a teologia polÍtica de joÃo calvino

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E NATURAIS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA (PPGHIS)

EBER DA CUNHA MENDES

A TEOLOGIA POLTICA DE JOO CALVINO (1509-1564) NA INSTITUTAS DA RELIGIO CRIST (1536)

VITRIA 2009

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EBER DA CUNHA MENDES

A TEOLOGIA POLTICA DE JOO CALVINO (1509-1564) NA INSTITUTAS DA RELIGIO CRIST (1536)

Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria PPGHIS, como requisito para obteno do ttulo de mestre em Histria na rea de concentrao Histria Social das Relaes Polticas, sob a orientao do Prof. Dr. Srgio Alberto Feldman.

VITRIA 2009

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EBER DA CUNHA MENDES

A TEOLOGIA POLTICA DE JOO CALVINO (1509-1564) NA INSTITUTAS DA RELIGIO CRIST (1536)

Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria (PPGHIS), como requisito para obteno do ttulo de mestre em Histria na rea de concentrao Histria Social das Relaes Polticas.

Aprovada em ___de __________de 2009.

BANCA EXAMINADORA __________________________________________________ Prof. Dr. Srgio Alberto Feldman Universidade Federal do Esprito Santo Orientador __________________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Luiz Silveira da Costa Universidade Federal do Esprito Santo Membro titular __________________________________________________ Prof. Dr. Alosio Krohling Faculdade de Vitria - FDV Membro titular __________________________________________________ Prof. Dr. Julio Csar Bentivoglio Universidade Federal do Esprito Santo Membro titular __________________________________________________ Prof. Dr. Fbio Muruci dos Santos Universidade Federal do Esprito Santo Membro suplente

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Aos meus pais, David e Mercs, hoje e sempre, meus modelos de vida. Denira, fiel incentivadora, incansvel e amiga sempre. Beatriz e Estevo, minha herana, filhos da promessa.

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Minha gratido ao prof. Dr. Ricardo Luiz Silveira da Costa que desde o incio acreditou no meu projeto, experiente e sempre disponvel. Tambm ao prof. Dr. Srgio Alberto Feldman que com alegria e competncia me recebeu e me apoiou na fase final.

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s vezes pensamos que podemos alcanar facilmente as riquezas e as honras com nossos prprios esforos, ou por meio do favor dos demais; porm, tenhamos sempre presente que estas coisas no so nada em si mesmas, e que no poderemos abrir caminho por nossos prprios meios, a menos que o Senhor queira nos prosperar Joo Calvino

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Dados Internacionais de Catalogao-na-publicao (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Esprito Santo, ES, Brasil)

M538t

Mendes, Eber da Cunha, 1966A teologia poltica de Joo Calvino (1509-1564) na Institutas da Religio Crist (1536) / Eber da Cunha Mendes. 2009. 129 f. Orientador: Srgio Alberto Feldman. Dissertao (mestrado) Universidade Federal do Esprito Santo, Centro de Cincias Humanas e Naturais. 1. Calvin, Jean, 1509-1564. 2. Teologia poltica. I. Feldman, Srgio Alberto. II. Universidade Federal do Esprito Santo. Centro de Cincias Humanas e Naturais. III. Ttulo. CDU: 93/99

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RESUMOEsta pesquisa pretende analisar a natureza da teologia poltica de Joo Calvino (1509-1564) em sua obra As Institutas da Religio Crist (1536) especialmente no captulo no qual ele trata da administrao pblica. Calvino escreveu uma teologia poltica que legitimou a causa protestante em Genebra a partir de argumentos teolgicos e hermenutica bblica. Ele pensou, interpretou e construiu uma teoria poltica segundo a perspectiva do grupo social do qual era membro, buscando estabelecer novos modos de organizao, relaes sociais e de poder, pretendidas para a nova sociedade protestante. Neste sentido, os escritos de Joo Calvino so marcados pelas apreenses crists reformadas de sua realidade. Neles, Joo Calvino apresentou a maneira como interpretou, pensou, construiu e deu a ler este poder em Genebra. Sua teologia e classificaes produziram sentido, hierarquias, identidades e relaes de poder. Ele concebeu o mundo a partir de seus pressupostos bblicos e segundo os interesses do protestantismo que estiveram relacionados ao desejo de universalizao e difuso dos valores e da tica reformada. A pesquisa busca traar as influncias histricas, filosficas e humansticas que influenciaram o pensamento de Calvino. A pesquisa tambm analisa seus princpios teolgicos, antropolgicos, hermenuticos e sociais; e por fim, expe e discute os conceitos polticos postos no captulo poltico das Institutas, tais como, resistncia ao governo tirano, formas de governo e organizao poltica.

Palavras-chave: Joo Calvino teologia poltica - Institutas teoria da resistncia

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ABSTRACTThis research want to analyze the nature of the John Calvin politics theology (15091564) in your work The Institutes of the Christian Religion (1536) especially in the chapter in which he treats of the public administration. Calvino wrote a political theology that legitimated the Protestant cause in Geneva starting from theological arguments and biblical hermeneutics. He thought, he interpreted and built a political theory according to the perspective of the social group of which was member, looking for to establish new organization manners, social relationships and of being able to, intended for the new Protestant society. In this sense, John Calvino's writings are marked by the reformed Christian apprehensions of his reality. In them, John Calvino presented the way as he interpreted, he thought and built it and he gave to read this power in Geneva. His theology and classifications produced sense, hierarchies, identities and relationships of power. He conceived the world starting from their biblical presuppositions and according to the interests of the Protestantism that were related to the universalization desire and diffusion of the values and of the reformed ethics.The research too analyze the theologies principles, anthropologies, hermeneutics and socials; and by end , explain and reflect on the politics ideas in the politic chapter of the Institutes, for exemple, resistance to tyranny government, shapes of the government and the politics organization.

Keywords: John Calvin political theology - Institutes resistance theory

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SUMRIO

INTRODUO CAPTULO 1 UM HOMEM, SEU TEMPO E SUA HISTRIA 1.1 VIDA 1.2 OBRA LITERRIA 1.3 A INFLUNCIA DA DEVOTIO MODERNA 1.4 A INFLUNCIA DO HUMANISMO 1.5 CALVINO EM GENEBRA CAPITULO 2 PARA ENTENDER CALVINO 2.1 SUA HERMENUTICA 2.2 SUA TEOLOGIA 2.3 SUA TEOLOGIA SOCIAL E ECONMICA CAPTULO 3 - A TEOLOGIA POLTICA 3.1 AS INSTITUTAS DA RELIGIO CRIST 3.2 O CAPTULO POLTICO 3.3 CARACTERSTICAS DA TEOLOGIA POLTICA DE CALVINO 3.3.1 Governo Espiritual x Governo Civil 3.3.2 A Organizao Poltica (Estrutura do Governo Civil) 3.3.3 As Formas de Governo 3.3.4 A Democracia Representativa 3.5 A TEORIA DA RESISTNCIA AO ESTADO 3.6 A EVOLUO DO PENSAMENTO DE CALVINO CONSIDERAES FINAIS FONTES PRIMRIAS REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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INTRODUAO A presente pesquisa pretende analisar a natureza do pensamento e

desenvolvimento da teologia poltica de Joo Calvino (1509-1564) em sua obra INSTITUTAS DA RELIGIO CRIST (1536), especialmente no captulo no qual ele trata da administrao pblica, e de como Calvino a usou como instrumento para legitimar sua atuao poltica na cidade de Genebra. Nesta dissertao parte-se da hiptese de que, Calvino legitimou a atuao poltica protestante com argumentos teolgicos e hermenutica bblica. Ele pensou, interpretou e construiu uma teoria poltica segundo a perspectiva do grupo social do qual era membro, buscando estabelecer novos modos de organizao, relaes sociais e de poder, pretendidas para a nova sociedade protestante. Diante da premissa que emana desta hiptese, esta pesquisa se prope a oferecer uma interpretao da teologia poltica calviniana,1 analisando seus textos chaves luz do contexto e das circunstncias que Calvino escreveu. Tambm entendo que a escolha do historiador e seus olhos definem as categorias histricas a serem pesquisadas,2 meu olhar se voltou para a teologia poltica em funo da minha formao em teologia e da minha insero no mundo jurdico (curso de direito ainda em curso), o que d a esta pesquisa, um tom interdisciplinar. Esta investigao integra a rea de concentrao em Histria Social das Relaes Polticas, alocada na linha de pesquisa Sociedade e Movimentos Polticos, que entre outros objetivos, investiga tambm o modo pelo qual os formadores de opinio influenciaram outros, inclusive compreendendo as conexes possveis entre a poltica, filosofia, religio e outros saberes. Desta forma, pesquiso dentro da histria das idias polticas, as idias polticas de um reformador a partir de sua maior obra. No decurso dos vinte sculos da histria crist, poucos homens suscitaram to abundante literatura e to ardentes polmicas quanto o reformador Joo Calvino,1

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Importante ressaltar que fao distino entre o pensamento calviniano e pensamento calvinista. O primeiro trata do pensamento de Calvino propriamente dito, tendo como fonte direta seus escritos. O ltimo, trata das vrias formas, verses e desdobramentos que seu pensamento tomou posteriormente, o que no objeto desta pesquisa. VEYNE, Paul. Como se escreve a histria. Traduo de Antonio Jos S. Moreira. Lisboa: Edies 70,s.d (1ed.francesa 1971), p. 71, 73, 63.

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que escreveu, em pouco tempo de vida, cerca de 50 mil pginas. Sua atuao e seu pensamento tm sido analisados e criticados sob quase todos os ngulos e em todas as lnguas, despertando interesse de uns e a hostilidade de outros. Acredito que a pesquisa sobre a teologia poltica de Calvino pertinente por causa das pistas que ela pode nos dar para um melhor entendimento dos acontecimentos polticos e das construes tericas dos sculos XVII e XVIII. H na atualidade um ressurgir de interesses por estudos calvinianos. H centros especializados no estudo de Calvino espalhados por todo o mundo. Na dcada de 30 surgiu na Holanda a Sociedade por uma Filosofia Calvinista (Vereeniging voor Calvinistische Wijsbegeerte), uma iniciativa do filsofo holands Herman

Dooyeweerd, que iniciou a publicao do peridico Philosophia Reformata. Esta sociedade possui hoje quase mil membros pesquisadores em todo o mundo. Um renomado filsofo americano da atualidade, Alvin Plantinga (Univ. de Notre Dame), membro e j foi o presidente desta sociedade. O Congresso Internacional Permanente de Pesquisas Calvinianas no s organiza de tempo em tempo simpsios como tambm patrocina congressos, colquios e conferncias regionais e publicaes importantes como, por exemplo, a Ioannis Calvini Opera Omnia, e uma bibliografia internacional de estudos calvinianos. No meio acadmico internacional tem surgido especialistas em Calvino. Entre eles, James B. Torrance (Esccia), Alister E. McGrath (Inglaterra), Wilhelm H.Neuser (Alemanha), Richard Gamble (RUA), W. Stanford Reid (Canad), Heiko A. Oberman (Alemanha e E.U.A.), Cornelis Augustijn (Holanda), Erik A.de Boer (frica do Sul), Olivier Fatio (Suia), Nobuo Watanabe (Japo), Alexandre Ganoczy (Frana), entre outros. Para efeito de melhor aprofundamento, o recorte feito refere-se ao contexto contemporneo a Calvino, quando a velha ordem poltica medieval, fundada no feudalismo, entrava em colapso, onde j se repensava a estrutura poltica e as suas relaes com a organizao religiosa do mundo. certo que no poderei explorar os desdobramentos desta teologia poltica nos sculos posteriores a Calvino, pois me demandaria mais tempo de pesquisa e mais espao para dissertao, mas o objetivo preparar o caminho para que, em outra oportunidade, eu possa dar continuidade a tal investigao.

