a psique japonesa – grandes temas dos contos de fadas...

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Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, 2016 49 Ludmila da Silva Pires* Resumo O presente artigo propõe-se a analisar criticamente o livro A psique japonesa – grandes te- mas dos contos de fadas japo- neses, escrito pelo psicólogo analítico japonês Hayao Kawai. Após uma contextualização do autor e de sua obra, que obje- tivou transformar a psicologia analítica em um corpo de pen- samento e práxis que pudesse se apropriar da mente japonesa, realiza-se um breve exame críti- co da obra do psicólogo japonês e de sua formulação teórica. Palavras-chave: psicologia analítica, contos de fadas japoneses, Hayao Kawai, cultura japonesa. Enquanto primeiro psicólo- go junguiano do Japão, Hayao Kawai ( , 1928-2007) influenciou consideravelmente o campo da psicologia clínica e dos estudos culturais e reli- giosos japoneses. Ele introdu- ziu o conceito do jogo de areia (sandplay) à psicologia japone- sa, além de participar do Círcu- lo de Eranos, em 1982. Um de seus trabalhos mais conheci- dos, A psique japonesa – gran- des temas dos contos de fadas japoneses, propõe-se a exami- nar a alma japonesa por meio da interpretação dos contos de fadas nipônicos, além de reali- zar comparações com suas contrapartes ocidentais. A obra apresenta, ao longo de seus nove capítulos, os esforços de Kawai em transformar a psico- logia analítica em um corpo de pensamento e práxis que pu- desse se apropriar da mente ja- ponesa, isto é, que se baseas- se na estrutura da psique ori- ental e não apenas em uma simples transposição de pres- supostos e práticas ocidentais para o Japão. A proposta geral do autor é fornecer uma compreensão entre os japoneses e os “povos do Ocidente”, tanto em suas se- melhanças como em suas pro- priedades distintivas. Enten- dendo o folclore e a mitologia enquanto fontes de compreen- são das profundezas da men- te humana, Kawai faz uso dos ( mukashi banashi ), os “contos de antigamente”, que compõem o folclore nipônico, frutos do imaginário japonês. Posteriormente, ele sublinha a importância da figura feminina presente no universo da psique japonesa – que compreende uma variedade de personagens, como a deusa-sol Amaterasu, a rainha Pimiko, até as poderosas mulheres xamãs dos templos xin- toístas (KAWAI, 2007, p. 11-12). Na introdução, Kawai apre- senta sua justificativa para a escolha dos contos em seu li- vro. Seu enfoque se dá na força das figuras folclóricas femininas e como essas podem ser con- sideradas enquanto represen- tantes do ego japonês. Para embasar suas comparações e o desenvolvimento de seu pensa- mento, o autor faz referência aos trabalhos de James Hillman e sua psicologia arquetípica e à teoria de desenvolvimento do ego de Erich Neumann. Porém, ele vai além ao destacar as pe- culiaridades das histórias japo- nesas, gerando uma rica com- preensão acerca da cultura e da personalidade nipônicas. Pro- põe um ponto de vista “desen- volvimental” do ego que seja apropriado à psique japonesa. O primeiro capítulo, intitu- lado “O tema do quarto proi- bido”, dedica-se ao estudo de um conto popular conhecido como “A casa do rouxinol” Resenha * Graduada em psicologia pela Faculdade de Estudos Administrativos de Minas Gerais (2014). Atua profissionalmente nas áreas de políticas públicas, desenvolvimento de projetos no terceiro setor e código de ética do psicólogo. Atualmente, ministra cursos de práticas corporais orientais e é coordenadora de projetos na ONG Espaço Mãos Dadas. Email: <[email protected]>. A psique japonesa – grandes temas dos contos de fadas japoneses KAWAI, Hayao. São Paulo: Paulus, 2007. 278 p. v.34, p.49-51 Junguiana

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Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, 2016 49

Ludmila da Silva Pires*

ResumoO presente artigo propõe-se

a analisar criticamente o livro Apsique japonesa – grandes te-mas dos contos de fadas japo-neses, escrito pelo psicólogoanalítico japonês Hayao Kawai.Após uma contextualização doautor e de sua obra, que obje-tivou transformar a psicologiaanalítica em um corpo de pen-samento e práxis que pudessese apropriar da mente japonesa,realiza-se um breve exame críti-co da obra do psicólogo japonêse de sua formulação teórica.

