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  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

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  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    1

    A RVORE DO PTIO

    No Ptio da Fonte, o Sol de Maro brilhava atravs das jovens folhas de freixulmeiros, a gua erguia-se e voltava a tombar atravs de sombras e luz clara. Ao rdaquele ptio sem cobertura, erguiam-se quatro altos muros de pedra. Para alm deles hsalas e outros ptios, passagens, corredores, torres e, finalmente, as pesadas muraexteriores da Casa Grande de Roke, capazes de suportar qualquer assalto blico ou terremou mesmo o prprio mar, pois no eram construdas apenas com pedra mas tambmindisputvel magia. Porque Roke a Ilha dos Sages, onde ensinada a arte mgica. E a CGrande a escola e o centro da feitiaria. E o centro da Casa esse pequeno ptio, dentro das muralhas, onde a gua da fonte dana e as rvores se erguem sob a chuva, o soa luz das estrelas.

    A rvore mais prxima da fonte, uma vetusta sorveira brava, fizera estalar e ergupavimento de mrmore com as suas razes. Veios de um musgo verde-claro enchiam as fenirradiando do trecho relvado que rodeava o tanque. Sentado sobre a ligeira elevaomrmore e musgo, um jovem seguia com o olhar a queda do jacto central da fonte. Erquase um homem, mas ainda um rapaz. Era esguio, vestia ricamente e o seu rosto dir-moldado em bronze dourado, de to finamente modelado e to imvel.

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    Por detrs dele, a uns cinco metros talvez, sob as rvores no outro extremo do peqrelvado central, estava, ou parecia estar, um homem. Era difcil ter a certeza naqalternncia vacilante entre sombra e luz morna. Mas claro que estava, um homem vestid

    branco, de p e imvel. Tal como o rapaz observava a fonte, assim o homem observavrapaz. Para alm do sussurrar das folhas e do correr da gua no seu incessante cantar,

    havia som nem movimento algum.

    O homem avanou. Um sopro de vento agitou a sorveira e fez mover as suas foacabadas de abrir. O rapaz ps-se em p de um salto, ligeiro e sobressaltado. Voltou-se po homem e fez-lhe uma reverncia, dizendo:

    Meu Senhor Arquimago.

    O homem parou em frente dele, uma figura baixa, direita e vigorosa, envergando

    manto com capuz, de l branca. Acima das dobras do capuz, deitado para trs, o seu rostode um tom escuro avermelhado, de nariz adunco como bico de falco e com uma face marde velhas cicatrizes. Os olhos eram brilhantes e intensos. Porm, quando falou, a sua vozsuave.

    um stio muito agradvel para se estar, o Ptio da Fonte disse. E lprevendo as desculpas do rapaz, acrescentou: A tua viagem foi longa e no descansTorna a sentar-te.

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    Ajoelhou no rebordo branco do tanque e estendeu a mo para o anel de gotas brilhaque caam da bacia mais alta da fonte, deixando que a gua lhe escorresse entre os dedorapaz voltou a sentar-se sobre as lajes erguidas e, durante um minuto, nenhum deles faloufim, o Arquimago pronunciou:

    Tu s o filho do Prncipe de Enlad e das Enlades, herdeiro do Principado

    Morred. No h patrimnio mais antigo em toda Terramar, nem mais belo. Vi os pomareEnlad na Primavera e os telhados dourados de Berila... Como te chamam?

    Chamam-me Arren.

    Essa deve ser uma palavra no dialeto da tua terra. E o que significa na nossacomum?

    Espada respondeu o rapaz.

    O Arquimago assentiu com um aceno de cabea. De novo se fez silncio e depois, atrevimento, mas tambm sem timidez, o rapaz comentou:

    Julgava que o Arquimago soubesse todas as lnguas. O homem abanou a cab

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    os olhos postos na fonte. E todos os nomes...

    Todos os nomes? S Segoy, que pronunciou a Primeira Palavra, e assim ergueilhas das profundezas do mar, conhecia todos os nomes. claro que e o olhar brilhanintenso pousou no rosto de Arren , se eu precisasse de conhecer o teu nome verdadconhec-lo-ia. Mas no preciso. Chamar-te-ei Arren e eu sou Gavio. Mas diz-me, como tua viagem at aqui?

    Demasiado longa.

    Tiveste ventos contrrios?

    Os ventos sopraram favoravelmente, mas as novas que te trago nada tmfavorvel, Senhor Gavio.

    Pois conta-as, ento disse gravemente o Arquimago, se bem que, ao metempo, parecesse estar apenas a fazer a vontade a uma criana impaciente. E, enquanto Afalava, voltou a olhar para a lmpida cortina de gotas de gua que caa da bacia superior a inferior, no como se no escutasse, antes como se ouvisse algo mais que as palavrarapaz.

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    Como sabes, meu Senhor, o prncipe meu pai versado em feitiaria, sendo comda estirpe de Morred e tendo passado um ano aqui, em Roke, na sua juventude. Tem algum poder e saber, embora s raramente faa uso das suas artes, dado que est mais vol

    para a administrao e ordenamento do seu reino, o governo das cidades e os assuntocomrcio. As frotas da nossa ilha navegam para ocidente, chegando mesmo Estrema Ode onde trazem safiras, peles de boi e estanho. Ora, no princpio deste Inverno,comandante voltou nossa cidade de Berila com uma histria que acabou por chegar

    ouvidos do meu pai, de maneira que mandou vir o homem para que a contasse pessoalment

    O rapaz falava depressa e com segurana. Via-se que fora educado por gente cortcivilizada, e no se lhe notava o constrangimento habitual nos jovens.

    O comandante prosseguiu ele , contou que na ilha de Narveduen, que fiumas quinhentas milhas a ocidente de ns segundo as rotas dos navios, deixara de hmagia. Ali, contou ele, os encantamentos no tinham poder e as palavras de feitiaria estaesquecidas. O meu pai perguntou-lhe se seria por todos os feiticeiros e bruxas terem deixailha, ao que ele respondeu que no, que havia por l alguns que tinham sido feiticeiros, mano faziam encantamentos, nem que fossem coisa to mnima como um esconjuro remendar uma chaleira ou encontrar uma agulha perdida. E o meu pai perguntou se as pesem Narveduen no estavam consternadas e, mais uma vez, o comandante respondeu que nque pareciam indiferentes ao fato. E a verdade, acrescentou ainda, que a doena alastrentre eles, e a colheita de Outono foi escassa, e mesmo assim continuavam a no se inquiDisse eu estava l quando ele falou com o meu pai disse assim: Eram como gdoente, como um homem a quem tivessem anunciado que iria morrer dentro de um ano edissesse a si prprio que no era verdade, que iria viver para sempre. Andam para ali d

    ele, sem verem o mundo. Quando outros comerciantes regressaram, tambm eles repetirhistria, segundo a qual Narveduen se tornara uma terra pobre e perdera a arte da feitiMas tudo isto no passava de meras histrias da Estrema, que so sempre estranhas, e meu pai lhes prestou ateno. Depois, no Ano Novo, pelo Festival dos Cordeiros realizamos em Enlad, quando as mulheres dos pastores vm cidade, trazendo

    primognitos dos rebanhos, o meu pai encarregou o feiticeiro Rut de dizer os encantamede desenvolver sobre os cordeiros. Mas Rut regressou ao nosso salo muito angustiado, de

    por terra o bordo e disse: Senhor, no consigo dizer os encantamentos. O meuinterrogou-o, mas ele no conseguia dizer seno: Esqueci as palavras e como tec-las.modo que o meu pai foi at praa do mercado, disse ele prprio os encantamentos

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    festival pde ser completado. Mas vi-o voltar ao palcio nessa tarde, com um aspsombrio e fatigado, e confiou-me: Disse as palavras, mas no sei se tinham alsignificado. E a verdade que h problemas com os rebanhos esta Primavera, comovelhas a morrer de parto, e muitos cordeiros natimortos e alguns deles so... disformes.

    Aqui, a voz fluente e animada do rapaz baixou subitamente de tom. E, ao pronunc

    palavra, fez um esgar e engoliu em seco.

    Eu vi alguns deles acrescentou, fazendo uma pausa. Depois prosseguiu: meu pai acredita que este caso, e a histria de Narveduen, mostram que h coisa m em na nossa regio do mundo. E desejaria obter o conselho dos Sages.

    O fato de te ter enviado prova que esse desejo urgente disse o Arquimago

    s o seu nico filho e a viagem de Enlad a Roke no curta. Tens algo mais a dizer?

    Apenas histrias das velhotas que vivem nas colinas.

    E o que contam as velhotas das colinas?

    Que todas as previses que as bruxas fazem, ao lerem a sina no fumo e nos cha

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    de gua, lhes falam de desastres, e que os filtros de amor falham. Mas isso gente verdadeiro saber em feitiaria.

    Ler a sina e fazer filtros de amor so coisas de pouca monta, mas vale a pena oo que dizem as velhotas. Bem, podes ter a certeza de que a tua mensagem ser discutida pMestres de Roke. Mas, Arren, eu no sei que conselho podero dar a teu pai. Porque Eno o primeiro territrio de onde nos chegam tais novas.

    A viagem de Arren desde o Norte, passando para alm da grande Ilha de Havncruzando o Mar Interior at Roke fora a primeira que fizera. S naquelas ltimas e posemanas lhe fora dado ver terras que no pertencessem sua prpria ptria, o que lhe uma conscincia da distncia e da diversidade, forando-o a reconhecer que havia um vmundo para l das belas colinas de Enlad e muita gente nesse mesmo mundo. Ainda nhabituara a pensar em termos de tal vastido, pelo que levou algum tempo a compreender. ento perguntou: Mais, onde? algodesanimado, pois tivera a esperana de regressar a Ecom uma cura rpida para aquele mal.

    Primeiro, na Estrema Sul informou o Arquimago. Mais recentemente, tamna parte sul do Arquiplago, em Uothort. Os homens dizem que j se no pratica magiaUothort. difcil ter-se a certeza. H muito que essa terra rebelde e dada pirataria. Dique dar ouvidos a um comerciante meridional d-los a um mentiroso. Porm a histriacontam sempre a mesma. Que, l, secaram as fontes da magia.

    Mas aqui, em Roke...

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    Aqui, em Roke, ainda no sentimos nada disso. Aqui estamos defendidos contrtempestades, a mudana e todo o tipo de m sorte. Porventura, demasiado bem defendMas diz-me, Prncipe, que fars agora?

    Voltarei a Enlad quando puder levar a meu pai alguma indicao clara sobnatureza deste mal e como remedi-lo.

    Uma vez mais o Arquimago o olhou e desta feita, apesar de toda a sua educao, A

    baixou a vista. F-lo sem saber porqu, j que no havia vestgios de inimizade naquolhos escuros que o fitavam. Antes se mostravam imparciais, calmos e compassivos.

    Em Enlad, todos respeitavam o seu pai e ele era o filho de seu pai. Nenhum homeolhara alguma vez assim, no como Arren, Prncipe de Enlad e filho do Prncipe Sober

    mas apenas como Arren. No lhe agradava pensar que temia o olhar do Arquimago, mas conseguia sustent-lo. Era como se alargasse o mundo ainda mais ao seu redor e agora nEnlad ficara reduzida a uma coisa insignificante, como tambm ele prprio, de tal modo aos olhos do Arquimago, era apenas uma pequena figura, muito pequena, num vasto cenriterras rodeadas pelo mar e sobre as quais impendia uma escurido.