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Trs conceitos tericos perpassam esta dissertao: legitimao, resistncia civil e representao. Defino aqui legitimao como o saber socialmente objetivado que serve para explicar e justificar a ordem social.3 Para Berger e Luckmann4

a legitimao

justifica a ordem institucional dando dignidade normativa a seus imperativos prticos. Dentre os nveis apresentados por eles, h um terceiro nvel de legitimao que o da legitimao terica. Neste nvel, especialistas com diferenciados conhecimentos legitimam o poder atravs de teorias explcitas.5 Assim, a legitimao poltica, apresentada teologicamente por Calvino, tanto serviu para explicar e justificar o poder constitudo, como tambm para resistir, caso necessrio. Neste sentido, a teologia de Calvino, enquanto meio de legitimao, foi efetiva, pois relacionou a realidade suprema realidade socialmente construda e proposta.6 E neste vis que a proposta teolgica poltica calviniana serviu tanto para impor limites ao poder e contest-lo, como tambm para afirm-lo segundo suas intenes em Genebra. Quanto ao conceito de resistncia, utilizo os conceitos apresentados por Marcuse, atravs dos quais, percebemos que a histria nos mostra que todas as doutrinas polticas foram usadas para fins exclusivamente polticos. A resistncia era justificada quando servia aos interesses de um grupo e rejeitada em caso contrrio. O problema encontrado sobre quem decide e quando existe um direito para resistir. Na doutrina poltica dos antigos: quem decide a polis; para as teorias medievais, cabe a Igreja ou ao poder secular; nas lutas monrquicas, quem decide o partido religioso; e nas chamadas teorias democrticas, isso cabe ao povo.7 Marcuse apresenta trs diferentes teorias de resistncia. A primeira a teoria funcional, que teoria antiga. Neste caso, a resistncia justificada quando o que governa no desempenha bem as suas funes;. A segunda a teoria do direito natural, que a teoria medieval, cuja resistncia justificada quando o que governa esquece das restries que lhe so impostas pelo direito natural; a terceira e ultima3

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BERGER L. P. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociolgica da religio. Petrpolis: Vozes, 1985, p. 42. BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construo social da realidade. Petrpolis: Vozes, 1974, p. 128. Ibidem, p.130. BERGER, op. cit., p. 45, nota 3. MARCUSE, Herbert. Estado democrtico e Estado autoritrio. Rio de Janeiro: Zahar:1969.

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a teoria democrtica de resistncia. 8 A teoria de resistncia calviniana analisada dentro do contexto dos monrquicos protestantes, onde no se pe em dvida o direito de resistir, mas que ao mesmo tempo mostra absoluta submisso ao poder secular, passando pela obedincia passiva, at a resistncia ativa. 9 A noo de representao, de Chartier, direcionou o debate historiogrfico para a discusso dos mecanismos simblicos do poder que auxiliam na compreenso da sua dimenso invisvel, apontando novos caminhos para o estudo do campo poltico. Chartier trata do significado de representao como sendo a realidade, significado e sua imagem.10 As representaes sociais se configuram em discursos,

conhecimentos, crenas e valores que os indivduos se dotam para julgar a realidade. Tais discursos desempenham um papel fundamental na construo das identidades coletivas.11 De acordo com este contexto, entendemos que a uma teologia poltica se articula como um mecanismo que d sentido existncia nos marcos de uma religiosidade que serve como fonte de construo de identidades e legitimao de poderes. So sentidos historicamente produzidos pelos atores sociais atravs dos mecanismos de representao que articulam modalidades de relaes com o mundo social (classificaes, delimitaes, prticas, institucionalizaes).12 Essas representaes traduzem as posies e os interesses objetivamente confrontados e que, paralelamente, descrevem a sociedade tal como pensam que ela , ou como gostariam que fosse.13 Segundo Chartier a histria cultural ocupa-se dessas classificaes, divises e delimitaes que organizam a apreenso do mundo social, que variam de acordo com a classe social ou o meio intelectual e que permitem dar sentido ao presente, identificar o outro e decifrar o espao. As representaes do mundo social so, pois, determinadas pelos interesses dos grupos que as produzem. Tais representaes no so discursos neutros, produzem estratgias e praticas que impem autoridade a outros e legitimam ou justificam projetos, escolhas e condutas. As lutas de

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Ibidem, p. 169. Ibidem, p. 168. CHARAUDEAU, P. Representao social. In: CHARAUDEAU, P.; MAINGUENAU, D. Dicionrio de anlise do discurso. So Paulo: Contexto, 2004, p. 431. Ibidem, p. 433. BRITO, Eleonora C. B. Z. O campo historiogrfico: entre o realismo e as representaes. 1v., n. 1. Braslia: Universitas Face, 2003, p. 20. CHARTIER, Roger. A histria cultural: entre prticas e representaes. Rio de Janeiro: Difel, 1990, p. 19.

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representao tm tanta importncia quanto as lutas econmicas. Chartier define o objetivo da histria cultural como sendo identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social construda, pensada e dada a ler. 14 Neste sentido os escritos de Joo Calvino so marcados pelas apreenses crists reformadas de sua realidade. Neles, Joo Calvino apresentou a maneira como interpretou, pensou, construiu e deu a ler o poder em Genebra, segundo a perspectiva do grupo social do qual era membro, e buscou estabelecer novos modos de organizao e relaes sociais e de poder pretendidas para a nova sociedade protestante. Sua teologia e classificaes produziram sentido, hierarquias, identidades e relaes de poder. Ele concebeu o mundo a partir de seus pressupostos bblicos e segundo os interesses do protestantismo que estiveram relacionados ao desejo de universalizao e difuso dos valores e da tica reformada. Posto estes referenciais tericos, resta-me responder aos seguintes

questionamentos: Quais os vetores que deram legitimidade para esta teologia poltica? Qual a natureza e abrangncia desta teologia poltica de resistncia civil que, de certa forma, conquistou a aprovao de uns e repdio de outros nos sculos posteriores? Com o propsito de responder a estas questes, esta pesquisa se organizou da seguinte forma: No captulo primeiro, intitulado de Um homem, seu tempo e sua histria, apresento alguns retratos de Calvino, onde exponho sua vida e obra. O captulo tem um vis biogrfico, cujo tom se torna narrativo e expositivo. feita uma investigao sobre as principais influncias que moldaram o pensador Calvino. Analiso tambm seu destino cruzado com a cidade de Genebra, no sculo dezesseis, palco de suas prticas pastorais, teolgicas e polticas. Para isso, foram empregadas biografias como as de Bernard Cottret (1995), professor da Universidade de Versailles-SaintQuentin-en-Yvelines. Membro senior do Institut Universitaire de France - IRCOM, Paris IV - do centro de estudos sobre a Amrica do Sul. Autor de muitos artigos e14

Ibidem, p. 15-17.

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ensaios sobre a Reforma protestante e sobre as questes religiosas, sempre as ligando com a poltica. Tambm lano mo dos escritos de Theodoro de Beza (15191605), bigrafo e contemporneo de Calvino. No segundo captulo, intitulado de Para entender Calvino, abordo o pensamento de Calvino. O captulo assume um carter mais conceitual, teolgico e terico. O objetivo expor as linhas bsicas de sua teologia, antropologia, hermenutica e pensamento social, a fim de fornecer pistas para o melhor entendimento de sua teologia poltica. Os conceitos polticos de Joo Calvino esto diretamente ligados sua teologia. Neste captulo abordo a metodologia hermenutica adotada pelo pensador e as linhas mestras de suas doutrinas principais. No terceiro captulo, sob o ttulo de A Teologia poltica, analiso a sua teologia poltica propriamente dita. Nesta parte aponto as fontes utilizadas, sua natureza e suas variaes histricas. Tambm exponho e discuto os conceitos polticos calvinianos, atravs de anlise das caractersticas do pensamento calviniano, das idias principais do captulo poltico de sua obra, e de sua teoria de resistncia autoridade. Meus principais referenciais so: a obra de Harro Hpfl, The Christian politic of John Calvin (1986), alm do prefcio repleto de aparatos crticos que fez aos textos sobre Lutero e Calvino, lanados no Brasil em 1995; o texto de Quentin Skinner, As fundaes do pensamento poltico moderno (1996). Skinner destaca, entre vrios pensadores polticos fundamentais, Calvino e alguns calvinistas que o sucederam. As fontes analisadas neste trabalho foram escolhidas dentre a vasta literatura produzida por Joo Calvino. Como fonte principal, escolhi As Institutas da Religio Crist, considerada sua principal obra entre os seus escritos. Utilizo tambm os vrios comentrios bblicos de Calvino, disponveis em portugus, bem como, vrias literaturas produzidas pelos reformadores. Quanto a fonte principal, As Institutas da Religio Crist, utilizo trs verses, como segue: A traduo para o portugus realizada pelo Prof. Dr. Waldyr Carvalho Luz. Waldyr fez uso da edio francesa, texto atualizado por Pierre Marcel e Jean Cadier, de 1955, da valiosa traduo para o ingls de Ford Lewis Battles, edio de 1961, da

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tradicional traduo de John Allen, 7a edio americana, de 1936, da verso alem de Karl Muller, edio de 1928 e da espanhola de Cipriano Valera, na forma da reviso de 1967. A publicao do Dr. Waldyr foi lanada em duas partes, os volumes I e II em 1985, e os volumes III e IV em 1989. Utilizo tambm a verso em espanhol, distribuda pela Fundacin Editorial de Literatura Reformada-Felire. Os quatro livros foram publicados em 2 tomos, contendo 2 livros cada tomo. Esta verso foi traduzida e publicada por Cipriano de Valera em 1597. A antiga traduo de Valera tem sido devidamente revisada quanto a sua linguagem, e comparada com os originais latinos e franceses. Foi reeditada por Luis de Usoz Y Rio em 1858. Em 1967 teve uma nova edio revisada, e posteriormente mais quatro edies (1981, 1986 e1994), todas inalteradas. E por fim, o captulo poltico publicado pela Martins fontes _ Sobre o Governo Civil, Instituto Christianae Religionis, Livro IV, trad. Carlos Eduardo Silveira Matos, In: Lutero e Calvino. Sobre a Autoridade Secular. So Paulo, 1995. O texto traduo da verso latina de 1559 com acrscimos de variaes substanciais de outras verses latinas e francesas. Optei colocar em destaque, no corpo do trabalho, somente as referncias das fontes primrias do prprio Calvino, deixando para as notas de rodap as referncias bibliogrficas de outros autores. Em funo das muitas obras usadas, e algumas com datas de edio iguais, escolhi o uso da expresso loc. cit para as referncias utilizadas, o que permite ao leitor uma melhor identificao das obras. A abordagem terica utilizada para anlise das fontes provm da Histria Conceitual e da Histria Cultural. A emergncia desta abordagem surge em oposio quela Histria de carter puramente narrativo. Esta nova forma de pensar a Histria, que surgiu ao longo do sculo XX, impulsionou este conceito, diferenciando-se daquilo que os historiadores de outrora faziam com suas fontes. Utilizar os conceitos extremamente importante para Histria, pois so eles que a distinguem do romance histrico ou das prprias fontes documentais que utiliza. Nesse sentido, os conceitos so necessrios para a interpretao de uma realidade que existe