Palavras-chave: psicologia analítica,contos de fadas japoneses, HayaoKawai, cultura japonesa.

Enquanto primeiro psicólo-go junguiano do Japão, HayaoKawai (���� , 1928-2007)influenciou consideravelmenteo campo da psicologia clínicae dos estudos culturais e reli-giosos japoneses. Ele introdu-ziu o conceito do jogo de areia(sandplay) à psicologia japone-sa, além de participar do Círcu-lo de Eranos, em 1982. Um de

seus trabalhos mais conheci-dos, A psique japonesa – gran-des temas dos contos de fadasjaponeses, propõe-se a exami-nar a alma japonesa por meioda interpretação dos contos defadas nipônicos, além de reali-zar comparações com suascontrapartes ocidentais. A obraapresenta, ao longo de seusnove capítulos, os esforços deKawai em transformar a psico-logia analítica em um corpo depensamento e práxis que pu-desse se apropriar da mente ja-ponesa, isto é, que se baseas-se na estrutura da psique ori-ental e não apenas em umasimples transposição de pres-supostos e práticas ocidentaispara o Japão.

A proposta geral do autor éfornecer uma compreensão entreos japoneses e os “povos doOcidente”, tanto em suas se-melhanças como em suas pro-priedades distintivas. Enten-dendo o folclore e a mitologiaenquanto fontes de compreen-são das profundezas da men-te humana, Kawai faz uso dos�� (mukashi banashi ), os“contos de antigamente”, quecompõem o folclore nipônico,frutos do imaginário japonês.Posteriormente, ele sublinha a

importância da figura femininapresente no universo da psiquejaponesa – que compreendeuma variedade de personagens,como a deusa-sol Amaterasu, arainha Pimiko, até as poderosasmulheres xamãs dos templos xin-toístas (KAWAI, 2007, p. 11-12).

Na introdução, Kawai apre-senta sua justificativa para aescolha dos contos em seu li-vro. Seu enfoque se dá na forçadas figuras folclóricas femininase como essas podem ser con-sideradas enquanto represen-tantes do ego japonês. Paraembasar suas comparações e odesenvolvimento de seu pensa-mento, o autor faz referênciaaos trabalhos de James Hillmane sua psicologia arquetípica e àteoria de desenvolvimento doego de Erich Neumann. Porém,ele vai além ao destacar as pe-culiaridades das histórias japo-nesas, gerando uma rica com-preensão acerca da cultura e dapersonalidade nipônicas. Pro-põe um ponto de vista “desen-volvimental” do ego que sejaapropriado à psique japonesa.

O primeiro capítulo, intitu-lado “O tema do quarto proi-bido”, dedica-se ao estudo deum conto popular conhecidocomo “A casa do rouxinol”

Resenha

* Graduada em psicologia pela Faculdade de Estudos Administrativos de Minas Gerais (2014). Atua profissionalmente nas áreas de políticaspúblicas, desenvolvimento de projetos no terceiro setor e código de ética do psicólogo. Atualmente, ministra cursos de práticas corporaisorientais e é coordenadora de projetos na ONG Espaço Mãos Dadas.Email: <[email protected]>.

