a menina de gabrovo roberto camilotti

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!"#$%&' ()*$#+%,%Simmer & Amorim Edição e Comunicação Ltda.Av. Mem de Sá, 126, LapaRio de Janeiro - RJCEP 20230-152

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A Menina de Gabro1o - 1a EdiçãoMarço de 2013CAMILOTI, Roberto

ISBN 978-85-8273-067-6

Todos os direitos reservados.É proibida a reprodução deste livro

com *ns comerciais sem prévia autorizaçãodo autor e da Editora Multifoco.

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Rio de Janeiro, 2013

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SUMÁRIO

1. O dilema de Klara 072. Mau agouro 133. Vovó Yordanka 194. O tomateiro 275. Boris e a menina de Razgrad 376. A queda do balonista 477. O resgate de Lazar 538. Pedro, o muflão da montanha 619. Banquete cigano 6910. Céu de balões 7711. Velislava, a raposa de fogo 8112. Napoleão e o muflão francês 8713. O quadro misterioso 9514. A segunda queda do balonista 10115. O interrogatório 10716. A despedida 11317. Viagem inesquecível 12118. O vale dos órfãos 129

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CAPÍTULO 1: O DILEMA DE KLARA

— Por que Deus é tão mau com a gente, mamãe? - quis sa-ber, assim que acordou, uma menina de cinco anos, após outra noite de febre alta e sucessivas crises de tosse.

O nome dela era Klara. Klara, mesmo tão nova, já conhe-cia muito bem o gosto amargo que uma vida infeliz pode ter. Doente, não tinha forças para se levantar da cama, nem sair do quarto, e tampouco conseguia se animar para brincar com as amigas das quais não via há um bom tempo.

— Bom dia, minha princesa. - respondeu, Liza, à filha, cum-primentando-a enquanto dobrava algumas peças de roupa que havia acabado de recolher do varal. A jovem e dedicada mãe fingiu não ter ouvido a pergunta da menina. Pacientemente, antes de deixar o quarto, pediu. - Descanse mais um pouco, por favor. Sim?

Do lado de fora do quarto, no céu da Bulgária via-se um tom doente, frio e cinzento, assim como o restante da paisagem de Gabrovo que não aparentava ser mais saudável do que a menina. A natureza, no entanto, mesmo severamente maltratada pelo clima frio do inverno, consegue ser generosa. No momento em que Liza deixou o quarto, sete passarinhos, cada um de uma cor

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diferente, pousaram na janela e fizeram, por um mísero instante, os olhos esfumaçados de Klara encherem-se de vida ao vê-los.

— Bom dia, passarinhos. - em voz quase inaudível, ela os cumprimentou.

Os passarinhos, em resposta, piaram com ternura, arrancando um sorriso da menina, que, pouco tempo depois, voltou a chamar:

— Mamãe!— Sim, querida. - preocupada, Liza retornou apressadamen-

te. E perguntou. - O que houve?— Por que Deus é tão mau com a gente, mamãe?A pergunta fez Liza estremecer de dor.— Minha filha, sei que o seu sofrimento não é algo que eu

possa abrandar ou até mesmo ignorar. - disse, ela, convicta da bondade de Deus. - Me lembro de ter dito para você descansar. Vamos, feche os olhos e descanse. - voltou a pedir. - Por acaso não está duvidando da bondade de Deus, está? - perguntou, com ligeira incredulidade no que acabara de ouvir. Por fim, Liza respirou fundo e sorriu, limitando-se a responder a pergunta. - Escute atentamente o que eu vou lhe dizer: questionar Deus não é um bom começo para entender o que ele quer da gente.

E fez-lhe carinho no rosto da filha. Sua religiosidade parecia ainda mais inabalável nas horas de maior sofrimento. Somente parecia, porquê Liza não se mostrava pronta para aceitar o sofri-mento de Klara de qualquer outra forma se não por uma mera

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provação divina, um período de dificuldade; dificuldade, essa, que era uma só entre as muitas que ela iria atravessar ao longo da vida e da qual sempre estaria ao lado dela para confortá-la.

