a paris despida de atget

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FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA A PARIS DESPIDA DE ATGET ENTRE O REALISMO FORENSE E O SURREALISMO INVOLUNTÁRIO

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Page 1: A Paris Despida de Atget

FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA

A PARIS DESPIDA DE ATGET

ENTRE O REALISMO FORENSE E O SURREALISMO INVOLUNTÁRIO

FOTOGRAFIA

PROFESSOR SÉRGIO MAH

HUGO PICADO DE ALMEIDA

Nº22315

Page 2: A Paris Despida de Atget

MAIO 2010

Índice

Do realismo forense…..................................................................................................................3

… Ao surrealismo involuntário...................................................................................................10

Bibliografia.................................................................................................................................13

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Page 3: A Paris Despida de Atget

Neste trabalho debruçar-me-ei sobre algumas fotografias de Eugène Atget tiradas em Paris no fim do século XIX e no início do século XX, pertencentes aos álbuns “L’art ans le Vieux Paris” e “Topographie”. Apoiando-me nelas e nos autores de referência procurarei reflectir acerca das características do trabalho de Atget, bem como sobre as suas implicações no campo da fotografia e, também, nos efeitos que provocaram nas outras artes (as vanguardas do início do século XX, particularmente o surrealismo). Concentrar-me-ei, sobretudo, nas questões do realismo e do surrealismo, talvez as duas principais leituras em confronto que podemos ter de Atget.

DO REALISMO FORENSE…

O trabalho de Atget tem sido lido de diversas formas ao longo das últimas décadas. Há, pelo menos, quem sublinhe o lado documental das suas fotografias, o seu carácter de arquivo; e quem coloque a tónica no efeito de unheimlich1 das suas imagens, pelo ambiente inquietante da grande cidade vazia (ideia amplamente explorada pelos surrealistas). E essa diversidade de pontos de vista deve-se, em grande medida, à multiplicidade de vistas que Atget captou. Nas palavras de Maria Morris Hambourg, «Atget’s work is still widely perceived as enigmatic. Most puzzling is its unevenness; while there are pictures as potent, satisfying, and elegant as any ever made, there are also many dull ones whose interest is limited to the historic value of their report»2. É certo que esta citação se refere a todo o trabalho de Atget, e não apenas à série de fotografias sobre Paris. Mas ela importa aqui, sobretudo, enquanto ilustração das muitas formas de ler o trabalho deste fotógrafo.Apesar disto, se há algo com que todos os críticos tendem a concordar, é certamente com o grande valor e dimensão da obra de Atget, sendo este um dos nomes incontornáveis da fotografia e apelidado por muitos como um “precursor” no seu estilo. Assim podemos, desde já, perceber que a relevância da obra deste fotógrafo não se deve apenas à passagem do tempo, que transformaria automaticamente em história e em documentos as suas fotografias, e que o seu valor não se esgota no seu valor enquanto testemunho de um tempo passado, de uma Paris que já não volta, essa Paris dos bairros antigos e ruas tortuosas, a Paris esquecida pelo urbanismo moderno de Haussmann, cujos grandes boulevards Atget nunca fotografou. Segundo Clement Greenberg, «they [as fotografias de Atget] have become masterpieces by

1 Conceito freudiano traduzido por “inquietante estranheza” ou “assustadoramente estranho”, em português.2 SZARKOWSKY, John, e HAMBOURG, Maria Morris, The Work of Atget: volume III - The Ancien Régime, New York : The Museum of Modern Art, cop. 1983-1985, p.9.

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transcending the documentary and conveying something that affects one more than mere knowledge could.» 3