A psique japonesa – grandes temas dos contos de fadas japonesesKAWAI, Hayao. São Paulo: Paulus, 2007. 278 p.

v.34, p.49-51

Junguiana

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(ウグイスの , Uguisu No Sato ),uma narrativa que transita visi-velmente entre os espaços co-tidiano (consciência) e não co-tidiano (inconsciente). Os pon-tos principais abordados porKawai, em relação ao conto, sãoa transgressão de uma proibi-ção que não é punida e o nadaprimordial, um conceito comumnas narrativas orientais. O au-tor também introduz dois ele-mentos fundamentais para acompreensão das histórias ni-pônicas: �み (urami ), que re-presenta o ressentimento, e �れ

(あわれ, aware ), uma espéciede leve tristeza sem esperança,uma ideia de pathos dos con-tos de fadas japoneses. Sendoassim, ele revela que o “nada ea tristeza” fazem parte da cor-rente principal da cultura japo-nesa (KAWAI, 2007, p. 39-44).

O conto elencado pelo autorpermite aclarar o que se com-preende como o nada primor-dial, ou o nada absoluto, umainstância comumente presentetanto nos escritos zen-budistascomo nas obras de filosofia daEscola de Kyoto. Segundo Kawai,a presença do nada ou do vazionão é sinônimo de que nãoaconteceu nada em uma histó-ria, mas que simplesmente “onada aconteceu” (KAWAI, 2007,p. 41-42). Portanto, o nada nãorepresenta a negatividade, masalgo que está para além do posi-tivo e negativo, para além daspalavras e que expressa em siuma potencialidade.

No primeiro capítulo de Apsique japonesa, em particular,

pode-se notar uma distinçãocultural levantada por Kawai eque também foi abordada porfilósofos, psicólogos e outrosautores estudiosos do pensa-mento oriental. Para o filósofoNishida Kitaro, por exemplo, adistinção cultural entre Orientee Ocidente é baseada na ideiade que o fundamento da reali-dade, para o Ocidente, é o ser,ou seja, a forma. Enquanto que,para o Oriente, é o nada, o semforma (KITARO apud HESIG,2013, p. 101). Isso remete à con-cepção das formas de pensa-mento oriental e ocidental, queforam identificadas por Jung, emtermos de características psico-lógicas e atitudes psíquicas,como formas completamentedistintas. De modo geral, o ho-mem ocidental é extrovertido,ou seja, é aquele que se orien-ta a partir do mundo externo,das condições objetivas. Poroutro lado, o pensamento dotipo introvertido, predominan-te no Oriente, seria aquele quese norteia para fatores subjeti-vos (JUNG, 2011, p. 17-18). ParaJung, “O homem ocidental pro-cura sempre a exaltação e o ori-ental, a imersão ou o aprofun-damento” (JUNG, 2011, p. 113).É essa diferenciação que sus-tenta o trabalho de Kawai, per-mitindo que o autor prossigaem sua construção de uma ima-gem do ego nipônico.

No segundo capítulo, intitu-lado “A mulher que não comenada”, Kawai discorre acercado lado negativo da mulher eda maternidade. Assim como a

madrasta aparece nos contosde fadas para enfatizar os as-pectos negativos da maternida-de, ��� (Yama-Uba) – figurado folclore japonês e uma es-pécie de mulher devoradora –surge nesse capítulo como umarepresentação do aspecto devo-rador da grande mãe, de ondetudo nasce e para onde tudoretorna. Os capítulos subse-quentes de A psique japonesaapresentam uma série de figu-ras femininas oriundas do ima-ginário japonês, tais como: es-posas não humanas, mulherespersistentes, insistentes ou de-terminadas, dentre outras.

As histórias escolhidas peloautor têm o intuito de demons-trar a extrema força de atraçãoque o inconsciente exerce namente japonesa. Desse modo,ele sugere que os olhos pelosquais os japoneses enxergam omundo e a realidade estão lo-calizados no inconsciente e nãona superfície da consciência. Éo que se chama de ter os “olhossemicerrados” (KAWAI, 2007,p. 187-191).

Ao longo da obra, o autordestaca que uma das caracte-rísticas do povo japonês é aausência de uma distinção cla-ra entre os mundos interno eexterno, ou seja, entre os cam-pos consciente e inconsciente.Essa característica, segundoKawai, pode ser representada

pelas figuras do � (fusuma) ou�� (shouji ), respectivamentea “janela corrediça” e a fina“porta de papel”, símbolos pre-sentes no cotidiano e na cultura

v.34, p.49-51

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oriental que, metaforicamente,apontam para uma maior per-meabilidade entre consciente einconsciente.