— Tenha fé.Com a certeza de que não havia sentido algum para tal per-

gunta, a jovem mãe, então, bufou e se curvou sobre a cama.— Tudo vai passar. - disse, beijando-a na testa, e, mais uma

vez, pediu. - Agora descanse, meu anjo.Klara não protestou, fechou os olhos. Porém, antes mesmo que

Liza chegasse na porta do quarto e voltasse aos seus afazeres, pediu:— Me conta uma história.— Uma história, mas o dia nem amanheceu. - Liza virou-se

para a filha, estreitando os olhos. - As melhores histórias só são contadas de noite para a gente ter bons sonhos. - disse, amoro-samente, em tom de fantasia.

— Por favor. - com a voz rouca, Klara insistiu.Se Liza podia ser considerada uma sólida e intransponível

fortaleza, a menina, por sua vez, também era um oceano de do-çura e persistência, cuja as ondas têm o poder de penetrar quais-quer muralhas. Não resistiu ao sorriso de Klara.

Perguntou:— Qual história você quer?— Aquela da montanha. - respondeu, a menina, antes de

um acesso de tosse. Conhecia a história, mas pouco se lembrava

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dela. - Mamãe, o que eles eram mesmo? - perguntou, referindo-se aos personagens da história.

— Ciganos. - respondeu, Liza. - Eles eram anjos ciganos.— E existem anjos ciganos, mamãe?— Sim, minha princesa. - respondeu à menina. - Eles existem.Deitou-se, então, ao lado da filha e, penteando com os dedos

seus cabelos encaracolados, começou a contar a história:— Havia uma montanha majestosamente cheia de vida. Ela

era tão grande e tinha tantas árvores que só se podia vê-la, por inteiro, de muito longe.

Imediatamente após começar a contar a história, Klara fe-chou os olhos e foi imaginando a montanha, os anjos, as árvores e tudo o mais que julgava caber nela. Com os olhos fechados e o coração totalmente aberto, a menina de Gabrovo viu-se sau-dável, livre da peste cinzenta que a fazia sofrer, e o ar preenchia seus pulmõezinhos com incrível facilidade.

— Dizem que a montanha foi oferecida, por Deus, em res-posta à bondade dos homens. - Liza prosseguiu. - No alto dela, bem perto do céu, os anjos ergueram um acampamento e não havia um só dia em que os anjos não dessem banquetes e não festejassem a vida...

— E Deus? - ainda com os olhos fechados, a pequena inter-rompeu a história.

Sem entender a pergunta, Liza a encarou.

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— O que tem, Ele?— Deus também mora, com os anjos, na montanha? -

perguntou, Klara.— Deus vivendo num acampamento! - a jovem mãe excla-

mou e fez uma careta, arregalando os olhos. - Sim, querida. - respondeu, levantando-se da cama. Logo em seguida, antes de voltar a deixar o quarto, beijou a filha no rosto e pergun-tou. - Onde mais Ele moraria, senão com os anjos?

Klara, logo em seguida, se apressou em pedir:— Mamãe, me conta outra história.— Sinto muito, mas já chega de histórias. - firmemente, Liza

negou o pedido, explicando. - Tenho muito serviço para fazer na cozinha e você precisa descansar.

A jovem mãe deixou o quarto e Klara, então, em meio aos aces-sos de tosse que a afligia, fechou os olhos e forçou-se a dormir.

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CAPÍTULO 2: MAU AGOURO

Liza precisou se afastar da filha e respirar ar puro para se recompor da tristeza que a abateu. Apesar de mostrar-se forte, sentia que a perdia para a peste cinzenta.

— Meu Deus, quando esse pesadelo irá acabar? - perguntou, com os braços estendidos em direção ao céu nublado.

Klara, nesse meio tempo, pouco conseguiu dormir. A dor que sentia por tentar encher seus pulmõezinhos de ar era impla-cável e a manteve acordada durante todo o tempo.

Da janela do quarto, podia-se ver uma montanha, que, em-bora quase toda coberta coberta de neve, era tão imponente quanto a montanha que Liza havia descrito na história que con-tara, e podia-se também ouvir o ruído das águas do rio Yantra, parcialmente congelado. Mãe e filha moravam, sozinhas, num sobrado, cujas as paredes eram brancas e as janelas eram feitas com um tipo de madeira escura. A casa parecia ser grande de-mais para somente duas pessoas viverem nela e era cercada por um extenso gramado. Não tinha muros, tampouco portão que a protejesse da cobiça externa.

