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A Voz do Imigrante, do Caipira e do Iletrado na Poesia Satírica de Juó Bananére Gabriel da Silva Conessa (Graduação em Letras, UNESP/Assis) 1 [email protected] Resumo: Neste artigo pretendo demonstrar que a poesia macarrônica de Juó Bananére produzida durante a Belle Époque, contribuiu, às vésperas do Modernismo, para a negação dos valores formais em que repousava a nossa literatura fazendo-o, inclusive, ao introduzir em seus versos satíricos a voz descontente das ruas, a fala do caipira iletrado e do imigrante estrangeiro. Sua escrita confrontava uma literatura que insistia em conservar o purismo da língua portuguesa, como ele mesmo revelou em uma crônica publicada n´O Pirralho em 13/07/1912, ao tentar definir sua fala anárquica: “[...] a artugrafia muderna é una maneira di scrivê, chi a gente scrive uguali come dice.” Palavras-Chave: Juó Bananére; Sátira; Belle Époque. Abstract: In this article I intend to demonstrate that Juó Bananére’s macaronic poetry produced during the Belle Époque contributed on the modernism’s eve, to the denial of the formal values on which our literature rested, doing it even when introducing in its satirical verses the disgruntled voice of the streets, the illiterate hick’s speech and the foreign immigrant’s speech. His writing confronted a literature that insisted on preserving the Portuguese language’s purism, as he himself revealed in a pu chronicle published on June 13, 1912, when trying to define his anarchic speech: “ [...] a artugrafia muderna é uma maneira di scrivê, chi a gente scrive uguali come dice.” Keywords: Juó Bananére; satire; Belle Époque. Breve apresentação de Juó Bananére Em O Pirralho, periódico semanal fundado em 1911 e dirigido por um dos poetas mais proeminentes da primeira geração do Modernismo, Oswald de Andrade, o engenheiro Alexandre Ribeiro Marcondes Machado se metamorfoseia, tornando-se Juó Bananére, pseudônimo que adota para exprimir-se a partir de uma linguagem macarrônica elaborada na contramão da linguagem literária vigente nas primeiras décadas do século XX. Essa linguagem, além de exceder todos os paradigmas da norma padrão do português brasileiro, constituiu-se uma reação à estética dos poetas parnasianos e românticos. Bananére se autodenominava verdadeiro “ridente” e se auto intitulava, sarcasticamente, “Poeta”, “Barbiére”, “Giurnaliste” e “gandidato à Gademia Bolista de Letras”. A língua 1 Esta comunicação é parte integrante da minha pesquisa de Iniciação Científica “De foz em foz: Um estudo da poesia satírica de Bernardo Guimarães e Juó Bananére”, financiada pela Fapesp – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, processo n. 2017/06882-6.

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Page 1: A Voz do Imigrante, do Caipira e do Iletrado na Poesia ... · A Voz do Imigrante, do Caipira e do Iletrado na Poesia Satírica de Juó Bananére Gabriel da Silva Conessa (Graduação

A Voz do Imigrante, do Caipira e do Iletrado na Poesia Satírica de Juó Bananére

Gabriel da Silva Conessa

(Graduação em Letras, UNESP/Assis)1

[email protected]

Resumo: Neste artigo pretendo demonstrar que a poesia macarrônica de Juó Bananére

produzida durante a Belle Époque, contribuiu, às vésperas do Modernismo, para a negação dos

valores formais em que repousava a nossa literatura fazendo-o, inclusive, ao introduzir em seus

versos satíricos a voz descontente das ruas, a fala do caipira iletrado e do imigrante estrangeiro.

Sua escrita confrontava uma literatura que insistia em conservar o purismo da língua

portuguesa, como ele mesmo revelou em uma crônica publicada n´O Pirralho em 13/07/1912,

ao tentar definir sua fala anárquica: “[...] a artugrafia muderna é una maneira di scrivê, chi a

gente scrive uguali come dice.”