Para Greenberg, parece então claro que as fotografias de Atget são mais que puros documentos, mais do que simples ferramentas da memória contra o passar do tempo. Para se constituírem enquanto tal, as suas fotografias teriam, então, que ser mais que simples reproduções do real, mais que retratos desinteressados e fiéis da realidade. Neste ponto tornar-se-á interessante introduzir algumas das poucas referências conhecidas de Atget sobre o seu próprio trabalho. Em 1920, numa carta endereçada ao Ministro das Belas-Artes :«J’ai recueilli, pendant plus de vingt ans, par mon travail et mon initiative individuelle, dans toutes les vieilles rues du Vieux Paris, des clichés photographiques, format 18x24, documents artistiques sur la belle architecture (…). Cette énorme collection artistique et documentaire est aujourd’hui terminée»4 ; e em 1925, reagindo a declarações do fotógrafo surrealista americano Man Ray: «These are simply documents I make»5. Destas declarações de Atget releva claramente o objectivo da actividade deste fotógrafo: uma fotografia realista, documental, clichés úteis a pintores e coleccionadores – está aqui também presente o seu carácter utilitário; carácter esse que ajuda à existência de diferentes visões sobre o trabalho de Atget, dado que muitos dos autores que consideram o seu valor artístico desconfiam da sua origem comercial. Ora, mas é este mesmo carácter, documental e utilitário, que pode explicar a mudança do foco de Atget, que até à última década do século XIX vinha retratando as pessoas e o comércio ambulante em Paris para, então, se voltar para as vistas de uma cidade deserta e antiga. Essa mudança dá-se, tal como Maria Morris Hambourg o relata6, ao mesmo tempo que surge, em Paris, uma grande agitação por parte dos habitantes da cidade, em defesa dos bairros antigos, tradicionais, e por isso contra a moderna urbanização levada a cabo por Haussmann. Como se pode ler numa carta de 1912 escrita por Atget a Marcel Poëte (à data o curador da Bibliothèque Historique de la Ville de Paris), «(…) l’immense production, faite par moi, par amour du Vieux Paris (…)»7. Como podemos perceber nestas palavras, mas também no próprio trabalho do fotógrafo, que nunca registou as vistas dos novos boulevards de Paris, Atget certamente figurava entre esses cidadãos amantes da velha Paris histórica, genuína, misteriosa. Independentemente disso, o que todas estas afirmações de Atget permitem compreender, de forma explícita, é que o fotógrafo via o seu trabalho como puramente documental, actuando como um retratista ao serviço da cidade, mas não tentando elogiá-la ou embelezá-la com balaustradas ou colunas gregas ou cortinas de veludo ao fundo.

3 GREENBERG, Clement, (1995) The Collected Essays and Criticism (Volume 4), The Chicago University Press, p.183.4 in SZARKOWSKY, John, e HAMBOURG, Maria Morris, ob.cit., p.9 (retirado de LEROY, Jean, Atget, Magicien du Vieux Paris, Joinville-Le-Pont : Pierre-Jean Balbo, 1975).5 idem, (relatado por Man Ray in HILL, Paul e COOPER, Tom, “Interview: Man Ray”, Camera, 54, nº2 (Fev.1975).p40).6 idem, p.14.7idem, p.9 (carta a Marcel Poëte, 14 de Junho, 1912, Diss., p.482).

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De Atget se pode dizer que fotografava de forma democrática, não fazendo distinções entre ricos ornamentos ou grandes edifícios e ruas sombrias, bairros degradados.

Comparando estas duas imagens torna-se então claro que, em Atget, independentemente do assunto em si (ora um grande palacete, ora um edifício degradado), o que transparece para o observador é, de alguma forma, um mesmo sentimento de vazio, de incompletude, a mesma experiência do sem vida, do suspenso no tempo, do abandonado, uma sensação do passado já existente naquilo que era o presente para o fotógrafo. A ausência de figuras humanas em qualquer das fotografias contribui de forma decisiva para as afirmar como documentos (arquitectónicos), como postais, clichés mas, também, para a criação dessa ambiência desconfortável e enigmática, irreal (ou surreal).Ora, como Clement Greenberg afirmava, o trabalho de Atget perpassa a mera sensação do real, do registo fiel do mundo. Quem vê a fotografia de Atget não se limita a ver as linhas clássicas da fachada do Hôtel Peyrenc de Moras ou a arquitectura confusa, desregrada e a sujidade do Cour 178 da Avenue de Choisy. Quem vê estas imagens, mais do que captar essas características físicas, capta, sobretudo, tudo o que anteriormente aqui foi referido: um ambiente próprio da cidade vista por Atget, o seu carácter sombrio, vestígios das histórias que os espaços escondem. O real em Atget não pode ser negado, claro (mas talvez nenhuma fotografia, em última instância, o possa fazer), mas nele há muito mais para ver do que um mero simulacro, do que a realidade transposta para o papel. Correndo-se o risco de parecer que aqui damos um passo atrás face ao que parecia ser o rumo a seguir (afirmar a fotografia de Atget como mais do que simples representação do real), importa aqui citar uma ideia de Geoffrey Batchen, dado que ela nos abrirá as portas para, da sensação do real, retirarmos algo que o atravessará e nos devolverá, com mais substância, ao que até aqui vínhamos a sugerir: «as an index the photograph is never itself but always, by its very nature, a tracing of something