Liza, ao deixar o quarto da filha, atravessou o gramado, cami-nhou até a margem do rio e, caindo de joelhos no chão, olhou

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fixamente para as águas verdes-escuros. O Yantra, de algum modo, parecia confortá-la.

— Por favor, devolva-lhe a vida! - pensando na filha, abriu o peito para a correnteza e clamou ao rio. Não admitia a ideia de perder a única coisa que lhe importava na vida. A cada segundo que passava, morria lentamente ao se dar conta que a estava perdendo para a tuberculose.

Diante disso, ofereceu a própria vida em troca da cura de Klara.— Leve-me se quiser, mas não permita que ela morra!Sua oferta sequer foi ouvida.Ainda debruçada na margem do rio, Liza sentiu, aquecendo-

lhe o rosto, um chiado soprar morno. Era um presságio de mau agouro se aproximando. Imediatamente, começou a ouvir o ronco de um motor e sentiu muito medo.

— Não se desespere, Liza. - aconselhou a si própria. - Klara está dormindo no quarto, portanto, trate de ser forte e não leve o perigo para dentro de casa.

O ronco do carro só se intensificava na medida em que o mau agouro se aproximava.

Moravam cercadas por uma mata densa e seu vizinho mais próximo provavelmente chegaria tarde demais caso a ouvisse gritando por socorro. A jovem mãe búlgara, então, se levantou, mas não saiu do lugar. Estava absolutamente certa em relação ao perigo que ela e a filha corriam.

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Dois viajantes, a bordo de um Benz Patent Motorwagen, vinham, esganiçados, distribuindo terror pelo leito do rio, e, assim que viram Liza, pararam imediatamente.

— Bom dia, senhorita. - um deles a cumprimentou.Parecia um lobo faminto encarando a presa. O modo cínico

como o viajante a observava causou repulsa em Liza.— Somos novos por aqui e estamos perdidos. - explicou, o

viajante, que não perdeu tempo e foi logo perguntando. - Pode nos dar uma informação?

Em resposta, Liza não disse nada. Apenas acenou que sim.— Essa cidade é, realmente, muito bonita. - disse, o viajan-

te, com sarcasmo. - Onde a gente está? - perguntou para Liza, ao mesmo tempo que sorriu para o companheiro, divertindo-se com o medo que ela se esforçava para não transparecer.

— Em Gabrovo. - respondeu, Liza, quase sem voz.— Desculpe, mas a gente não ouviu.Ele foi se aproximando dela, seguido, de perto, pelo outro viajante.— Gabrovo! - Liza respondeu, só que dessa vez em voz alta.Ao vê-los se aproximarem vagarosamente, Liza pensou em

correr para dentro da casa e trancar-se no quarto junto com a filha para, assim, protegê-la a todo custo. - Eles são mais rápidos do que eu. - pensou e se perguntou, convencendo-se de que tivera uma péssima ideia. - Que chances eu poderia ter? Vão me alcançar antes mesmo de eu atravessar a porta. Não se desespere,

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Liza. - obrigou-se a ficar tranquila. - Não seja tão estúpida de levar o perigo para dentro de casa.

Foi, então, que os viajantes sorriram, revelando o que que-riam de verdade.

O homem, que a havia cumprimentado, dizendo serem no-vos na cidade, se revelou o mais cruel. Enquanto o companhei-ro, pelas costas, a segurava e beijava-lhe os cabelos, ele derrubou Liza no chão, depois de um forte soco no estômago, e deitou encima dela.

— Por favor, vão embora! - gritou, a jovem mãe, que implo-rava para que fossem logo embora e, assim, não entrassem na casa. - Por favor, me deixem em paz!

Qualquer violência que eles empunhassem contra ela seria o menor dos males desde que Klara estivesse protegida.

— Cale-se, sua vadia barata! - respondeu, o viajante, pressio-nando-a, com o próprio corpo, contra o chão.

Como que por uma intervenção divina, após saciarem suas respectivas perversidades, as súplicas de Liza foram atendidas no momento em que ouviu-se uma conversa distante, e que parecia se aproximar, de um grupo de amigos que caçavam na mata. Os dois viajantes se levantaram do chão, correram para o carro e, temendo serem flagrados, se apressaram em fugir.

