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256 A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DE INTERESSE SOCIAL COMO EFETIVAÇÃO DO DIREITO À CIDADANIA E VETOR DO DESENVOLVIMENTO HUMANO E ECONÔMICO The Land Regularization of Social Interest as Effective the Right to Citizenship and Vector of Human and Economic Development Rodrigo Vinícius Vieira Oliveira¹ Priscila Dias Alkimim² 1 Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES [email protected] 2 Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES [email protected] RESUMO O presente artigo tem por objetivo analisar a regularização fundiária em face da construção da cidadania de seus beneficiários. A cidadania constitui um fundamento do Estado Democrático de Direito e é previsto no artigo 1º, inciso II, da Constituição Federal de 1988. A regularização fundiária, por outro lado, é um instrumento efetivador do direito à cidadania, pelo qual é outorgado título de propriedade formal aos seus beneficiários, de modo a poderem usufruir plenamente dos direitos sobre a propriedade, retirando tais imóveis da invisibilidade jurídica, podendo assim, serem incluídos no mercado formal. Nessa perspectiva, será analisada a nova Lei da Regularização Fundiária (Lei nº 13.465/17), que instituiu a denominada REURB, tratando-se de um novo e simplificado procedimento para regularização imobiliária urbana. Contrapondo-se a tal visão, disserta-se sobre o problema de se solidificar juridicamente ocupações irregulares realizadas em áreas urbanas de preservação ambiental ou impróprias para habitação, consolidadas historicamente por falhas na aplicação de políticas públicas e através do crescimento urbano desordenado. Para tanto, utilizar-se-á a metodologia de revisão bibliográfica, com pesquisas documentais, e o método dedutivo de análise de caso, analisando a REURB não somente como garantia a um direito individual, mas como um interesse público primário comum. Palavras-chave: Regularização Fundiária; Cidadania; REURB; Políticas Públicas. INTRODUÇÃO O presente artigo objetiva analisar a regularização fundiária urbana em face da construção

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A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DE INTERESSE SOCIAL COMO EFETIVAÇÃO DO DIREITO À CIDADANIA E VETOR DO

DESENVOLVIMENTO HUMANO E ECONÔMICO

The Land Regularization of Social Interest as Effective the Right to Citizenship and Vector of Human and Economic Development

Rodrigo Vinícius Vieira Oliveira¹Priscila Dias Alkimim²

1Universidade Estadual de Montes Claros – [email protected]

2 Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES [email protected]

RESUMOO presente artigo tem por objetivo analisar a regularização fundiária em face da construção da cidadania de seus benefi ciários. A cidadania constitui um fundamento do Estado Democrático de Direito e é previsto no artigo 1º, inciso II, da Constituição Federal de 1988. A regularização fundiária, por outro lado, é um instrumento efetivador do direito à cidadania, pelo qual é outorgado título de propriedade formal aos seus benefi ciários, de modo a poderem usufruir plenamente dos direitos sobre a propriedade, retirando tais imóveis da invisibilidade jurídica, podendo assim, serem incluídos no mercado formal. Nessa perspectiva, será analisada a nova Lei da Regularização Fundiária (Lei nº 13.465/17), que instituiu a denominada REURB, tratando-se de um novo e simplifi cado procedimento para regularização imobiliária urbana. Contrapondo-se a tal visão, disserta-se sobre o problema de se solidifi car juridicamente ocupações irregulares realizadas em áreas urbanas de preservação ambiental ou impróprias para habitação, consolidadas historicamente por falhas na aplicação de políticas públicas e através do crescimento urbano desordenado. Para tanto, utilizar-se-á a metodologia de revisão bibliográfi ca, com pesquisas documentais, e o método dedutivo de análise de caso, analisando a REURB não somente como garantia a um direito individual, mas como um interesse público primário comum.

Palavras-chave: Regularização Fundiária; Cidadania; REURB; Políticas Públicas.

INTRODUÇÃO

O presente artigo objetiva analisar a regularização fundiária urbana em face da construção

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da cidadania de seus benefi ciários.Em um primeiro momento, analisa-se a questão fundiária urbana, com enfoque nos

problemas fundiários em face do direito à moradia efetivando-se assim a cidadania que constitui um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito previsto no artigo 1º, inciso II, da Constituição Federal de 1988.

