a representação da cultura brasileira no filme caramuru invenção do brasil

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” – UNESP FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇÃO FAAC DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL DPTO CSO Lilian Figueiredo RA: 931098 Juliana Baptista RA: 931241 Disciplina: Cultura Brasileira Docente: Prof. Dr, Luiz Fernando da Silva 4º ano Jornalismo Noturno BAURU 2012 A representação da cultura brasileira através do filme Caramuru: A Invenção do Brasil

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Page 1: A representação da cultura brasileira no filme Caramuru Invenção do Brasil

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” – UNESP

FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇÃO – FAAC

DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – DPTO CSO

Lilian Figueiredo RA: 931098

Juliana Baptista RA: 931241

Disciplina: Cultura Brasileira

Docente: Prof. Dr, Luiz Fernando da Silva

4º ano Jornalismo Noturno

BAURU

2012

A representação da cultura brasileira

através do filme

Caramuru: A Invenção do Brasil

Page 2: A representação da cultura brasileira no filme Caramuru Invenção do Brasil

Lilian Figueiredo RA: 931098

Juliana Baptista RA: 931241

A representação da cultura brasileira através do filme

Caramuru: A Invenção do Brasil

Introdução:

Definir os termos “cultura” e “identidade”, segundo os vários estudiosos,

é algo muito complexo tendo visto que tais conceitos são polissêmicos. Segundo o

Dicionário Aurélio, a cultura pode ser definida como um complexo dos padrões de

comportamento, das crenças, das instituições, das manifestações artísticas e intelectuais

transmitidos coletivamente, e típicos de uma sociedade. Ou seja, é o conjunto formado

pela linguagem, crenças, hábitos, pensamentos e arte de um povo. Mas mesmo sem

poder atribuir uma única definição a estes termos, existe um consenso entre todos os

teóricos, o de que a cultura está frequentemente associada à identidade. Pode-se então

falar de “identidade cultural”, que Denys Cuche explica em sua obra A Noção de

Cultura em Ciências Sociais:

”A cultura pode existir sem a consciência de identidade, ao passo que as

estratégias de identidade podem manipular e até modificar uma cultura que

não terá então quase nada em comum com o que ela era anteriormente. A

cultura depende em grande parte de processos inconscientes. A identidade

remete a uma norma de vinculação, necessariamente consciente, baseada em

oposições simbólicas.” (CUCHE, 1999, p.176)

Já Stuart Hall afirma que a identidade do sujeito pós-moderno se constitui de

uma "celebração móvel", que está em constante transformação, dependendo das formas

que somos representados nos meios culturais e sociais que nos rodeiam. Desse modo a

identidade brasileira se transformou muito desde o início da colonização portuguesa até

os dias atuais, e ainda está se modificando.

A identidade cultural está atrelada à questão que envolve a identidade social, que

explica que ao mesmo tempo em que podemos identificar um grupo (separando os

indivíduos semelhantes sob um ponto de vista), estamos também o distinguindo dos

demais (membros que são diferentes segundo o mesmo ponto de vista). Assim, a

identidade cultural seria uma modalidade de categorização baseada na diferença

cultural.

Durante os séculos de colonização, o território brasileiro foi palco de uma fusão

primordial entre as culturas dos indígenas, dos europeus, especialmente portugueses, e

Page 3: A representação da cultura brasileira no filme Caramuru Invenção do Brasil

dos escravos trazidos da África. Foi nesse período que se deu o início da formação

cultural brasileira que, mais tarde, também recebeu influências da imigração de

europeus não portugueses e povos de outras culturas, como árabes e asiáticos. Países

como a França, a Inglaterra e os Estados Unidos também exportaram seus hábitos e

produtos para o Brasil, formando assim uma sociedade altamente miscigenada.

Enquanto os portugueses, no início do século XIX, viam o Brasil como uma

extensão de Portugal, nos século XX, Gilberto Freyre descrevia o país como a terra da

democracia racial. E atualmente, por mais que pareça que houve a superação de todos os

preconceitos, e visões conservadoras herdadas da colonização portuguesa, existem

muitos debates e conflitos acerca deste tema.