Mesmo dolorida, fraca e severamente humilhada, Liza en-controu forças e se colocou em pé. Andou, cambaleando, até a

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casa e foi direto para o quarto da filha, onde toda a esperança do mundo pareceu se esvair no momento em que se aproximou da cama. Ao colocar as mãos sobre a filha, sentiu que o rostinho da menina não tinha qualquer calor.

Klara já não respirava mais. Estava fria, morta.

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CAPÍTULO 3: VOVÓ YORDANKA

Klara acordou numa clareira, no meio da mata, num dia ab-solutamente luminoso. Um clima bem diferente daquele que conhecia. Todo o mau havia passado e seus pulmõezinhos esta-vam livres da peste cinzenta. Estava curada. Deitada de barriga para cima, a primeira coisa que viu encheu-lhe os olhos. Viu um céu exuberante e profundo, de uma tonalidade azul-turquesa que se intensificava nos horizontes, sem qualquer resquício que a lembrasse daquele céu nublado de Gabrovo.

Antes, enquanto ainda dormia, um passarinho tentava fazer ninho em seus cabelos.

— Onde eu estou? - perguntou-se, a pequena búlgara, que se sentou e espantou o passarinho de seus cabelos. - Estou sozinha. - pensou, olhando em volta.

Procurou por sua mãe, mas não viu ninguém. Levantou-se repentinamente apavorada, com medo da mata, e só se acalmou quando ouviu:

— Dormiu bem, querida?Nunca esteve sozinha. Apesar do clima ensolarado, uma ve-

lha, que vestia um casaco verde de lã por cima de um vestido pesado, que em nada combinava com o clima agradável, a ob-servava próxima de uma árvore.

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Sem resposta da menina, a velha se aproximou, refazendo a pergunta:

— Dormiu bem, minha querida? - a voz soou amorosamente.— Sim. - Klara respondeu em tom baixo.O pouco de medo e pavor que a menina sentiu ao se ver sozi-

nha foram se dissipando. Mas, mesmo quando se aproximou e a pequena pôde vê-la melhor, Klara não reconheceu a velha, que, então, se apresentou:

— Desculpe a minha distração. - disse. - Esqueci que ainda não fomos apresentadas. Sou sua vovó, Yordanka.

Ainda assim, Yordanka não representava nada além de uma pessoa desconhecida para Klara. Inexpressiva, a pequena se li-mitou a encará-la.

— Isso mesmo, sou sua vovó! - exclamou, sem se preocupar com a estranheza da menina. - Sou a mamãe de Liza. Você é minha netinha.

Havia uma razão para não reconhecê-la. Klara conhecia a avó apenas através das fotos que sua mãe lhe mostrara, e Yordanka, por sua vez, também nunca a havia visto pessoalmente. E sabia que não estava enganada.

— Não faz ideia do quanto eu esperei para te conhecer, mi-nha querida. - disse à menina. Com os braços abertos, pergun-tou. - Não vou ganhar um abraço da minha netinha?

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Klara a abraçou, porém, ainda não se lembrava dela até que recordou-se das fotos e, enfim, a reconheceu.

— Você é a minha vovó? - perguntou.— Sim, querida, sou sua vovó. - respondeu, Yordanka, que,

logo em seguida, perguntou. - Dormiu bem?Lembrar-se das fotos também fez Klara se lembrar de Liza.

Ao invés de responder à avó, a menina perguntou:— Aonde ela foi?— Ela? - intrigada, Yordanka perguntou de volta. - De quem

está falando?— Da minha mamãe. - respondeu, Klara, em tom triste.— Não precisa ficar triste, minha querida. - Yordanka se

apressou em consolar a neta. - Eu não sei onde a mamãe está, mas podemos procurá-la. - disse, penteando os cabelos da me-nina com os dedos. - Vamos procurá-la juntas, o que acha? - concluiu, prestativa.

— Está bem. - Klara aceitou.A velha e a menina puseram-se, então, a caminhar. Saíram da

clareira e se embrenharam na vegetação fechada do parque que as rodeava.

