º, c.c art. 227, Parágrafo 1º)

constituem fatores que, associados a um imperativo de

solidariedade humana, desautorizam o deferimento do pedido

ora formulado pelo Estado de Santa Catarina (...). Entre

proteger a inviolabilidade do direito à vida, que se qualifica

como direito subjetivo inalienável assegurado pela própria

Constituição da República (art. 5º, caput), ou fazer

prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um

interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma

vez configurado esse dilema – que razões de ordem ético-

jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: o

respeito indeclinável à vida”.

“...Sendo a saúde direitos e dever do Estado (CF, art. 196,

CE, art. 153), torna-se o cidadão credor desse País para o

tratamento reclamado. A existência de previsão orçamentária

própria é irrelevante, não servindo tal pretexto como escusa,

uma vez que o executivo pode socorrer-se de créditos

adicionais. A vida, Dom maior, não tem preço, mesmo para

uma sociedade que perdeu o sentido da solidariedade, num

mundo marcado pelo egoísmo, hedonista e insensível.

Contudo, o reconhecimento do direito á sua manutenção (...)

não tem balizamento caritativo, posto que carrega em si

mesmo, o selo da legitimidade constitucional e está ancorado

em legislação obediente àquele comando” (TJSP, Des. Xavier

Vieira, Agravo de Instr. Nº 96.012721-6).

46

Page 47: acp saúde modelo recente elaine

“A respeito, cabe ver que a Portaria nº 21, de 21.3.95, do

Ministério da Saúde, já recomendava a utilização da

combinação de novos medicamentos com o então conhecido

AZT, de modo que, somente atribuível à incúria da

Administração não ter ela já licitado, - inclusive com

previsão orçamentária – de modo a permitir, de modo

continuado, o fornecimento de tais medicamentos aos dele

necessitados, em quantidades adrquadas. Portanto, não

socorre a agravante o argumento de necessidade de licitação

prévia ou previsão orçamentária, muito menos cabe-lhe

colocar em dúvida a eficácia dos remédios em questão, os

quais, aliás, são sempre receitados pelos médicos” ( Agravo

de Instrumento nº 82.036-5, 8ª Câm. Dir. Público do TJSP,

Rel. José Santana).

Como se percebe, mostra-se irrelevante eventual falta de

prévia dotação orçamentária prevendo o atendimento integral do adolescente.

Consoante enfatiza com lucidez João Angélico (contabilidade

Pública , Ed. Atlas, pág. 35), “durante a execução orçamentária, o Poder Executivo

pode solicitar ao Legislativo, e este conceder, novos créditos orçamentários. Eles serão

adicionados aos créditos que integram orçamento em vigor. Por essa razão,

denominam-se créditos adicionais. Os créditos adicionais aumentam a despesa pública

do exercício, já fixada no orçamento”.

Por fim, vale tanscrever parte da obra de Germano Schwartz

(Direito à Saúde – Efetivação em uma Perspectiva Sistêmica, pág. 80/81, Ed. Livraria

do Advogado):

“...Não é por falta de aporte financeiro que o Estado poderá

se eximir de seu dever. A saúde reclama prestação sanitária

tão-somente. Sarlet (1998), a respeito da negação das

prestações sanitárias com base na ausência orçamentária

estatal, refere que: “em relação aos habituais argumentos da

ausência de recursos e da incompetência dos órgãos

judiciários para decidirem sobre a alocação e destinação de

47

Page 48: acp saúde modelo recente elaine

recursos público, não nos parecer que esta solução possa

prevalecer, ainda mais nas hipóteses em que está em jogo a

preservação da vida humana (p. 298).Ora, a hipótese de não-

existência de previsão orçamentária não pode ser alegada

pelo Estado, até porque não se pode antever com eficácia as

necessidades da população, ou ainda, de outa banda, não se

pode favorecer a omissão do ente responsável, premiando-o

por sua negligência e/ou inércia. Ao se referir ao Sistema

Único de Saúde e à sistemática sanitária brasileira instalada

pela CF/88, Cláudio Barros Silva (1995) se posiciona

expressamente quanto à impossibilidade de condicionantes

para o exercício do direito à saúde: “Como consequência do

sistema, o acesso à assistência, à saúde, passou a ser

universal e igualitário, não havendo, por ser direito subjetivo

do cidadão, qualquer condicionante ao exercício. O papel do

Estado é garantir a satisfação desse direito público subjetivo”

(p.100).

O Supremo Tribunal Federal – STF, em acórdão nos autos do

Agravo Regimental em Agravo de Instrumento nº 238.328-0 (Julgado em 16.11.99),

no voto do Relator Ministro Marco Aurélio, quando provocado a se pronunciar sobre a

matéria, afirmou que a falta de dispositivo legal para o custeio e distribuição de

remédios para AIDS não impede que fique comprovada a responsabilidade do Estado,

pois “decreto visando-a não poderá reduzir, em si, o direito assegurado em lei”. E,

esclareça-se desde já, com base no art. 23 da CF/98, que o cidadão pode demandar

contra qualquer dos entes federados na busca da proteção de saúde:

“SAÚDE PÚBLICA. FORNECIMENTO GRATUITO DE

MEDICAMENTOS POR ENTIDADE PÚBLICA

MUNICIPAL PARTICIPANTE DO SUS. CONCESSÃO DE

TUTELA ANTECIPADA EM PLEITO ORDINÁRIO.