Palavras-Chave: Juó Bananére; Sátira; Belle Époque.

Abstract: In this article I intend to demonstrate that Juó Bananére’s macaronic poetry

produced during the Belle Époque contributed on the modernism’s eve, to the denial of the

formal values on which our literature rested, doing it even when introducing in its satirical

verses the disgruntled voice of the streets, the illiterate hick’s speech and the foreign

immigrant’s speech. His writing confronted a literature that insisted on preserving the

Portuguese language’s purism, as he himself revealed in a pu chronicle published on June 13,

1912, when trying to define his anarchic speech: “ [...] a artugrafia muderna é uma maneira di

scrivê, chi a gente scrive uguali come dice.”

Keywords: Juó Bananére; satire; Belle Époque.

Breve apresentação de Juó Bananére

Em O Pirralho, periódico semanal fundado em 1911 e dirigido por um dos poetas mais

proeminentes da primeira geração do Modernismo, Oswald de Andrade, o engenheiro

Alexandre Ribeiro Marcondes Machado se metamorfoseia, tornando-se Juó Bananére,

pseudônimo que adota para exprimir-se a partir de uma linguagem macarrônica elaborada na

contramão da linguagem literária vigente nas primeiras décadas do século XX. Essa linguagem,

além de exceder todos os paradigmas da norma padrão do português brasileiro, constituiu-se

uma reação à estética dos poetas parnasianos e românticos.

Bananére se autodenominava verdadeiro “ridente” e se auto intitulava, sarcasticamente,

“Poeta”, “Barbiére”, “Giurnaliste” e “gandidato à Gademia Bolista de Letras”. A língua

1 Esta comunicação é parte integrante da minha pesquisa de Iniciação Científica “De foz em foz: Um estudo da poesia satírica de Bernardo Guimarães e Juó Bananére”, financiada pela Fapesp – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, processo n. 2017/06882-6.

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macarrônica, elaborada por ele, consistia especificamente em um hibrido do português

coloquial brasileiro com o dialeto falado pelo imigrante italiano, especialmente o napolitano,

já domando pelo caboclismo. Bananére abalroa de frente com a linguagem dos poetas

consagrados, especialmente com a linguagem automatizada do parnaso, que ainda imitava os

moldes do padrão literário europeu. Além disso, Bananére incorpora à sua escrita anárquica a

voz de uma vasta camada da população que ainda não era representada na literatura brasileira:

os imigrantes italianos, os trabalhadores que migravam das fazendas para a metrópole, e o

caipira.

As definições para o nome do poeta Juó Bananére vão desde a expressão vulgar de “dar

bananas” aos adversários, como também encontra uma explicação que nos parece bastante

arguta, solidamente fundamentada nos estudos de Elias Tomé Saliba (1922), segundo o qual,

por esta perspectiva, o nome do poeta estaria ligado à cultura caipira, ao apelido de “João

Bananeiro”, denominação que se fazia presente no uso de tratamento pelos indivíduos que

frequentavam os círculos da literatura regional. Ainda sobre a definição da nomenclatura em

questão, o poeta se apropria do discurso em O Pirralho (1917) para, com irreverência,

manifestar uma explicação sobre a origem de seu nome, fazendo-o durante uma descrição

irreverente do brasão de armas criado por ele:

As bananêra di lado só p’ra aripresentá u migno nomino i també p’ra dá fruita

p’rus troxa. Nu centro stó io chi só u dono di “brazo” i giunto cumigo stó u

piedadó i u capitó chi só as duas principale du Juó Minhoca politico andove

stó io o imprezario, i tambê por causa chi furo illos chi serviro di s’cada p’ra

mim subi p’ra groria du giurnalismo indigena! Non Cotuca! É a migna

indivisa, pur causa chi io sô molto camarada, ma buliu cumigo é a mesima

cósa chi mexê con una caza di marimbondi!! Dô u strilimo! (BANANÉRE,

1917).