— Está com fome? - quis saber, Yordanka, enquanto caminhavam.A menina respondeu que sim, acenando com a cabeça. Sen-

tiu a barriga roncar de fome.

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— Ótimo! - exclamou, a velha, que arrancou um sorriso da menina ao dizer com entusiasmo. - Eu também estou com fome, ou melhor, com muita fome... muita fome mesmo!

— Aonde a gente vai, vovó?— Vamos para um lugar onde a gente pode procurar coisas

gostosas para comer. - respondeu, Yordanka.Conforme caminhava, além de ouvir o cantar dos pássaros

e os ruídos instigantes da mata, Klara também podia ouvir as águas do imponente rio Danúbio seguindo seu curso. Ouvia-o claramente, apesar do mesmo correr há uma certa distância de onde a menina estava.

Desde o exato momento em que abriu os olhos, seus sentidos encontravam-se apurados de maneira espantosa. Sentia-se mais es-pírito do que corpo e mais viva, apesar de morta. Contudo, tam-bém se lembrava de sua mãe, e, de repente, enquanto caminhava de mãos dadas com a avó, ao lembrar-se de sua própria casa e de alguns dos raros momentos felizes que viveu lá, parou, dizendo:

— Espera, vovó!— O que foi, querida? - perguntou, Yordanka, encarando a

menina com surpresa.— Eu sei onde a minha mamãe está, vovó! - Klara respon-

deu, eufórica, puxando-a, pelo braço, para retornarem à clarei-ra. - Vamos voltar, ela está em casa! - pediu.

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Yordanka, no entanto, não se deixou contaminar pela repen-tina euforia da neta. Disse:

— Acalme-se, querida. - pediu, encarando-a com serenida-de. - Se continuar me puxando assim, vai acabar arrancando o meu braço. Sua mamãe não está em casa. - revelou.

— Vamos, vovó! - insistiu, a menina, que pareceu não tê-la ouvido.

— Sinto muito, Klara. - lamentou, Yordanka, firmemente. E repetiu. - A mamãe não está em casa.

— Ela não está em casa?— Não, querida.Ouvir tal resposta foi como se toda a alegria que sentia, feito

uma avalanche de pedras, devastasse o peito da menina.— Por que não? - perguntou.Mesmo tão pequena e ingênua, Klara não encontrava fim às

suas perguntas. Era incansavelmente curiosa.— Aonde ela foi?— Infelizmente, eu não sei. - respondeu, Yordanka, tranquili-

zando-a. - Mas não precisa ficar triste, prometo que vamos achá-la.— Está bem. - a pequena búlgara concordou.— Promete para a vovó que não vai ficar triste?— Prometo. - Klara respondeu.Voltou a segurar a mão da neta e continuaram, então, a cami-

nhada. Mas Klara não demorou a fazer outra pergunta:

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— Onde a gente está, vovó?— Estamos no parque Lipnik. - respondeu, Yordanka, que,

ligeiramente intrigada com a pergunta, quis saber. - Não gostou do parque, querida?

— Gostei, vovó. - Klara respondeu, acrescentando. - É muito bonito.

— Bonito? - Yordanka fingiu surpresa.— Sim, vovó, o parque é muito bonito. - assegurou, a menina.— Fico feliz em ouvir isso. - Yordanka sorriu, absolutamente

contente ao ver a alegria fazer brilhar os olhos da neta. Revelou ainda. - A vovó mora no parque.

— No parque?— Sim, querida. - confirmou, Yordanka, parecendo achar

graça na curiosidade da menina.Sem esconder a surpresa, a menina de Gabrovo imaginou

como seria possível viver naquele parque, um lugar onde só os animais selvagens pareciam se sentir em casa. Imaginou-se dan-do boa noite às árvores antes de dormir e acordando coberta pelas folhas que não paravam de cair das árvores. Sentada numa pedra, como se fosse a cadeira, diante de outra maior, como se fosse a mesa, imaginou-se almoçando e jantando flores, frutas e galhos secos que colhia do chão. Mas, entre as inúmeras coisas que lhe veio à mente, o que mais a intrigou foi pensar ter como

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únicos amigos os muitos animais esquisitos que imaginou existir naquela mata.

— Por que a mamãe nunca disse que a vovó morava num parque? - perguntou-se, Klara, pensativa, ao mesmo tempo que olhava ao redor.