Uma das influências mais marcantes no Brasil é a cultura indígena. A

contribuição dos povos indígenas à formação da nação brasileira vai além de palavras

presentes no vocabulário, objetos, técnicas e costumes. A constituição do Brasil como

um país multicultural se deve, sobretudo, à presença de centenas de grupos indígenas

que habitam seu território e, ainda hoje, são parte constitutiva e atuante da sociedade

brasileira. A diversidade cultural e linguística dos povos indígenas influenciaria os

modos de ser da população mestiça que, a partir da mistura de diferentes matrizes,

caracterizaria a população brasileira atual.

Só que mesmo tendo uma participação importante em nossa formação cultural,

as influências culturais indígenas sofrem com estereótipos que perduram desde a

fundação do país como nação. Um dos estereótipos aplicados aos indígenas consiste na

ideia do bom selvagem, muito presente na literatura romântica do século XIX, e que se

baseia na filosofia de Rousseau de que a princípio todos os homens seriam bons no

estado de natureza. Essa ideia nos leva a pressupor que os indígenas estariam nesse

estado de pré-cultura, o que não é verdade, visto que as sociedades indígenas possuem

cultura, civilização e são tão complexas quanto a sociedade nacional.

Tais estereótipos sempre foram reafirmados pela indústria cultural brasileira.

Desde a literatura romântica em sua primeira fase indianista em meados de 1820 em que

os poetas retratavam os índios como heróis puros e ingênuos. A televisão também

produziu inúmeras séries, minisséries e novelas nas quais o índio aparece

completamente estereotipado e nada condizente com a realidade. O cinema nacional

também contribuiu para o fortalecimento dessa imagem do índio, principalmente com a

adaptação de O Guarani de José de Alencar por diversos cineastas em momentos

históricos distintos. A questão indígena ainda permanece marginalizada por uma cultura

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dominante que enxerga os índios apenas pelo exotismo. Além do sangue e do

imaginário, a herança indígena e sua continuidade na cena brasileira seduziu nossos

cineastas desde os primórdios do cinema.

Estudos culturais alertam para o fato de que toda versão histórica e

posicionamento de sujeitos se dá dentro de uma rede de interesses, regidos por

determinados regimes de verdade. Tais estudos nos estimulam a pensar a constituição

das identidades, de sujeitos e culturas indígenas arquitetadas sob o regime discursivo da

Modernidade, mais especificamente falando, sob efeito das práticas colonialistas,

empreendidas largamente por europeus e seus descendentes a partir do século XVI. A

imagem que se tem dos índios atualmente é produto de estratégias discursivas

alicerçadas na visão eurocêntrica de mundo.

1. A Cultura Nacional

Stuart Hall trata das identidades culturais nacionais e como elas podem estar

sendo afetadas ou deslocadas pelo processo de globalização. O autor destaca que as

nações são como comunidades imaginadas e que as identidades nacionais não nascem

com nós, mas são formadas e transformadas no interior da representação. Na

desconstrução das ideias de cultura nacional como identidade unificadora, o autor

coloca que as nações modernas não são formadas por apenas uma categoria biológica,

genética ou cultural e sim são verdadeiros "híbridos culturais". Diz ainda, que as

culturas nacionais, na verdade, "são atravessadas por profundas divisões e diferenças

internas, sendo unificadas apenas através do exercício de diferentes formas de poder

cultural”.

As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais,

mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso -

um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto

a concepção que temos de nós mesmos. As culturas nacionais, ao produzir sentidos

sobre “a nação", sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem

identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a

nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela

são construídas.

Para dizer de forma simples: não importa quão diferentes seus membros

possam ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional

busca unificá-los numa identidade cultural, para representá-los todos como

pertencendo à mesma e grande família nacional. (HALL, 1992, p.59)

Page 5: A representação da cultura brasileira no filme Caramuru Invenção do Brasil

Com todas as produções culturais, foi se construindo uma imagem em torno do

brasileiro. Muitas vezes, essa imagem aparece carregada de estereótipos, que podem ser

observados tanto em retratos do Brasil por olhares estrangeiros, quanto em propagandas,

filmes e novelas veiculadas no próprio país. Assim, percebe-se que a identidade cultural

brasileira, como a identidade cultural de qualquer nação na medida em que foi se

constituindo e influenciando a forma como enxergamos a nós mesmos.