    Quedou-se sentado, apanhando pedacinhos do musgo que crescia nas fendas das

    de mrmore, e por fim disse, ouvindo a prpria voz, que s nos ltimos dois anos engrossoar aguda e rouca:

    E farei o que me ordenares.

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    O teu dever para com o teu pai e no para comigo disse o Arquimago.

    Continuava a fitar Arren e o rapaz ergueu ento os olhos para ele. Ao fazer o seu atosubmisso esquecera-se de si prprio e agora via o Arquimago. Via o maior feiticeiro de Terramar, o homem que tapara o Poo Negro de Fundaur e arrancara o Anel de Erreth-Ados Tmulos de Atuan, que construra o dique de Nepp com os seus alicerces nas profunddo oceano, o navegante que conhecia os mares desde Astowell at Selidor, o nico SenhoDrages ainda vivo. E ali estava ajoelhado junto a uma fonte, um homem baixo e que j

    era jovem, um homem de voz calma e olhos to profundos como o entardecer.

    Arren ps-se de p para logo ajoelhar, precipitada e formalmente, sobre ambooelhos.

    Meu Senhor pronunciou, gaguejante , permite que te sirva.

    A sua segurana desaparecera, tinha o rosto corado e a voz tremia-lhe na garganta.

    Trazia cinta uma espada, numa bainha de couro novo e muito trabalhada com enf

    de vermelho e ouro. A prpria espada, porm, era muito simples, com um punho em cruzbronze prateado, muito gasto. Sempre com a mesma precipitao, Arren desembainhou

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    estendeu o punho para o Arquimago, como o faz um vassalo para o seususerano.

    Mas o Arquimago no estendeu a mo para tocar o punho da espada. Limitou-se a olo e depois para Arren, e disse:

    Essa espada tua, no minha. E tu no s vassalo de homem algum.

    Mas o meu pai disse-me que eu devia permanecer em Roke at saber que mal e talvez adquirir alguma mestria... no tenho talento, nem penso ter qualquer poder, mas homagos entre os meus antepassados... se de algum modo eu pudesse aprender a ser-te til...

    Antes de serem magos retorquiu o Arquimago , os teus antepassados fo

    reis.

    Ergueu-se e, aproximando-se de Arren com passadas firmes e silenciosas, tomou a do rapaz e f-lo levantar-se.

    Agradeo-te a oferta de me servires disse e embora a no aceite agora, tao venha a fazer, quando tivermos obtido conselho sobre estes assuntos. A oferta de um esp

    generoso no deve ser recusada levianamente. Nem deve ser descuidadamente posta de la

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    espada do filho de Morred!... E agora vai. O moo que aqui te trouxe providenciar paracomas e te banhes e descanses. Vai l.

    E empurrou Arren levemente entre as omoplatas com uma familiaridade que ningantes tomara com ele e que o jovem prncipe teria levado a mal vinda de qualquer o

    pessoa. Porm, o toque do Arquimago foi para ele como um frmito de exultao. PoArren fora tomado de paixo.

    Ele fora um rapaz ativo, adorando jogos, retirando orgulho e prazer dos talentocorpo e do esprito, dotado para os seus deveres de cerimnia e governo, que no eram lnem simples. No entanto, nunca se entregara totalmente a coisa alguma. Tudo lhe chefacilmente s mos e ele tudo fizera facilmente. Fora tudo sempre como um jogo e tamcomo jogo encarara o afeto. Mas, agora, o que nele havia de mais profundo fora desperto,

    por um jogo ou sonho, mas pela honra, o perigo, a sabedoria, por um rosto marcadocicatrizes, uma voz calma e uma mo escura que, sem cuidar do poder que empunhsegurava o bordo de teixo que ostentava perto da empunhadura, em prata embutidamadeira negra, a Runa Perdida dos Reis.

    E assim dado de uma s vez o primeiro passo para fora da infncia, sem olhafrente ou para trs, sem cautelas e sem a mnima reserva.

    Esquecendo as despedidas corteses, Arren apressou o passo em direo pdesajeitado, radiante, obediente. E Gued, o Arquimago,quedou-sea v-lo afastar-se.

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    Gued ficou ainda por algum tempo junto fonte, debaixo da sorveira, e depois ergurosto para o cu lavado pelo Sol. Um to amvel mensageiro, para to ms novas, dismeia voz, como se falasse com a fonte. Esta no lhe deu ateno, continuando antes a falasua prpria lngua de prata e, por algum tempo mais, ele a escutou. Depois, dirigindo-se outra entrada que Arren no vira e que na verdade poucos olhos teriam descortinado por m

    perto que dela estivessem, chamou:

    Mestre Porteiro.

    Logo apareceu um homem pequeno e de idade incerta. Jovem no era, pelo que forseria chamar-lhe velho, mas a palavra no lhe assentava bem. Tinha um rosto seco e da comarfim, com um sorriso agradvel que lhe cavava longos sulcos curvos nas faces.

    O que se passa, Gued? perguntou.

    Isto porque estavam ss e ele era uma das sete pessoas no mundo que sabiam o ndo Arquimago. As outras eram: o Mestre dos Nomes de Roke; guion, o Silencioso, feiticde Re Albi que, h muito tempo, na Montanha de Gont, dera a Gued esse nome; a D

    Branca de Gont, Tenar do Anel; um feiticeiro de aldeia, em Iffish, chamado Vetch; tambmIffish, a mulher de um carpinteiro, me de trs raparigas, ignorante de tudo o que ffeitiaria mas cheia de sabedoria em outras coisas, e a quem chamavam Mil-em-Ramfinalmente, do outro lado de Terramar, no extremo mais afastado a ocidente, dois dragOrm Embar e Keilessine1.

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    Temos de nos reunir esta noite disse o Arquimago. Vou falar comConfigurador. E contatarei com Kurremkarmerruk, a ver se ele pe de parte as suas lideixa os alunos descansados por uma noite e vem ter conosco em esprito, se no puder secarne e osso. Encarregas-te dos outros?

    Claro respondeu o Porteiro com um sorriso e desapareceu. E depois tamb

    Arquimago desaparecera e s ficou a fonte a falar consigo prpria, toda serenidade e cessar, luz do Sol do princpio de Primavera.

    Algures para ocidente da Casa Grande de Roke, e frequentes vezes tambm paradela, onde geralmente se avista o Bosque Imanente. No tem lugar nos mapas nem h veque o alcance, a no ser para aqueles que conhecem o caminho at ele. Mas mesmonovios, as gentes da vila e os camponeses o podem ver, sempre a uma certa distncia

    bosque de rvores altas cujas folhas, mesmo na Primavera, apresentam uma sugesto de no verde das suas folhas. E consideram os novios, os vilos, os fazendeiros qBosque se desloca para um e outro lado da mais mistificadora maneira. Mas a enganam

    pois o Bosque no se move. As suas razes so as razes do ser. tudo o resto que se mov

    Vindo da Casa Grande, Gued caminhou atravs dos campos. Tirou o seu manto brapois o Sol estava no znite. Um campons que lavrava a encosta castanha de uma coergueu o brao numa saudao e Gued correspondeu com gesto idntico. No ar, ergueram

    pequenos pssaros, cantando. Nos alqueives

    e ao lado das estradas a erva-fagulha estaacabar de florir. L no alto, um falco descreveu no cu um vasto crculo. Gued relanceolhar para cima e voltou a erguer o brao. Com as penas a sussurrar no vento, a ave caialto, direta ao pulso que se lhe oferecia, rodeando-o com as suas garras amarelas. Nonenhum simples gavio, mas um grande falco Ender de Roke, um falco pesqueiro comasas listadas de branco e castanho. Olhou de lado o Arquimago, com um olho redondo, dedourado claro, depois fez estalar o bico adunco e voltou a olh-lo, mas agora de frente, ambos os seus olhos redondos e de um dourado claro.

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    Destemido disse-lhe o Arquimago na lngua da Criao. O grande falco bas asas e firmou melhor as garras, sempre a fit-lo.

    Vai pois, irmo, irmo destemido.

    O fazendeiro, l longe na encosta da colina, parara a observar a cena. Certa vezOutono anterior, vira o Arquimago acolher uma ave selvagem no seu pulso e logo, no momseguinte, no vira homem algum, mas sim dois falces a subirem no vento.

    Porm, desta vez, separaram-se enquanto o lavrador os olhava e a ave subiu alto

    ares ao passo que o homem prosseguia o seu caminho pelos campos enlameados.

    Gued chegou assim vereda que conduzia ao Bosque Imanente, uma vereda que sesempre a direito, independentemente do modo como o tempo e o mundo se contorciam aoredor, e, tomando por ela, em breve se encontrava sob a sombra das rvores.

    Os troncos de algumas delas eram enormes. Ao v-los era finalmente possacreditar que o Bosque nunca se movia. Eram como torres de tempos imemoriais, cinzecom o passar dos anos, e as suas razes eram como as razes das montanhas. E no entdestas, as mais antigas, algumas havia que poucas folhas ostentavam, que tinham ramortos. No eram imortais. Entre as gigantes, cresciam rvores novas, altas e vigorosas,

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    belas copas de rica folhagem, e ainda outras que eram como plantas de viveiro, frvarinhas folhudas, pouco mais altas que uma garotinha.

    O solo sob as rvores era macio e rico, com as folhas apodrecidas de todos os aAli cresciam fetos e pequenas plantas prprias das zonas arborizadas, mas no havia suma nica espcie de rvore, espcie que no tinha nome na lngua Hardic de Terramar. os seus ramos o ar cheirava a terra e a fresco, deixando um gosto na boca como o da gua de nascente.

    Numa clareira feita anos antes pela queda de uma rvore enorme, Gued encontrMestre das Configuraes, que vivia no interior do Bosque e s raramente ou nuncabandonava. O seu cabelo era de um amarelo de manteiga, pois no era arquipelaguiDesde que o Anel de Erreth-Akbe fora restaurado, os brbaros de Kargad tinham cessadsuas pilhagens e estabelecido alguns tratados de comrcio e paz com as Terras Interiores. eram gente amigvel e mantinham-se parte. Mas de vez em quando l sucedia que um joguerreiro ou o filho de um mercador vinha para ocidente sozinho, atrado pelo amoaventura ou ansiando por aprender feitiaria. Um desses fora o Mestre das Configuraes

    dez anos antes, ainda um jovem selvagem de Karego-At, de espada cinta e emplumadvermelho, chegara a Gont numa manh chuvosa e dissera ao Porteiro num Hardic imperioreduzido, Vim aprender!. E agora ali estava, na luz de um ouro esverdeado sob as rvoum homem alto e claro de compleio, com longos cabelos louros e estranhos olhos verdMestre das Configuraes de Terramar.

    Era bem possvel que tambm ele soubesse o nome de Gued mas, a ser esse o c

    nunca o pronunciou. Ambos se cumprimentaram em silncio.

    O que ests a a olhar? perguntou o Arquimago. E o outro respondeu:

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    Uma aranha.