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Eugène Atget, Hôtel Peyrenc de Moras [Hôtel de Brion], 77 Rue de Varenne, Junho 1907. BNF

Eugène Atget, Cour 178, Avenue de Choisy, 1898-1927. BNF

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else»8. Desde logo, e como já Charles Peirce o fazia, a fotografia surge-nos em Batchen como um índice (índex), ou seja, como algo que aponta para algo, uma representação que mantém com o seu referente, com o seu real, uma ligação de contingência, de necessidade físico-química. Embora nenhum destes autores se esteja a referir a Atget em particular, eles são sintoma da característica que desde o início da fotografia a tem vindo a acompanhar enquanto noção fundadora – a representação fiel e automática do real. A importância de assinalar neste ponto a fotografia como um índice é o facto de assim podermos introduzir as palavras de Walter Benjamin sobre a fotografia de Atget. Dele, Benjamin diz que «fotograva [as ruas vazias de Paris] como um local de crime. Também o local de crime é vazio, sem pessoas. O seu registo fotográfico destina-se a captar indícios.»9 Walter Benjamin vem, desta forma, não apenas reforçar o carácter real do trabalho de Atget como, também, e é sobretudo isso que neste ponto nos interessa, introduzir uma nova e interessante noção: a de fotografia forense. O carácter documental das fotografias de Atget deve-se, como já referimos anteriormente, e em grande parte, à ausência de pessoas nelas (são poucas as fotografias em que o elemento humano surge e, quando surge, está geralmente desfocado ou de alguma forma fundido com o fundo; mas nunca merece destaque ou o centro da imagem), já que sem a «expressão efémera de um rosto humano»10 se consegue, mais do que parar o tempo no instante fotográfico, abolir a própria ideia de tempo. Tal como no retrato de uma cena de crime, as imagens de Paris tornam-se, assim, intemporais. Foi com o objectivo de apresentar esta tese de Walter Benjamin que regressámos ao real na fotografia de Atget. O que releva, então, desta concepção de fotografia forense? A resposta está, também, presente em Charles Peirce. Se a fotografia é indício, enquanto retrato forense, ela pode sê-lo duplamente. Como já dissemos, ela é prova de uma realidade, é a consequência físico-química de uma exposição ao real; mas, num segundo sentido, ela é também, através do que representa, testemunho de algo que está para lá da pura objectividade retratada na imagem. Cada fotografia encerra em si mais do que aquilo que chega à superfície do olho, e nessa medida ela assume-se plenamente como algo mais que um retrato do real. Assim como num local de crime se procura o significado oculto dos indícios físicos, reais, visíveis, também na fotografia de Atget o que importa, e o que tem maravilhado os seus críticos ao longo do tempo, não é apenas uma estética do visual evidente, superficial e disponível, mas sim o significado que nela está contido. Proponho, então, que nos debrucemos um pouco sobre algumas das fotografias de Atget, para assim reflectirmos acerca do modo como todas elas, de forma mais ou menos clara, obedecem a essa lógica do retrato forense, criminal, indicial.

8 BATCHEN, Geoffrey (1999), Burning with desire, Cambridge, MIT Press, p.9.9 BENJAMIN, Walter (1992), “A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica”, in Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, p.88.10 idem, ibidem.