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Como podemos concluir, com base no excerto acima, o nome de Bananére não se limita

apenas à imitação da voz do caipira ou do imigrante italiano em processo de aprendizagem da

língua portuguesa, mas também expressa uma visão de mundo que, passando pelo filtro cômico

do jornalista, castiga a sociedade paulistana, os coronéis e os políticos republicanos da época.

No brasão imaginado por Bananére podemos ler o lema paródico “Non Cotuca!”, alusão

satírica ao lema presente no brasão da cidade de São Paulo “Non Ducor Duco”, expressão latina

que significa "Não sou conduzido, conduzo". Segundo Bananére, as bananeiras que flanqueiam

o brasão servem para representar não apenas o seu nome, mas também para “dar banana pro´s

trouxas”.

As figuras que o rodeiam, estampadas no brasão, são, na verdade, coronéis e políticos

influentes da época, como o “piedadó” e o “capitó”. O primeiro trata-se do Coronel José

Piedade, que tinha se candidatado às eleições federais de 1912 com o apoio dos oficiais da

Guarda Nacional, segundo O Estado de S. Paulo de 25 de janeiro de 1912, p. 10. O segundo

trata-se do “Rodorfo”, ou capitão Rodolfo Miranda, senador por São Paulo na época.

Pelo fato de ter praticamente caído no esquecimento, Cristina Fonseca (2001, p. 73)

propõe que Juó Bananére seja tirado definitivamente “do limbo folclórico a que foi relegado”

para que “seus procedimentos estéticos precursores em relação aos modernistas de 22” sejam

reconhecidos. Falando em defesa da revisão da obra cômica do poeta, Fonseca (2001, p. 64)

coloca os textos de Bananére lado a lado das obras mais modernas das vanguardas do século

XX, pelo fato de já tenderem, precursoramente, para as experiências da pintura, da fotografia

e dos modernos meios de comunicação. Além disso, observa Fonseca (2001, p. 64-65),

Ao buscar um novo campo de relações e possibilidades para a linguagem

dentro do jornalismo, Juó Bananére estava redimensionando a literatura para

uma nova era, em que ela utilizaria outros critérios estruturais e questionaria

o próprio livro como suporte instrumental do poema. Bananére propôs a

paródia como criação e pairou entre o jornalismo e a literatura, numa arte

inédita. Ao mesmo tempo, uma feroz “antiarte”.

Ao introduzir na literatura a voz do imigrante iletrado e às voltas com a aprendizagem

da língua portuguesa acaipirada, Bananére propõe, às vésperas da Semana de Arte Moderna de

1922, um novo “jeito” de fazer literatura, haja vista que a produção poética vigente, romântica

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e parnasiana, não dava mais conta de expressar a nova realidade social e cultural que

despontava no horizonte da cidade de São Paulo.

A descontrução da estética parnasiana por meio da miscelânea ítalo-caipira de Bananére

O Parnasianismo nasce de um esforço bastante moderno de reconhecimento de que

fazer poesia é se dedicar a uma atividade, sobretudo intelectual, se contrapondo à poesia

romântica. As orientações antirromânticas que se inscrevem na literatura brasileira, a partir dos

anos 70 do século XIX, representam uma passagem da literatura romântica para a literatura

moderna, de modo que podemos dizer que essa época se constitui como a antessala da

modernidade na cultura brasileira.

Anteriormente à Semana de 22 surge no cenário literário paulistano a figura de um

poeta-jornalista ou jornalista-poeta que julgamos como sendo de suma importância para a

recepção de novas ideias no âmbito da literatura nacional, Juó Bananére. No contexto de

transição da poesia parnasiana, realista e romântica para a poesia moderna é essencial

recuperarmos a contribuição deste poeta para fomentarmos uma breve reflexão sobre o que

ocorria entre uma estética e outra, pois Bananére contribuiu inegavelmente, às vésperas do

Modernismo, para a delineação de uma nova literatura. Sua escrita macarrônica preparou o

terreno para a aceitação de novas ideias, levando-se em consideração que seus escritos

contribuíram para a desconstrução de uma corrente de produção poética que ainda bebia das

fontes europeias entre os séculos XIX e XX.