Torna-se nítido que Kawai, nodecurso de sua obra, esboçadetalhes a fim de criar um perfilde ego que não somente se des-taca do modelo ocidental, masque também ressalta determina-das características culturais típi-cas do povo japonês. Para sus-tentar sua teoria, ele lança mãode numerosas comparações emetáforas, para além da realiza-da entre os contos popularesocidentais e orientais. É digno denota que o autor introduz umnovo ponto de vista acerca daconsciência e do ego orientais,embora pareça deixar de ladoconceitos importantes da psico-logia junguiana, tal como a figu-ra feminina interior do ego mas-culino: a anima.

É especificamente no nonocapítulo, “As mulheres determi-nadas”, que Kawai sistematizao que é sua figura feminina doego, que ele vem a nominar de“mulher determinada”. Essa fi-gura feminina, que possui mar-cantes características de passi-vidade e força para enfrentar asdificuldades, seria quem melhortraduz o ego japonês, estandomais conectada com o modo devida geral dos homens e mulhe-res no Japão (KAWAI, 2007, p.173). Trata-se de uma consciên-cia que busca a totalidade, queprocura aceitar de volta o quefoi cortado ou excluído. Portan-to, ela aceita o que vier, atémesmo a imperfeição ou as

contradições internas, tratando--se de um ego multifacetado, di-verso e que pode incluir a tota-lidade (KAWAI, 2007, p. 238).

Tal como Jung e seus segui-dores assinalaram, o folclore ea mitologia são uma fonte ricade compreensão da mente hu-mana, dos seus símbolos ede suas nuances (HENDERSONapud JUNG, 2008, p.137). Assim,desenvolveu-se um método deanálise desse material folclóri-co e mítico que revela, pouco apouco, os elementos e a dinâ-mica da psique. Kawai, ao utili-zar esse método, inova ao tra-zer um olhar específico para ofolclore japonês e sua diversi-dade cultural, além de realçara força da figura feminina en-quanto protagonista no pro-cesso de desenvolvimento doego. Cabe considerar que as di-versas figuras femininas incluí-das nos capítulos do livro deKawai não compõem estágiossequenciais de desenvolvimen-to do ego, mas aparecem, su-postamente, como camadas múl-tiplas de uma totalidade.

Em suma, o livro é um convi-te para que o leitor se aprofundenas histórias japonesas e na ri-queza cultural do Oriente, pelaótica da psicologia analítica. Éuma obra abrangente que, comuma abordagem irreverente eprovocativa, instiga o leitor aimergir na complexidade do pen-samento japonês. Ademais, Apsique japonesa é o retrato ecomponente histórico de um dosprimeiros passos da psicologiajunguiana em solo japonês.

AbstractThis article is a review of the

book The Japanese Psyche –Major Motifs in the Fairy Talesof Japan, written by Hayao Ka-wai. After a brief contextual-ization about the author and hiswork, which aimed to transformanalytical psychology in a bodyof thought and practice thatcould grasp the Japanese mind,there is a critical analysis of theKawai’s work and his theoreti-cal formulation.

Keywords: analytical psychology,Japanese fairy tales, Hayao Kawai,Japanese culture.

The Japanese psyche –major motifs in the fairytales of Japan

Referências bibliográficas

HENDERSON, J. L. Os mitos antigos eo homem moderno. In: JUNG, C. G. Ohomem e seus símbolos. . . . . Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 2008. p. 137.

HEISIG, J. W. Filósofos de la nada: unensayo sobre la Escuela de Kyoto. Bar-celona: Herder Editorial, 2013. p. 410.

JUNG, C. G. Psicologia e religião oriental.Petrópolis: Vozes, 2011. p. 165.

KAWAI, H. A psique japonesa – grandestemas dos contos de fadas japoneses.São Paulo: Paulus, 2007. p. 278.

v.34, p.49-51

Junguiana