    Entre duas longas folhas da erva que crescia na clareira, uma aranha fizera a sua um crculo delicadamente suspenso. Os fios prateados refletiam a luz do Sol. No ceesperava a aranha, uma coisa de um negro acinzentado, pouco maior que a pupila de um ol

    Tambm ela uma configuradora disse Gued, analisando a artstica teia.

    O que o mal? perguntou o homem mais novo.

    A teia redonda, com o seu centro negro, parecia observ-los a ambos.

    Uma teia que ns, homens, tecemos respondeu Gued.

    Naquele bosque no havia canto de aves. Estava silencioso e quente luz do meio

    Ao redor deles erguiam-se as rvores e as sombras.

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    Veio notcia de Narveduen e de Enlad. A mesma.

    Sul e Sudoeste. Norte e Noroeste disse o Configurador, sem deixar de fitar aredonda.

    Viremos aqui esta noite. Este o melhor lugar para o conselho.

    No tenho conselho a dar.

    O Configurador olhava agora para Gued e os seus olhos esverdeados eram frios.

    Tenho medo acrescentou. H um temor. H temor nas razes.

    Verdade assentiu Gued. Temos de voltar os olhos para as nasceprofundas, penso eu. Demasiado tempo nos deleitamos com a luz do Sol, gozando-o nessa

    que o Anel, ao ser restaurado, nos trouxe, levando a cabo pequenas coisas, pescando em

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    baixas. Mas esta noite temos de interrogar as profundezas.

    E assim deixou o Configurador sozinho, fitando ainda a aranha na erva ensoalhada.

    Na orla do Bosque, onde as folhas das rvores se estendiam para fora, sobre um comum, sentou-se com as costas apoiadas a uma poderosa raiz, o bordo deitado sobroelhos. Fechou os olhos como para repousar e lanou um envio do seu esprito por sobr

    colinas e campos de Roke, para norte, at ao cabo avassalado pelo mar onde se ergue a T

    Isolada.

    Kurremkarmerruk pronunciou ele em esprito. E o Mestre dos Nomes ergueolhos do espesso volume com nomes de razes e ervas, de folhas e sementes e ptalasestava a ler aos seus pupilos, dizendo: Estou aqui, meu Senhor.

    Depois aquele velho grande e magro, de cabeleira branca sob o seu capuz escuro, se a escutar. E os estudantes, sentados s suas escrivaninhas na sala da torre, ergueram a v

    para ele e logo se entreolharam.

    Irei disse Kurremkarmerruk e, inclinando de novo a cabea para o liprosseguiu: Ora a ptala da flor do alho-mgico tem um nome, que iebera, e o mequanto spala, que partonat.E caule e folha e raiz tm cada um seu nome...

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    Mas sob a sua rvore o Arquimago Gued, que sabia todos os nomes do alho-mgrecolheu o seu envio e, estendendo mais confortavelmente as pernas e mantendo os ofechados, acabou por se deixar adormecer sob a luz do Sol entrecortada pelas sombrasfolhas.

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

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    OS MESTRES DE ROKE

    Escola de Roke que os rapazes que mostram inclinao para a feitiariaenviados, de todas as Ilhas Interiores de Terramar, para aprender as mais altas artes da maAli se tornam peritos nas vrias formas de feitiaria, aprendendo nomes, runas, talentencantamentos, e ainda o que se deve e no deve fazer e porqu. E ali, aps longa prticmo, mente e esprito se desenvolvem a par, podem ser nomeados feiticeiros e receb

    bordo do poder. S em Roke se formam os verdadeiros feiticeiros.

    Dado que h mgicos e bruxas em todas as ilhas e que o uso da magia to necesss suas gentes como o po e to agradvel como a msica, a Escola de Feitiaria altamconsiderada. Os nove magos que so os Mestres da Escola so encarados como iguais

    grandes prncipes do Arquiplago. O seu chefe, o guardio de Roke, o Arquimago, ncomparvel a homem algum, a no ser o Rei de Todas as Ilhas, e mesmo isso s por um tribde fidelidade, uma ddiva do corao, pois nem sequer um rei poderia obrigarextraordinrio mago a reger-se pela lei comum, se outra fosse a sua vontade. E no entamesmo nos sculos em que no houve reis, os Arquimagos de Roke mantiveram o seu preserviram essa lei comum. Tudo em Roke se fazia como se fizera durante muitas centenaanos. Aquele parecia ser um lugar livre de qualquer perturbao e o riso dos rapazes resso

    pelos ptios ecoantes, ao longo dos largos e frios corredores da Casa Grande.

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    O guia de Arren pelos meandros da Escola era um rapaz entroncado cujo mantapertava no pescoo com um fecho de prata, o testemunho de que cumprira o noviciado eum mgico comprovado, estudando agora para obter o seu bordo. Chamavam-lhe Rporque, contava ele, os meus pais tinham j seis filhas e a stima criana, dizia o meu

    tinha sido uma jogada de risco contra o Destino. Era um companheiro agradvel, rpidcabea e de lngua. Em qualquer outra ocasio, Arren ter-se-ia divertido com o seu hummas naquele dia tinha o esprito demasiado ocupado. A verdade que nem lhe prestou mateno. E Risco, no seu natural desejo de que lhe reconhecessem a existncia, comeaproveitar-se da distrao do hspede. Contou-lhe fatos estranhos acerca da Escola, e deestranhssimas mentiras acerca da Escola, e a tudo isso Arren dizia Sim, sim, ou Estver, at que Risco acabou por o tomar por um real idiota.

    claro que aqui no se cozinha disse ele, enquanto encaminhava Arren atrdas enormes cozinhas de pedra, animadas com o rebrilhar dos caldeires de cobre, o esdos cutelos e o cheiro ativo e pungente das cebolas cortadas. Isto s teatro. Quachegamos ao refeitrio, cada um faz aparecer por magia o que quer comer. Tambm se po

    bastante na lavagem da loua.

    Sim, sim, estou a ver disse Arren, delicadamente.

    claro que os novios que ainda no aprenderam os encantamentos se fartam

    perder peso nos primeiros meses. Mas acabam por aprender. Temos c um rapaz de Haque est constantemente a ver se consegue galinha assada, mas saem-lhe sempre papamilho. Parece que no consegue aprender encantamentos acima das papas de milho. ontem conseguiu tambm bacalhau seco, juntamente com as papas.

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    Risco j estava a ficar rouco com tanto esforo para levar o hspede a demonincredulidade. Desistiu e calou-se.

    De onde... de que terra o Arquimago? perguntou Arren, sem sequer olhar pa

    grandiosa galeria que iam atravessando, toda ela gravada nas paredes e no teto abobadcom a rvore das Mil Folhas.

    De Gont informou Risco. Foi pastor de cabras, l.

    E ento, perante aquele simples fato, conhecido de tantos, o rapaz de Enlad voltopara Risco e olhou-o com desaprovadora descrena.

    Um cabreiro?

    o que so os gontianos na sua maioria, a no ser que se tornem pirata

    mgicos. Eu no disse que ele era um cabreiroagora,percebes?

    Mas como possvel um cabreiro vir a ser Arquimago?

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    Do mesmo modo que um prncipe! Vindo a Roke e sobrepondo-se a todoMestres, roubando o Anel em Atuan, navegando pelo Passo do Drago, sendo o maior feiticeiros desde Erreth-Akbe... Pois que de outra maneira havia de ser?

    Saram da galeria pela porta norte. O entardecer estendia-se, morno e claro, sobrcolinas estriadas pelos sulcos do arado e os telhados da Vila de Thwil, e ainda sobre a

    para alm desta. Ali pararam a conversar e Risco disse:

    claro que isso foi j h muito tempo. Desde que foi nomeado Arquimago, nofeito grande coisa. Nunca fazem. Limitam-se a ficar em Roke a vigiar o Equilbrio, pensoE agora j est muito velho.

    Velho? Com que idade?

    Oh, quarenta ou cinquenta.

    J o viste?

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    Claro que j o vi proferiu Risco secamente. O real idiota parecia ser tambmrealssimo esnobe.

    Muitas vezes?

    No. Ele est quase sempre sozinho. Mas quando cheguei a Roke vi-o, no Pti

    Fonte.

    Foi onde eu falei hoje com ele disse Arren.

    O seu tom de voz levou Risco a encar-lo e logo a dar-lhe uma resposta mais comp

    Foi h trs anos. E eu estava to assustado que, para falar a verdade, nem seolhei bem para ele. Claro que eu era muito novo. Mas difcil ver as coisas distintamnaquele stio. O que eu recordo melhor a sua voz... e a fonte a correr. E, apsmomento, acrescentou: E ele tem mesmo o sotaque gontiano.

    Se eu fosse capaz de falar com drages na lngua deles comentou Arren p

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    me havia de importar com o meu sotaque.

    Perante isto, Risco voltou a olh-lo com alguma aprovao e perguntou:

    Vieste aqui para entrar na escola, prncipe?

    No. Trazia uma mensagem do meu pai para o Arquimago.

    Enlad um dos Principados da Realeza, no ?

    Enlad, Ilien e Way. Havnor e a, em tempos, mas a linhagem dos descendentes rdesapareceu nessas terras. Ilien traa a descendncia desde Gemal Nascido-do-Mar atrde Maharion que foi Rei de Todas as Ilhas. Way, desde Akambar pela Casa de Xlieth. Ena mais antiga, desde Morred atravs do seu filho, Serriadh e da Casa de Enlad.

    Arren recitou estas genealogias com um ar sonhador, como um erudito capazenquanto disserta, ter a mente voltada para outro assunto.

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    Achas que veremos de novo um rei em Havnor durante a nossa vida?

    Nunca pensei muito nisso.

    Em Ark, onde eu nasci, as pessoas pensam nisso. Sabes, agora, desde que a paestabelecida, fazemos parte do Principado de Ilien. E foi h qu, h dezessete ou dezoito

    que o Anel da Runa do Rei foi devolvido Torre dos Reis, em Havnor. As coisas aiandaram melhor por um bocado, nessa altura. Mas agora esto pior que nunca. J era temphaver outra vez um rei no trono de Terramar que empunhasse o Signo da Paz. As gentes efartas de guerras e assaltos, de mercadores que exorbitam nos preos e de prncipes exorbitam nos impostos, e de toda a confuso de poderes sem regra. Roke guia, mas no pgovernar. A Harmonia est aqui, mas o Poder devia estar nas mos de um rei.

    Risco falava com verdadeiro interesse, posta de parte toda a jocosidade,e a aten

    Arren foi finalmente desperta.

    Enlad uma terra rica e pacfica disse ele, lentamente. Nunca se meteu nerivalidades. Ouvimos falar de perturbaes noutras terras. Mas no se sentou rei algumtrono em Havnor desde a morte de Maharion. H oito centenas de anos. Ser que o terriaceitaria realmente um rei?

    Sim, se viesse em paz e em fora. Se Roke e Havnor lhe reconhecessem o direit

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    trono.

    E h uma profecia a cumprir, no assim? Maharion disse que o rei seguinte sum mago.

    O Mestre Chantre havnoriano e interessa-se pelo assunto. E h j trs anosanda a encher-nos os ouvidos com as palavras que Maharion disse. Herdar o meu traquele que tiver atravessado, vivo, a terra da sombra e alcanado as longnquas praia

    dia.