Bananére foi um poeta satírico que com muita propriedade contribuiu para a subversão

do pensamento elitista da época. Sua sátira, bastante combativa, se opôs à corrupção que

caracterizava a política de seu tempo, configurando uma espécie de sátira progressista que

prezava por um futuro mais ameno. Ainda neste aspecto, vemos na produção de Alexandre

Machado uma sátira de inclusão, uma vez que se considerava o porta-voz da colônia italiana

na metrópole, fazendo-o por denunciar, por meio de sua fala anárquica, a condição de

desenraizados sociais em que se encontrava tanto o imigrante italiano como o caipira recém-

chegado à metrópole. Ainda por esse viés vale ressaltar a contribuição de Sylvia Helena

Telarolli de Almeida Leite, que nos parece bastante esclarecedora quanto à contribuição de

Bananére na desconstrução das velhas formas literárias e na correção moral dos vícios e

mazelas que acometiam a sociedade brasileira no começo do século XX:

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Por ser o cronista da cidade e do seu tempo, predomina, entretanto, a intenção

ridicularizadora nas sátiras de Bananére, provocativas, insolentes, visando ao

castigo do vício e da corrupção, de modo antiexemplar, em mordazes

caricaturas, por meio do riso de rejeição, e o desvelamento de estruturas

arcaicas de pensamento ainda vigente detectados na afetação da literatura

ultrapassada, mas ainda apreciada na época, e satirizada pelo escritor em

paródias inclementes. (LEITE, 1996 p.155).

A primeira publicação de Bananére, intitulada La Divina Increnca, e cuja primeira

edição saiu em 1915, é uma paródia modernista da Divina Comédia, de Dante Alighieri. Neste

livro de Bananére forma e conteúdo caminham lado a lado, pois, se por um lado temos uma

temática moderna, no outro temos uma linguagem macarrônica que dessacraliza os padrões

literários. Nos poemas que compõem essa coletânea, Bananére parodia os poetas, românticos

e parnasianos, que ainda se pautavam na forma e escreviam nos moldes da literatura clássica.

Dentre a sua produção literária interessa-nos fazer um recorte para evidenciar uma paródia que

tem como plano de fundo o soneto “Ouvir Estrelas”, de Olavo Bilac, um dos poetas que

compunham a aclamada tríade parnasiana:

“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo

Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,

Que, para ouvi-Ias, muita vez desperto

E abro as janelas, pálido de espanto…

E conversamos toda a noite, enquanto

A via láctea, como um pálio aberto,

Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,

Inda as procuro pelo céu deserto. (BILAC, 2002. p. 37-55).

Na poesia de Bilac é evidente a obsessão de valores estéticos que retomam o modelo da

poesia clássica cujos procedimentos se refletem, no poema, pelo cuidadoso trabalho com a

linguagem, revelando uma estética rigorosamente trabalhada. No soneto intitulado “A um

poeta”, por exemplo, manifesta-se, ao longo dos versos, a ideia de que compor poesia é um

trabalho árduo e que no exercício desta função inveja o Ourives que com muita cautela lapida

a pedra bruta, transformando-a em uma joia, esboçando a ideia de que o poeta parnasiano,

diante do vasto léxico da língua portuguesa, é seletivamente rigoroso na escolha das palavras

para compor o seu soneto. Ainda sobre a questão das formas, predomina em sua poética a

preferência pelas formas fixas “soneto”, uma forma clássica do gênero lírico. Em contrapartida,

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Bananére propõe uma desconstrução do modelo formal ao incorporar a voz do imigrante

italiano, em seu processo de assimilação da língua portuguesa, na continuação da sátira a Bilac:

Che scuitá strella, né meia strella!