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Eugène Atget, Rue des Ursins, 1900. BNFEugène Atget, Rue des Ursins, 1900. BNF

Nesta fotografia, uma das mais famosas de Atget, essa lógica é bem perceptível: o carro-de-mão e a carroça que parecem abandonados na rua suscitam questões, abrem portas para a especulação, remetem para o acontecimento que os terá levado ali; a roupa pendurada à janela é prova da existência de quem não vemos; o cavalo que se descortina ao fundo testemunha, ele próprio, algum acontecimento que se desenrolava aquando da fotografia, um trajecto feito e outro por fazer; e a miríade de cartazes que apontam, certamente, para outros espaços, tempos, eventos. Todos esses

elementos têm o potencial para contar uma história de que a fotografia (apenas) captou um sinal da sua existência. Além dos objectos presentes na imagem, o próprio enquadramento escolhido por Atget desperta em nós a curiosidade, o desejo “detectivesco” de saber onde a rua nos poderá levar. Apesar desta fotografia ser um dos (poucos) casos da série sobre a velha Paris em que surge o elemento humano (ainda que muito discreto, pouco visível), ela é um bom exemplo da forma como, em Atget, podemos reencontrar o humano na sua ausência, com a mesma força que o encontramos num local de crime, através das suas impressões digitais ou das manchas de sangue. O facto de não vermos pessoas nas fotografias de Atget, que retratam ambientes criados pelo Homem, obriga a que nos questionemos acerca do seu paradeiro. Nas fotografias de Atget sobre a arquitectura e topografia de Paris, a cidade parece ter sido abandonada à pressa. Não se trata, apenas, de nelas não existirem pessoas. Trata-se também, e talvez sobretudo, do facto de o tempo parecer suspenso. Há objectos perdidos na rua, há lojas abertas, janelas escancaradas, roupa estendida, como se o fotógrafo tivesse surgido numa espécie de intervalo, durante a interrupção de todas as actividades. Mesmo quando surgem pessoas, nunca as vemos durante as suas tarefas. Vemo-las, sim, a espreitar à janela, vemo-las quietas na rua, ou somente em traços que atestam a sua passagem, que as mostram a caminho de algo. Mas

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Eugène Atget, Hôtel de Lusignan, 8 Rue Elzévir, 1901. BNF

nunca as surpreendemos a abandonar o carro-de-mão na Rue des Ursins, ou a levá-lo dali (fotografia da página anterior). Nunca as encontramos a depositar ou a pegar nos vários objectos visíveis na Rue Elzévir (fotografia à esquerda). É este tipo de leitura que permite falar de retrato forense em Atget. Assim como na fotografia das cenas de crime não surpreendemos nem o criminoso nem a vítima durante o acontecimento, mas apenas temos acesso aos vestígios dele resultantes, às suas consequências, quando já ninguém se encontra em cena (a não ser, por vezes, o cadáver, mas que então se conta entre as provas), também em Atget só

nos podemos reencontrar com os indícios de actos passados, com objectos que nos tentam contar o que ali se passou ou como ali chegaram. Os objectos em Atget são do domínio da mancha, do rasto, poderemos mesmo dizer, do cadáver. E é nessa acepção forense, arquivista, que se encontra o registo do real neste fotógrafo. Não apenas por ela ser o resultado da exposição do filme ao real, de acordo com a noção de “espelho” (embora ela também tenha que ser assim admitida, ao lembrarmos o propósito utilitarista do trabalho de Atget) mas, sobretudo, porque ela realça a existência de algo real não apenas na fotografia mas também para lá dela. Os objectos retratados nas imagens de Atget comunicam com o real que está fora delas da mesma forma que a pista aponta para o crime. É, pois, nesse caminho na pista do crime que Atget segue, tal como o detective flâneur da literatura do século XIX, que investiga através do olhar sobre o mundo. Susan Sontag, na sua obra Ensaios sobre a fotografia cruza, precisamente, o fotógrafo com esse tipo de personagem errante: «O fotógrafo é uma versão armada do caminhante solitário, que explora, ronda e percorre o inferno urbano, e, do «voyeurista» errante que descobre a cidade como uma paisagem de extremos voluptuosos. O flâneur, adepto das alegrias da observação, perito da empatia, acha o mundo “pitoresco”.» 11

Numa outra passagem da mesma obra encontramos novamente a imagem do flâneur,

11 SONTAG, Susan (1986), Ensaios sobre fotografia, Dom Quixote, Lisboa, p.54.

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Eugène Atget, Rue de Nevers, 1924. BNF