    Portanto, um mago.

    Sim, pois s um feiticeiro ou mago pode caminhar entre os mortos na terrsombra e regressar. Se bem que eles no a atravessem.Pelo menos, sempre falam dela cse tivesse um nico limite e, para l dele, no houvesse fim. O que sero ento as longnqraias do dia?Mas assim reza a profecia do ltimo Rei e, portanto, algum nascer um

    para a cumprir. E Roke reconhec-lo-, e a ele se uniro as armadas e os exrcitos naes. E ento haver de novo majestade no centro do mundo, na Torre dos Reis em Hav

    A algum assim eu juntar-me-ia. Sim, serviria um verdadeiro rei com todo o meu coratoda a minha arte.

    Assim falou Risco e depois riu e encolheu os ombros, no fosse Arren achar quefalara com demasiada emoo. Mas Arren olhou-o amigavelmente, ao mesmo tempo

    pensava: Ele sentiria para com o rei o mesmo que eu sinto para com o Arquimago.

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    E, em voz alta, disse:

    Um rei precisaria de homens como tu junto de si.

    Ali sequedaramambos, cada um entregue aos seus prprios pensamentos mas, meassim, como companheiros, at que um gongo retiniu na Casa Grande, por detrs deles.

    Pronto! exclamou Risco. Sopa de lentilhas e cebolas para esta noite. Vem

    Pareceu-me ouvir-te dizer que no cozinhavam disse Arren, asonhadoramente, enquanto o seguia.

    Oh, s vezes... por engano...

    O jantar nada tinha a ver com magia, mas muito com sustncia. Depois de comer, fo

    dar uma caminhada pelos campos, sob o azul leve do crepsculo.

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    Este o Cabeo de Roke informou Risco, quando comearam a subir uma coarredondada. A erva orvalhada roava-lhes as pernas e l de baixo, dos terrenos alagaddo rio Thwilburn, chegava at eles o coro dos pequenos sapos que acolhiam assim

    primeiros calores e as noites estreladas, a tornarem-se j mais pequenas.

    Havia um mistrio naquele solo. E Risco disse, suavemente:

    Este foi o primeiro monte a elevar-se acima do mar, quando foi pronunciaPrimeira Palavra.

    E ser o ltimo a desaparecer, quando todas as coisas forem anuladas concArren.

    Portanto, um bom stio para se estar disse Risco, a libertar-se da sensatemor e respeito. Mas logo bradou, atnito: Repara! O Bosque!

    Para sul do Cabeo, revelava-se uma grande luz sobre a terra, como um nascer de mas esta, delgada, estava j a pr-se para ocidente, alm do cimo do monte. E naquela

    havia um tremeluzir, como o movimento de folhas ao vento.

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    Que aquilo?

    Vem do Bosque... os Mestres devem l estar. Dizem que se iluminou assim, comclaro como o do luar, quando eles se reuniram para escolher o Arquimago, h cinco aMas porque se estaro a reunir agora? Ser por causa das novas que trouxeste?

    Talvez seja respondeu Arren.

    Risco, excitado e pouco vontade, quis voltar para a Casa Grande, a ver se o

    alguma indicao do que poderia pressagiar o Conclio dos Mestres. Arren acompanhomas olhando muitas vezes para trs, para aquele estranho resplandecer, at que a encostamonte a ocultou e apenas restaram a lua nova, j a pr-se, e as estrelas da Primavera.

    Mais tarde, sozinho na cela de pedra que lhe servia de quarto de dormir, Arren esdeitado, mas de olhos abertos. Toda a sua vida dormira numa cama, sob peles macias. Mena galera de vinte remos que o trouxera de Enlad, tinham proporcionado ao seu jo

    prncipe maior conforto que aquilo uma enxerga de palha sobre o cho de pedra nu ecobertor de feltro esfarrapado. Mas no dava por nada disso. Eis-me no centro do mun

    pensava. Os Mestres falam entre si no local sagrado. Que iro fazer? Tecero uma gramagia para salvar a magia? Ser verdade que a feitiaria est a morrer no mundo? Haver

    perigo capaz de ameaar a prpria Roke? Vou ficar aqui. No voltarei a casa. Preferia vao quartodeleque ser um prncipe em Enlad. Ser que me vai aceitar como novio? Mas ta

    deixe de haver o ensino da arte mgica e nunca mais se aprendam os nomes-verdadeiroscoisas. O meu pai tem o dom da feitiaria, mas eu no. Talvez esteja mesmo a desaparece

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    mundo. E no entanto eu desejaria ficar pertodele,ainda que perdesse o seu poder e a sua Mesmo se nunca o visse. Mesmo se no voltasse a dizer-me uma palavra que fosse.

    Mas a sua ardente imaginao arrastou-o para mais longe ainda e tanto que, dpouco, se via uma vez mais face a face com o Arquimago, de novo no ptio sob a grasorveira, e o cu estava carregado, a rvore sem folhas, a fonte silenciosa. E ele dizia, Senhor, a tempestade est sobre ns, mas mesmo assim ficarei contigo e servir-te-ei,Arquimago sorriu-lhe... Mas aqui falhou-lhe a imaginao, pois nunca vira aquele escuro rsorrir.

    De manh, ao levantar-se, sentiu que ontem fora um rapaz e hoje era um homem. Es

    pronto para tudo. Mas, quando o inesperado aconteceu, ficou boquiaberto.

    O Arquimago deseja falar contigo, Prncipe Arren disse um novio muito joque lhe surgiu porta e, depois de esperar um momento, deitou a correr dali para fora aque Arren recuperasse do espanto o suficiente para lhe responder.

    Ao acaso, desceu a escada da torre e encaminhou-se pelos corredores de pedra

    direo ao Ptio da Fonte, sem saber muito bem para onde devia ir. No corredor, veio ter ele um homem j de idade, sorrindo de uma forma que lhe desenhava profundos sulcosfaces, rodeando-lhe a boca do nariz ao queixo. Era o mesmo que, no dia anterior, o acolhe

    porta da Casa Grande, quando ele chegara vindo do porto, e lhe exigira que dissesse onome-verdadeiro, antes de entrar.

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    Vem por aqui disse o Mestre Porteiro.

    As salas e passagens naquela parte do edifcio estavam silenciosas, vazias

    Correrias e barulheira dos rapazes que animavam o resto. Ali sentia-se a vetusta idadeparedes. O encantamento com que as antigas pedras tinham sidoassentadasera ali palpveespaos, havia runas gravadas nas paredes, em sulcos profundos, algumas embutidas de pArren aprendera com o seu pai as Runas de Hardic, mas destas nenhuma conhecia, emalgumas parecerem deter um significado que ele quase sabia, ou soubera e no conserecordar bem.

    Ora aqui estamos, rapaz disse o Porteiro que no dava valor a ttulos c

    Senhor ou Prncipe. Arren seguiu-o at a uma diviso comprida e com um teto btravejado, tendo de um lado uma lareira de pedra onde ardia lenha, cujas chamas se refleno cho de carvalho, e do outro janelas pontiagudas que deixavam entrar a luminosidade fsuave do nevoeiro. Em frente da lareira estava um grupo de homens. Todos o olharam quaentrou, mas Arren s teve olhos para um deles, o Arquimago. Ento estacou, fez reverncia e quedou-seemudecido.

    Estes, Arren, so os Mestres de Roke disse o Arquimago , sete dos novMestre das Configuraes no abandona o seu Bosque e o dos Nomes est na sua torre, a trmilhas para norte. Todos eles sabem o que te trouxe aqui. Meus senhores, este o filho

    Morred.

    Aquela frase no provocou em Arren qualquer orgulho, mas apenas uma espcitemor. Orgulhava-se da sua linhagem, mas pensava em si prprio apenas como um herdeir

    prncipes, um dos da Casa de Enlad. Morred, de quem essa casa descendia, morrera h

    mil anos. Os seus feitos eram assunto de lendas e no do mundo atual. Assim, era como Arquimago o tivesse nomeado filho do mito, herdeiro de sonhos.

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    No se atreveu a erguer os olhos para os rostos dos oito magos. Pregou a vista na do bordo do Arquimago, com a sua ponteira de ferro, e sentiu o latejar do sangue a ecoarnos ouvidos.

    Vamos, tomemos juntos o pequeno almoo props o Arquimago, e conduziu-uma mesa posta por baixo das janelas. Havia leite e cerveja azeda, po, manteiga fresqueijo. Arren sentou-se com eles e com eles comeu.

    Passara toda a sua vida entre nobres, senhores de terras e ricos mercadores. O salseu pai, em Berila, estava sempre cheio deles. Homens que tinham muito, que compravavendiam muito, que eram ricos dos bens do mundo. Comiam carne, bebiam vinho e fala

    bem alto. Muitos contestavam, muitos adulavam, quase todos pretendiam obter alguma cApesar de jovem, Arren aprendera bastante sobre os modos e as dissimulaeshumanidade. Mas nunca estivera entre homens como estes. Comiam po, falavam pouco seus rostos eram calmos. Se pretendiam alguma coisa, no era para eles prprios. E no eneram homens de grande poder, pois tambm isso Arren reconhecia.

    Gavio, o Arquimago, sentara-se cabeceira da mesa e parecia escutar o que se dmas ao seu redor havia como um silncio e ningum lhe dirigia a palavra. Tambm Arrendeixado em sossego e assim teve tempo para recuperar o sangue-frio. A sua esquerda estaPorteiro e direita um homem de cabelo grisalho, com um aspecto bondoso, que acaboulhe dizer:

    Ns somos camponeses, Prncipe Arren. Nasci na parte oriental de Enlad, jun

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    Floresta de Aol.

    J cacei nessa floresta respondeu Arren e durante algum tempo conversasobre as florestas e vilas da Ilha dos Mitos, pelo que Arren se sentiu confortado ao recordsua terra natal.

    Acabada a refeio, voltaram a reunir-se junto da lareira, sentando-se uns e ficaoutros de p, e fez-se um silncio breve.

    A noite passada disse o Arquimago reunimo-nos em conselho. Longamentfalou e, no entanto, nada resolvemos. Gostaria agora de vos ouvir dizer, luz da manhmantendes ou negais o vosso parecer desta noite.

    O fato de nada termos resolvido disse o Mestre das Ervas, um hoentranado e de pele escura, com olhos tranquilos , j por si um parecer. No Bosencontram-se configuraes, mas ns apenas encontramos discusses.

    Isso aconteceu simplesmente porque no conseguimos ver bem a configuradisse o mago grisalho de Enlad, Mestre da Mudana. No sabemos o suficiente. BoatoUothort, notcias de Enlad. Novas estranhas e que deviam ser bem consideradas. Mas parme desnecessrio edificar um grande medo sobre to pequeno fundamento. O nosso poderfica ameaado s porque alguns mgicos esqueceram os seus encantamentos.

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    O mesmo digo eu pronunciou-se um homem delgado e de olhar arguto, o MChave-do-Vento. Pois no temos ns todos os nossos poderes? No continuam as rvdo Bosque a crescer e a dar folhas? No obedecem as tormentas do cu nossa palaQuem poder temer pela arte da feitiaria que a mais antiga de todas as artes do homem?