Vucê stá maluco! E io ti diró intanto,

Chi p´ra iscutalas molta veiz livanto,

I vô dá uma spiada na gianella.

I passo as notte acunversáno co´ella,

Iguanto che as otra lá d’un canto

Stó mi spiano. I o sol come un brigilianto

Nasce. Oglio p´ru céu - cadê strella?!

(BANANÉRE, 2001, p. 25).

Como podemos ver, o poema de Bananére mais do que temático é estrutural, além de

tratar de temas que rompem com a tradição do poeta parnasiano, ele ainda apresenta uma

estrutura de poesia moderna que foge totalmente às formas fixas e à estética da linguagem

literária consolidada na época, a qual procurava retomar os modelos clássicos.

Uma análise atenta da poética de Bananére nos leva a concluir que sua poesia vai além

do fato de romper com a tradição parnasiana, pois, ao imitar a fala do imigrante italiano recém-

chegado à metrópole, ele também dá voz ao povo, valoriza as vozes da rua, dos salões, das

praças. À época de Bananére, a cidade de São Paulo contemplava pluralidade de etnias e

culturas formadas não só por italianos, mas estrangeiros de diversas nacionalidades, caipiras e

nativos que mal sabiam se expressar na língua culta. Centenas desses indivíduos chegavam à

metrópole todos os dias, ocupavam os centros urbanos, e como muitos italianos aprendiam o

português nas periferias das fazendas, sucedeu que o aprenderam com as inflexões do dialeto

falado pelo caipira, como nos informa Otto Maria Carpeaux (2001, p. xii-xiii):

A língua parnasiana dos “cartolas” de São Paulo não podia ser a mesma da

classe mais pobre do Estado, dos recém-imigrados italianos. Deliberadamente

ou não, Juó Bananére usou a linguagem macarrônica ítalo-portuguesa dessa

gente para ridicularizar os “cartolas” cujo reino acabou em 1929.

Carpeaux (2001) contribui para uma delineação mais precisa dessa incorporação da voz

do outro na literatura paulista ao afirmar que existe uma relação entre língua e classe, sendo

assim, cada classe social tem sua manifestação particular no que diz respeito à linguagem.

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Diante destes fatos, sabemos que o falar dos caipiras e imigrantes italianos que se mudavam

para a metrópole em busca de uma melhor remuneração estava longe de ser a mesma fala dos

indivíduos que constituíam a elite da época. Vale ressaltar também que o parnasianismo estava

muito mais preocupado em atender o gosto de uma classe social que começa a se aburguesar

no Brasil, tentando construir uma poesia elitista. Em contrapartida, Bananére escreve na língua

menos apreciada pelas elites, a língua do italiano, já domada pelo caboclismo.

A antilira de Bananére no contexto da belle époque paulistana

Pensar em uma Belle Époque paulistana nos condiciona de imediato pensar em uma

pluralidade de vozes e culturas que coexistiam na cidade de São Paulo na época que ainda era

uma cidade em processo de expansão. Segundo Nicolau Sevcenko (1992), nessa época parte

da população da cidade compunha-se de um número significante de imigrantes italianos, negros

e indivíduos que saiam das lavouras de café em busca de uma melhor remuneração na

metrópole confusa e caótica:

São Paulo não era uma cidade de negros, nem de brancos e nem de mestiços;

nem americana, nem europeia, nem nativa; nem era industrial, apesar do

volume crescente das fábricas, nem entreposto agrícola, apesar da

importância crucial do café [...], não era ainda moderna, mas já não tinha

passado. [...] era um enigma para seus próprios habitantes, perplexos,

tentando entendê-lo como podiam, enquanto lutavam para não serem

devorados. (SEVCENKO, 1992, p. 31).