A regularização fundiária, por sua vez, será analisada como um mecanismo de efetivação do direito à cidadania, na medida em que concede aos seus benefi ciários otítulo de propriedade formal, de modo que possam usufruir plenamente dos direitos oriundos da propriedade.

Assim, busca-se a análise da estreita entre a efetivação do direito à moradia, como garantia da cidadania, através da aplicação da regularização fundiária, indagando sobre até que ponto a regularização dos imóveis pode contribuir para se impulsionar a economicamente os municípios, através da inclusão de áreas irregulares, muitas vezes invisíveis às políticas públicas.

Com a utilização da metodologia de revisão bibliográfi ca e fundamentada em pesquisas documentais, utilizou-se o método dedutivo de análise de caso, analisando como introduzir REURB nas políticas públicas para fi ns da habitação, não somente como garantia a um direito individual, mas como interesse público primário comum.

A QUESTÃO FUNDIÁRIA URBANA

O Brasil, conforme dados do censo do IBGE/2010, possuí 6% da população (11.425.644 pessoas) residindo em aglomerados subnormais1, distribuídas em 3.224.529 domicílios particulares ocupados, ou seja, 5,6% dos domicílios brasileiros (BRASIL, 2010).

Ademais, mesmo fora das áreas dos aglomerados subnormais, tantos outros domicílios se encontram urbanisticamente irregulares.

Tal quadro evidencia que, no país, o direito à moradia se mostra diretamente atacado, negando ao cidadão alguns dos direitos mais básicos, bem como, o mesmo acesso ao mercado formal de crédito.

A título de comparação, segundo o último censo (2010) realizado pelo IBGE, somente no município de Montes Claros, norte de Minas Gerais, haviam nos 14 aglomerados subnormais existentes, 4.110 domicílios particulares ocupados, onde residiam 15.607 pessoas, que se encontram à margem da proteção institucional e jurídica para garantia da propriedade de suas residências.

Necessário, portanto, assumir que as nossas cidades são também constituídas por áreas irregulares ou clandestinas, conforme já constatado por Erminia Maricato:

(...) grande parte de nossas cidades é construída pelos próprios moradores em áreas invadidas – muitas delas ambientalmente frágeis – ou adquiridas de loteadores ilegais. Para a construção desses bairros, não contribuem arquitetos e engenheiros, tampouco há observância de legislação urbanística ou de quaisquer outras leis, até mesmo para a resolução dos (frequentes) confl itos, para a qual não contribuem advogados, cortes,

1 Nomenclatura utilizada pelo IBGE e que engloba os diversos tipos de assentamentos irregulares existentes no país, como favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, mocambos, palafi tas, entre outros.

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juízes ou tribunais. (MARICATO, 2013, p. 19 -21).

A falta da devida urbanização se deve ao rápido crescimento das cidades que muitas vezes não foi acompanhado pelo planejamento urbano ou investimentos em infraestrutura condizentes com o número de pessoas que se estabeleceram na área urbana.

A inefi ciência do Poder Público gerou um passivo de irregularidade que se refl ete na dinâmica de uso e ocupação do solo e nas relações de apropriação dos imóveis. Além disso, a segregação socioespacial é visível neste processo crescente de urbanização. (SOARES, 2016).

Assim, o panorama brasileiro é de grandes bolsões de áreas urbanas invisíveis às políticas públicas e ao acesso ao mercado de crédito.

Lado outro, o direito à moradia digna é consagrado na legislação brasileira, onde é tutelado pelo art. 6º da Constituição Federal de 1988 (CF/88), que assim dispõe:

Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (BRASIL, 1988)

O direito à moradia é sustentado por outros princípios constitucionais, como por exemplo a cidadania e a dignidade humana, que por sua vez estão previstos no art. 1º, incisos II e III, da CF/88:

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:(…)II - a cidadania;III - a dignidade da pessoa humana;

A garantia à cidadania visa resguardar condições mínimas de vida digna aos indivíduos, sendo, portanto, a moradia digna um pressuposto necessário para se alcançar a dignidade.