    Homem algum disse o Mestre da Invocao, jovem, alto e de voz profunda, um rosto nobre e escuro , homem algum, poder algum, pode impedir a ao da feitinem silenciar as palavras do poder. Porque elas so as prprias palavras da Criao e aqque as conseguisse silenciar poderia devolver o mundo ao nada.

    Sim, e aquele que o pudesse fazer no estaria em Uothort nem em Narveduedisse o Mestre da Mudana. Estaria aqui, s portas de Roke, e o fim do mundo es

    prximo! Ainda no chegamos a tal.

    E, no entanto, algo est errado contraps outra voz e todos o olharam. O pvasto, slido como uma arca de carvalho, estava sentado junto ao lume e a voz brotava suave e afinada como as notas de um grande sino. Era o Mestre Chantre.

    Onde est o rei que devia haver em Havnor? Roke no o corao do mundtorre sim, aquela onde foi colocada a espada de Erreth-Akbe e onde se ergue o tronoSerriadh, de Akambar, de Maharion. H oitocentos anos que o corao do mundo est vaTemos a coroa, mas no o rei para a usar. A Runa Perdida, a Runa do Rei, a Runa da Paz, nos restituda. Mas ser que temos paz? Que um rei suba ao trono e ento teremos paz. E

    nas mais longnquas Estremas os mgicos praticaro as suas artes sem perturbao nas mentes, e haver ordem e uma estao para todas as coisas.

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    Concordo disse o Mestre de Mo, um homem pequeno e gil, modestoaspecto mas com olhos lmpidos e argutos. Estou contigo, Chantre. O que haverextraordinrio em que a feitiaria se desencaminhe, quando o mesmo acontece a tudo o re

    Se todo o rebanho fugir,ser que a nossa ovelha negra ficar junto ao curral?

    Perante isto, o Porteiro riu, mas no disse uma palavra.

    Ento, para todos vs disse o Arquimago , dir-se-ia que nada h de merrado. Ou, se h, tal se deve a que as nossas terras esto desgovernadas ou mal governade modo que todas as artes e altos talentos dos homens sofrem por negligncia. Atconcordo. Na verdade, porque o Sul j quase de todo abandonou um comrcio pacficotemos de depender de boatos. E quem haver recebido novas seguras da Estrema Oeste, alm do que soubemos de Narveduen? Se houvesse barcos a navegar para l e para csegurana, como antigamente, se as nossas terras de Terramar estivessem bem ligadas entr

    poderamos saber como vo as coisas nos mais remotos locais e, assim, agir. E pensoagiramos, sim! Porque, senhores, quando o Prncipe de Enlad nos diz que pronuncio

    palavras da Criao num esconjuro e, ao diz-las, no entendeu o que significavam, quanMestre das Configuraes diz que h medo nas razes e nada mais adianta, teremos aqui

    base assim to pequena para a nossa ansiedade? Quando a tempestade comea, no maisuma nuvenzinha no horizonte.

    Tu tens o sentido das coisas tenebrosas, Gavio disse o Mestre PorteiroSempre tiveste. Diz-nos o que te parece que esteja errado.

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    No sei. H um enfraquecimento do poder. H falta de resoluo. H um escurdo Sol. Sinto, senhores... sinto como se ns, que estamos aqui sentados a falar, tivssetodos sido feridos mortalmente. E enquanto falamos e voltamos a falar, o nosso sangue vaiescorrendo suavemente das veias...

    E preferias erguer-te e fazer algo.

    Preferia disse o Arquimago.

    Bom comentou o Porteiro , sero os mochos capazes de impedir o falcvoar?

    Mas onde poderias ir? perguntou o Mestre da Mudana, ao que o Charespondeu:

    Procurar o nosso rei e conduzi-lo ao seu trono!

    O Arquimago olhou intensamente o Chantre, mas limitou-se a responder:

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    Iria para onde houvesse problemas.

    Para sul ou para ocidente especificou o Mestre Chave-do-Vento.

    E para norte ou oriente, se necessrio fosse acrescentou o Porteiro.

    Mas tu s necessrio aqui, meu Senhor contraps o Mestre da Mudana. vez de ires s cegas procurar entre gente hostil sobre mares estranhos, no seria mais senficar aqui, onde toda a magia forte, e descobrir pelas tuas artes que mal ou desordem e

    As minhas artes no me aproveitam respondeu o Arquimago. E algo havia navoz que os forou a todos a fit-lo, graves e de olhar apreensivo. Eu sou o GuardiRoke e no de nimo leve que deixarei Roke. Desejaria que a vossa recomendaominha fossem a mesma. Mas, de momento, no de esperar que isso acontea. A deciso de ser minha. E devo partir.

    Com essa deciso nos conformamos disse o Mestre da Invocao.

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    Mais, partirei sozinho. Vs sois o Conclio de Roke e o Conclio no devedividido. Contudo, algum levarei comigo, se ele quiser vir. E olhou para ArrenOntem, ofereceste-te para me servir. E na noite passada o Mestre das Configuraes dNo por acaso que algum vem at s costas de Roke. E no por acaso que o portdestas novas um filho de Morred. E no teve mais palavra alguma para nos dizer durtoda a noite. Pergunto-te pois, Arren. Virs comigo?

    Irei, meu Senhor respondeu Arren com a garganta seca.

    Decerto que o prncipe, teu pai, no te deixaria expores-te a este perigo disMestre da Mudana com alguma rispidez. E logo para o Arquimago: O rapaz muito ne pouco sabedor de feitiaria.

    Eu tenho anos e esconjuros que chegam para ns dois retorquiu Gasecamente. Arren, o que diria o teu pai?

    O meu pai deixar-me-ia ir.

    Como podes sab-lo? inquiriu o Mestre da Invocao. Arren no sabia ondepediam que fosse, nem quando, nem porqu. Estava confuso e envergonhado perante aquhomens graves, diretos e terrveis. Se tivesse tido tempo para pensar, no teria dito

    palavra que fosse. Mas no havia tempo para pensar. O Arquimago perguntara-lhe: Vcomigo?. Assim, respondeu:

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    Ao enviar-me aqui, o meu pai disse-me: Temo que um tempo de trevas esprestes a cair sobre o mundo, um tempo de perigo. Por isso te envio a ti, em vez de qualoutro mensageiro, porque tu s capaz de ajuizar se deveramos pedir o auxlio da Ilha

    Sages neste assunto, ou oferecer-lhes o auxlio de Enlad. Portanto, se for necessrio, isso aqui me encontro.

    Ao dizer isto, viu que o Arquimago sorria. Embora fosse um sorriso breve, havia grande doura.

    Esto a ver? disse para os sete magos. Poderiam os anos ou a macrescentar alguma coisa a isto?

    Arren sentiu que o olhavam aprovadoramente, mas ainda com uma expresso comquem pondera ou duvida. E o Mestre da Invocao, com as suas sobrancelhas arqueadunirem-se num enrugar de testa, disse:

    No entendo isto, meu Senhor. Que estejas determinado a partir, sim. H cinco que aqui ests enjaulado. Mas, antes, sempre estavas sozinho. Sempre partiste soziPorqu, agora, acompanhado?

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    Antes, nunca precisei de auxlio disse o Gavio, com um trao de ameaironia na voz. E agora encontrei um companheiro altura.

    Desprendia-se dele algo de perigoso e o Mestre da Invocao no voltou a fembora mantivesse a testa enrugada.

    Mas o Mestre das Ervas, de olhos pacficos e tez escura como um sbio e pacienteergueu-se do seu lugar em todo o seu monumental volume.

    Vai, meu Senhor disse. Vai e leva o rapaz. A nossa confiana vai contigo.

    Um a um, todos os outros assentiram silenciosamente e, sozinhos ou aos pares, fo

    saindo, at que dos sete apenas ficou o Mestre da Invocao.

    Ouve, Gavio disse. No minha inteno questionar a tua deciso. Dapenas que, se tens razo, se h desequilbrio e o perigo de um grande mal, ento uma via

    para Uothort, ou para a Estrema Ocidental, ou at aos confins do mundo, nunca suficientemente longe. Poders levar este companheiro at onde talvez tenhas de ir? E isso justo para ele?

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    Estavam afastados de Arren e o Mestre da Invocao mantivera a voz baixa, mArquimago falou abertamente:

    justo.

    No ests a dizer-me tudo o que sabes contraps o Mestre da Invocao.

    Se eu soubesse, falaria. Nada sei, mas suponho muito.

    Deixa-me ir contigo.

    Algum tem de guardar as portas.

    O Mestre Porteiro faz isso...

    No so apenas as portas de Roke. Fica. Fica e vigia a madrugada a ver se nclara, e vigia as muralhas de pedra a ver quem as atravessa e para onde se voltam os

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    rostos. H uma brecha, Thrione, h uma fenda, uma ferida, e isso o que vou procurar. Seperder, ento talvez tu a encontres. Mas espera. Ordeno-te que esperes por mim.

    Exprimia-se agora na Antiga Fala, a lngua da Criao em que se lanam todoverdadeiros encantamentos e da qual dependem todos os grandes atos de magia. Mas mraramente usada em conversao, exceto entre drages. O Mestre da Invocao no discnem protestou mais. Antes, vergando a sua elevada estatura numa reverncia, cumprimetanto o Arquimago como Arren e saiu.

    A lenha estalava na lareira. No havia qualquer outro rudo. Fora das janelanevoeiro acumulava-se, informe e sombrio.

    O Arquimago tinha o olhar fito nas chamas, parecendo ter esquecido a presen

    Arren. O rapaz mantinha-se a uma certa distncia da lareira, sem saber se devia retirar-sesperar que o mandassem embora, irresoluto e algo desolado, sentindo-se de novo como

    pequena figura num espao escuro, perturbante e ilimitado.

    Iremos primeiro Cidade de Hort disse o Gavio, voltando as costas ao fogo ali que se renem todas as novas vindas da Estrema Sul, por isso talvez encontremos

    pista. O teu barco ainda te espera na baa. Fala com o mestre de bordo e ele que leve mensagem a teu pai. Creio que deveramos partir to breve quanto possvel. Amanhromper do dia. Vai ter s escadas junto do alpendre onde se guardam os barcos.

    Meu Senhor, o que ... a voz embargou-se-lhe por um momento. O que

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    procuras?

    No sei, Arren.

    Mas ento...

    Ento como poderei procur-lo? Tambm no sei isso. Talvez o que for me pro

    a mim.

    Descobriu os dentes num meio sorriso para Arren, mas o seu rosto permaneceu rcomo ferro sob a luminosidade cinzenta das janelas.

    Meu Senhor disse Arren, e a sua voz era agora segura , certo que desceda linhagem de Morred, se que podemos estar certos do traado de to antiga linhagem.

    puder servir-te, considerarei ser essa a maior oportunidade e honra da minha vida, pois h que mais desejasse fazer. S temo que me julgues algo mais do que realmente sou.

    Talvez comentou o Arquimago.

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    No tenho grandes dons ou talentos. Sei esgrimir com a espada curta e com a noSei governar um barco. Conheo as danas da corte e as danas dos camponeses. Sou cde aplacar uma zanga entre cortesos. Sei lutar corpo a corpo. Sou um mau arqueiro mas te

    percia no jogo da pela. Sei cantar e tocar a harpa e o alade. E tudo. No h mais nada.

    utilidade poderei eu ter para ti? O Mestre da Invocao estava certo...