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CAPÍTULO 4: O TOMATEIRO

Ainda caminhavam quando, por um instante, Klara viu algo, que pareceu ser um pássaro de asas brancas muito maior do que qualquer outro que ela já havia visto na vida, pousar atrás de uma árvore.

� O que é aquilo, vovó? - perguntou, curiosa.No mesmo instante, Yordanka olhou na direção que a meni-

na apontava. Porém, não viu nada.� Onde, minha querida? - perguntou de volta.� Um passarinho pousou atrás da árvore. - respondeu,

Klara, inocentemente. E acrescentou. - Ele é bem grande. Eu vi ele.

A velha, então, parou e, atentamente, ficou olhando para a árvore na expectativa de que o tal pássaro aparecesse, mas não se tratava de nenhum pássaro. Um anjo, com as asas abertas, saltou detrás da árvore e desapareceu, voando por cima da mata.

� Não é um pássaro, minha querida. - disse, Yordanka, explicando com absoluta naturalidade. - É um anjo.

� Um anjo! - pasma, Klara arregalou os olhos. - Existe anjo, vovó? - perguntou, a pequena.

� Sim, querida, anjo existe. - respondeu, Yordanka, como se não houvesse resposta mais lógica para a pergunta. Sorrindo

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para a neta, perguntou. - Por que acha que eles não existiriam?Precisava contar à sua mãe, o quanto antes, sobre sua desco-

berta. Liza, então, não mentira nas vezes em que contou histórias sobre anjos. Não era uma simples desculpa para fazer a meni-na dormir. Tentando se convencer de que não estava sonhando, Klara se sentiu importante ao saber que anjos existiam.

Ao invés de responder a pergunta da avó, a pequena búlgara fez outra pergunta:

— Ele mora na montanha?Referia-se ao anjo que saltou detrás da árvore e à montanha

cigana das histórias que sua mãe lhe contava.— Qual montanha? - Yordanka quis saber.— A montanha onde os anjos ciganos moram. - respondeu,

Klara. - Aquele anjo mora lá.— Eu não sei, querida. - disse, Yordanka, amorosamente. -

Mas, seja onde for que aquele anjo more, deve ser um lugar mui-to bonito. - concluiu.

Klara estava curiosa em saber aonde ela e a avó estavam indo. Sem demora, fez outra pergunta:

— A gente chegou, vovó?— Ainda não. - paciente, a voz de Yordanka nunca perdia

seu tom amável. Perguntou à neta. - Me diga, o que você mais gosta de comer?

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— Tomate. - respondeu, a pequena, de imediato.A velha se divertia com a ternura e a curiosidade sem fim

da menina.— Apenas tomate? - perguntou, Yordanka, sorrindo.— Sim, vovó. - confirmou, Klara, apressando os passos para

acompanhá-la. – Eu gosto muito de tomate! - exclamou.— Pois, então, vou te mostrar um lugar onde podemos en-

contrar os mais deliciosos tomates de todo o mundo. - diante do crescente entusiasmo da menina, prometeu à neta.

— É para lá que a gente está indo?— Sim, querida.A menina de Gabrovo, contente por saber que tinha uma avó

tão legal, mal conseguia conter sua ansiedade. Depois de um certo tempo, Klara e Yordanka viram-se fora do parque Lipnik. Ao passo que caminhavam, a mata se abria, revelando uma ve-getação rasteira com somente algumas árvores e a mesma trilha de terra na qual haviam percorrido dentro do parque, embora um pouco mais larga.

Seguindo a trilha, não demorou até que Klara avistasse a plantação de tomates no alto de uma encosta.

— A gente chegou? - perguntou, a menina.— Sim, querida. - respondeu, Yordanka.Contudo, aproximando-se um pouco mais da encosta, veio a

desagradável surpresa. Yordanka bufou ao ver que uma cerca de

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arame farpado delimitava a plantação.— Mas quem será que fez isso? - perguntou-se, a velha, que

encarava a cerca. Sem dizer mais nada, ela tocou o arame com a ponta dos dedos e resmungou. - A gente dá as costas por um mí-sero segundo e as pessoas já revelam o quanto são mesquinhas.