1. O filme Caramuru: a Invenção do Brasil

1.1. Ficha técnica

Diretor: Guel Arraes, Jorge Furtado

Roteiro: Guel Arraes, Jorge Furtado

Elenco principal: Deborah Secco, Camila Pitanga, Selton Mello, Luis Mello,

Tonico Pereira, Pedro Paulo Rangel, Diogo Vilela, Debora Bloch

Produção: Anna Barroso

Fotografia: Félix Monti

Trilha Sonora: Lenine

Duração: 85 min.

Ano: 2000

País: Brasil

Gênero: Comédia

Cor: Colorido

Distribuidora: Não definida

Estúdio: TV Globo

Classificação: 12 anos

1.2. Sinopse comentada

Separados por 7.000 Km, o português Diogo Álvares (Selton Mello) e a índia

Paraguaçu (Camila Pitanga) olham para o mesmo céu no início do século XVI. Assim

começa a história Caramuru: A Invenção do Brasil, roteirizada por Guel Arraes e Jorge

Furtado em 2000 quando o país marcava os 500 anos do descobrimento.

Como lendas se fazem contando histórias pode-se dizer que o romance de Diogo

e Paraguaçu é uma delas. Narrado pelo cinema nacional, o longa metragem parece fazer

uma releitura da própria História brasileira misturando ficção e pesquisa, dramatização e

humor. Pois bem, eis a lenda:

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Vasco de Ataíde (Luis Mello) é um nome português que consta entre os

navegantes da expedição de Pedro Álvares Cabral rumo à Índia. Mostrado nas primeiras

cenas do filme, o personagem se apresenta como comandante de uma feitoria na África,

traficante de escravos e Cavaleiro da Casa Real. Ele vai ao encontro do pintor Diogo

Álvares devido ao retrato de sua noiva, Condessa de Sintra, acusando-o de que os traços

da mulher não eram tão belos na realidade quanto nas pinceladas. Vasco ameaça Diogo

e o proíbe de continuar pintando.

Com medo de pintar as próprias obras, Diogo procura trabalho na Cartografia

Real que fazia os desenhos dos mapas utilizados nas navegações. Assim, Dom Jaime

(Pedro Paulo Rangel), cartógrafo do rei, pede ao pintor que faça ilustrações nos mapas

da rota de Pedro Álvares Cabral a fim de tornar o mapa “mais vistoso”.

Em outro momento e local, Vasco de Ataíde encontra a marquesa francesa

Isabelle (Débora Bloch) e conta que quer evitar ao máximo o compromisso que assumiu

com a Condessa de Sintra. Para isso diz que irá participar da expedição às Índias, porém

não comandando as naus como queria, mas sim sob as ordens de Cabral. A verdadeira

intenção do cavaleiro com a dama é tramar um plano para copiar os mapas da

navegação e fazer as descobertas antes de Cabral.

É dada importância aos detalhes dessas primeiras cenas, pois fazem parte da

construção de mais uma lenda a respeito dos motivos que trouxeram a frota portuguesa

ao litoral brasileiro. Alguns dizem que Portugal já tinha conhecimento das terras,

outros, que erraram a rota por acidente. Então, nessa produção haveria uma nova

hipótese: de que os mapas teriam sido alterados por ilustrações imaginadas de um

pintor ousado e roubado pelo por outro comandante português. Através de

representações como essa ao logo de todo são feitas suposições a respeito do

surgimento do Brasil. O questionamento está na veracidade dessas informações, pois

tudo se torna um mesclado de História e ficção que pode ou não ser reconhecido e

diferenciado pelo público. No entanto, considerando os conceitos de Stuart Hall essas

representações são capazes de transmitir, mesmo que destorcidas, ideias de identidade

cultural.

Plano combinado, Isabelle vai ao encontro de Diogo Álvares. Ela elogia a

incrível pintura da Condessa de Sintra e se oferece para posar nua. No entanto, a dama

provoca tal empolgação no pintor que o convence a retratá-la nua sob os mares, sob o

desenho do mapa da expedição de Cabral às Índias. Diogo resiste em primeiro

momento, mas acaba cedendo e fazendo a pintura nos mapas originais. O plano de

Page 7: A representação da cultura brasileira no filme Caramuru Invenção do Brasil

Isabelle foi enviar uma carta para Dom Jaime

denunciando que Diogo pegaria os mapas.

Enquanto o cartógrafo bateu a porta e acusou o

pintor, a marquesa desaparece com suas roupas

e com as rotas da navegação que marcou a

história do Brasil e de Portugal.