    Ah, deste por isso, no foi? Tem cimes. Reclama o privilgio de uma lealdmais antiga.

    E de um talento maior, meu Senhor.

    Preferias ento que o levasse a ele e ficasses tu para trs?

    No! Mas temo...

    Temes o qu?

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    As lgrimas chegaram aos olhos do rapaz.

    No estar altura do que esperas de mim respondeu.

    O Arquimago voltou-se de novo para o fogo.

    Senta-te, Arren disse ele, e o rapaz foi ocupar o assento de pedra ao cant

    lareira. No pensei que fosses um feiticeiro ou um guerreiro ou qualquer coisa de perfO que s no o sei, embora tenha ficado satisfeito por poderes governar um barco... Ovirs a ser ningum o sabe. Mas uma coisa sei de cincia certa. s o filho de Morred Serriadh.

    Arren manteve o silncio por algum tempo. E finalmente disse:

    Isso verdade, meu senhor. Mas...

    O Arquimago permaneceu calado e Arren teve de acabar a frase.

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    Mas no sou Morred. Sou apenas eu prprio.

    No tens orgulho na tua linhagem?

    Sim, tenho orgulho nela porque fez de mim um prncipe. uma responsabiliduma coisa de que temos de nos mostrar dignos...

    O Arquimago assentiu com um movimento rpido de cabea.

    Era isso o que eu pretendia dizer. Renegar o passado renegar o futuro. Um ho

    no faz o seu destino, aceita-o ou renega-o. Se as razes do freixo so fracas, ele no ostencoroa.

    Perante estas palavras, Arren ergueu os olhos, sobressaltado, porque o seu noverdadeiro, Lebnnen, significava freixo. Mas o Arquimago no dissera o seu nome.

    As tuas razes vo fundo prosseguiu ele. Tens o vigor e precisas de esp

    espao para crescer. E por isso te ofereo, em vez de uma viagem segura at Enlad,

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    viagem insegura para um destino desconhecido. No precisas de vir, a escolha tua. ofereo-te a escolha. Porque estou cansado de lugares seguros, e de telhados, e de ter par minha volta.

    Calou-se abruptamente, relanceando o espao ao seu redor com um olhar penetramas cego para o que o cercava. Arren entendeu a profunda inquietao do homem e temedela. Mas o medo agua a alegria e foi com um sobressalto do corao que ele respondeu:

    Meu Senhor, escolho ir contigo.

    Arren deixou a Casa Grande com o corao e o esprito cheios de um espmaravilhado. Dizia a si prprio que era feliz, mas a palavra no parecia ser a adequada. Da si prprio que o Arquimago o considerara forte, um homem com um destino a cumprir, e

    estava orgulhoso de tal louvor. Mas no estava orgulhoso. Porque no? O mais podefeiticeiro em todo o mundo dissera-lhe: Amanh navegaremos at beira do desastre eassentira com um baixar de cabea e viera. No deveria ento estar orgulhoso? Mas estava. Sentia apenas aquele espanto maravilhado.

    Desceu as ruas ngremes e coleantes da Vila de Thwil, encontrou o mestre do seu nno cais e disse-lhe:

    Parto amanh com o Arquimago para Uothort e para a Estrema Sul. Diz ao prnmeu pai que, logo que seja dispensado do seu servio, voltarei para Berila.

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    O comandante do navio tomou um ar contrafeito e obstinado, pois bem calculava co Prncipe de Enlad iria receber o portador de tais notcias, e disse:

    Prncipe, terei de levar alguma coisa escrita pela vossa mo acerca deste assunt

    Considerando justa a pretenso, Arren afastou-se rapidamente dali sentia que devia ser feito de imediato e encontrou uma lojinha estranha onde comprou pedra de t

    pincel e uma folha de papel macio, espesso como feltro. Apressou-se depois a regressacais e sentou-se no paredo para escrever aos pais. Mas quando imaginou a me seguraaquele pedao de papel, lendo a carta, assaltou-o uma angstia. Era uma mulher pacienovial, mas Arren sabia ser ele prprio a base e fundamento da sua alegria e como ela ans

    pelo seu pronto regresso. No havia palavras que a pudessem consolar de uma longa ausnA carta que escreveu foi seca e breve. Assinou-a com a runa-da-espada, selou-a com

    pouco de breu que tirou de um caldeiro decalafateali mo e entregou-a ao mestre do naMas logo lhe bradou: Espera!, como se o barco estivesse para partir naquele meinstante e correu pelas ruas empedradas acima at tal estranha lojinha. Teve dificuldadeencontr-la porque havia algo de enganoso nas ruas de Thwil, quase como se as voltas afossem outras de cada vez que as percorria. Mas por fim l conseguiu chegar rua cerentrou como uma seta na loja, desviando as fiadas de contas de barro vermelho ornamentavam a entrada. Ao comprar a tinta e o papel, olhara para um tabuleiro cheiofivelas e broches, e reparara num destes, em prata e com o feitio de uma rosa-brava. Ora R

    era precisamente o nome da sua me.

    Quero comprar aquilo! disse ele no seu jeito apressado e soberano.

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    Trabalho em prata antigo, da Ilha de O. Vejo que apreciador das velhas artedisse o lojista, olhando, no para a elegante bainha, mas para o punho da espada de ArrenCusta quatro moedas de marfim.

    Arren pagou o preo algo elevado sem discutir. Trazia na bolsa muitas das fichamarfim que so usadas como dinheiro nas Terras Interiores. A ideia de enviar um presenme era-lhe agradvel. O ato de o comprar, tambm. E, ao deixar a loja, colocou a mo soa esfera que encimava o punho da espada, com uma certa arrogncia.

    O pai dera-lhe aquela espada na vspera da sua partida de Enlad. Recebesolenemente e usara-a, como se us-la fosse um dever, mesmo a bordo do navio. Orgulhavde lhe sentir o peso na cinta, e o peso da sua grande antiguidade no esprito. Pois aquela eespada de Serriadh, que fora filho de Morred e Elfarran. No havia nenhuma outra mais anno mundo, exceto a espada de Erreth-Akbe, que fora colocada a encimar a Torre dos ReisHavnor. A espada de Serriadh nunca fora posta de lado nem guardada no tesouro, mas sem

    usada. E no entanto os sculos no a tinham gasto nem enfraquecido, porque fora forjada um grande poder de encantamento. A sua histria dizia que nunca fora desembainhada, nunca o poderia ser, exceto ao servio da vida. Nunca se deixaria brandir com propsanguinrios, de vingana ou de ambio, nem em qualquer guerra que tivesse por fim o luDela, o grande tesouro da sua famlia, recebera Arren o seu nome de usar. Arrendek forachamado em criana, a pequena Espada.

    No se servira da espada, nem o seu pai antes dele, nem o seu av. Por muito tehouvera paz em Enlad.

    E agora, naquela rua da estranha vila da Ilha dos Sages, o punho da espada no

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    pareceu familiar ao tocar-lhe. Era incmodo e frio na sua mo. Pesada, a espada dificultlhe a marcha, agarrava-se a ele. E o espanto maravilhado que sentira estava ainda nele, tornara-se uma coisa fria. Voltou ao cais a entregar a joia ao mestre do navio para qulevasse me e despediu-se dele, desejando-lhe uma viagem de regresso segura. Voltacostas, lanou o manto por cima da bainha que guardava a antiga e inflexvel arma, aqcoisa mortfera que herdara. E j no sentia qualquer arrogncia.

    Que estou eu a fazer? perguntava-se, enquanto ia subindo as ruas estreitas, asem se apressar, em direo quela quase fortaleza que era a Casa Grande, acima da vilaPorque no volto eu a casa? Porque vou em busca de algo que no entendo, na companhium homem que no conheo?

    E no encontrava resposta para estas dvidas.

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    3

    A CIDADE DE HORT

    No escuro que precede a alvorada, Arren envergou as roupas que lhe tinham dvesturio de marinheiro, usado mas limpo, e apressou-se a atravessar as salas silenciosaCasa Grande at porta oriental, talhada em corno e em dente de drago. Ali, o MPorteiro deixou-o sair e indicou-lhe o caminho, com um leve sorriso. O rapaz seguiu pelasuperior da vila e desceu depois um caminho que conduzia ao alpendre onde se guardavam

    barcos da Escola, a sul das docas de Thwil, seguindo a costa da baa. Mal consedistinguir o caminho. rvores, telhados, colinas, tudo se erguia como massas obscurameio da obscuridade. O ar escuro estava totalmente parado e muito frio. Tudo permanquieto, tudo se mantinha remoto e obscuro. S para oriente, por sobre o negrume do madistinguia uma fraca linha clara. O horizonte, momentaneamente a inclinar-se em direSol invisvel.

    Chegou aos degraus que conduziam ao alpendre. No estava ali ningum, nad

    movia. Embora suficientemente aquecido dentro do seu volumoso casaco de marinheigorro de l, teve um calafrio, enquanto aguardava, no escuro, de p sobre os degraus de pe

    Os alpendres dos barcos erguiam-se negros acima do negro da gua. E de repente

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    l de dentro, veio um som mortio e cavo, uma pancada ecoante que se repetiu por trs veArren sentiu os cabelos eriarem-se-lhe. Uma sombra comprida deslizou silenciosamente a gua. Era um barco que se aproximou suavemente do molhe. Arren correu pelos degabaixo at ao molhe e saltou para dentro do barco.

    Pe-te ao leme disse o Arquimago, uma figura flexvel, quase uma som

    apenas, proa. Mantm o barco firme enquanto eu io a vela.

    Estavam j em plena gua, com a vela a abrir-se no mastro como uma asa, sob anascente.

    Este vento de oeste que nos vai poupar de remar para fora da baa um presentdespedida do Mestre Chave-do-Vento, tenho a certeza. Cuidado com o barco, rapaz, olha

    ele ligeiro a obedecer! Ora, pois. Um vento de oeste e uma manh de cu limpo no primdia da Primavera.

    Este barco o V-longe? perguntou Arren que ouvira falar do barcoArquimago em canes e histrias.

    , sim respondeu o outro, ocupado com os cabos. O barco encabritou-se e vde bordo com o avivar do vento. Cerrando os dentes, Arren esforou-se por o manter na ro

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    verdade que o barco ligeiro a obedecer, mas parece-me um pouco voluntariSenhor.

    O Arquimago riu-se.

    Deixa-o ir como lhe apetece. Tambm ele sbio. Mas, escuta, Arren e fez

    pausa, ajoelhando-se no banco para olhar o rapaz de frente. Agora, nem eu sou Senhor, tu s Prncipe. Eu sou um mercador chamado Falco e tu s o meu sobrinho, a quem anensinar as coisas do mar, chamado Arren. E vimos de Enlad. De que povoao? Tem deuma grande, no se d o caso de depararmos com um citadino.

    Temar, na costa sul? Fazem comrcio com todas as Estremas.

    O Arquimago aprovou com um aceno de cabea.

    Mas disse Arren cautelosamente , tu no tens bem o sotaque de Enlad.