Eugène Atget, Coin Rue de Seine [et Rue de l’Echaudé], 1924. BNF

desta vez explicitamente relacionada com a figura do detective que há pouco referiamos: «O flâneur não se interessa pelas realidades oficiais da cidade mas pelas suas esquinas escuras e desagradáveis, pelos seus habitantes esquecidos: uma realidade não oficial que se encontra por detrás da fachada da vida burguesa e que o fotógrafo “captura”, tal como o detective captura o criminoso.»12

Era em Atget, claramente, que Sontag pensava ao escrever estas linhas. Como já referi anteriormente, Atget nunca se interessou pelos grandes boulevards ou pelas vistas turísticas da Paris burguesa. Ao invés disso, o seu trabalho retrata precisamente as ruas sombrias, os becos sujos e degradados, as «esquinas escuras e desagradáveis» que, quais

criminosos, se escondem. Se reflectirmos um pouco acerca da maneira como Atget enquadrava as suas fotografias, compreendemos que ela é própria desse tipo de caminhante atento e deslumbrado. Maria Morris Hambourg oferece-nos algumas referências sobre essa metodologia particular: «Atget covered the territory in an energetic but errant manner», «the approach of a pedestrian», «learning as he went», «delved into old Paris (…) exploring and excavating whatever seemed promising along the way», «skipping from one sort of motif to another»13. As duas fotografias desta página, à semelhança das outras já apresentadas neste trabalho, ilustram bem a perspectiva tradicional em Atget – vistas tiradas do passeio, geralmente num ângulo oblíquo

12 idem, p.57.13 SZARKOWSKY, John, e HAMBOURG, Maria Morris, ob.cit., p.14.

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face aos edifícios, próximas da altura dos olhos, o que lhes garante um ponto de vista natural, coincidindo assim com o olhar do cidadão que percorre as ruas, detendo-se aqui e ali, como um turista, quando algo lhe capta a atenção. Em grande parte, é daí que decorre a sensação de real em Atget, na medida em que a vista seria natural, coincidente com a nossa presença defronte do real. Relembrando o objectivo comercial da fotografia de Atget, seja enquanto fotografia de postal seja como cliché destinado a artistas, podemos compreender o porquê dessa tomada de vistas (além das imposições técnicas do equipamento): «Na medida em que o tema fotografado nos interessa, esperamos que o fotógrafo tenha uma presença extremamente discreta.»14 _____________________________________

… AO SURREALISMO INVOLUNTÁRIO

Mas esta relação com o real que, em Atget, na sua dimensão documental, podemos afirmar essencial, é precisamente aquilo que nos permitirá, curiosamente, lê-lo enquanto precursor do movimento surrealista. Apesar de, como já referimos, Atget ter defendido que as suas fotografias eram simples documentos que fazia (encontrámo-lo, nas palavras do próprio, com Maria Morris Hambourg15, e podemos vê-lo também com Laure Beaumont-Maillet: «(…) Atget, en refusant de regarder ses photographies comme des œuvres d’art, mais en les considérant comme de simples documents (…) »16 e « Atget a une conception utilitaire du médium et reste rigoureusement objectif (…)»17), desde finais da década de vinte, nos seus últimos anos de vida e sobretudo após a sua morte, que Atget passou a ser estudado pelo olho do surrealismo. É certo que Atget não podia ser surrealista como um pintor, pela ausência da cor e pela impossibilidade do “traço livre”, de determinadas escolhas, mas podia fazê-lo de forma impossível à pintura. Regressando ao que já referimos anteriormente, é pela reprodução/representação do real que a fotografia pode seguir o caminho do surrealismo. Freud, autor de grande importância para o movimento surrealista, evidencia isso mesmo, através do conceito de unheimlich. Para o psicanalista, também ele continha sentidos que, embora coexistissem e se alimentassem mutuamente, eram contrários: o estranho, o unheimlich, era-o não como o desconhecido, não como o nunca visto, mas sim enquanto oculto na presença, invisível por nos ser tão familiar, tão próximo. E de que é a fotografia de Atget ilustração, senão disso mesmo? Em Atget torna-se, então, claro, que o surrealismo se radica no real. É a partir desse real existente e trazido perante nós que podemos experimentar essa surreal sensação de uma estranheza inquietante, esse unheimlich freudiano. Mas o olho não pode percepcionar essa estranheza perante o real, visto que, nesse contacto próximo e 14 SONTAG, Susan, ob.cit., p.121.15 vide supra, p.4, notas de rodapé nº4, 5 e 7.16 BEUAMONT-MAILLET, Laura, «Atget, suiveur ou novateur ?» in AAVV (2007) Ed. lit. Bibliothèque Nationale de France e Ed. lit. Martin-Gropius-Bau, Atget : une rétrospective, Hazan, Paris, p.30.17 idem, p.32.