Dom Jaime entrega o pintor ao Rei e

Diogo é condenado à extradição em um dos navios que irá para a África nas próximas

expedições. O desfecho do plano de fez com que Vasco se tornasse o comandante da

nau dos extraditados e, assim, enviou com Diogo o mapa original das rotas.

Outro aspecto interessante é a análise dos estereótipos. Entre as três

concepções de identidade explicadas por Hall, a construção dos personagens do filme

pode ser vista através do conceito de identidade do sujeito sociológico. Nesse sentido o

teórico explica que há uma projeção da ideia de “nós próprios” nas identidades

culturais. Dessa forma, o conjunto de valores e significados alinham sentimentos

subjetivos a lugares objetivos e relacionam o sujeito a uma realidade social e cultural.

O estereótipo de um personagem torna-se uma boa forma de representação, pois

“estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tonando

ambos reciprocamente mais unificados e previsíveis” (Hall, 1992, p.12)

Navios ao mar, Diogo Álvares entre os extraditados ainda acaba conhecendo

Heitor (Diogo Vilela) que em poucos diálogos consegue contar ao pintor “um lado bom

de ser extraditado”. Heitor conhece muito bem as regras da navegação e convence

Diogo a se vestir de mulher para tentar ser deixado no porto mais próximo. Por fim

acaba sendo descoberto por Vasco de Ataíde e eles entram em conflito novamente.

Quando o navio encontra uma tempestade no meio do oceano, Vasco chama

Diogo que foi responsável por alterar o mapa com outras pinturas. Nessas alterações o

navio acaba batendo em algo e naufraga. Diogo e Vasco sobrevivem dentro de um

pedaço que restou do navio e acabam chegando ao litoral em terras desconhecidas.

Na praia, Diogo e Vasco continuam brigando

até que são encontrados pelos índios tupinambá com

flechas e pontas afiadas. Os índios acabam acertando

e prendendo uma mão de Vasco em uma árvore e o

pintor consegue fugir. Correndo para longe, Diogo

Page 8: A representação da cultura brasileira no filme Caramuru Invenção do Brasil

cai desacordado e só desperta quando os olhos curiosos de uma índia morena, colorida

de urucum, chamada Paraguaçu o observa.

Um terço do filme já se passou e somente nesse ponto a trama chega ao Brasil.

Até esse momento o roteiro se preocupou em caracterizar os personagens e o contexto

de Portugal. Então, é válido considerar também as escolhas narrativas e discursivas

pensando na influência disso sobre a ideia geral do filme. O intuito é consolidar uma

primeira identidade dos portugueses antes da chegada ao Brasil. Desse momento em

diante a transformação que irá acontecer no estereótipo dos personagens também será

construída a partir da narração e da linguagem. Essa mudança permite pode ser

associada ao conceito de Stuart Hall quanto ao sujeito cuja identidade é algo suscetível

às mudanças. Uma frase da narração logo ao início do filme essa ideia: “Ela é uma

princesa, mas será tomada como selvagem. Ele, um degredado, mas vai se tornar Rei

do Brasil”(00:01:10) Mesmo que Diogo não seja um indivíduo pós-moderno, é possível

fazer a associação da construção de seu personagem com o termo que Hall criou

séculos mais tarde. Partindo disso, em praticamente todo o resto do filme Diogo vai

confrontar seus costumes (sua cultura) e vai se modificando com a vivência indígena.

O diálogo entre o pintor português e a índia se

faz de perguntas e respostas, há um estranhamento da

língua e todas as outras diferenças que se resolvem

quando chegam ao consenso universal da relação

física. E é assim que Diogo e Paraguaçu se entendem

em um primeiro momento.

Paraguaçu leva Diogo para a aldeia onde ele fica deslumbrado como o modo de

vida dos índios e pinta vários retratos. Nessa nova vivência um dia Diogo é abordado

por Moema (Deborah Secco), irmã de Paraguaçu. Como a irmã e por se tratar de um

hábito comum entre os índios, ela também quer ter intimidades com Diogo. O

português, mesmo com vontade de aceitar as propostas da “cunhada em primeiro grau”,

fica relembrando as regras e costumes da cultura portuguesa e considera errado estar

com as duas índias irmãs. Até o momento em que Paraguaçu mostra para Diogo que a

relação entre os três não teria nenhum problema na aldeia, era algo normal entre os

índios. Essa cena é uma das marcas do filme: o momento em que o português quebra

seus limites culturais e experimenta relações a cultura nativa.