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independentemente de ser concebida distintamente.15 A funo dos conceitos , ento, a de representar a realidade ou aspectos da realidade.16 O que por outro lado, o expe a riscos, j que um dos problemas do historiador a exigncia de determinar a validade dos conceitos empregados, sua adaptao ao real e a sua capacidade explicativa17, pois dele tambm se exigem cuidados na utilizao de conceitos, a fim de minimizar os riscos de que incorra em anacronismos. A Histria o resultado do esforo, por intermdio do qual o historiador, o sujeito do conhecimento, estabelece a relao entre o passado que ele evoca e o presente que seu. Assim, a tarefa da Histria no ressuscitar o passado, mas torn-lo conhecido, e um dos instrumentos para isso o conceito.18 Veyne ilustra esta questo. Um historiador no faz falar os gregos ou os romanos, fala em seu lugar, fala deles e diz quais foram as realidades e as idias que os moviam. O pesquisador fala sua prpria lngua, no a do seu objeto de pesquisa, e sob as aparncias e mistificaes, procura aproximar-se da realidade. Se bem definidos, os conceitos aperfeioam e enriquecem a percepo que se tem do mundo.19 Ou, sem conceitos no se v nada, faz-se Histria narrativa.20 Como metodologia, utilizo o mtodo de Anlise de Contedo. Este quando aplicado aos discursos, estabelece uma anlise de vis qualitativo, embora no prescinda da quantificao. Segundo Bardin, a Anlise de Contedo define-se como uma hermenutica controlada e baseada na inferncia.21 Alm disso, esse mtodo constitui-se de quatro etapas, a saber: 1) a pr-anlise; 2) a explorao do material; 3) o tratamento de resultados obtidos, inferncia, interpretao e; 4) a sntese final. A pr-anlise caracteriza-se pela escolha dos documentos, formulao das hipteses e dos objetivos e definio dos dados a serem retidos. Na explorao do material, ocorre a codificao, recorte dos dados e escolha dos parmetros de interpretao

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VEYNE, Paul. A histria conceitual. In: LE GOFF,J. & NORA, P. Histria: novos problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, p.70. MENDONA, N. D. O uso dos conceitos: uma questo de interdisciplinaridade. Petrpolis: Vozes, 1994, p. 16. MARROU, H.I. Sobre o conhecimento histrico. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, 120. Ibidem, p. 45. VEYNE, Paul. O inventrio das diferenas. Lisboa: Gradiva, 1989, p. 17. Ibidem, p. 20. BARDIN, L. Anlise de contedo. Lisboa: Edies 70, 2002, p. 9.

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segundo a orientao terica. A sntese final corresponde apresentao dos resultados. 22

22

Ibidem, p. 93-141.

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Captulo 1 - UM HOMEM, SEU TEMPO E SUA HISTRIA 1.1 VIDA Filho de Grard Calvin e de Joan Franc, Joo Calvino nasceu em Noyon, nordeste da Frana, no dia 27 de julho de 1509.23 O pai era catlico praticante, gozava de boa posio social e tornou-se advogado dos religiosos e secretrio do bispo local. Sua me era filha de um dono de hotel na cidade de Cambrai.24 Em seu comentrio ao Livro de Salmos, Calvino faz uma breve autobiografia, relatando algumas das mais importantes influncias que recebera que, segundo ele, foram decisivos em sua carreira:Quando eu era ainda um garotinho muito novo, meu pai destinou-me ao estudo de teologia. Mas depois, quando percebeu que o exerccio da profisso de advogado, em geral, levava aqueles que a seguiam riqueza, essa perspectiva induziu-me repentinamente a mudar seu propsito. Assim, ocorre que fui retirado dos meus estudos de Filosofia, e fui colocado para estudar Direito. Esforcei-me fielmente para aplicar-me nessa atividade, em obedincia vontade de meu pai; mas Deus, pela secreta direo de sua providncia, ao final deu uma direo diferente ao curso de minha vida. A princpio, como eu estava por demais obstinadamente inclinado s supersties do papado para ser facilmente libertado de to profundo abismo de lama, Deus, mediante uma repentina converso subjugou-me e levou-me a uma organizao mental que pudesse ser educada, que era mais oprimida por essas questes do que se poderia esperar de algum com to pouca idade. Tendo ento recebido alguma amostra e algum conhecimento da verdadeira piedade, fui imediatamente inflamado por um desejo to intenso de fazer progresso a partir da, que, ainda que no tenha 25 deixado os outros estudos, passei a me dedicar a eles com menos ardor.

A primeira inteno de seu pai era que ele estudasse teologia, pois considerava sua inclinao natural. Ainda jovem, Calvino, mostrava-se muito religioso, pois chegou a pregar alguns sermes na catedral de Noyons. Em 1523, foi residir em Paris, onde estudou latim, humanidades26 (Collge de la Marche) e teologia (Collge de Montaigu). 27

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BEZA, Theodoro de. The life of John Calvin. Milwaukie: Back Home Industries, 1996, p. 15. Beza (1519-1605) foi o primeiro bigrafo de Calvino. Tendo sido seu contemporneo e amigo pessoal, veio a ser seu sucessor em Genebra, quando Calvino morreu. FERREIRA, Wilson Castro. Calvino: Vida, influncia e Teologia. So Paulo: Luz para o caminho, 1985, p. 32-35. CALVINO, Joo. Livro de Salmos, So Paulo: Paracletos, 1999, p. 10. 1v. A base do currculo educacional medieval foi dada pela obra O casamento da Filologia e Mercrio, do cartagins Marciano Capela, escrita por volta de 410-427. Nela, o autor, influenciado pela enciclopdia de Varro (Sobre as Nove Disciplinas), tratou das Sete Artes Liberais, damas de honra daquele casamento: 1) Gramtica, 2) Retrica, 3) Dialtica, 4) Aritmtica, 5) Geometria, 6) Astronomia e 7) Harmonia. Marciano Capela deixou de lado a

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Seu pai o removeu de Paris, em algum momento em 1527 ou 1528, para que ele estudasse direito civil. A motivao que Calvino atribuiu a seu pai para essa mudana de rea e de universidade foi puramente financeira.28 Em 1528, iniciou seus estudos jurdicos, primeiro em Orlans e depois em Bourges, onde tambm estudou grego.29 Um estudante poderia formar-se em humanidades em uma faculdade e, ento transferir-se para a faculdade de teologia. O costume atual de estudar teologia logo que se entra na universidade era desconhecido do sculo 16, em Paris, dado que o pr-requisito era estudar quatro ou cinco anos na faculdade de humanidades.30 A instruo de Calvino nos d importantes pistas para entender como ele construiu sua abordagem hermenutica.31 Uma vez que essa base elementar em lgica32

houvesse sido vencida, os estudantes estavam prontos para prosseguir no estudo da Lgica de Aristteles na sua totalidade. Orlans e Bourges foram onde Calvino provavelmente penetrou em um universo intelectual diferente. Da suspeita-se que

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Medicina e a Arquitetura, por tratarem de coisas terrestres que ...no tm nada em comum com o cu. Plato j havia mostrado a distino entre o que se chamou o Trivium (Gramtica, Retrica e Dialtica) e o Quadrivium (Aritmtica, Geometria, Astronomia e Msica). Ao que tudo indica, Bocio (480-524) foi o primeiro a chamar de Quadrivium as quatro disciplinas aqui relacionadas; o termo Trivium s foi utilizado mais tarde. As Artes Liberais eram denominadas artes pois implicavam no somente o conhecimento, mas tambm uma produo que decorria imediatamente da razo, como vrias outras - por exemplo, o Discurso e a Retrica, os Nmeros e a Aritmtica), as Melodias e a Msica, etc.. COSTA, Ricardo. A Educao na Idade Mdia. A busca da Sabedoria como caminho para a Felicidade: Al-Farabi e Ramon Llull. In: Dimenses Revista de Histria da UFES n.15. Dossi Histria, Educao e Cidadania. Vitria: Ufes, Centro de Cincias Humanas e Naturais, EDUFES, 2003, p. 99-115. BEZA, op. cit., p. 16, nota 23. MCGRATH, Alister. A Vida de Joo Calvino. So Paulo: Cultura Crist: 2004, p. 49. BEZA, op. cit., p. 15, nota 23. MCGRATH, op. cit., p. 43, nota 28. Embora a palavra hermenutica ordinariamente tenha um campo inteiro de interpretao, incluindo a exegese, ela tambm usada no sentido mais estreito de procurar a relevncia contempornea dos textos antigos. Em teologia, a exegese tem como alvo chegar ao sentido original do texto usando para isto as lnguas originais e as ferramentas exegticas, enquanto a hermenutica tenta chegar ao sentido claro do texto na sua variedade de contextos. No sentido clssico, o termo hermenutica abrange as duas tarefas. Neste trabalho usaremos o termo hermenutica no sentido clssico, ou seja incluindo as duas tarefas. Cf. FEE, Gordon. Entendes o que ls? So Paulo: Vida Nova,1982, p. 11-27. Um documento datado de 1517, Compendium, de Robert Goulet, d detalhes sobre a vida universitria em Paris neste sculo. Os estudantes de humanidades eram divididos em trs grupos, de acordo com o ano: os estudantes de smulas, os estudantes de lgica e os estudantes de fsica. Os primeiros dois anos do curso de humanidades eram dedicados ao estudo da lgica. MCGRATH, op. cit., p. 51, nota 28.

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ele possa ter encontrado indivduos, mtodos e idias que modelaram e delinearam em sua mente a idia de Reforma.33 Outro ponto a ser destacado na estrutura do pensamento de Calvino foi sua relao com o Humanismo (o que veremos mais adiante), que cativou sua imaginao e mais tarde, seria adaptado a seus prprios propsitos particulares, pois uma espcie de substncia ou abordagem Humanista foi um trao que corroborou como ferramenta em sua hermenutica.34 Com a morte do pai em 1531, retornou a Paris e dedicou-se ao seu interesse predileto - a literatura clssica. No ano seguinte publicou um comentrio sobre o tratado de Sneca (4 a.C.-68 d.C.) De Clementia.35 A obra demonstra uma fundamentao exaustiva na histria, literatura e cultura da Antiguidade com meno a cinqenta e cinco autores latinos e vinte e dois autores gregos.36 No possvel precisar as circunstncias e a data de sua converso ao protestantismo. Contudo, as evidncias apontam para um perodo entre 1532 a 1534. Farel, seu primeiro bigrafo, aponta que, alguns meses aps ter publicado De Clementia, ele j se mostrava simpatizante e desejoso de uma Reforma religiosa, o que nos sugere o ano de 1533.37 Cr-se que seu primo Olivtan (c.1506-1540)38 e

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MCGRATH, op. cit., p. 68, nota 28. Ibidem, p. 69 Calvino sofreu forte influncia do Humanismo da poca. Era estudioso e simptico do estoicismo. O livro de Sneca um apelo para um governo misericordioso daqueles que detinham o poder. BEZA, op. cit., p. 18, nota 23. Esta foi a primeira obra escrita por Calvino que foi publicada com seus prprios recursos. Neste trabalho, ele desafia o que governa, definindo-o como tirano e como quem governa contra a vontade do seu povo. COSTA, Herminstein M. P. Calvino de A a Z. So Paulo: Vida, 2006, p. 18. Cf. MCGRATH, op. cit., p.78, nota 28. De Clementia foi dedicado nobre famlia Monmors de Noyon. Cf. FERREIRA, op. cit., p. 144, nota 24. MCGRATH, op. cit., p. 79, nota 28. BEZA, op. cit., p. 19, nota 23. Cf. COSTA, Herminstein. Razes da teologia contempornea. So Paulo: Cultura Crist, 2004, p. 92. A Bblia Francesa (1535) foi traduzida por Pierre Robert, apelidado de Olivetanus, da Olivtan, primo de Calvino. Esta foi a primeira traduo protestante francesa das Escrituras, tendo sido pedida pelos Valdenses que gastaram em sua impresso 1500 escudos. Sua traduo foi feita diretamente dos originais grego e hebraico, tendo sido usada pela primeira gerao de calvinistas franceses. Foi revista e prefaciada por Calvino, com o ttulo A todos os que amam a Jesus Cristo e a seu evangelho. Posteriormente Beza fez uma nova reviso da Bblia Francesa. Cf. MCNEILL, John . The history and character of calvinism. Nova York: Oxford University Press, 1954, p. 120; REID, W. Stanford. A Propagao do Calvinismo no Sculo XVI. In: REID, W. Stanford (org.). Calvino e sua influncia no mundo ocidental. So Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 46.