    Bem sei. Tenho o sotaque de Gont disse o companheiro e riu-se, erguend

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    olhos para leste, onde crescia a claridade do dia. Mas acho que posso tomaremprstimo o que preciso de ti. Viemos, pois de Temar no nosso barco, o Golfinho,e eusou Senhor, nem mago, nem Gavio, mas... ento como que me chamam?

    Falco, meu Senhor.

    E logo Arren mordeu o lbio.

    Ensaia, sobrinho disse o Arquimago. preciso ensaiar. Toda a vida nufoste outra coisa seno um prncipe. Ao passo que eu fui muitas coisas e a ltima de totalvez a menor de todas, Arquimago... Vamos para sul em busca de pedra emmel,esse matazul de que se fazem talisms. Sei que o apreciam em Enlad. Com eles fazem amuletos coas dores reumticas, entorses, torcicolos e deslizes de lngua.

    Passado um instante, Arren riu-se e, ao levantar a cabea, o barco foi erguido por grande vaga e ele viu perante si o rebordo do Sol sobre a orla do oceano, um sbito cldourado.

    De p, o Gavio apoiava-se ao mastro, pois o pequeno barco saltava sobre o picado, e, encarando o nascer do Sol do equincio da Primavera, cantou. Arren no conha Antiga Fala, a lngua dos feiticeiros e dos drages, mas escutou louvor e regozijo

    palavras, alm de que havia nelas um forte ritmo como de marcha, semelhante ao subdescer das mars ou ao equilbrio de dia e noite, seguindo-se um ao outro para semGaivotas gritavam no vento, as praias da Baa de Thwill deslizaram para trs deles dire

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    esquerda, e finalmente entraram nas longas vagas, plenas de luz, do Mar Interior.

    A viagem no muito longa entre Roke e a Cidade de Hort, mas passaram trs nono mar. O Arquimago tivera grande urgncia em partir mas, uma vez que o fizera, mostromais que paciente. Os ventos passaram a contrrios logo que se afastaram do tempo mgicRoke, porm ele no invocou um vento de magia para a vela, como o teria feito qualfazedor de tempo. Em vez disso, gastou horas a ensinar Arren como governar o barco vento forte de proa, no marpovoadode rochedos a leste de Issel. Na segunda noite chovchuva agreste e fria de Maro, mas ele no teceu esconjuro algum para a manter afastadanoite seguinte, encontravam-se eles fora da entrada para o Porto de Hort, numa escurcalma, fria e enevoada, Arren pensou em tudo isso e reparou que, no breve tempo passdesde que o conhecera, o Arquimago no fizera magia absolutamente nenhuma.

    Mas era um marinheiro incomparvel. Arren aprendera mais ao navegar comdurante trs dias que nos dez anos que passara a remar e a entrar em regatas na Baa de BeE mago e marinheiro no esto assim to distantes um do outro. Ambos trabalham com

    poderes do cu e do mar, vergam grandes ventos ao uso nas suas mos, renem o que es

    afastado. Arquimago ou Falco, mercador dos mares, eram quase a mesma coisa.

    Era um homem bastante calado, se bem que de perfeito bom humor. No havia falteito de Arren que o irritasse. Era um bom companheiro. No poderia haver melhor cama

    de bordo, pensava Arren. Mas era capaz de se enfronhar nos seus prprios pensamentpermanecer em silncio durante horas a fio. Depois, quando voltava a falar, havia asperezsua voz e o seu olhar trespassava Arren. Isso no enfraquecia o afeto que o rapaz tinha pormas talvez reduzisse o quanto dele gostava. Era um pouco assustador. Talvez o Gavio tivsentido isso, porque, nessa noite de nevoeiro ao largo das praias de Uothort, comeou a faArren, com bastantes interrupes, acerca de si prprio.

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    No me agrada ir encontrar-me outra vez entre as pessoas, amanh comeouTenho andado a fingir que sou livre... Que no h nada de errado no mundo. Que noArquimago, nem sequer um mgico. Que sou Falco de Temar, sem responsabilidades

    privilgios, no devendo nada a ningum...

    Fez uma pausa e, da a pouco, continuou:

    Tenta escolher cuidadosamente, Arren, quando as grandes escolhas tiverem de

    feitas. Quando eu era novo, tive de escolher entre a vida de ser e a vida de fazer. E lancei segunda como a truta se lana mosca. Mas cada coisa que fazes, cada ato teu, liga-te e s suas consequncias, obriga-te a agir de novo, e de novo ainda. E ento muito raroalcances um espao, ou um tempo como este, entre um ato e outro, quando podes parsimplesmente ser. Ou tentar saber, ao fim e ao cabo, quem s.

    Mas como podia um tal homem, cogitou Arren, estar em dvida em relao a quemo que era? Sempre acreditara que tais dvidas estavam reservadas aos jovens, que no tinfeito nada ainda.

    O barco balanava na vasta e fria escurido.

    por isso que gosto do mar soou a voz do Gavio no meio daquele negrume

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    Arren compreendia-o, mas os seus prprios pensamentos corriam para diante, comtinham feito durante todos aqueles trs dias e noites, para a sua demanda, a finalidade donavegar. E como o companheiro estava disposto finalmente a falar, perguntou-lhe:

    Achas que iremos encontrar na Cidade de Hort o que procuramos?

    O Gavio sacudiu a cabea, talvez significando que no, ou talvez que no sabia.

    Poder tratar-se de uma espcie de pestilncia, uma praga, que vai indo de terrterra, que faz mirrar as colheitas, os rebanhos e o esprito dos homens?

    No. Uma pestilncia uma deslocao da grande Harmonia, do prprio EquilbIsto diferente. H nele o fedor do mal. Ns podemos sofrer quando a harmonia das coisarestaura a si prpria, mas no perdemos a esperana, nem renunciamos arte, esquecemos as palavras da Criao. Nada h na Natureza que no seja natural. Isto no restaurao da harmonia, mas a corrupo dela. S uma criatura capaz de fazer tal.

    Um homem? sugeriu Arren.

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    Ns, homens.

    Mas como?

    Por um desmesurado desejo de vida.

    De vida? Mas ento errado querer viver?

    No. Mas quando ansiamos por alcanar poder sobre a vida, riqueza infi

    segurana inatacvel, imortalidade, ento o desejo torna-se avidez. E se o saber se alia a avidez, ento nasce o mal. E o equilbrio do mundo vacila, a runa comea a pesar fortemna balana.

    Arren quedou-se a cismar sobre isto durante algum tempo e depois disse:

    Achas ento que um homem o que buscamos?

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    Um homem, sim, e mago. isso que penso.

    Mas eu julgava, a partir do que o meu pai e os professores me ensinaram, qu

    grandes artes de feitiaria estavam dependentes da Harmonia, do Equilbrio das coisas, epodiam ser usadas para o mal.

    Essa replicou o Gavio com uma certa ironia uma questo a debnfindveis so as discusses dos magos...No h ilha em Terramar onde no se saib

    uma bruxa que lana sortilgios impuros, mgicos que usam a sua arte para alcanar riqueMas h mais. O Senhor do Fogo, que tentou desfazer a escurido e parar o Sol ao meio-era um grande mago. At Erreth-Akbe teve dificuldade em venc-lo. O Inimigo de Morredsemelhante a esse. Onde chegava, cidades inteiras dobravam o joelho perante ele, exr

    por ele combatiam.

    O encantamento que teceu contra Morred era to poderosa que, mesmo quando elabatido, no houve processo de a fazer parar e a Ilha de Sola foi devastada pelo mar e toque estavam nela pereceram. Esses foram homens em quem a grande fora e o grande pserviram o desejo do mal e dele se alimentaram. E no sabemos se a feitiaria que serve melhor finalidade demonstrar ser a mais forte. Temos esperana.

    H uma certa tristeza ao encontrar esperana onde espervamos certeza. Arren deusi a desejar ver-se longe de to glidos discursos. Passados uns instantes, disse:

    Estou a ver porque dizes que s os homens fazem o mal, julgo eu. At os tuba

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    so inocentes, pois matam porque tm de matar.

    E por isso que nada nos pode resistir. S h uma coisa no mundo que pode resa um homem de ruim corao. outro homem. Na nossa vergonha est a nossa glria. Pos o nosso esprito, que tem capacidade para o mal, tem tambm a de o aniquilar.

    Mas, e os drages? interps Arren. No fazem grande mal? Sero inocentes?

    Ah, os drages! Os drages so avarentos, insaciveis, traioeiros. No piedade nem remorso. Mas haver mal neles? Quem sou eu para julgar os atos dos drageSo mais sbios que os homens. Passa-se com eles o mesmo que com os sonhos, Arren. Nhomens, sonhamos sonhos, praticamos magia, fazemos bem, fazemos mal. Os drages

    sonham. Eles so sonhos. No praticam magia porque ela a sua essncia, o seu serdrages no fazem, so.

    Em Serilune disse Arren , est a pele de Bar Oth, morto por Keor, PrncipEnlad, h j trezentos anos. Desde esse dia, nenhum drago voltou a aparecer em Enlad. E

    a pele de Bar Oth. pesada como ferro e to grande que se a estendessem, diz-se, cobtoda a praa do mercado de Serilune. Os dentes so to compridos como o meu antebrano entanto dizem que Bar Oth era um drago jovem, ainda no completamente desenvolvid

    H em ti um desejo interps o Gavio de ver drages, no assim?

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    .

    O seu sangue frio e venenoso. No deves olh-los nos olhos. So mais antigoso homem... Ficou em silncio durante algum tempo e depois prosseguiu: E ainda quvenha a esquecer ou a lamentar tudo o que alguma vez fiz, mesmo assim recordaria que vez vi os drages voando alto no vento, ao pr do Sol, por sobre as ilhas ocidentais. E me contentaria.

    Ambos sequedaramento em silncio e no havia som algum, a no ser o segredagua e do barco, nem luz. E foi assim que finalmente, ali sobre as guas profunadormeceram.

    Na nvoa clara da manh entraram no Porto de Hort, onde uma centena de embarcaestava atracada ou a largar. Barcos de pesca, lagosteiros, traineiras, barcos mercantes, dgaleras de vinte remos, uma grande de sessenta remos a necessitar de grandes reparaalguns veleiros esguios e compridos, ostentando altas velas triangulares, destinadas a caas brisas mais elevadas nas quentes calmarias da Estrema Sul.

    Aquele um navio de guerra? perguntou Arren, quando iam a passar por umagaleras de vinte remos, ao que o companheiro respondeu:

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    A ajuizar pelas manilhas de correntes no poro, um transporte de escravosEstrema Sul vendem-se homens.

    Arren ponderou o assunto durante uns momentos e depois foi caixa dos apetrechdela retirou a sua espada que embrulhara cuidadosamente e ali arrumara na manh da parDestapou-a e ficou-se indeciso, segurando a espada embainhada com ambas as mos, o c

    pendendo dela, a balanar.

    Esta no uma espada de mercador martimo disse por fim. A baindemasiado luxuosa.

    O Gavio, ocupado com o leme, lanou-lhe um olhar de relance.

    Usa-a, se quiseres.

    Achei que podia ser uma sbia atitude.

    Para uma espada, acho que essa bem sbia comentou o companheiro, o oalerta para a passagem atravs da baa atravancada de embarcaes. Essa no

    espada que tem relutncia em ser usada?