A partir de então, Paraguaçu, Diogo e Moema vivem suas relações na aldeia até

o dia em que o chefe da tribo, Itaparica, pai das índias, decide que o português já está

Page 9: A representação da cultura brasileira no filme Caramuru Invenção do Brasil

pronto o suficiente para ser comido. Os índios

tupinambá consideram que Diogo foi um homem

forte, sobrevivendo ao mar e vivendo por tanto

tempo com as duas índias na tribo, então decidem

devorá-lo para que possam também consumir essa

força que acreditam haver em Diogo.

Com a data marcada para ser morto, e sem ser defendido pelas índias que

concordam com as tradições dos índios, Diogo foge e é perseguido pela tribo. Quando

encontra o revolver deixado por Vasco de Ataíde na praia ele dá um tiro para o alto e os

índios o declaram: Caramuru, que significa deus ou rei do Trovão.

Esse pode ser visto como outro ponto divisor do filme, quando o pintor

português é aceito pelos índios e passa a ser chamado Caramuru. Nessa cena e nas

seguintes há uma evidente releitura da colonização que articula a dramatização e a

linguagem de humor para reconstruir a imagem entre colonizadores e nativos. Ações

como essa é que se tornam questionáveis enquanto reprodução histórica, pois são

representações superficiais, contornadas por erros que muitas vezes passam

despercebidos pelo público. Talvez o maior exemplo de todo o filme seja o fato de que o

os primeiros acordos de exploração seriam entre Caramuru e o Rei da França.

Com esse momento as relações entre os índios e os europeus irão começar a se

estreitar. No início da história, depois que Vasco e Diogo chegam à praia, as naus

portuguesas também são mostradas se aproximando do litoral. Após Vasco ter sido

atingido pelas flechas tupinambás ele desaparece e só retorna nesse ponto do filme,

agora a mando do rei francês e com um gancho no lugar da mão direita.

Vasco retorna e encontra Diogo como um líder dos tupinambás. Tramando mais

uma vez, interessado por explorar os recursos como o pau-brasil e o ouro, o comandante

resolve convencer Caramuru a fazer negócios entre os índios e o rei da França. Em

troca, Diogo iria a França encontrar e casar-se com Isabelle.

Nesse momento do filme, a utilização da linguagem para transmitir concepções

a respeito da formação da identidade cultural nacional brasileira é tão evidente que

vale a pena destacar o diálogo entre Caramuru e Itaparica, o chefe da aldeia aos 41

minutos:

Diogo: Tenho um projeto para aumentar a glória dos Tupinambás...

Itaparica: Massacrar os inimigos dormindo é?

Page 10: A representação da cultura brasileira no filme Caramuru Invenção do Brasil

Diogo: Não... o comércio! Venderemos comida para os brancos que chegarem nos

navios...

Itaparica: E nós vai morrer de fome? É ruim...

Diogo: Passaremos a colher e caçar mais...

Itaparica: Isso dá muito trabalho

Diogo: Trocaremos por muitas mercadorias....

Itaparica: Eu preciso de mais pra quê?

Diogo: Põe-se a juntar e em breve está rico!

Itaparica: De que me serve?

Diogo: Rico num precisa trabalhar!

Itaparica: E rico faz o quê?

Diogo: Nada! Fica parado, deitado na rede!

Itaparica: Mas na rede eu vivo faz tempo, é bom...

Após esse diálogo Caramuru declara que sente falta da “comodidade de sua

terra” e então decide que quer retornar.

Acertados os negócios, Caramuru decide ir à França para casar-se com Isabelle,

mas cria um problema: o que fazer com Paraguaçu e Moema? Ele tenta fazê-las

entender que as regras e costumes franceses não permitem uma relação como a deles, e

que lá só poderá casar com uma mulher, mas elas não o entendem.

Mais uma vez, Diogo tenta sair escondido, mas Paraguaçu e Moema se jogam no

mar e tentam nadar até o navio que leva o português. Somente Paraguaçu consegue e

chega com Caramuru em terras europeias. Já no outro continente a índia estranha tudo a

sua volta e Diogo explica e apresenta a ela a realidade das terras de onde veio; quais as

regras e costumes de se vestir e do que fazer.