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tambm Lefvre Dtaples (1455-1536) tiveram uma importante participao nesta converso.39 Em uma carta de Calvino enviada ao Cardeal Sadoleto temos uma discreta meno desta mudana confessional, pois ele fez meno das angstias que sentira no catolicismo que, segundo ele, eram frutos da pregao da Igreja:Contrariado com a novidade, eu ouvia com muita m vontade e, no incio, confesso, resisti com energia e irritao; porque foi com a maior dificuldade que fui induzido a confessar que, por toda minha vida, eu 40 estive na ignorncia e no erro.

No tem fundamento as histrias que Calvino tivera uma mocidade muito desregrada. Pelo contrrio, as provas que se tm indicam um estudante assduo, tmido e piedoso, cujo esprito crtico era severo para o moral dos companheiros que lhe tributaram inabalvel fidelidade.41 Quando um de seus amigos (Nicholas Cop) foi eleito o reitor da universidade de Paris, Calvino o ajudou a preparar seu discurso, lido na igreja dos Maturinos em novembro de 1533, no qual propunha uma Reforma na Igreja.42 Por causa disto, sofreu perseguio e, no final daquele ano, fugiu de Paris. No ano seguinte, voltou a Noyon e renunciou ao seu benefcio eclesistico.43 Em 1536, com 27 anos, ele publicou, em latim, na Basilia, Sua, a primeira edio da sua obra, As Institutas ou Tratado da Religio Crist,44 introduzida por uma carta ao rei Francisco I da Frana contendo um apelo em favor dos protestantes perseguidos.45

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IRWIN, C. H. Juan Calvino: su vida y su obra. Barcelona: Clie, 1991, p. 22; Ver MCNEILL,1954, p. 110,195, LESSA, Vicente T. Calvino 1509-1564. So Paulo: Cultura Crist, p. 47; CAIRNS. O Cristianismo atravs dos sculos. Uma Histria da Igreja Crist. So Paulo: Vida Nova, 1988, p. 252. CALVINO, Juan. Respuesta al Cardeal Sadoleto. 4 ed. Barcelona: Fundacin Editorial de Literatura Reformada, 1990, p. 63,171-185. Esta carta foi escrita em 01 de agosto de 1539. DURANT, W. A histria da civilizao VI. A Reforma. Histria da Civilizao Europia de Wyclif a Calvino: 1300-1564. Rio de Janeiro: Record, 1957, p. 37. COSTA, op. cit., p. 91, nota 35. BEZA, op. cit., p. 19, nota 23; CAIRNS, op. cit., p. 252, nota 39. O discurso causou furor ao Parlamento, que iniciou um processo contra Cop por heresia. Cop fugiu para a protestante cidade de Basilia. Um prmio de 300 coroas foi oferecido pela sua captura, morto ou vivo. Calvino foi avisado por amigos de que havia um mandado de priso contra ele. DURANT, op. cit., p. 384, nota 41. Ali, com apenas 26 anos, terminou a mais eloqente, ardente, lcida, lgica, influente e terrvel obra de toda a literatura da revoluo religiosa. DURANT, op. cit., p. 384, nota 41. BEZA, op. cit., p. 21, nota 23.

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Alguns meses mais tarde, o reformador suo Guilherme Farel (1489-1565) praticamente o intimou a ajud-lo na cidade de Genebra, que acabara de abraar a Reforma. Em pouco tempo, os dois lderes entraram em conflito com as autoridades civis sobre questes eclesisticas, sendo expulsos em 1538.46 Calvino foi para Estrasburgo e l foi ordenado ministro de ensino. Entre 1538 e 1541 ele atuou como pastor entre refugiados, lecionou teologia, participou de conferncias e escreveu uma nova edio das Institutas (1539). Foi nesta poca que ele casou-se com Idelette de Bure, viva de um pastor. Seu nico filho morreu criana e em 1549 Idelette tambm morreu.47 Em 1541, as foras reformadoras novamente tomaram o controle de Genebra. Calvino retornou quela cidade a pedido dos governantes. Assumiu o pastorado da Igreja reformada e escreveu para a mesma as clebres Ordenanas Eclesisticas.48 Durante vinte e trs anos lutou incessantemente, apoiado pelo Consistrio, para fazer de Genebra um baluarte da Reforma.49 Agora livre das lutas polticas internas e aps edificar um edifcio eclesistico, Calvino preocupou-se em construir uma escola superior encarregada da educao acadmica dos protestantes da lngua francesa. Em 1559, inaugurou a Academia de Genebra. Quando morreu, 1500 estudantes estavam matriculados nos dois graus da escola, a maioria estrangeiros vindos da Frana, Inglaterra, Esccia, Alemanha, Itlia e Sua. Nesse mesmo ano, Calvino publicou a ltima edio das Institutas. A Academia de Genebra e as Institutas foram duas obras de Calvino que mais contriburam para disseminar nas terras distantes a doutrina e princpios calvinistas, e o renome desta escola, como centro intelectual do Protestantismo sobreviveu por mais de um sculo aps a morte de Calvino, graas em particular ao seu sucessor Theodoro de Beza.50

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Ibidem, p. 25 et seq. CAIRNS, op. cit., p. 253, nota 39. Cf. BRENGER, et. al.Histria geral da Europa II. A Europa desde o incio do sculo XVI ao final do sculo XVIII. Portugal: Publicaes Europa-Amrica, 1996, p. 260 et seq. BEZA, op. cit., p. 34, nota 23. BRENGER, op. cit., p. 261, nota 47. BIELER, Andr. O Pensamento econmico e social de Calvino. So Paulo: CEP, 1990, p. 192.

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Apesar de constantemente enfermo, desenvolveu intensa atividade como pastor, pregador, administrador, professor e escritor. Produziu comentrios sobre quase toda a Bblia. O reformador faleceu aos 55 anos em 24 de maio de 1564. Foi sepultado em Plainpalais, sem pompa, sem qualquer aparato, pois essa era sua vontade. Cidados, magistrados, professores e pastores o acompanharam para render-lhe as ltimas homenagens. No quis que nenhuma pedra lhe marcasse a sepultura, razo pela qual ningum sabe onde se localiza seu tmulo.51 Theodoro de Beza,52 no fim da vida de Calvino, assim escreveu: Tendo sido um espectador de sua conduta por dezesseis anos [...] posso declarar que todos os homens podem ver nele o mais belo exemplo de carter cristo, um exemplo que to fcil de caluniar quanto difcil de imitar.

1.2 OBRA LITERRIA Joo Calvino escreveu cerca de 50 mil pginas entre 1536 e 1564. Seu escritos compreendem catecismos, sermes, cartas, comentrios bblicos e tratados sistemticos e livros. O pesquisador Philip Shaff 53 divide as obras de Calvino em dez categorias:1) Escritos Exegticos Comentrios bblicos que Calvino escreveu. O primeiro deles foi o da Epstola aos Romanos, preparado ainda em Estrasburgo (1539) e dedicado ao seu mestre em hebraico. Quanto ao Antigo Testamento ele escreveu comentrios dos livros de Gnesis, xodo, Levtico, Nmeros, Josu, J, I Samuel, Salmos, Isaas, Jeremias, Ezequiel, Daniel, Osias, Joel, Ams, Obadias, Jonas, Miquias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias Malaquias. O livro de Ezequiel compreende apenas os vinte primeiros captulos e pertence ao final de sua carreira, pois parou no vigsimo captulo em funo de sua enfermidade. 2) Livros Doutrinrios Aqui, destaque para as Institutas da Religio Crist, sua obra magna. Mas h de se mencionar tambm o seu popular Catecismo (1536), cujas edies numerosas tiveram tradues para o italiano, latim, espanhol, ingls, alemo, grego, hebraico, e outros. Ainda nesta categoria, temos o tratado sobre A Ceia do Senhor (1541),o

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Ibidem, p. 194. BEZA, op. cit., p. 10, nota 23. SCHAFF, Philip. The swiss reformation, Edinburgh, 1888. Apud LESSA, op. cit., p. 151-155, nota 39.

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Consensus Tigurinus (1549), o Consensus Genevensis (1552), e a Confessio Gallica(1559), todos editados em latim e francs. 3) Escritos Polmicos e Apologticos Contra antagonistas diversos. Visando a Igreja Romana temos Resposta ao Cardeal Sadoleto (1539); Sobre o Livre Arbtrio (1543); O Culto das Relquias (1543); Contra a Sorbona (1544); Exortao a Carlos V (1543); Contra o Conclio de Trento (1547). Na luta contra os anabatistas, escreveu: Psychopannichia Sobre o sono da alma (1534); Breve Instruo contra os erros da seita dos Anabatistas (1544). Contra os Libertinos de Genebra, dos quais sofreu muitas amarguras, publicou Adversus fanaticam et furiosam sectam Libertinorum qui se spirituales vocant (1545). Aos anti-trinitrios escreveu Defensio ortodoxoe fidei S.Trinitatis adversus prodigiosos errores Serveti (1554); Responsum ad questiones G. Blandatroe (1558), Adversus Valentinum Gentilem (1561), Responsum ad nobiles Fratres Polonos de controversia Mediatoris (1561), Brevis admonitio ad Fratres Polonos ne triplicem in Deo essentiam pro tribus personis imaginando tres sibi Deos fabricent (1563). Em defesa da doutrina da predestinao, escreveu Contra Bolsec e Castellion (1554 e 1557). Sobre a controvrsia eucarstica, escreveu contra o luterano Joaquim Westphal duas defesas: Defensiones (1555) e Admonitio (1556), e Dilucida explicatio sane doctrine de vera participatione carnis et sanguinis Christi in sacra Coerna (1561). 4) Escritos Litrgicos e Eclesisticos Ordenanas da Igreja de Genebra (1537), Projetos de ordenanas eclesisticas (1541), Frmula do juramento prescrita aos ministros (1542); Ordem do casamento (1545), Visitao de Igrejas (1546), Ordem do Batismo (1551), Ordenanas e eclesisticas e Leis Acadmicas (1561), Oraes Litrgicas (1550). 5) Sermes e Homilias Pode ser avaliado em cerca de trs mil o nmero de escritos deste gnero.54 6) Pequenos Tratados uma coleo tambm numerosa. Destaque para Orao acadmica de Cop (1533), o tratado contra a Astrologia (1549) e Certos escndalos (1550). 7) Conselhos sobre assuntos polmicos e doutrinais Variados e numerosos. 8) Cartas Compreendem 10 volumes. Os editores de Estrasburgo apresentam 427 destas cartas escritas por Calvino. Conforme o relato de Beza, Calvino nos ltimos dias de sua vida entregou a seu cuidados o arquivo de cartas que escrevera.55 Seu desejo era que tais cartas fossem preservadas como um legado s Igrejas Reformadas. Mas as circunstncias adversas que vieram logo aps sua morte, inclusive a peste que assolou a cidade impediu o cumprimento do desejo expresso por Calvino. Ao Dr. Jules Bonnet coube a tarefa de busca e reunio das muitas cartas encontradas em vrios lugares da Europa. Ele gastou cinco

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GOGUEL, G. Le rformateur de France et de Genve Jean Calvin. Tolouse, 1863. Apud LESSA, op. cit., p. 153, nota 39. BEZA, op. cit., p. 58, nota 23.

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anos cumprindo esta tarefa, ao que afinal conseguiu reunir quatro grossos volumes de cartas.56 9) Poesias Calvino publicou um hino pico, Epinicion Christo cantatum (1541) e tambm verses mtricas de vrios salmos e um hino a Cristo. 10) Livro Como j mencionado, seu comentrio ao livro De Clementia, de Sneca. Em 1535 escreveu um prefcio verso francesa da Bblia de Olivtan. Em 1546 preparou a sua traduo francesa dos Loci Communes, produo de seu amigo Melancthon.