Conforme o artigo 23, inciso IX, da CF/88 a competência para promover programas de construção de moradias e melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico é comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Além disso, o art. 182 da Constituição Federal informa que compete aos municípios a política de desenvolvimento urbano, visando a garantia do bem-estar de seus habitantes através do desenvolvimento das funções sociais da cidade. Assim:

Embora o planejamento seja uma obrigação de todos os entes da federação, não cabe aos municípios fi car esperando ações da União ou dos estados. Compete aos municípios a identifi cação de seus problemas, demandas e potenciais de forma que possam fi xar metas e identifi car os instrumentos que serão utilizados para que essas possam ser alcançadas, vez que as pessoas não residem na União, nem nos Estados, elas residem nos municípios. (GAZOLA, 2008, p. 76)

O direito à moradia embora seja considerado um direito de aplicação imediata, não

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concede automaticamente a todos os cidadãos o poder de exigir uma residência do Poder Público. Contudo, obriga o Estado a adotar políticas, ações e demais medidas compreendidas e extraídas da Constituição e dos tratados internacionais, para assegurar e tornar efetivo esse direito, em especial aos que se encontram no estado de hipossufi ciência.

Desta forma, o Estado, especialmente os municípios, deve agir para que o direito à moradia seja concretizado, uma vez que ele está vinculado aos princípios e normas constitucionais que resguardam o bem-estar do cidadão.

A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

Para efetivação das políticas públicas de desenvolvimento urbano, o Governo Federal do Brasil promulgou, em 11 de julho de 2017, a Lei nº 13.465 introduzindo o instituto da Regularização Fundiária Urbana (Reurb), que promoveu alterações substanciais no procedimento de regularização fundiária urbana já existente.

A “regularização fundiária”, ou seja, regularização de terras, teve seu conceito defi nido inicialmente pela Lei Federal nº 11.977/2009, através do art. 46, que dispunha se tratar de:

(…) um conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direto social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. (BRASIL, Lei nº 11.977/2009,art. 46).

Com a entrada em vigor da Lei Federal nº 13.465 de 11 de julho de 2017, o conceito de “regularização fundiária” sofreu algumas alterações, conforme se vê do art. 9º da referida lei, que passou a dispor que a Regularização Fundiária Urbana (Reurb), “abrange medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes”.

Alterou-se, portanto, o conceito de assentamento irregular para núcleo urbano informal, ou seja, agora, não só os núcleos irregulares são contemplados, como também os núcleos clandestinos o são.

Os núcleos irregulares são aqueles que detém a aprovação da prefeitura, mas que por alguma alteração de projeto o assentamento não mais se enquadra na permissão concedida, tornando-se irregular.

Já o assentamento clandestino é aquele que nunca foi aprovado pela Prefeitura.Cabe indicar como é o procedimento disposto na Reurb, que inicia-se pelo requerimento

de algum dos legitimados, previstos no art. 14 da Lei 13465/2017, quais sejam, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, diretamente ou por meio de entidades da administração pública indireta; os seus benefi ciários, individual ou coletivamente, diretamente ou por meio de cooperativas habitacionais, associações de moradores, fundações, organizações sociais, organizações da sociedade civil de interesse público ou outras associações civis que tenham por fi nalidade atividades nas áreas de desenvolvimento urbano ou regularização fundiária urbana; os proprietários de imóveis ou de terrenos, loteadores ou incorporadores; a Defensoria Pública,

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em nome dos benefi ciários hipossufi cientes; e o Ministério Público (BRASIL, 2017). Iniciado o procedimento, promove-se a denominada demarcação urbanística, que

consiste em um levantamento da área objeto de regularização, momento em que são consultados aos eventuais proprietários e confrontantes (vizinhos) da área ocupada, solicitando que se manifestam quanto à regularização.

Na ausência ou suprida a oposição, elabora-se o projeto urbanístico. Se houver oposição, dá-se início a uma etapa de negociações, através de audiências, inclusive extrajudiciais, de mediações ou arbitragem para solução do confl ito.