Quanto ao casamento com Isabelle, Caramuru explica que ele e Paraguaçu

poderiam continuar juntos, mas a índia em segredo como uma amante, e diz que ela

poderia participar do casamento sendo madrinha. Paraguaçu entende a lógica dos

costumes e das posições explicadas pelo português e fica pensando na melhor forma de

continuar com Caramuru.

Isabelle se aproxima de Paraguaçu e a índia conta à marquesa que no Brasil

existe muito ouro. A índia consegue convencer a francesa de que indo ao Brasil poderia

ter todo o ouro com uma condição: Paraguaçu se casaria com Caramuru na França e

Isabelle seria sua amante no Brasil. A marquesa aceita e ensina à índia os costumes para

o casamento. Nesse dia que deveria significar um grande negócio entre a Marquesa da

Page 11: A representação da cultura brasileira no filme Caramuru Invenção do Brasil

França e o Senhor dos Tupinambás, o padre acaba declarando Diogo Álvares e Catarina

do Brasil marido e mulher.

Já de partida para o além mar, Vasco aparece com a guarda real e leva Isabelle

presa por descumprir os acordos com o Rei da França. Caramuru e Paraguaçu retornam

ao Brasil e ainda levam todos os pertences de Isabelle.

Chegando ao Brasil, o pintor português e as índias Paraguaçu e Moema estão

juntos novamente. Os negócios com a Europa continuam através da intermediação de

Diogo que fica consagrado como Caramuru: rei do Trovão e Senhor dos Tupinambás.

Encerrando o filme o narrador conta que, através de Diogo, os

negócios cresceram e a chegada dos europeus levou ao que se tornaria a

Bahia. Para o final romântico, após Caramuru ensinar Paraguaçu a

escrever durante a estadia na França, a índia faz um livro contando toda

a história desse início do Brasil no qual ela e seu português continuarão

juntos para sempre.

Muitos outros pontos podem ser apontados durante a narrativa comprovando

que a construção do filme Caramuru: A Invenção do Brasil se faz através da utilização

dos conceitos de identidade cultural, identidade nacional e cultura nacional. Os fatos

históricos reais que embasam a trama se misturam as concepções atuais que os

próprios brasileiros têm do país, o que parece uma tentativa de consolidar essa

identidade.

De maneira geral, pode-se dizer que produções midiáticas como essa acabam

por difundir uma imagem do Brasil e é nesse sentido que Stuart Hall fala sobre a

interferência da globalização na formação das identidades. O sujeito pós-moderno está

cada vez mais exposto às diferentes representações de identidade (verdadeiras ou

falsas) e isso o mantém em constante mudanças e, até mesmo, fragmentação.

2. Contextualização do filme e propósitos conceituais

Inventar o Brasil em seu aniversário de 500 anos através dos índios, portugueses,

praias e caravelas foi a forma como os roteiristas Guel Arraes e Jorge Furtado decidiram

homenagear a nação.

O filme Caramuru que conta a trama de um personagem durante o

descobrimento do país faz o recorte de um momento histórico e traduz conceitos da

concepção de cultura nacional a partir da escolha de um tema e para um fim.

Page 12: A representação da cultura brasileira no filme Caramuru Invenção do Brasil

Entre tantos momentos que poderiam simbolizar a História brasileira, optar pelo

descobrimento é utilizar as margens das diversas versões sobre as navegações

portuguesas que não conheciam determinada rota e, a partir disso, dar vazão as

possibilidades da imaginação. A Invenção do Brasil, nesse caso, começou

primeiramente na definição dos personagens, por exemplo. Por que retratar Vasco de

Ataíde ao invés de Cabral ou Caminha?

Segundo Stuart Hall, a narrativa desse momento histórico se justifica pelo fato

de ser um mito fundacional capaz de ligar as memórias do espectador brasileiro às

cenas, independentemente da forma como serão retratadas. Hall escreve que “eles (os

mitos) fornecem uma narrativa através da qual uma história alternativa ou uma

contranarrativa, que precede às rupturas da colonização, pode ser construída” (1992, p.

55)

Além do tema, a produção possuía um fim específico: o ano de 2000 que

relembra um marco em relação à data considerada origem do Brasil. Havia uma grande

questão a mostrada: após cinco séculos, como pode ter começado tudo o que é o

brasileiro hoje?