DIREITO À VIDA. DEVER COMUM DOS ENTES

FEDERADOS. ARTS. 196 E 198 DA CONSTITUIÇÃO

FEDERAL. PRECEDENTES PRETORIANOS. AUSÊNCIA

DE PREVISÃO ORÇAMENTÁRIA QUE NÃO PODE

PENALIZAR O CIDADÃO. AGRAVO NÃO PROVIDO.

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DECISÃO CONFIRMADA. AS entidades federativas têm o

dever ao cuidado da saúde e da assistência pública, da

proteção e garantia das pessoas portadores de deficiência de

saúde, a teor do disposto no art. 23 da Constituição Federal.

Assim, não se pode prestar à fuga de responsabilidade a mera

arquição de violação ao princípio do orçamento e das normas

de realização de despesa pública, quando verificado que o

Estado, na condição de instituição de tributo especial dirigido

a suplementar verbas da saúde, não o faz com competência

devida”. (Agravo de Instr. Nº 1999.002.12096, 9ª Câm. Cível,

TJRJ, Rel.: Des. Marcus Tullius Alves, Julgado em

02.05.2000)”.

III- Dos Pedidos

III.1 – Do Pedido de Tutela Antecipada

A assistência e o atendimento da saúde, por guardarem estreita

relação com a manutenção da vida humana, são sempre relevantes e urgentes. Diante

da urgência reclamada pela espécie, requer-se a concessão da antecipação dos efeitos

da tutela pretendida, nos termos do disposto nos artigos 273, inciso I, e 461 do

Código de Processo Civil, e 84, parágrafo 3º, do Código de Defesa do Consumidor.

O deferimento da antecipação da tutela impõe-se, porquanto o

provimento da pretensão, somente ao final, poderá ser inócuo para prevenir os danos à

saúde e à vida de Washington Campos Prado, ou seja, o não deferimento da

antecipação da tutela provocará a morte do paciente, pois o impedirá de realizar

transplante de fígado.

Relevante é o fundamento da lide, pois se pretende, em última

análise, a manutenção da vida e da saúde de um ser humano.

Na hipótese dos autos, encontram-se presentes os requisitos

para a concessão da antecipação da tutela, inaudita altera parte, na forma prevista no

art. 12, da Lei na 7.347/85 e no artigo 273, inciso I, do Código de Processo Civil, haja

vista a presença do fumus boni juris e do periculum in mora.

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É importante ressaltar que, em razão da ameaça iminente de

perecimento do direito, não há necessidade de manifestação do réu, podendo ser

concedida a antecipação da tutela inaudita altera parte, mesmo diante do disposto no

artigo 2º, da Lei nº 8.437/92.

O fumus boni juris está caracterizado pela previsão

constitucional e legal acerca do direito do paciente receber tratamento adequado, de

modo a ter respeitados seus direitos à vida, à saúde e à dignidade, os quais são

violados por omissão do Município de Ribeirão das Neves.

Presente, também, o periculum in mora, visto que Washington

Campos Prado necessita da realização dos exames de tomografia computadorizada do

abdome e angiotomografia para realizar transplante de fígado.

Verifica-se, pelo documento referente à visualização de

solicitação de transferência (fls. ___), que a solicitação é prioritária em razão do risco

de morte da paciente.

Além disso, os relatórios médicos de fls. ___, subscritos em

_____, revelam a evolução com piora do estado de saúde do idoso apresentando, hoje,

deteriorização progressiva da função renal, necessitando da realização de diálise,

equipamento não existente no Município, além de permanecer intubada e colocada em

ventilação em razão da apresentação de pneumonia.

Assim, é imperativo que se conceda a tutela antecipada, sem a

oitiva da parte contrária, sob pena de danos de difícil reparação, bem como de graves

prejuízos à vida de Elaine, que está doente e necessita de tratamento médico eficiente.

Por essas razões, a tutela antecipada deverá fixar multa diária

de R$ 10.000,00 ( dez mil reais) a ser recolhida em favor do fundo de que trata o art.

13 da Lei nº. 7.347/85 para o caso de descumprimento da decisão judicial com o não

fornecimento do medicamento.

Diante todo o exposto, restando evidente a violação ao

direito à vida, à saúde e à dignidade do ser humano, o Ministério Público requer:

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A concessão de tutela antecipada, inaudita altera parte ,

para determinar que o réu forneça os medicamentos xxxx, no prazo de 72

(setenta e duas) horas.

III.2 – Dos pedidos principais.

Concedida a tutela antecipada, requer:

1- a prioridade na tramitação do

presente processo, nos termos do artigo 71, e seu parágrafo 1°, da Lei 10.741/03;

2- a citação do Estado de Minas Gerais e do Município de

Ribeirão das Neves, na pessoa de seus representantes legais, para, querendo, responder

a presente ação, no prazo que lhe faculta a lei, sob pena de revelia.

3- Que, ao final, seja julgado procedente o presente pedido,

determinando-se que o réu forneça todo o tratamento à paciente Elaine , incluindo

medicação, cirurgia (se for necessário), entre outros tratamentos, fixando-se, na

sentença, multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais) a ser recolhida em favor do

fundo de que trata o art. 13 da Lei nº. 7.347/85, para o caso de descumprimento da

decisão judicial, bem como condenando-se o requerido ao pagamento das custas e

demais cominações legais.

Protesta provar o alegado por todos os meios de prova em

direito admitidos, mormente a documental, pericial e testemunhal, cujo rol será

depositado em cartório no prazo facultado pelo art. 407, do CPC, e o depoimento

pessoal do representante legal do requerido.

Dá à causa o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais).

Termos em que,

Pede Deferimento.

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Ribeirão das Neves, 17 de junho de 2011.

Marcelo Dumont Pires Promotor de Justiça

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