Sua principal obra foi as Institutas Da Religio Crist escrita em 1536, quando tinha 27 anos. Em um ano esgotou-se a edio e, atendendo a pedidos, ele lanou nova edio ampliada em 1539, tambm em latim. Calvino ainda em vida viu 7 edies em latim de sua obra. Em 1541, ele prprio a traduziu para o francs (esse texto foi considerado uma expressiva produo da literatura francesa). Por causa da forte influncia que esta obra trouxe para o movimento protestante, ela foi condenada pelo Parlamento de Paris, que queimou vrios exemplares em praa pblica. No entanto, Calvino, em toda sua vida ampliou e divulgou o livro.57 Em seu prefcio do comentrio no livro de Salmos, Calvino preconizou:Durante o tempo que eu permanecia em Basilia, l achando-me como um escondido, e conhecido de bem poucos, em Frana eram queimadas diversas pessoas fiis e santas e, havendo a notcia chegado s prprias naes estrangeiras, estas execues foram julgadas muito ms por parte de grande parcela dos Alemes, e de tal sorte que tiveram em muito desagrado os autores dessa tirania; para apazigu-los, fizeram circular certos livretos deplorveis e repletos de mentiras, dizendo que se no tratavam to cruelmente a outros seno a anabatistas e gente sediciosa. Gente que, por suas fantasias e falsas opinies, subvertiam no somente a religio, mas tambm toda a ordem poltica. Vendo eu que esses arengueiros da Corte usavam de dissimulaes e diligenciavam por fazer no somente que a indignidade deste derramamento de sangue inocente permanecesse amortalhada pelas falsas imputaes e calnias, com as quais enxovalhavam os santos mrtires aps sua morte, mas tambm que, a seguir, contavam com meio de proceder a todo extremo para afligir aos pobres fiis, sem que algum pudesse ter compaixo deles, pareceu-me que, a no ser que a isso me opusesse valorosamente, quanto a mim estava, no poderia eu desculpar-me de, em calando-me, ser eu considerado covarde e desleal. 58 E esta foi a razo que me levou a publicar as INSTITUTAS. (grifo nosso).

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FERREIRA, op.cit., p. 153, nota 24. DURANT, op. cit., p. 384, nota 41. CALVINO,op. cit., p. 15, nota 25.

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A obra, dividida em 4 livros, foi desenvolvida sistematicamente em torno do Credo dos Apstolos.59 As ltimas edies das Institutas datam de 1559 e 1560. Os seis captulos da edio de 1536, ao final se transformaram em quatro livros, perfazendo um total de oitenta captulos.60 O primeiro livro encara o primeiro artigo do Credo: Creio em Deus Pai, Todo Poderoso. Desta forma, ele trata sobre Deus e sua revelao, assim como da criao e da natureza do ser humano. Discute o conhecimento de Deus, o criador. So 18 captulos tratando de Deus e do ser humano; a necessidade da Escritura, a sua autoridade e valor; a espiritualidade de Deus e a natureza do seu culto; a doutrina da trindade; a criao do universo; a criao do homem e seu estado original, e a doutrina da providncia. O segundo livro (em dezessete captulos) corresponde ao segundo artigo do Credo dos Apstolos: Creio em Jesus Cristo, seu nico Filho. Neste livro, Calvino aborda Deus como redentor e o modo como se revela no Antigo Testamento, e em Jesus Cristo; estuda a queda do gnero humano e seu estado de depravao e misria; expe a lei moral e a incapacidade do homem de utilizar-se dela para sua salvao; apresenta o Filho de Deus e suas duas naturezas, a humana e a divina; estuda o Filho na sua trplice funo como profeta, sacerdote e rei. O terceiro livro (com vinte e cinco captulos) trata do Esprito Santo e sobre como, pelo Esprito, se participa da Graa de Jesus Cristo e dos frutos que Ele produz; expe a doutrina da salvao preconizada no artigo do Credo: Creio no Esprito Santo. Assim, Calvino aborda a doutrina da Graa de Cristo atravs da f e do arrependimento; estuda a questo da penitncia segundo os escolsticos, bem como as indulgncias e o purgatrio; desenvolve a teoria da vida crist; analisa a59

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GONZALES, Justo L. A era dos Reformadores. Uma histria Ilustrada dos Cristianismo. So Paulo: Vida Nova, 1986, 6v., p. 111. O Credo dos Apstolos tem a sua origem no Credo Romano Antigo no segundo sculo (sobre a formao deste Credo, Vd. KELLY, J.N.D., Primitivos Credos cristianos, p. 125ss.), tendo algumas declaraes doutrinrias acrescentadas no decorrer dos primeiros sculos, chegando sua forma como temos hoje, por volta do stimo sculo. OLIVER, O.G.Jr. Credo dos Apstolos. In: Enciclopdia histrico teolgica da Igreja Crist. Ed. Elwell, Walter A. So Paulo: Vida Nova, 1990, 1v., p. 362-363. CALVINO, Joo. As Institutas da Religio Crist. 2. So Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1985. 1, 2v. CALVINO, Joo. As Institutas da Religio Crist. So Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1989. 3,4 v.

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doutrina da Justificao pela f e a questo da salvao pelas obras; trabalha para harmonizar a Lei do Antigo Testamento com os Evangelhos; trata da liberdade crist e da orao. Finalmente, em quatro captulos estuda a doutrina da Eleio, segundo a qual uns so predestinados para a salvao e outros voltados runa. A doutrina da predestinao se tornou uma das caractersticas mais marcantes de seu sistema teolgico. O quarto livro contm vinte captulos e verte em torno do quarto artigo do Credo: Creio na Santa Igreja Catlica. Calvino estuda aqui as questes que se prendem doutrina na Igreja e nos sacramentos, ou seja, os "meios externos". Doze captulos so consagrados a mostrar qual a verdadeira Igreja, seus ministros, seu governo, disciplina, seus conclios e sua autoridade. Um captulo examina os votos monsticos; seis so consagrados aos sacramentos. Por fim, o ltimo captulo encara a questo do governo civil, ou seja a administrao pblica. Sua obra revela um vasto conhecimento da Bblia, dos pais da Igreja, particularmente Agostinho, e tambm sobre as controvrsias teolgicas do sculo XVI. A obra tambm apresenta erudio e familiaridade com os pensadores

clssicos. Calvino escreveu at oito horas antes da sua morte. Desde quando, aos vinte e dois anos, comeou a escrever, nunca mais parou. Escreveu quando estava doente, escreveu em meio s suas lutas, e quando no podia escrever ditava aos seus secretrios.61

1.3 A INFLUNCIA DA DEVOTIO MODERNA Diz-se devotio moderna (devoo moderna), a Escola de pensamento que surgiu nos Pases Baixos, no sculo XIV, ligadas s figuras de Geert Groote (1340-1384), Thomas A. Kempis (1380-1471) e os irmos da vida comum.62 O movimento que tivera suas razes na Itlia, na burguesia das grandes cidades mercantis,

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BEZA, op. cit., p. 56, nota 23. Uma sociedade religiosa na Holanda que existiu entre os sculos XVI e o inicio do sculo XVII. Desenvolveu-se a partir de reunies regulares em Deventer. Os membros no faziam votos, no se filiavam a ordem religiosa alguma, mas procuravam viver na presena de Deus, preparandose para a vida eterna. DOUGLAS, J. D. Irmos da Vida Comum. In: Enciclopdia histricoteolgica da Igreja Crist. Ed. Elwell, Walter A. So Paulo: Vida Nova, 1990, 2v., p. 347.

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desenvolvera-se a seguir na Holanda.63 Imitao de Cristo64 a obra mais clebre desta escola.65 A Devotio Moderna enfatizou a imitao da humanidade de Cristo. Centralizava-se nos aspectos prticos da espiritualidade crist, como a orao, a meditao, o exemplo de Cristo e o estudo das Escrituras.66 devotio por buscar uma verdadeira piedade, mais vvida que intelectualizada. moderna, porm cristocntrica, interessou-se especialmente pela vida histrica de Jesus, pela meditao nos mistrios da humanidade de Cristo, meio para contemplao. Possuiu uma tendncia prtica e asctica. O movimento no foi monstico no seu sentido pleno, ainda que absorveu muitas de suas caractersticas. Perdeu profundidade intelectual, porm ganhou adeptos universalizando a piedade. Props passos na orao: lectio, meditatio, oratio, contemplatio (leitura, meditao, orao e contemplao). Ainda que fosse controvertida, a devotio moderna, se encontrou plenamente inserida dentro da Igreja Catlica. Seus adeptos no advogaram uma ruptura radical com a Igreja, embora seu ensino, em muitos aspectos, andou na direo reformada. Seu valor permanente est na literatura que produziu e na sua influncia direta ou indireta sobre os Anabatistas e outros reformadores.67 Esta busca por uma comunicao mais imediata e pessoal com Deus atraiu e inspirou a muitos. O alvo era a busca de uma renovao espiritual da Igreja. No entanto, sempre foi vista com maus olhos pela Igreja, pois muitos temiam que as pessoas no precisassem mais dela e de seus rituais a partir do momento em que desenvolvessem uma comunicao direta com Deus.68

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BRANGER, op. cit., p. 252, nota 47. Livro atribudo a Thomas Kempis que contribuiu mais que qualquer outro livro para aumentar a duradoura reputao dos Irmos da Vida Comum. Thomas entrou para um mosteiro agostiniano, onde foi ordenado. Ele foi o autor ou o compilador e editor da obra. A obra reflete a importncia dada pelos irmos a prticas morais (CAIRNS, op.cit., p. 204, nota 39). McGRATH, Alister E. Teologia sistemtica, histrica e filosfica. So Paulo: Shedd, 2005, p. 652. OLSON, Roger. Histria da teologia Crist. 2000 anos de Tradio e Reformas. So Paulo: Vida, 2001. DAVIDS, P. H. Devotio Moderna. In: Enciclopdia histrico teolgica da Igreja Crist. Ed. Elwell, Walter A. So Paulo: Vida Nova, 1990, 1v., p. 452. PERRY, Marvin. Civilizao Ocidental. Uma Histria Concisa. So Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 231, 232.