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imediato, ele talvez só possa apreender a superfície real já conhecida, confortavelmente segura. Guillaume Le Gall, apoiando-se em Marc Orlan, afirma que «seule la photographie est un révélateur incomparable du “fantastique social actuel” (ORLAN, Marc, in Les Annales, novembre 1928,p.413-414).»18

Ora, é precisamente esta ideia de revelação (note-se que a exigência técnica da fotografia quanto à revelação do negativo é disso metáfora perfeita), de desvelamento, que está na base do programa realista da fotografia e que, consequentemente, permite uma viragem na direcção da compreensão surrealista da fotografia, como vínhamos defendendo. São muitos os autores (entre eles, Walter Benjamin e Marc Orlan, contemporâneos de Atget, e mais recentemente Guillaume Le Gall e Susan Sontag) que referem que a actividade fotográfica como desocultamento da verdade, do próprio real, só possível através da fotografia porque o distanciamento espácio-temporal face ao objecto obrigaria à reflexão do olho. Ora, é esse distanciamento, tal como a própria passagem de suporte (da realidade física em direcção a uma existência enquanto impressão química), que cria naquele que vê a fotografia um sentimento completamente diferente daquele que observa presencialmente a realidade, já que a imobilidade da imagem, no aprisionar do instante fotográfico, e a delimitação da sua perspectiva, o fechamento da sua moldura e a ausência da cor, criam uma forma de olhar forçosamente diferente – o que leva Susan Sontag a defender que a fotografia «proporciona um sistema único de revelações, ou seja, que nos mostra a realidade como nunca a tínhamos visto.»19

Sontag afirma que a fotografia é o meio surrealista por excelência, não precisando de manipular ou teatralizar o real. Nas suas palavras, «O que é que podia ser mais surreal do que um objecto que virtualmente se produz a si mesmo e com um mínimo esforço?»20 Para esta autora, o surrealismo encontra-se, então, mais no centro da actividade fotográfica do que nos seus temas, isto é, ele existe pela ideia da criação do duplo, do simulacro do real então tornado mais dramático, num processo para nós invisível. Mas se tal concepção se poderia aplicar, virtualmente, a qualquer fotografia, em Atget o surrealismo está, então, duplamente presente, dado que ele não reside apenas no ser-fotografia das suas imagens, mas sobretudo naquilo que representam. Se é verdade que os surrealistas desenvolveram um certo gosto pelo desagradável, pelo feio e pelo sujo, pelo abandonado, pela «beleza marginal»21 das coisas (talvez um efeito secundário da inscrição do surrealismo nas vanguardas do início do século XX, provocadoras e com o intuito de chocar), é também verdade que, em Atget, as fotografias sobre a velha Paris vão ao encontro desses ambientes. As razões utilitaristas e contextuais dessa escolha de objecto por Atget já foram referidas na primeira parte deste trabalho. Agora afigura-se necessário que nos debrucemos sobre

18 LE GALL, Guillaume, «Visions surréalistes» in AAVV (2007) Ed. lit. Bibliothèque Nationale de France e Ed. lit. Martin-Gropius-Bau, Atget : une rétrospective, Hazan, Paris, p.98.19 SONTAG, Susan, ob.cit.,p.109.20 idem, p.54.21 idem, p.77.