A definição desse objetivo comemorativo certamente influenciou a produção do

longa metragem, tanto que o gênero escolhido foi o humor. Através do riso foi possível

representar até mesmo concepções polêmicas de uma maneira sutil. Por exemplo: os

conflitos entre europeus e índios são marcados historicamente pela guerra e violência.

No filme, tudo isso se traduz em diálogos bem humorados cheios de significações.

Caramuru foi colocado em uma posição de intermediação entre Brasil e Europa para

manter as relações amigáveis. Afinal, a produção precisava ser um presente ao Brasil.

Mas até que ponto inventar uma história ficcional é útil para se lembrar a história

verdadeira?

Como toda obra que envolve a reprodução de fatos históricos, misturar ficção,

realidade e humor causou polêmica. Mesmo assim, a combinação desses três elementos

foi uma opção que os roteiristas Guel Arraes e Jorge Furtado confirmaram em diversas

entrevistas na época do lançamento, justificando tudo pelo fato de que a história dos

personagens principais se tratava de uma lenda: “Uma comédia romântica histórica

narrada em tom de fábula. Embora o encontro de Caramuru e Paraguaçu se baseie em

fatos reais, trabalhamos as referências da História com muita liberdade.” (Guel

Arraes)

Page 13: A representação da cultura brasileira no filme Caramuru Invenção do Brasil

Conclusões:

Considerando os conceitos de cultura nacional, identidade cultural e a

representação presente no filme, há uma contraposição entre a forma atual de se olhar

para o Brasil e conceitos já definidos desde 1755 por Rousseau. O mito de que o

selvagem era bom porque não estava inserido em uma sociedade para corrompê-lo é

mostrado através da convivência dos tupinambá com a chegada dos portugueses e

franceses.

Após o contato com os europeus, o índio agregou a essa imagem de ingenuidade,

traços do que podemos chamar hoje de um estereótipo de brasileiro malandro. Tal ideia

surgiu na primeira metade do século XX, muitos anos depois do mito enunciado por

Rousseau. São teorias sobre um mesmo personagem histórico, mas que possuem uma

diferença considerável de tempo. Trazidas para a realidade brasileira, as ideias que

surgiram em momentos históricos tão distintos conseguem ser entendidas de uma forma

complementar.

Produções audiovisuais como o filme Caramuru: A Invenção do Brasil tendem a

adaptar conceitos complexos como o de identidade cultural para uma linguagem que

amarra fatos históricos utilizando a ficção, por isso muitas vezes transparece uma ideia

de superficialidade, velada pela justificativa de ser uma lenda.

A construção da narrativa do filme, o estereótipo dos personagens, a escolha

pelo gênero de humor entre outros fatores que causam a identificação do espectador

com a trama, faz com que assimilem uma ideia de identidade nacional reforçada por

toda a História que ao longo dos 500 anos do Brasil.

Retratar fatos históricos que representam a imagem do Brasil através da mídia é

de extrema importância, pois consegue atingir um grande número de pessoas. Porém, as

produções culturais que deveriam utilizar a arte para causar reflexões filosóficas, em

grande parte, reproduzem a identidade cultural brasileira de forma superficial quase que

ignorando sua diversidade.

Em plenos anos 2000, pode-se propor que o filme Caramuru reuniu várias

concepções sobre o Brasil sem a preocupação de dar a devida profundidade histórica.

Contudo, assim como a crítica do cinema nacional reconheceu na época de seu

lançamento, inventar o Brasil no tênue limite entre história, ficção e mercado acabou

não tendo resultados, nem quanto ao público, nem quanto à função instrutiva.

Page 14: A representação da cultura brasileira no filme Caramuru Invenção do Brasil

Referências:

CUCHE, D. A noção de cultura em ciências sociais. Bauru: Edusc, 1999 p.175-202

ECO, H. Cultura de massa e “níveis” de cultura in Apocalípticos e Integrados. São

Paulo: Perspectiva, 1976 p 33-57

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11 ed. Rio de Janeiro: DP&A,

2006

MORIN, E. Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo. 8. ed. Rio de

Janeiro: Forense Universitária, 1990

Links de apoio:

Entrevista: Caramuru: A Invenção do Brasil.

Disponível em: <http://www.webcine.com.br/notaspro/npcaramu.htm>.

Acesso em: 10 nov. 2012.

Filme completo online: Caramuru: A Invenção do Brasil.

Disponível em:< http://www.youtube.com/watch?v=h0R5Af2BBiU >

Acesso em: 05 nov. 2012.