Enquanto a avó olhava em volta, na expectativa de flagrar o autor de tamanho egoísmo, Klara se limitou a olhar para dentro da cerca. - Devem ser muito gostosos. - pensou, a menina fa-minta. Nunca havia visto tomates tão vermelhos e brilhantes.

Foi, então, que Yordanka concluiu, após muito pensar, o que parecia ser óbvio.

— Só pode ter sido ele. - disse para si própria, categórica.— Quem, vovó? - perguntou, Klara, ao ouvi-la.— Kristo. - respondeu à menina.— Quem é Kristo?— Kristo é um amigo da vovó. - respondeu, Yordanka, que,

ao voltar as atenções para a cerca, se esforçou para manter a ina-balável paciência que lhe era tão peculiar. - Foi ele quem cercou o tomateiro. - acrescentou.

— Por que? - a pequena búlgara quis saber.— Não sei, querida. - a velha respondeu, dizendo. - Também

estou muito curiosa para saber.No momento em que Yordanka, ao lado da neta, pensa-

va num modo de fazer um buraco na cerca, Kristo apareceu

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caminhando atrás delas.— Não vai me apresentar? - ele perguntou, com ar de cinis-

mo, referindo-se à Klara.Aparentava ter cerca de quarenta anos, era gordo e tinha os

cabelos curtos e despenteados. Era, também, alguns palmos mais baixo do que Yordanka, que, por sua vez, não precisou olhar para trás para descobrir quem havia feito a pergunta.

Sem esperar que Yordanka o respondesse, Kristo voltou as atenções para Klara.

— Qual é o seu nome, menina? - perguntou, educadamente.A pequena, porém, desconfiada, não o respondeu. Limitou-

se a encará-lo. Percebendo que a menina estava receosa com a presença do homem, Yordanka obrigou-se a abrir um sorriso.

— Bom dia, Kristo. - cumprimentou-o e foi logo perguntan-do. - Como está?

— Bem. - ele respondeu.— Aproveitando que está aqui, gostaria de fazer uma per-

gunta. - a velha estreitou os olhos para ele e perguntou, em tom pomposo. - Por acaso, você sabe quem pôs a cerca?

— Cerca? - Kristo, em resposta, a provocou, fingindo não sa-ber sobre o que ela falava. - Sim, a cerca! - exclamou, apontando para a plantação de tomates. - Sim, eu estou reconhecendo. Ela é minha. - confessou.

— A cerca é sua. - Yordanka fingiu surpresa. Sua irritação só

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crescia. - E os tomates, eles também são seus? - provocou-o.— Não.— Ora, diabos! Então, me explique por quê cercou o tomateiro!Na medida que os segundos passavam, a velha respirava mais

profundamente, controlando-se para não atacá-lo.— Bem, eles estão ficando muito famosos. - respondeu, Kris-

to, sarcástico, sobre os tomates. - Somente nessa semana, não mais do que isso, esteve aqui uma pequena multidão que colheu quase todos. - concluiu, se justificando. - Se não pusesse a cerca, os tomates acabariam rapidamente.

— E quem disse que os tomates são seus? - desafiou, Yor-danka, inconformada com tamanho egoísmo.

— Não me lembro de dizer que eram meus. - serenamente, Kristo se defendeu. - São de todo o mundo. - ressaltou. - Por isso mesmo a cerca se fez necessária.

Silenciosa, Klara assistia a discussão, estupefata, sem saber o que fazer.

— Tudo isso por causa de uma cerca? - pensou. Ao virar-se e olhar para a plantação, perguntou. - A gente não vai poder entrar, vovó?

— Não diga tamanha bobagem, minha querida. - Yordanka, em resposta, sorriu carinhosamente. Deu-se conta, então, que aquela discussão não iria levá-la a lugar algum. Encarou Kristo, respirou fundo e disse. - Chega de falatório, está bem. A menina

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quer alguns tomates, pode ajudar?— Mas é claro! - caloroso, Kristo respondeu, piscando para

a menina, que, mesmo tímida, retribuiu com um discreto sorri-so. - Que grosseria a minha ainda não ter me apresentado. - pôs a mão sobre os cabelos de Klara e se apresentou. - Meu nome é Kristo, sou um velho amigo da sua vovó.