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Este movimento foi classificado como mstico, pois enfatizou o aspecto subjetivo do relacionamento do homem com Deus, pois o povo comeou a questionar a liderana espiritual a que estava submetido, e desejou um contato mais pessoal e direto com Deus.69 Por isso, tornou-se tambm um protesto e uma reao contra aqueles tempos atribulados e contra uma Igreja que estava corrompida e decadente. Este foi o primeiro movimento considerado primordial para o xito da Reforma70 Protestante.71 Dois elementos se juntaram para compor a Reforma: a exigncia espiritual de milhes de almas angustiadas que se opunham ao ritualismo e a doutrina da Justificao pela f. Toda a teologia de Lutero baseou-se no livro de Romanos, com a mxima bblica sola fide somente a f. A partir dela, crer passou a ser necessrio e suficiente para ser salvo, no as obras. Como se tem visto na literatura, lgico que existiam outras questes importantes que dividiam os protestantes e a Igreja Catlica Romana, e muitas delas eram de natureza teolgica. No entanto, nenhuma outra questo provocou tanta turbulncia quanto a doutrina da salvao,72

pois segundo a posio reformada, ela s pode

acontecer ao ser humano com base na justia de Deus, que pela f, e no a partir da justia das boas obras, conforme defendido pela Igreja Catlica. 73

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CAIRNS, op. cit., p. 202, nota 39. At cerca de 1525, pode-se considerar que a Reforma gira em torno de Martinho Lutero e da Universidade de Wittenberg, na atual regio nordeste da Alemanha. Entretanto, no incio da dcada de 1520, o movimento tambm ganhou fora, a princpio de maneira independente, na cidade sua de Zurique. A Reforma de Zurique, por meio de uma srie de complexos desdobramentos, passou por diversas modificaes de ordem poltica e teolgica, vindo, no futuro, a ser associada principalmente cidade de Genebra e figura de Joo Calvino. McGRATH, op. cit., p. 95, nota 65. Em sentido lato, o termo Reforma usado em relao a 4 movimentos: O Luteranismo; a Igreja Reformada, que normalmente recebe a designao de Calvinismo; a Reforma Radical, tambm conhecida como Anabatismo e a Contra-Reforma, ou Reforma Catlica. Em sentido mais estrito, exclui-se a Reforma Catlica. Em muitos trabalhos acadmicos, o termo Reforma usado em relao aquilo que se conhece como Reforma magisterial ou a Reforma principal, ou seja, aquela ligada s Igrejas Luterana e Reformada, excetuando-se os anabatistas. Ibidem, p. 96. O termo Protestante surgiu em conseqncia da dieta de Speyer (1529), que votou pelo fim tolerncia ao movimento luterano na Alemanha. Em abril do mesmo ano, seis prncipes alemes e quatorze cidades protestaram contra essa medida repressora e em defesa da liberdade de conscincia e dos direitos das minorias religiosas. Portanto, no estritamente correto usar este termo Protestante antes de Abril de 1529, pois representa um anacronismo. Ibidem p. 97. Tambm chamada de soteriologia. O termo vem do grego soteria, que literalmente significa livramento, libertao e preservao de qualquer perigo. No Cristianismo assumiu o significado do fato de o homem ser salvo do poder e dos efeitos do pecado. WHITE, R. E. Soteriologia. In: Enciclopdia histrico teolgica da Igreja Crist. Ed. Elwell, Walter A. So Paulo: Vida Nova, 1990, 3v., p. 337. OLSON, op. cit., p. 383, nota 66.

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De certa forma, pode ser creditado ao movimento o ttulo de antecipador 74 do toque mais pessoal da religio, o que foi caracterstica fundamental da Reforma. Ele decorreu de uma reao contra o ritual sacerdotal formal e mecnico e contra o escolasticismo rido da Igreja de seu tempo.75 Erasmo76 (c.1466-1536) recebeu influncias diretas da devotio moderna. Ele estudou em escola dirigida pela ordem mstica de cristos leigos, os Irmos da vida comum, uniu a devoo mstica

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No entanto, foi ultrapassado pela Reforma, e no sobreviveu por muito tempo aps o incio do sculo XVII. DOUGLAS, In: Enciclopdia histrico teolgica da Igreja Crist. Ed. Elwell, Walter A. So Paulo: Vida Nova, 1990, 2v., p. 347. CAIRNS, op. cit., p. 204, nota 39. Humanista e precursor da Reforma. considerado por um dos maiores telogos da Renascena (OLSON, op. cit., p. 370, nota 66). Vasta a literatura sobre a vida e obra deste pensador. Seu pensamento e contribuio so de grande envergadura. Apresent-lo, neste trabalho, de forma sucinta, uma misso praticamente impossvel. No entanto, no af de atingir o objetivo deste captulo, que oferecer uma contextualizao histrica sobre Calvino, h de se cometer esta injustia. Durant dedica um captulo inteiro de seu livro ao humanista Erasmo, chamando-o de Erasmo, o precursor. O considera, o que comum na literatura histrica, como o maior dos humanistas que nasceu em Rotterdam e proximidades no perodo de 1466 a 1469. Ele teve uma educao moldada pelos irmos da vida comum, cuja piedade e disciplina eram rigorosas. Ali adquiriu o domnio do latim e das literaturas latinas. Em 1492 foi ordenado sacerdote. Aps isto aprendeu o grego, o que lhe coloca em intimidade com a literatura grega. Com 22 anos conheceu Thomas Morus (1478-1535). Foi influenciado profundamente pelo Humanismo, transformando-se em um letrado ardoroso e aplicado. Ao deixar a Inglaterra em janeiro de 1500 tomou a deciso de estudar e publicar o texto grego do Novo Testamento, com o objetivo de destilar o Cristianismo puro, que tanto na opinio dos reformadores, quanto dos humanistas, havia sido superado e encoberto no decorrer dos sculos (DURANT, op. cit., p. 229-230, nota 41). Suas crticas ao status quo religioso de sua poca fizeram com que, sua principal obra, Elogio da Loucura, desempenhasse um importante papel na ecloso da Reforma Protestante. As crticas dos reformadores, especialmente as de Martinho Lutero, estavam expressas claramente nas pginas do livro de maneira clara. Essa identidade levou-os a se aproximarem. O convite de Lutero para compor o movimento foi recusado por Erasmo, que discordava de algumas concepes bsicas do pai da Reforma, entre elas a do Pecado Original e a forma como entendia o livre-arbtrio. Erasmo acreditava totalmente na capacidade e nas possibilidades da Razo humana em distinguir o bem do mal, o certo do errado. Entendia que o livre-arbtrio de cada um seria a fonte de todo pensamento religioso e moral. Lutero, por sua vez, defendia que o Homem estava condenado pelo pecado original miserabilidade, condenao e degradao, somente podendo ser salvo pela graa divina. Para ele, a salvao dos seres somente poderia ser atingida pela f e pela espera da bondade de Deus. Esse ponto, que claramente distinguia o pensamento humanista das correntes filosficas anteriores, acabou por afastar Erasmo da Reforma Protestante. O prprio Lutero acabou vendo em Erasmo o seu maior adversrio (BRENGER, op. cit., p. 254, nota 47). Ainda assim, Erasmo apoiava Lutero secretamente, mas se recusava a tomar partido dele ou de sua Reforma (OLSON, op. cit., p. 373, nota 66). Mesmo que Erasmo no fosse protestante, em nenhum sentido do termo, muito fez para estabelecer as bases da Reforma. Uma de suas maiores contribuies foi a tese, revolucionria e altamente atrativa para a poca, de que a Igreja poderia ser reformada atravs de um retorno ao clssico da f crist, a Bblia. Para Erasmo, a f crist no era uma mera observncia de preceitos morais ou um cdigo de moral. Sua nfase humanista renascentista levou-o a sugerir que a leitura das Escrituras transformaria seus leitores, motivando-os ao amor a Deus e ao prximo. Seus ensinos e sua influncia contriburam para que as reformas fossem levadas a efeito, tanto a Catlica quanto a Protestante. (MCGRATH, op. cit., p. 83, nota 65).

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rigorosa pedagogia humanista, viajando toda a Europa como educador e estudioso da Bblia. 77 A Devotio Moderna exerceu evidentes influncias na vida de Martinho Lutero (14831546) e Calvino, pois, de algum modo, remodelaram sua sensibilidade religiosa, pois esta prtica tinha enraizado-se no rito e na alma do escol cristo.78 Possivelmente, foi por meio dessa longa influncia que Calvino ganhou familiaridade com a obra Imitao de Cristo, pois atravs dela Calvino ficou convicto de ter recebido um grande ensinamento sobre Agostinho.79

1.4 A INFLUNCIA DO HUMANISMO As origens do Humanismo 80 remontam Itlia, onde floresceu no decurso do sculo XV. Depois de 1450 atravessou os Alpes e o Adritico. Em expanso invadiu as novas universidades da Europa. 81 A Europa estava experimentando transformaes econmicas, polticas e

intelectuais que, aos poucos, minavam a estrutura do Sacro Imprio Romano. O ambiente intelectual da Igreja estava mudando, especialmente com a recuperao e publicao de textos clssicos, medida que revelavam um mundo de saber e de arte. A filosofia da Idade Mdia77 78 79 80

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libertou-se no sculo XIV com Guilherme de

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PERRY, op. cit., p. 228, nota 68. BRANGER, op. cit., p. 251 et seq., nota 47. WALLACE, Ronald. Calvino, Genebra e a Reforma. So Paulo: Cultura Crist, 2003, p. 10 O termo Humanismo foi inicialmente utilizado pelo educador F. J. Niethammer, em 1808, para se referir a uma espcie de educao que enfatiza o ensino do grego e do latim clssicos. Curiosamente o termo no foi usado na prpria poca da Renascena, embora a palavra italiana umanista seja, freqentemente encontrada. Essa palavra refere-se funo dos professores universitrios de studia humanitatis - O estudo das humanidades, ou artes liberais, tais como a poesia, a gramtica e a retrica. Cf. MCGRATH, op. cit., p. 71, nota 28; Cf. COSTA, op. cit., p. 47, nota 37. Para esta difuso da cultura renascentista, contribuiu em larga medida o fato de que a segunda metade do sculo XV foi a poca que viu nascer o livro impresso. Nenhum grupo percebeu to depressa quanto os humanistas as potencialidades do novo meio de comunicao. SKINNER, Quentin. As fundaes do pensamento poltico moderno. So Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 215. Cf. BRANGER, op. cit., p. 252-254, nota 47. Cf. WALKER, W. Histria da Igreja Crist. So Paulo: Aste, 1980, p. 401 et seq. No se pode falar em Filosofia Medieval, no singular, e sim em Filosofias Medievais, no plural. A base da argumentao para tanto continua a mesma: se pensadores que possuem uma mesma f produzem teologias to diferentes, porque possuem filosofias diferentes. E nestas filosofias, igualmente ortodoxas, que no se deixam reduzir uma outra, preciso fazer uma escolha. DE BONI, Luis Alberto. Estudar filosofia medieval. In: Filosofia Medieval. Textos. Porto Alegre: Edipucrs, 2000, p. 22.

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Ockham (cc.1285-1347)83 e Marslio de Pdua (1280-c.1343), tornou-se secularizada, ctica e crtica.85

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e no sculo XVI

Para Morineau, este renascimento teve manifestaes do lado civil e do lado eclesistico, o que alterou a forma de ambos os lados.86 A Reforma surgiu neste contexto Humanista e Renascentista, tendo inclusive alguns pontos em comum.87 Apesar da importncia do Humanismo para a Reforma, esta seguiu um rumo diferente daquele, tendo obviamente pontos discordantes e objetivos diferentes.88 No entanto fato que a nfase humanista no retorno s fontes primrias fez com que os humanistas cristos despertassem para o estudo dos originais da Bblia. Assim, o Humanismo renascentista redescobriu e reafirmou os gregos, os telogos redescobriram e reafirmaram a Bblia.89

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Tornou-se conhecido com a Navalha de Ockham. Conceito revolucionrio que defende a intuio como ponto de partida para o conhecimento do universo. Ockham demonstrou que o "Duns Scotus", princpio da economia, conhecido como "navalha de Ockham" estabelece que "as entidades no devem ser multiplicadas alm do necessrio, a natureza por si econmica e no se multiplica em vo". Segundo este princpio filosfico, existindo diversas teorias e no havendo evidncias que comprovem se mais verdadeira alguma em relao a outras, vale a mais simples, ou se existirem dois caminhos que levem ao mesmo resultado, usa-se o mais curto, e que pode ser provado sensorialmente. Em outras palavras, no se deve aplicar a um fenmeno nenhuma causa que no seja logicamente dedutvel da experincia sensorial. O conhecimento sensvel superior ao conhecimento intelectual, porquanto o primeiro intuitivo, ao passo que o segundo abstrato. Desta forma, em torno de Deus nada se conhece filosoficamente, mas atravs da f. Esta regra foi usada pelo filsofo para eliminar muitas das entidades com que os pensadores escolsticos explicavam a realidade. O ockhamismo tem um xito vasto e imediato nos sculos XVI e XV, mas depois se declina num formalismo lgico. Com ele declina e termina a Escolstica medieval. PADOVANI H.; CASTAGNOLA, L. Histria da filosofia. So Paulo: Melhoramentos, 1961, p. 190-191; Cf. GILSON, Etienne. O esprito da filosofia medieval. So Paulo: Martins Fontes, 2006. O mais importante filsofo poltico dessa poca a contribuir para que os princpios do aristotelismo se aclimatassem na Itlia. Sua principal obra poltica foi O Defensor da Paz (1324) no qual ele procura defender a liberdade das cidades-Estado contra as intromisses da Igreja. SKINNER, op. cit., p. 73,74, nota 81. DURANT, op. cit., p. 13,14, nota 41. Para Skinner, ambos figuravam como os dois maiores pensadores polticos da poca. Cf. SKINNER, op. cit., p. 319, nota 81. MORINEAU, Michel. O sculo XVI 1492-1610. Lisboa: Dom Quixote, 1980, p. 321. possvel que, sem os humanistas, os reformadores no tivessem conseguido abalar o poderoso edifcio da ordem medieval e suscitar sentimentos de consternao humana e busca ardente de graa [...] pode-se afirmar que os perodos de crise so mais propcios para a teologia do que os tempos de riqueza espiritual e moral. (SENARCLES, Jacques. Herdeiros da Reforma. So Paulo: Aste, 1989, p. 103 MCGRATH, Alister. Reformation thought: an introduction. Massachusetts, Blackwell Publishers, 1993, p. 62-65. GENE, Edward Veith, Jr. Tempos ps-modernos. So Paulo: Cultura Crist: So Paulo, 1999, p. 25.