Cabe ao município, no âmbito do procedimento de mediação, se houver manifestação contrária, fazer uso de institutos jurídicos, de modo a afastar a possível oposição dos proprietários, conforme art. 15 da Lei nº 13.465/2017, abaixo transcrito:

Art. 15. Poderão ser empregados, no âmbito da Reurb, sem prejuízo de outros que se apresentem adequados, os seguintes institutos jurídicos:I - a legitimação fundiária e a legitimação de posse, nos termos desta Lei;II - a usucapião, nos termos dos arts. 1.238 a 1.244 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), dos arts. 9º a 14 da Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, e do art. 216-A da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973;III - a desapropriação em favor dos possuidores, nos termos dos §§ 4º e 5º do art. 1.228 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil);IV - a arrecadação de bem vago, nos termos do art. 1.276 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil);V - o consórcio imobiliário, nos termos do art. 46 da Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001; VI - a desapropriação por interesse social, nos termos do inciso IV do art. 2º da Lei nº 4.132, de 10 de setembro de 1962; VII - o direito de preempção, nos termos do inciso I do art. 26 da Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001; VIII - a transferência do direito de construir, nos termos do inciso III do art. 35 da Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001;IX - a requisição, em caso de perigo público iminente, nos termos do § 3º do art. 1.228 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil);X - a intervenção do poder público em parcelamento clandestino ou irregular, nos termos do art. 40 da Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979;XI - a alienação de imóvel pela administração pública diretamente para seu detentor, nos termos da alínea f do inciso I do art. 17 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993;XII - a concessão de uso especial para fi ns de moradia;XIII - a concessão de direito real de uso;XIV - a doação; eXV - a compra e venda.

Trata-se de alteração trazida pela nova lei, uma vez que no procedimento anterior que era previsto na Lei nº 11.977 de 2009, tal processo era realizado pelo cartório de registro de imóveis e encerrava-se com a averbação do auto de demarcação nas matrículas referentes aos imóveis atingidos. Agora, com o advento da Lei 13.465/2017, a competência é do município, eliminando a necessidade de averbação no Cartório de Registro de Imóveis, ou seja, desburocratizando-se o procedimento.

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A elaboração do projeto de regularização e a execução das obras e medidas nele previstas serão de responsabilidade do município, a quem caberá a classifi cação da modalidade da Reurb dando ao ente federativo a competência para determinar a modalidade de regularização, se interesse social (Reurb-S) ou interesse específi co (Reurb-E).

A Reurb-S destina-se às populações de baixa renda (art. 13, I da Lei 13.465/2017), avaliadas pelos municípios, com a renda mensal familiar não superior ao quíntuplo do salário mínimo vigente no País, conforme prescreve o Decreto Regulamentar nº 9310 de 15 de Março de 2018, em seu artigo 6º, parágrafo único, devendo o bem a ser regularizado ser utilizado para fi ns residenciais.

Na Reurb-E, ao contrário, a alienação de direitos reais será feita pelo valor de mercado, descontando-se o valor de benfeitorias promovidas pelo ocupante e da valorização delas decorrente.

Dentro de um mesmo processo de regularização poderá haver a presença das duas modalidades REURB-S e REURB-E, se tratando de procedimento misto, cabendo à Prefeitura Municipal a informação de qual benefi ciário e qual imóvel se enquadra em qual situação.

Para os casos que se enquadram na denominada Reurb-S, a Lei resguardou aos benefi ciários a gratuidade dos atos de registro que foi instituída na Lei nº 11.977 de 2009, podendo, assim, concretizar o registro do imóvel em nome dos ocupantes, conforme prevê o Código Civil Brasileiro.

Ressalta-se aqui a principal inovação trazida pela Lei de Regularização Imobiliária, o instituto da legitimação fundiária, que consiste naatribuição da propriedade da unidade ocupada ao seu detentor, como uma modalidade de aquisição originária, que se difere do usucapião, uma vez que não se computa o tempo e a natureza da posse (art. 11, VII da Lei 13.465/2017). Ademais, diferenciou-se da legitimação de posse, justamente pela desnecessidade de procedimento de usucapião convalidatório posterior.