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    Arren acenou que sim.

    isso que dizem. E no entanto j matou. Matou homens. E baixou os olhos o punho esguio, gasto das mos que o tinham segurado. Ela sim, mas eu no. Faz-me scomo um idiota. muito mais velha que eu, demasiado... Acho que me ficarei pela facconcluiu. E, voltando a embrulhar a espada, lanou-a para o fundo da caixa dos apetrec

    No seu rosto lia-se perplexidade e raiva.

    O Gavio nada disse naquele momento, mas da a pouco perguntou:

    No te importas de pegar agora nos remos, rapaz? Vamos para aquele molheunto s escadas.

    A Cidade de Hort, um dos Sete Grandes Portos do Arquiplago, erguia-se a partisua barulhenta orla martima pelas encostas de trs ngremes montes, numa confuso de As casas eram de barro e rebocadas a vermelho, laranja, amarelo ou branco. Cobriamtelhas de um vermelho purpreo. Arvores pendick em flor formavam densas massas devermelho escuro ao longo das ruas superiores. Toldos garridos, s riscas, estendiam-stelhado a telhado, dando sombra a estreitas praas de mercado. Os cais rebrilhavam com do Sol. E as ruas que partiam da orla martima eram como fendas escuras, cheias de sombgente e rudo.

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    Depois de terem amarrado o barco, o Gavio inclinou-se junto de Arren comverificasse o n e disse:

    Arren, h gente em Uothot que me conhece bastante bem, de maneira que quero

    me olhes com ateno, para me poderes reconhecer.

    E quando se endireitou no havia cicatriz alguma no seu rosto. O seu cabelo era acompletamente grisalho, tinha o nariz largo e um tanto arrebitado e, em vez de um bordteixo da sua altura, segurava uma varinha de marfim que guardou dentro da camisa.

    N me conheces? perguntou a Arren com um largo sorriso e falando co

    sotaque de Enlad. Sar que nunca viste o t tio antes?

    Na corte de Berila, Arren vira feiticeiros mudar as feies quando mimavam o Fde Morrede sabia que se tratava apenas de iluso. Assim, manteve o sangue-frio e foi cde dizer:

    Ora pois que sim, m ti Falco!

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    Mas, enquanto o mago regateava com um guarda do porto o que este pedia para maem doca e guardar o barco, Arren continuou a olh-lo, para ficar bem certo de o reconhrealmente. E ao olhar, a transformao comeou a perturb-lo mais em vez de menos. demasiado completa. Aquele no era de modo algum o Arquimago, no era sbio guia chefe coisa nenhuma. A paga do guarda do porto permaneceu alta e, ao pagar, o Gavio

    parou de resmungar, nem mesmo quando se afastou com Arren.

    Este um teste minha pacincia dizia. Ter de pagar quele ladro barrigpara me guardar o barco! E isto quando um encantamento teria feito muito melhor trabaMas pronto, o que me custa o disfarce... E at me esqueci de falar como deve ser, n fosobrinho?

    Iam caminhando por uma rua garrida, fedorenta e cheia de gente, ladeada por lojaspouco mais eram que barracas e cujos donos permaneciam entrada, rodeados por mongrinaldas de mercadorias, proclamando em altos brados a beleza e barateza dos seus taccamisas, chapus, ps, alfinetes, bolsas, chaleiras, cestos, ganchos de fogo, facas, corferrolhos, roupa de cama e toda e qualquer outra espcie de quinquilharia e tecidos.

    Isto umafera?

    He! fez o homem do nariz abatatado, inclinando a cabea grisalha.

    Se isto uma fra, m tio?

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    Fra? N, n. C aqui, fazem isto o ano todo. Guarde l os seus pastis de psantinha, que eu j mat o bicho.

    Entretanto, j Arren tentava livrar-se de um homem com um tabuleiro de pequvasilhas de cobre, que se lhe colara aos calcanhares, lamuriando:

    Comprai, experimentai, meu jovem e belo senhor, no vos vo deixar mal, dar-

    o um hlito to suave como as rosas de Numima, e as mulheres encantar-se-o convoexperimentai meu jovem senhor do mar, meu jovem prncipe...

    De imediato, o Gavio interps-se entre Arren e o bufarinheiro, perguntando:

    Que talisms so esses?

    No so talisms! choramingou o homem, encolhendo-se perante ele. Euvendo talisms, mestre do mar! S uns xaropes para suavizar o hlito depois da bebida oraiz dehdzia...s xaropes, grande prncipe!

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    E agachou-se completamente nas pedras da rua, com o seu tabuleiro de frasquinhtinir e a chocalhar, e alguns deles mesmo a inclinarem-se de tal maneira que uma gotalquido espesso que tinham dentro, rosa ou prpura, escorreu para fora do gargalo.

    Sem mais palavras o Gavio virou costas e seguiu em frente com Arren. Em brevpessoas comeavam a ser menos e as lojas tornaram-se de uma pobreza confrangedora,casinhotosostentando como nica mercadoria, este um punhado de pregos tortos, aquele mo de almofariz partida eaqueloutrouma velha escova de cardar. Esta pobreza desagramenos a Arren que o resto. No lado mais rico da rua sentira-se chocado, sufocado,

    presso das coisas a serem vendidas e das vozes a gritarem-lhe que comprasse, comprass

    acima de tudo chocara-o a abjeo do bufarinheiro. Recordou as frescas e brilhantes ruasua cidade setentrional. Em Berila, nenhum homem se teria humilhado assim peranteestranho.

    Esta uma gente baixa! comentou.

    Por aqui, m sobrinho foi tudo o que obteve como resposta do companhVoltaram para uma passagem entre paredes altas, vermelhas e sem janelas, que corriamlongo da encosta, e atravessaram uma entrada em arco, engalanada com velhas e esfarrapflmulas, saindo de novo para a luz do Sol num largo ngreme, outra praa de mercadabarrotar de tendas e quiosques, enxameada de gente e de moscas.

    Ao longo dos lados do largo havia uma srie de homens e mulheres, sentadodeitados no cho, imveis. As suas bocas tinham um estranho aspecto enegrecido, com

    tivessem sido feridos, e ao redor dos seus lbios as moscas juntavam-se aos magotes cmontes de uvas passas.

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    Tantos... soou a voz do Gavio, em tom baixo e precipitado, como se tambmtivesse sofrido um choque. Mas quando Arren olhou, havia apenas o rosto vulgar e bonachdo robusto mercador Falco, vazio de quaisquer preocupaes.

    O que se passa com esta gente?

    Hdzia!Acalma e entorpece, deixando que o corpo se liberte da mente. E a m

    vagueia livremente. Mas quando regressa ao corpo precisa de mais hdzia...E a nsia cre a vida curta, porque essa coisa um veneno. Primeiro vem uma tremura, mais t

    paralisia e depois a morte.

    Arren olhou para uma mulher que estava sentada com as costas apoiadas numa paaquecida pelo sol. Erguera a mo como se tencionasse afastar as moscas da cara, mas a fez um movimento circular e sacudido, como se ela se tivesse esquecido completamente dainteno inicial e o movimento resultasse apenas de um repetido estremecer dos msculogesto era como um encantamento vazio de todo o sentido, um esconjuro sem significado.

    O Gavio olhava tambm para ela, inexpressivamente.

    Vem da! disse.

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    E abriu caminho atravs da praa e at uma tenda sombreada por um toldo. Riscacores avivadas pelo sol, verde, laranja, limo, carmim e azul, alongavam-se sobre tecixales e cintos entretecidos em exposio, e danavam, refletidas como um sem-fim de cla

    nos pequenos espelhos que enfeitavam a alta e emplumada cabeleira da mulher que vendmercadoria exposta. Era grande, forte e forte era tambm a sua voz.

    Sedas, cetins, linhos, peles, feltros, ls, velos de ovelha de Gont, gazes de Ssedas de Lorbanery! Ei, homens do Norte, larguem esses casaces. No veem o sol que fa

    que tal isto para levar s vossas raparigas l na longnqua Havnor? Olhem-me para isto, do Sul, fina como a asa de uma borboleta de Maio!

    Com mos destras, abrira uma pea de seda finssima, cor-de-rosa e salpicada fios de prata.

    N, senhora, n somos noivos de rainhas disse o Falco. Mas logo a vomulher se ergueu como um trovo.

    E ento com que que vestem as vossas mulheres, com serapilheira? Lonvelas? Gente mesquinha que no compra um pecinha de seda para uma pobre mulher enregela nas neves eternas l do Norte! Ento e que tal este velo de Gont, para a ajudaquecer nas noites frias de Inverno?

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    E lanou por cima do balco um grande quadrado de um pano creme e castanho, tecom o pelo sedoso das cabras das ilhas setentrionais. O falso mercador estendeu a mapalpou-o e teve um sorriso.

    Ei, s algum gontiano? fez a voz retumbante e a cabeleira, agitando-se, lamil pontos coloridos a girar por cima do toldo e dos tecidos.

    Isto trabalho das Andrades retorquiu o Falco. Ests a ver. A larguradedo s apanha quatro fios da urdideira. Os de Gont tm seis ou mais. Mas diz-meDeixaste de fazer magia para vender quinquilharias? Quando por aqui passei, h uns anoste a tirar labaredas das orelhas s pessoas e depois transformavas as labaredas em pssarsinos dourados. Era um negcio bem melhor que este.

    Isso no era negcio nenhum disse a enorme mulher e, por um instante, A

    notou os seus olhos, duros e firmes como gatas, olhando-o e ao Falco l de dentro do bre agitao das suas penas oscilantes e relampejantes espelhos.

    Ah, mas se era bonito aquilo de tirar fogodas orelhas insistiu o Falco numde voz obstinado mas simplrio.

    Tinha pensado em mostr-lo aqui ao m sobrinho.

  • 5/25/2018 A Praia Mais Longinqua - Ciclo - Ursula K. Le Guin

    Pois, pois. Mas olha c disse a mulher, menos asperamente, apoiando os gobraos castanhos e o vasto peito sobre o balco. Ns j no fazemos esses truquespessoas no esto interessadas. Perceberam como eram feitos. Agora, estes espelhos, est

    ver que te lembras dos meus espelhos e sacudiu a cabea, fazendo rodopiar os pontinholuz em volta deles de forma entontecedora. Pois pode-se confundir o esprito de um homcom os reflexos dos espelhos e com palavras e ainda com outros truques de que no tefalar, at ele pensar que v o que no v, o que no est ali. Como as labaredas e os sdourados, ou os fatos com que eu costumava enfeitar os marinheiros, tecido de ouro diamantes do tamanho de abrunhos, e l iam eles todos pimpes como se fossem o ReTodas as Ilhas... Mas eram truques, iluses. possvel iludir os homens. So como galiencantadas por uma cobra, ou por um dedo em frente do bico. E os homens so comgalinhas. Mas depois, no fim, percebem que foram iludidos, entontecidos, de maneira quzangam e deixam de ter prazer com tais coisas. Foi assim que me voltei para este negctalvez que nem todas as sedas sejam sedas, nem todos os velos gontianos, mas de qualmaneira duram... l isso, duram! So coisas de verdade e no simples mentiras e ar comfatos de pano de ouro.

    Bem, bem fez o Falco , quer ento dizer que j no