O historiador Elias Thomé Saliba salienta que as raras cenas urbanas mais

características da São Paulo do início do século XX, captadas pelos fotógrafos da época, não

revelam nada de espetacular:

[...] enormes contingentes de ex-escravos passam a conviver com os colonos

italianos, que deixavam as fazendas para sobreviver de pequenos expedientes

na cidade. Leiteiros, padeiros, peixeiros, tripeiros, carvoeiros, lenheiros,

ambulantes dos mais diversos tipos, com seus refrões sonoros e matreiros,

percorrem as ruas mal alinhadas de uma cidade de geografia ainda incerta e

precária, formada por chácaras e antigos quilombos, ranchos e choças,

pardieiros e cômodos de aluguel, que contrastavam comas primeiras

avenidas, sobrados e estações de trem – enfim, cenas de uma cidade que

“inchava” mais do que crescia, na esteira de uma urbanização mais

espontânea do que organizada. (SALIBA apud MORAES, 1997, p.14).

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Levando em consideração que Bananére foi uma testemunha ocular desse estado de

coisas, Francisco Cláudio A. Marques (2004, p. 37) salienta que “Os artigos ítalo-caipiras de

Bananére circulam exatamente neste momento de redefinição de uma cidade que se vê às voltas

como uma série de mudanças que mal se ajustavam às ruas e becos ainda fortemente marcados

por costumes e tradições do século anterior”.

Até um olhar livre de uma análise profunda da produção literária de Bananére nos

levaria a perceber o uso estratégico de uma linguagem marcada por uma carga ideológica

totalmente anárquica. Basta citarmos um trecho da crônica intitulada “A migraçó” para

percebermos a crítica ao sistema por trás da máscara verbal usada por Bananére:

A migraçó

Istu affare da migraçó stá proprio una porcheria. Ninguê si comprende. A

gente sái da Italia dove tê u ré, a vamiglia, o Giolitti ecc. ecc. e dove non tê o

Lacarato e né Capitó i intó s´imbarga ingoppa o navilio pur causa di vigná

afazé a America. Aora, quando a genti tê xigado in Santos, inveiz faiz a peste

bobóniga, a bescigga, a vebre marella ecc. Disposa a genti vê p´ra spettoria

da migraçó, dove a genti apanha una sova tuttos dí di manhá cidinho p´ra si

alivantá. Illos manda a genti lavá a gaza, dá di mangiá p´ro gaxoro, butá acqua

p´ras galligna ecc. Quando illos té cavado imprego p´ra genti, a genti vá p´ra

facenda garpiná o gaffé; garpina i quando vê o fí do meiz, buta uno puntapé

p´ra genti i non apaga nada. Ma che figlio da máia. Io giá vó aparlá p´ros

minhos patrizio di non vim pur aqui pur causa che qui non si faiz maise a

Ameriga. Io per insempio, fais quaranta quattros anno che stó alavorando, só

barbiere, sanfoniste i giornaliste i non fiz inda a Ameriga. (BANANÉRE,

1913, p. 19).

A língua macarrônica elaborada pelo poeta recria não somente os dialetos que compõe

o léxico do português brasileiro, mas também as construções. Na criação desta linguagem

hibrida, o engenheiro Alexandre Ribeiro Marcondes Machado fazia a transcrição gráfica

daquelas vozes tais como eram percebidas foneticamente, e, dado o contexto que estava

inserido, redesenhar a grafia da fonética da população implica dizer também reproduzir um

dialeto “caipira”, produto do grupo iletrado que fazia parte da sociedade paulista da época.

Uma grande parte dos indivíduos que imigravam ou migravam para a metrópole eram

analfabetos ou semianalfabetos, de modo que, conhecendo pouco as regras do português

escrito, falam com o acento caipira de sua região, enquanto os imigrantes italianos que saíam

das fazendas para morar no centro urbano tinham aprendido o português com o sotaque caipira,

como nos faz entender Saliba (1992, p. 54):

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Só há uma coisa constante nesta língua caricatural de Bananére: ela reproduz

graficamente tudo aquilo que capta foneticamente. Ora, captar foneticamente

a fala paulista da época era captar também uma fala caipira, proveniente de

traços já existentes no linguajar, embora dificilmente perceptíveis.