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Eugène Atget, Coin Rue de Seine [et Rue de l’Echaudé], 1924. BNF

a dimensão surrealista dessa escolha. Regressando a Freud e ao seu conceito de unheimlich, uma das causas para tal sensação poderia ser a não correspondência entre determinada situação e a expectativa que tínhamos dela, ou seja, a desadequação entre o plano das nossas ideias e o plano da realidade, o desencontro fracturante entre o ser e o mundo. Com Atget, essa pode precisamente ser a causa da estranheza, dado que as suas fotografias não correspondem à imagem romântica e idílica que temos de Paris, e porque não reflectem o ambiente de uma grande metrópole dos finais do século XIX e início do século XX, caracterizada pela azáfama, pelo “excesso da vida”, pelo dinamismo e pelo movimento, pelas máquinas, pela força e pela novidade. Ora, é precisamente esse paradoxo surpreendente que muito terá interessado os surrealistas. Não apenas por tudo o que já aqui dissemos como pelo facto de Atget, involuntariamente, pôr em campo a desconstrução da grande cidade capitalista: agora sem vida, imunda, abandonada, pobre e arruinada, vazia, deserta – pela construção imagética de um espaço que, não sendo manipulado, surgia aos olhos dos seus “espectadores” como profunda e abismalmente novo. E assim, Atget, que desejava apenas coleccionar (e vender) vistas de Paris, numa preocupação estético-documental – programa esse que pode ser defendido como obedecendo a uma lógica surrealista (« Os fotógrafos, que funcionam dentro dos termos da sensibilidade surrealista, insinuam a inutilidade de sequer tentar compreender o mundo e, em vez disso, propõem que o coleccionemos.»22) – passa a poder ser tido em conta como encenador de uma batalha socioeconómica, já que se constitui como testemunha do que resta

por detrás da fachada burguesa do modelo capitalista que, de alguma forma, expunha as suas fragilidades. Mas os objectivos de Atget nunca foram políticos ou económicos, ou sequer sociais. Como Robert Desnos, que em 1928 afirmava o surrealismo em Atget nos diz, Atget representava o artista naïf, fixando a vida, vendo tudo com um olho sensível e moderno23, mas não crítico. E

isto podemos captá-lo não apenas no modo arquivista,

quase sistemático pelo qual Atget percorria as ruas, mas também pela já referida forma como fotografava: objectiva, sem grandes preocupações de enquadramento nem grande domínio técnico (a fotografia acima é boa prova disso, apresentando

22 idem, p.80.23 LE GALL, Guillaume, ob.cit., p.96.

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alguma vinhetagem e alguns problemas de exposição, apesar das condicionantes climáticas); em Atget também nunca encontramos contrastes propositadamente acentuados ou alguma tentativa de manipulação. Sontag providencia-nos uma explicação para esse encontro entre Atget e o real: «Em fotografia, mostrar qualquer coisa, é mostrar o que está oculto. Mas não é necessário que os fotógrafos, para salientarem o mistério, recorram a temas exóticos ou excepcionalmente impressionantes.»24 E que melhor prova disso do que o trabalho de Atget, que se concentrou sobre a realidade quotidiana de parte da cidade de Paris, dos acessíveis bairros pobres em que habitavam e se deslocavam milhares de pessoas?

Assim, tal como as fotografias de Atget começaram por ser percepcionadas como realistas e objectivas para depois serem investidas de uma dimensão surreal que, apesar disso, não podiam negar o real, parece adequado que este trabalho, depois de passar do realismo ao surrealismo, termine com a reconciliação entre ambos. Podemos, então, em jeito de conclusão, afirmar que, perante as fotografias parisienses de Atget, não se trata de escolher entre uma leitura realista e uma surrealista. Na verdade, o que o trabalho de Atget exige de nós é um olhar mais amplo e consciente, capaz de compreender que, olhando o real neste fotógrafo, ele está incompleto senão lermos nele aquilo que aponta para o surrealismo; da mesma forma que, para o vermos enquanto surrealista, não lhe podemos negar o real que lhe serve de base.

24 SONTAG, Susan, ob.cit., p.110.

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BIBLIOGRAFIA

SZARKOWSKY, John, e HAMBOURG, Maria Morris, The Work of Atget: volume III - The Ancien Régime, New York: The Museum of Modern Art, cop. 1983-1985.

AAVV (2007), Ed. lit. Bibliothèque Nationale de France e Ed. lit. Martin-Gropius-Bau, Atget : une rétrospective, Hazan, Paris.

SONTAG, Susan (1986), Ensaios sobre fotografia, Dom Quixote, Lisboa.

FOTOGRAFIASPesquisa por « Eugène Atget » em: Bibliothèque Nationale de France (gallica.bnf.fr)

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