Assim, após o procedimento da Regularização Fundiária as partes já podem registrar o seu imóvel como, de fato, sua propriedade plena.

Isso se dá com a emissão de um título, confeccionado pela Prefeitura Municipal, denominada a “Certidão de Regularização Fundiária” (CRF), que é o documento fi nal da Reurb, emitido pelo município, constituído do projeto de regularização aprovado, do termo de compromisso relativo a sua execução e da listagem dos ocupantes benefi ciários de legitimação fundiária e de posse. A constituição de direitos reais em favor dos benefi ciários será feita mediante o registro desse conjunto de documentos, dispensando-se procedimentos individuais.

A partir do registro, conforme prevê o artigo 1.227 do Código Civil Brasileiro o benefi ciário poderá utilizar o bem para ter acesso à programas sociais, como o “Cartão Reforma”2, ou dar em garantia real, como a hipoteca (art. 1473 do Código Civil) ou a alienação fi duciária (Lei 9.514 de 1997), transformando a posse do imóvel, antes estática, em valores passíveis de movimentação no mercado de capitais.

2 Programa social para fi nanciar serviços como construção de um quarto, construção de banheiro, reforma ou substituição total de um telhado, solução de esgotamento sanitário (fossa/sumidouro ou ligação à rede), ins-talações de esgoto, água e energia, fi nalização do reboco, pintura, forro e telhado, adaptação para acessibilidade. Acesse: http://www.cartaoreforma.cidades.gov.br/.

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QUESTIONAMENTOS SOBRE A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

De fato, há de se convir que, embora a titulação de propriedade para os ocupantes dos núcleos urbanos informais represente um avanço, se faz necessário ainda que se garanta condições mínimas de urbanidade a estes ocupantes, o que, de acordo com a nova lei de regularização fundiária, fi ca a critério exclusivo dos municípios: exigir mais ou aceitar o mínimo. A regularização da titularidade da propriedade por si só, não resolve o grave problema que os centros urbanos enfrentam na atualidade, especialmente, no que tange à ausência de infraestrutura básica que garanta condições mínimas urbanísticas a seus moradores tal como preconiza o direito à moradia digna, previsto na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (OLIVESKI, ALLEBRANDT, MUELLER, OLIVESKI, 2018).

Não obstante as boas intenções da lei, considerando a realidade brasileira e os termos da Lei Federal nº 13.465/17, temos no plano da judicialidadeque legitimação fundiária (art. 23 da referida Lei), principal inovação da Lei de Regularização Fundiária, faculta aos Municípios conferir a terceiros a propriedade de imóveis por eles ocupados, sem indenização aos antigos proprietários e se considerar se a posse foi de boa-fé ou por má-fé ou mesmo o tempo da ocupação, assim, podem ser benefi ciados quem ocupou um imóvel de maneira ardilosa e por poucos meses.

A Legitimação Fundiária, nessa perspectiva, caracteriza-se, aparentemente, omo uma forma de “confi sco” em face do antigo proprietário, considerando a não previsão de indenização ou forma de pagamento, bem como, não se trata das hipóteses justifi cadoras da desapropriação-sanção, defi nidas pelo o uso de trabalho escravo na propriedade ou a sua utilização para cultivo de psicotrópicos.

No caso da regularização em áreas públicas, a legitimação fundiária viola a imprescritibilidade do imóvel público, consubstanciada na vedação constitucionalexpressa de não se usucapir de bens públicos (artigo 183, §3º da Constituição Federal), comprometendo, assim, o patrimônio público.

Dessa forma, Nelson Rosenvald se posiciona:

Ressalte-se que o § 4º do art. 23 da Lei n. 13.465/17, atribui a União, Estados, e Municípios uma indiscriminada discricionariedade no reconhecimento do direito de propriedade sobre bens públicos em prol de ocupantes de núcleos urbanos informais regularizados por meio da legitimação fundiária, sem prever um limite mínimo de prazo de ocupação do imóvel público ou sequer a natureza (justa, injusta, boa fé ou má fé) da detenção originariamente exercida sobre o referido bem. Ademais, a lei ignora óbvias regras de desafetação, licitação, autorização legislativa e avaliação prévia, que amparam a alienação de bens públicos em geral, vulnerando a tutela do patrimônio público e desmoralizando o básico em termos de “accountability”. Enfi m, por qual razão se cria “pela tangente” um desvio a tradicional regra da inusucapibilidade de bens públicos? Não me surpreende se à legitimação fundiária se tornar a via adequada para a legalização de grilagens de grandes áreas ou de regularização de conjuntos habitacionais destinados à classe média ou alta. (ROSENVALD, 2017)