Segundo Wilma da Silva Vitalino (2004, p. 36), o tom caipira que sentimos nas crônicas

de Bananére, especialmente quando as lemos em voz alta, deve-se ao fato de que a língua

elaborada por ele parte da percepção da linguagem falada nas ruas de São Paulo, no início do

século XX.

Sabemos que os italianos recém chegados misturavam sua língua materna aos

registros que os paulistas usavam, e entre esses está a fala caipira e formas

menos corretas, de acordo com a gramática brasileira. Observamos algumas

dessas formas: “nois briguemos e fiquemos di male”, “lugar carmo”,

“incruzivio”, “ponhô tuttos”, “anda sorto pur ahi”, “p´ra iscuitá”, “scritto no

papé”, “gandidato inlegido”, “maise piquena na ponta”. (VITALINO, 2004,

p. 36-37).

Bananére, um arguto observador de seu tempo, percebeu o clima mental e a cultura

multifacetada vigente na Belle Époque paulista, tendo se valido disso para elaborar sua poesia.

Ao utilizar estrategicamente a voz do caipira, o português acaipirado e afala estropiada do

imigrante italiano na construção de suas crônicas, Bananére pretendia criticar os políticos da

era republicana e ao mesmo tempo introduzir novos falares na literatura. Dessa maneira,

Bananére não só desconstrói o cânone parnasiano e romântico como também prepara o terreno

para a inclusão da voz do outro, do estrangeiro, algo que seria levado a cabo logo depois pelos

escritores modernistas como António de Alcântara Machado, Mário de Andrade e Oswald e

Andrade. Alexandre Ribeiro teve sensibilidade para perceber o que muitos ainda ignoravam: o

imigrado italiano como um forte componente da transformação que marcaria profundamente o

perfil da cidade de São Paulo.

De acordo com Francisco C. A. Marques (2004, p. 24),

[...] a sátira de Bananére se caracterizou por inserir o imigrante italiano nas

letras nacionais, incorporando a voz e o comportamento desse elemento e, de

certa forma, incluindo-o, pelo viés do humor etnocêntrico, à mescla

constituinte da nossa formação racial. Assim representada, a voz do imigrante

é tomada como álibi pelo poeta-jornalista na denúncia das mazelas sociais e

dos desmandos dos políticos da época, entrando em desacordo com a voz do

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elemento nacional representado pelo caipira, concebido pela literatura

regionalista como um ser acomodado, quieto, apático e indiferente à realidade

política e social.

Na condição de álibi do poeta, complementa Francisco C. A. Marques (2004, p. 24),

“essa terceira pessoa do discurso irreverente passa a isentá-lo de todas as tomadas de posição

contra a mentalidade estanque de alguns representantes da cultura oficial que ainda insistiam

em preservar costumes anacrônicos”. Assim, entre os políticos mais castigados pela sátira de

Bananére, foi o general Hermes da Fonseca, como no soneto “Cirgolo Viziozo”, paródia ao

poema “Círculo Vicioso”, de Machado de Assis:

O Hermeze un di aparlô:

- Se io éra aquilla rosa che stá pendurada

Nu gabello da mia anamurada,

Uh! Che bô!

A rosa tambê scramô,

Xuráno come un bizerigno:

- Se io éra aquillo gaxorigno,

Uh! Che brutta cavaçó!

I o gaxorigno pigô di dizê:

- Se io fossi o Piedadô,

Era molto maise bô!

Ma o Garonello disse tambê

Triste come un giaburú:

- Che bô se io fosse o Dudú! (BANANÉRE, 2001, p. 5).