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Uns quatro anos da elaborao das teses de Lutero, Maquiavel (1469-1527)90 escreveu uma profecia assustadora ao afirmar que se o Cristianismo tivesse sido conservado segundo seus princpios e preceitos originais, tanto a comunidade como o Estado cristo seriam mais unidos e felizes; e que aquele que examinasse os princpios originais sobre os quais a religio est fundada, ver que so diferentes da atual prtica, e ver tambm que sua runa ou punio est muito prxima.91 Esta influncia ocasionou a verificao de diferenas existentes entre os princpios do Novo Testamento e a religio romana.92 Tambm os telogos da Reforma puderam se valer das tradues e edies de obras, inclusive crists, at ento desconhecidas ou de pequenssima circulao, feita pelos humanistas, como por exemplo, a traduo do Novo Testamento Grego93 feita por Erasmo em 1516.94 O Humanismo de Calvino visvel em sua formao, escritos e atitudes. Ele apoiou o humanista Guillaume Bud95 (1455-1536), que era chamado de prodgio da Frana e que, ao lado de Erasmo de Rotterdam e Juan Luiz Vives compuseram o triunvirato francs (1492-1540). Bud, historiador, filsofo e helenista, contribuiu para o reavivamento do interesse pela literatura grega e colaborou na introduo do Humanismo na Frana.96 Desta forma, passou a ser considerado pelos eruditos cristos. Calvino tambm dedicou o seu Comentrio da Primeira Epstola aos Tessalonicences (1550) ao seu mestre de gramtica e retrica, conhecido humanista, Maturinus Corderius. Assim ele diz:Eu me reconheo endividado para com voc pelo progresso que foi feito desde ento. E isso eu estava desejoso de testemunhar posteridade que, se qualquer vantagem provir a eles de meus escritos, eles 97 sabero que tem em algum grau originado com voc.

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Seu livro O Prncipe (1532), Maquiavel descreveu as maneiras de conduzir-se nos negcios pblicos internos e externos, e fundamentalmente, como conquistar e manter um principado. Apud DURANT, op. cit., p. 14, nota 41. CAIRNS, op. cit., p. 223, nota 39. Novum Instrumentum Omne, Basilia, Froben, 1516. Quanto uma sntese das crticas de Erasmo Igreja Catlica Romana, suas obras e seu desejo de purific-la, ver: ROUANET, Sergio Paulo. As razes do Iluminismo. 2 ed. So Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 283-284. CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. Campinas: Unicamp, 1992, p. 195. Cf SKINNER, op. cit., p. 231, nota 81. Na Frana, Bud alcanou uma reputao mpar de erudito helenista graas publicao de seus Comentrios da Lngua Grega, datados de 1529. Ibidem, p. 221. FRAILE, Guilhermo. Histria de la filosofia. Madrid: La Editorial Catolica, S.A, 1966, p. 62. Cf. WALKER, op. cit., 3 v., p. 404, 405, nota 81. CALVINO, Joo. Comentrio de I Tessalonissences. So Paulo: Paracletos, 1999, p. 16.

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Para Calvino, o Humanismo estava em harmonia com o verdadeiro Cristianismo, pois aquilo que havia de melhor no Humanismo o ajudava a redescobrir o que havia de melhor no Evangelho, da seu empenho em estudar as lnguas originais, levandoo a realizar tradues do texto bblico do grego e hebraico.98 O princpio geral que embasa o Humanismo pode ser sintetizado no slogan ad fontes de volta s fontes. Este princpio humanista o componente hermenutico em Calvino que retorna ao estudo da Bblia nas lnguas originais.99 Calvino se beneficia da ad fontes, e figurou entre muitos que se beneficiaram destas ferramentas do Humanismo. Assim, tornou-se o exegeta da Reforma ao habilitar-se nas tcnicas lingsticas e textuais humanistas e utiliz-las para a interpretao das Escrituras.100 Um aspecto importante a destacar nessa fase relaciona-se, porm, a uma forma especfica de Humanismo que Calvino encontrou em Orleans e Bourges. Uma conseqncia da proposta humanista de imergir diretamente ad fontes era uma manifesta impacincia com glossrios e comentrios. Longe de serem vistos como ferramentas teis para o estudo, aqueles vieram, progressivamente, a ser considerados como obstculos ao compromisso com o texto original.101 No segundo captulo deste trabalho abordar-se- especificamente os princpios da hermenutica de Joo Calvino, mas faz-se necessrio destacar aqui que Calvino lanou mo de sua habilidade com os assuntos legais e forenses em sua tarefa hermenutica-exegtica. Ele chegou a Orleans em 1528. No ano seguinte foi atrado a Bourges em razo da reputao de um professor de direito italiano que havia chegado recentemente quela cidade, o jurista Andra Alciati (1492-1550).102 Bourges comeou a tomar clebres acadmicos de outras instituies, oferecendo altos salrios que compensavam a falta de prestgio da universidade. Alciati foi seduzido a deixar Avignon em razo de um atrativo acordo financeiro. Aps um tempo, porm, Calvino descobriu que o carisma de Alciati estava em declnio; ele

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PERRY, op. cit., p. 221, nota 68. McGRATH, op. cit., p. 73, nota 28. Ibidem, p. 74,75. McGRATH, op. cit., p. 76, 77, nota 28. Foi um jurista italiano, nascido nas proximidades de Milo. Em 1518 tornou-se professor de direito em Avignon. Em 1529 foi chamado para a academia de Bourges.

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parece ter retornado em outubro de 1530, onde estudou direito civil. Assim, as origens do mtodo de Calvino esto no seu estudo de direito, na sofisticada atmosfera de Bourges. H vrias indicaes de que ele aprendeu com Bud a necessidade de ser um competente fillogo, de fazer uma aproximao direta a um texto clssico, a interpret-lo dentro dos parmetros lingsticos e histricos a partir de seu contexto e a aplic-lo s necessidades do contexto atual.103 Como j foi demonstrado, parte da educao de Calvino se deu em Paris. O Collge de Montaigu parece ter estado na vanguarda do ressurgimento do movimento chamado via moderna.104 No final do sculo XV, a hostilidade em relao via moderna intensificou-se em Paris. Em 1 de maro de 1474, um extenso decreto contra os nominalistas foi emitido pelo rei da Frana. O principal efeito do decreto foi o de persuadir muitos estudantes e mestres de Paris, simpatizantes do movimento, a se transferirem para as universidades alems. O decreto posteriormente foi revogado, em 1481, deixando o caminho livre para o restabelecimento da via moderna em Paris. As tcnicas tpicas da Renascena tinham a finalidade de chegar tradues mais novas e mais precisas dos textos clssicos. Tal como no direito romano, a aplicao destas tcnicas humansticas Bblia tiveram grande impacto no desenvolvimento do pensamento poltico do sculo XVI.105 E foi neste contexto que Calvino recebeu influncias da erudio humanista, tanto jurdica, quanto teolgica e filolgica.106

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McGRATH, op. cit., p. 77,78, nota 28. Movimento que constituiu a ltima escola a se sobressair no interior da Escolstica medieval. A via moderna tem incios no sculo XIV, e surgiu como uma reao consciente contra a via antiqua dos tomistas, defendendo que tanto a razo quanto a f so caminhos para compreender os desgnios de Deus, uma vez que a f jamais contradiz, apenas aperfeioa a natureza. Seu expoente mais original e influente foi Guilherme de Ockham. SKINNER, op. cit., p. 305, nota 81. SKINNER, loc. cit., p. 228, 60 Ibidem, p. 220, 228. Para Skinner, [...] essa descoberta por sua vez contribuiu para efetuar uma revoluo nas relaes que eram tradicionais entre a Igreja e as autoridades temporais em boa parte da Europa do Norte, uma revoluo na qual pode se afirmar que as tcnicas do Humanismo bblico desempenharam o papel de cavalo de Tria.

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1.5 CALVINO EM GENEBRA Genebra era uma cidade muito antiga. Fora nos tempos pr-histricos um conglomerado de habitaes construdas sobre estacas. No tempo do imprio romano foi uma ativa rota comercial, na Idade Mdia esteve sob domnio de seu bispo catedrtico, tornando-se uma fora poltica na cidade.107 A Genebra do sculo XVI era uma cidade sua, de fala francesa, situada ao sul do lago Leman, conhecido hoje como lago de Genebra. Ela dividida em duas pelo rio Rdano, tendo uma ponte ao norte, conhecida como St. Gervais, que proporcionava o contato entre as duas partes. At 1536, a situao da cidade era delicada. Genebra foi uma repblica que estava inserida entre os limites dos cantes suos, os domnios do duque de Savia e o reino da Frana, e uma luta pelo poder gerava disputas na cidade.108 A partir de um governo eclesistico estabelecido, as principais famlias de Genebra organizaram o Conselho dos Sessenta para a elaborao das leis da cidade. O Conselho, ou Consistrio reunia-se na catedral de So Pedro do bispado, de forma que a jurisdio civil e eclesistica entrelaaram-se. Tal Conselho regulava e dirigia o exrcito, a moral, entre outros. Por volta de 1520, os chefes de Genebra eram na maioria comerciantes. Em 1526, tais burgueses formaram o Pequeno Conselho dos Vinte e Cinco, que assumiu de fato o governo do municpio, e eram uma espcie de comisso executiva do qual estavam subordinados todos os negcios polticos e civis. O bispo declarou a cidade sob o jugo da revolta e chamou em seu auxlio os soldados do duque. No entanto, foram derrotados pelo exrcito da cidade de Berna. O bispo fugiu para Annecy, e o Grande Conselho, que se indignara com o apoio que o clero catlico dera ao bispo, se pronunciou pela f reformada, assumindo assim a liderana tanto civil quanto eclesistica de toda cidade (1536), dois meses antes da chegada de Calvino a Genebra. 109

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DURANT, op. cit., p. 390, nota 41. GAMBLE, Richard, Sua (org.).Triunfo e Declnio. In: REID, W. Stanford. Calvino e sua influncia no mundo ocidental . So Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 64. LESSA, op. cit., p. 91-97, nota 39; DURANT, op. cit., p. 389-391, nota 41; BIELER, op. cit., p. 86 nota 50; GAMBLE, op. cit, p. 64, nota 109.