Da leitura do artigo 9º da Lei nº 13.465, depreende-se que qualquer assentamento irregular poder ser objeto da REURB, contudo, temerária tal posição, uma vez que pode-se criar

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verdadeiro incentivo aos grileiros de terras ou outros tipos de invasores de terras,colocando em risco tanto áreas públicas quanto particulares.

Não houve previsão na Lei da REURB quanto a necessidade de prévio licenciamento ambiental, devendo o projeto ser somente aprovado, por órgão municipal que possua em seus quadros ou à sua disposição profi ssionais com atribuição técnica para a análise e a aprovação dos estudos ambientais.

Há, ainda, a dispensa de “habite-se” para construções (arts.60 e 63) quando do registro de prédios ou conjuntos habitacionais e demais edifi cações a serem regularizadas pela modalidade da Reurb-S. Assim, os órgãos municipais se eximirão de verifi car a habitabilidade dos imóveis regularizados, sem qualquer verifi cação se tais estruturas podem oferecer perigo para seus usuários e terceiros.

Portanto, em que pese os benefícios que a Lei traz, com o intuito de regularizar os núcleos urbanos informais há diversos questionamentos quanto a sua aplicabilidade, ocasionando uma certa falta de segurança jurídica, seja pela utilização do instituto da REURB para consolidar grilagens de terras, uma vez que o procedimento fi cará a cargo dos Municípios, que estão mais suscetíveis a infl uências políticas externas.

CONCLUSÃO

A Lei da Regularização Fundiária trata como legítimas as ocupações informais, entendo-as como um resultado da necessidade uma vez que não há ofertas moradia, de baixo custo, em localidades que já possuam infraestrutura básica com acesso a serviços públicos. Assim, a iniciativa presente na legislação é louvável, já que tem por fi nalidade a melhora da condição de informalidade no campo de habitação e moradia.

Todavia, não houve enfrentação dos problemas concernentes às ocupações irregulares, não tendo a Lei previsto mecanismos para melhorias do sistema urbano nos denominados núcleos urbanos informais. Assim, a presente Lei tratou somente de consolidar o plano fático por meio de um instrumento jurídico, sem vinculação de melhorias futuras.

Facilitar a regularização em grande escala e não propor programas de acesso a moradia de baixa renda, pode criar um verdadeiro incentivo às ocupações irregulares e a grilagem de terras.

Embora a legislação fundiária possa ser objeto de critica com relação a ausência de um conjunto de soluções para questões urbanísticas, sociais e ambientais, relacionados à ocupação irregular do solo, a Legislação amplia consideravelmente as possibilidades da regularização fundiária no intuito de conceder a propriedade de imóveis aos seus ocupantes.

Assim, a Lei ao deixar a critério dos municípios o procedimento de regularização fundiária urbana, fl exibilizou o referido procedimento, deixando a cargo do ente público com maior interesse, já que haverá possibilidade de cobrança de tributos relativos aos referidos imóveis após a regularização, além disso, isentou o governo federal de responsabilizações advindas da regularização fundiária.

Desta forma, encerra-se o presente trabalho relativo a nova lei de regularização fundiária, que trouxe ao ordenamento jurídico uma nova ferramenta de titulação de propriedade, com vistas

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a regularizar os núcleos urbanos informais, garantindo aos posseiros a plena utilização de seus imóveis, transformando em valores, no mercado formal a sua unidade imobiliária informal.

REFERÊNCIAS:

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MARICATO, Erminia. É a questão urbana, estúpido! In: Cidades Rebeldes: Passe livre e manifestações que tomaram as ruas no Brasil. 1. ed. São Paulo: Boitempo/Carta Maior; 2013.

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