A crítica é feita não apenas ao general Hermes da Fonseca, mas a todos os seus

correligionários, o “Garonello”, Coronel Piedade, o “Piedadô”, e a outros não nominados no

poema ou citados apenas pelo apelido, como o “Dudú”.

Ao ridicularizar muitos dos valores formais em que repousava nossa literatura,

Bananére preparou terreno para o Modernismo, fazendo-o, sobretudo, ao parodiar muitos

poemas consagrados pela literatura oficial. A título de ilustração, citamos o soneto “Migna

Terra”, em que Bananére parodia a “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias:

Migna terra tê parmeras,

Che ganta inzima o sabiá,

As aves che stó aqui,

Tambê tuttos sabi gorgeá.

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A abobora celestia tambê,

Chi tê lá na mia terra,

Tê moltos millió di strella

Chi non tê na Ingraterra. (BANANÉRE, 2001, p. 8).

Ou ainda “Amore co Amore si Paga”, paródia do soneto de Bilac “Nel mezzo del

camin...”:

Xiguê, xigaste! Vigna afatigada i triste

I triste e afatigada io vigna;

Tu tigna a arma povolada di sogno,

I a arma povolada di sogno io tigna.

Ti amê, m´amasti! Bunitigno io éra

I tu tambê era bunitigna;

Tu tigna uma garigna di féra

E io di féra tigna uma garigna.

Una veiz ti begiê a linda mó,

I a migna tambê vucê begió.

Vucê mi apisô nu pé, e io non pisê no da signora.

Moltos abbraccio mi deu vucê,

Moltos abbraccio io tambê ti dê.

U fora vucê mi deu, e io tambê ti dê u fora. (BANANÉRE, 2001, p. 11).

“Uvi strella”, paródia ao soneto “Via láctea”, de Bilac, é uma das mais sátiras mais

contundentes saídas da pena de Bananére:

Che scuitá strella, né meia strella!

Você stá maluco! e io ti diró intanto,

Chi p´ra iscuitalas moltas veiz levanto,

I vô dá una spiada na gianella.

I passo as notte acunversáno c´oella,

Inguanto che as outra lá d´un canto

Stó mi spiano. I o sol come un briglianto

Naçe. Oglio p´ru çéu: - Cadê strella!? (BANANÉRE, 2001, p. 25).

Enquanto na paródia aos românticos Bananére satiriza o saudosismo nacionalista de

Gonçalves dias, presente na “Canção do exílio”, na paródia aos versos de Bilac sobressai-se a

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crítica à retórica parnasiana, promovendo uma carnavalização dos recursos artificiais utilizados

pelos poetas parnasianos, especialmente a formalidade e os truques teatrais. Segundo Otto

Maria Carpeaux, o insubordinável senso crítico de Bananére

[...] resistiu à retórica do parnasianismo [...]. A paródia é uma forma de crítica

literária, revelando as fraquezas da obra parodiada. Só precisa ouvir as

expressões nobres de Bilac – “Ora (direis), ouvir estrelas! Certo/ Perdeste o

senso!” –, para sentir a falsidade dessa nobreza e traduzir para seu idioma de

plebeus: “Che scuitá strella, né meia strella!/ Vucê stá maluco!”.

(CARPEAUX, 1958, p. 201-202).

O fato é que o dialeto falado pelos imigrantes italianos de São Paulo foi muitas vezes

empregado pelo poeta-jornalista não apenas para satirizar a eloquência das elites e da literatura

oficial, uma vez que utilizou a algaravia de vozes existente na metrópole como matéria-prima

para elaborar suas sátiras e dizer coisas que não podiam ser ditas na língua vernácula. Wilson

Martins (1976, p. 173) observa que, ao utilizar essa fala híbrida, meio italianizada e meio

acaipirada, Bananére “fugia ao linguajar correto, que está viciado em contar pretextos”.

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