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No h um consenso sobre a populao de Genebra antes da chegada de Calvino em 1536. McNeill110 defende uma cifra de 12.000 habitantes, Nichols111 13.000 e Hermisten Costa,112 citando Stanford Reid, defende apenas 9.000 habitantes. Contudo, parece ser mais aceito 12.000 habitantes a populao no incio do sculo XVI. A cidade era conhecida pelas suas ruas limpas com banheiros pblicos e pelo forte comrcio que nela acontecia, fruto de freqentes feiras setorizadas. As propriedades foram usadas como templos para cultos, instituies de caridade e ensino. Uma severa disciplina moral foi estabelecida por meio da lei. Os cidados foram chamados para jurar fidelidade ao Evangelho, sendo banidos aqueles que se recusassem a assistir o culto religioso da Reforma. Era essa a Genebra onde Calvino acabava de chegar.113 Guillerme Farel foi o lder protestante que comeara a Reforma em Genebra. Agora estava determinado a no deixar Calvino escapar de suas mos. Farel acreditava que Calvino fosse capaz de realizar a obra para a qual ele prprio no possua envergadura suficiente: reconstruir Genebra. Afinal, tinha em suas mos o autor das Institutas e no o deixaria escapar. O famoso encontro obrigou Calvino a ficar em Genebra. O prprio Calvino escreveu no prefcio do comentrio de Salmos que Farel o deteve em Genebra, no propriamente movido por conselho e exortao, e, sim, movido por uma fulminante imprecao [esconjuro ou maldio], a qual me fez sentir como se Deus pessoalmente, l do cu, houvera estendido sua poderosa mo sobre mim e me aprisionado.114 Enquanto Calvino tinha apenas 26 anos, Farel j tinha a experincia dos seus 47 anos. Calvino se viu forado a reformar a Igreja da cidade, estabelecendo quatro ofcios: pastores, mestres, ancios e diconos. A Igreja de Genebra era constituda pelo

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McNEIL, John T. The history and character of Calvinism New York: Oxford: Oxford University Press, 1954, p. 36. NICHOLS, Robert H. Histria da Igreja Crist. So Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1978, p. 167. COSTA, Hermisten M. P. Joo Calvino: O Humanista Subordinado ao Deus da Palavra. In: Fides Reformata, n. 2, 3v., p. 27. So Paulo: Centro Presbiteriano de Ps-Graduao Andrew Jumper, 1999, p. 27. DURANT, op. cit., p. 391, p. 20, nota 41. CALVINO, op. cit., p. 40, nota 25.

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Consistrio e pelo Conselho de Pastores, este ltimo criado por Calvino. Genebra era uma cidade governada por conclios. Os conclios eram uma reunio de autoridades eclesisticas com o objetivo de discutir e deliberar sobre questes pastorais, de doutrina, f, e costumes. Uma tentativa de Calvino em resgatar o modelo do novo testamento, quando os Apstolos se reuniram para tratar sobre os temas que estavam dividindo os primeiros cristos. Antes de Calvino no havia uma normatizao legislativa organizada e explicitada para todos. Movido pelo seu zelo de sempre ser fiel ao ensino moral da Bblia, e ajudado por seu conhecimento jurdico, ele foi o agente e mentor de vrias mudanas polticas. bem verdade que Calvino foi convocado para se envolver nestas atividades, ajudando na confeco do corpo de leis para a cidade, posteriormente sua intensa atividade na reformulao da vida religiosa. 115 Como reflexo da poltica praticada em sua poca, a mistura funcional Igreja-Estado exercido por sculos pelo catolicismo romano tambm foi claramente adotada pelos protestantes em Genebra. Reformadores como Martin Bucer (1491-1551)116 e Zwnglio117 se posicionaram favorveis no independncia da Igreja em relao ao estado, posio que Calvino no apoiava. Nesse assunto, parece haver um ponto de discordncia entre os estudiosos.115 116

GAMBLE, op. cit., p. 65, nota 109. Martin Bucer ou Butzer (latim Martinus Buccer, Martinus Bucerus) nasceu em Schlettstadt na lscia (hoje Slestat - Frana). Em 1506, entrou para a ordem Dominicana e foi enviado para estudar em Heidelberg, onde se familiarizou com as obras de Erasmo e as idias de Lutero. Ele tornou-se reformado e, em seguida, abandonou a ordem dominicana (1521). Foi excomungado. Casou-se com uma antiga freira, Elisabeth Silbereisen. Em 1522, ele foi pastor em Landstuhl, no Palatinado, e foi grande propagador das doutrinas do protestantismo. Depois da sua excomunho, em 1523 ele fez a sua sede em Estrasburgo, sendo o seu principal reformador. Mais tarde seguiu para a Inglaterra, onde se tornou professor de teologia na Universidade de Cambridge (1549), tendo sido fundamental para a reformulao do Livro de orao comum da Igreja Anglicana (1552). Bucer influenciou Calvino em vrios aspectos de sua teologia, principalmente quanto aos quatro ofcios, a doutrina do Esprito Santo, a disciplina eclesistica e tantos outros pontos. MICKEY, P.A. Bucer, Martin. In: Enciclopdia histrico teolgica da Igreja Crist. Ed. Elwell, Walter A. So Paulo: Vida Nova, 1990, 1v., p. 214-215. Ulrich Zwnglio (1484-1531). Depois de Lutero e Calvino, o mais importante dos primeiros reformadores protestantes. Tambm um humanista, por volta de 1516, depois de estudos no NT grego de Erasmo, converteu-se f Protestante. Zunglio foi o reformador da Sua. Defendia fortemente a Predestinao em sua teologia, mas assumiu no possuir toda a percepo das relaes entre os temas das Escrituras que Calvino empregou na discusso sobre a doutrina da Eleio. Promoveu reformas religiosas em Zurique. Mesmo depois da sua morte, exerceu um papel dominante nas questes eclesisticas. Defendeu um modelo de relacionamento entre a Igreja e o Estado, enquanto Calvino lutava pela autonomia da Igreja em suas prprias questes. NOLL, M. A. Zwnglio, Ulrich. In: Enciclopdia histrico teolgica da Igreja Crist. Ed. Elwell, Walter A. So Paulo: Vida Nova, 1990, 3v., p. 656.

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Embora no fosse desejado, a interferncia do Estado nas decises e estruturas de ao da Igreja, Bouwsma118 alerta que Calvino admitia como ao legtima do Estado defender a Igreja e executar vingana sobre os profanos ou sobre aqueles que queriam reduzir o Evangelho a nada. Sobre este aspecto tratar-se- o capitulo 3 desta pesquisa. A fim de estabelecer uma base religiosa em uma moral crist, Calvino escreveu o Catecismo, aprovado pelo Grande Conselho, em novembro de 1536. Houve, por parte do conselho, uma disciplina bastante severa com o objetivo de moralizar os costumes. Foram estabelecidas rgidas regras de comportamento, foi proibida a vadiagem e o comerciante ficava impedido de roubar no peso ou extorquir. Em 1536, o Pequeno Conselho decretou a abolio da missa e a remoo de todas as imagens e relquias das igrejas.119 No documento havia pontos pacficos como a valorizao da famlia, a eleio dos pastores de cada parquia e a representatividade dos presbteros nos distritos. Contudo, logo no primeiro artigo do documento, havia uma matria que Biler classificou de "equvoco calvinista que suscitou controvrsias e interpretaes fantasiosas. Por ele dava-se ao magistrado civil o poder de intervir para avaliar a f dos cidados, o que no deixava de ser uma espcie de continuidade da poltica Catlico-Romana.120 No demorou para que o povo genebrense, acostumado com a complacente disciplina moral anterior, resistisse s novas disposies.121 Aqueles que anteriormente lutaram na libertao da cidade contra o bispo, se reorganizaram exigindo a liberdade de conscincia e culto. Esta coalizo conseguiu obter maioria no Grande Conselho na eleio de 3 de fevereiro de 1538. O novo conselho ordenou a Farel e Calvino que se mantivessem fora da poltica. Os dois recusaram-se a118

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BOUWSMA, William James. John Calvin: a sixteen century portrait. New York: Oxford University Press, 1989, p. 87. DURANT, op. cit., p. 391, 392, nota 41. A abolio das missas e a retira das imagens e relquias das igrejas se tornou uma prtica freqente dentro dos movimentos reformadores, no af de distinguir a f Reformada da f Catlica. A f Reformada adotou a expresso culto em substituio missa, mudanas estas no apenas nominais, mas tambm litrgicas. BILER, op. cit., p. 135-137, nota 50. Para Walker, bastante evidente que no foi Calvino que instituiu a regulamentao de f e dos costumes pelo governo. Era essa uma herana, a um tempo, das funes dos Conselhos da cidade na Idade Mdia e da autoridade episcopal a que os prprios Conselhos pretendiam haver sucedido. WALKER, op. cit., p. 193. Cf. DURANT, op. cit., p. 392, nota 41.

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cumprir as ordens dadas, e posteriormente foram depostos (23 abril) e convidados a sair da cidade dentro de trs dias.122 Segundo Calvino, embora Genebra fosse neste tempo uma cidade protestante, ela o era nominalmente, da sua declarao ao despedir-se do Conselho:Quando cheguei a esta igreja, no havia praticamente nada. Eles estavam pregando e isso tudo. Eles eram bons em procurar dolos e queim-los, 123 mas no havia outra Reforma, tudo estava em alvoroo.

Dali foi para Estrasburgo124, ento cidade alem sob o controle do Sacro Imprio Romano-Germnico, servindo como ministro da congregao dos protestantes, onde introduziu a liturgia em francs na Igreja fundada por seus compatriotas protestantes ali asilados.125 Enquanto isto, em Genebra o bispo, Jacopo Sadoleto, escreveu uma carta aos Genebrenses aconselhando-os a prtica do catolicismo. Sadoleto, que detinha um122

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DURANT, loc. cit., nota 41; BILER, op.cit. p. 142, nota 50; LESSA, op.cit., p. 107-112, nota 39. Em Genebra havia circunstncias que levaram a primeira tentativa reformista de Farel e Calvino ao fracasso. Entre estas, estava o fato de Calvino idealizar uma Igreja superior. Longe desse seu ideal, a situao real de Genebra era outra. Na verdade, mesmo com a adeso Reforma, Genebra ainda estava longe de ser uma tpica cidade reformada. Uma reforma de cunho poltico no produzira os efeitos morais e espirituais necessrios, e a cidade estava longe ainda de ser Protestante por condio doutrinria (Walker apud FERREIRA, op. cit., p. 77, nota 24). Desse modo, a tentativa de Calvino em conseguir total adeso religio crist, com abjurao aberta do papado e com a aceitao de sua disciplina, no obtivera xito. Muitos genebreses se recusaram a aderir. Somente em 20 de julho de 1537, o Conselho Geral e o povo de Genebra solenemente declararam sua aceitao das principais doutrinas e disciplinas da religio crist (Beza apud FERREIRA, loc. cit., p. 77). Mas, ainda restavam ser aceitos pela populao genebrina tanto o Catecismo como a Confisso de F que Calvino redigira, e eles deveriam ser confirmados por uma subscrio individual. Muitos genebrenses novamente se recusaram a faz-lo. Com o desacerto dessas medidas, o PC de Genebra resolveu afrouxar as suas exigncias. Este mesmo PC chamou a si a jurisdio da comuna, tanto em assuntos morais como religiosos. Desse modo, os membros do PC contrariaram Calvino, pois ele julgava que o poder civil era incapaz de resolver os assuntos morais e religiosos. Para Calvino, essas eram tarefas da Igreja, por meio de suas autoridades, presbteros e pastores, e de seus Consistrios ou presbitrios. Alm disso, Calvino debatia com as prticas que para ele eram detestveis. Tambm ele julgava inconvenientes certos costumes que os genebreses herdaram de outras pocas, como: a quebra do domingo, os jogos, as festas sem recato e com muita pompa, adultrios, bebedeiras, discusses etc. (FERREIRA, loc. cit. , p. 78). Para Calvino, a questo de honra era: a capital Berna conseguira ser moralizada pelo seu conclio ou PC, em 1528. E isso ocorrera com a introduo da doutrina Ref