Yordanka, ao ouvi-lo apresentar-se, também apresentou a neta e voltou a perguntar:

— O nome dela é Klara, ela é minha neta. Pode nos ajudar?— Não se preocupe, a cerca não vai impedir a menina de

comer quantos tomates quiser. - Kristo se prontificou a resolver o impasse. - Não fiz só a cerca. - revelou. - Tem uma entrada bem perto daqui.

Avó e neta o seguiram e, após contornarem quase metade da cerca, atravessaram-na finalmente.

— A gente chegou, vovó? - perguntou, a menina de Gabrovo.— Sim, querida, esse é tomateiro que havia falado. - respon-

deu, Yordanka, que quis saber. - Está feliz?— Sim, vovó.— Mesmo?— Aham.— Que bom ouvir isso, querida!Klara, logo em seguida, se enfiou no meio da plantação. -

Eles devem ser muito gostosos. - pensou, fascinada com a beleza

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daqueles tomates. Sentia-se plena por estar ali. Era um senti-mento que não tinha explicação e não tinha lógica alguma, mas que, de certa forma, a confortava.

— Posso pegar um tomate? - perguntou à avó, que a seguiu pela plantação.

— Sim, minha querida. - respondeu, Yordanka, autorizan-do-a. - Pegue quantos quiser.

Com as duas mãos, Klara arrancou o tomate de uma das plantas que estava mais próxima e cravou os dentes nele. Já, na primeira mordida, sentiu a boca encher-se de um suco verme-lho, adocicado e refrescante.

Aqueles tomates não eram só vermelhos e brilhantes, eram, também, extremamente deliciosos. Nunca provara tanto sabor. Enquanto a menina saboreava o tomate, Kristo se aproximou de Yordanka e lamentou:

— É, realmente, uma pena. Tão pequena, tão sozinha!— Está enganado. - discordou, Yordanka, que, em voz baixa e

veemente, assegurou, dizendo. - Ela tem a mim. De agora em diante, ficará comigo. Vou cuidar dela e protegê-la. Klara não está sozinha.

— Onde a encontrou?— No parque Lipnik. - Yordanka respondeu. - Assim que

soube de tudo, não pensei duas vezes em ir ao seu encontro. Dormia como um anjo, como um puro e inocente anjo.

A voz de Yordanka soou pesadamente até os ouvidos de

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Kristo, que, por sua vez, ainda preocupado com a menina, con-tinuou:

— O que fizeram com ela?Ele se referia ao ataque sofrido por Liza, na margem do rio

Yantra, enquanto implorava pela saúde da filha. Estava preocu-pado em relação ao futuro de Klara.

Numa tristeza que só se fazia aumentar, referindo-se aos via-jantes que atacaram a filha, Yordanka se limitou a responder:

— Foram repugnantes, covardes e cruéis.— O que fizeram com ela? - Kristo insistiu.— Não quero mais falar sobre isso.A velha não disse mais nada. Amável, voltou as atenções para a

neta, que, após saborear o primeiro tomate, foi logo perguntando:— Posso pegar mais um, vovó?— Sim, querida. - respondeu, Yordanka.Notando que a pequena hesitava em pegar outro tomate,

Yordanka escolheu, pessoalmente, o mais graúdo e vermelho que encontrou e ofereceu à neta.

— Tome, querida, prove-o e me diga se gostou.Klara pegou o tomate com as duas mãos e cravou os dentes nele.— Gostou? - perguntou, Yordanka.— Sim, vovó.Feliz, novamente sentiu a boca encher-se de um suco extre-

mamente saboroso.

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CAPÍTULO 5: BORIS E A MENINA DE RAZGRAD

Klara se levantou de um punhado de folhas, lugar onde se sentou após empanturrar-se de tomates, assim que percebeu a ausência da avó. Desatenta, a pequena não havia notado que, há um bom tempo, estava sozinha.

— Vovó, onde você está? - perguntou, olhando em volta.Sem qualquer resposta, pôs-se, então, a procurá-la.Na medida que avançava pela plantação, mais se perdia no

meio das folhas, angustiando-se. Pássaros coloridos pousavam ao seu redor, nos pés de tomate, e piavam, tentando tranquilizá-la. Piar, esse, que era a única coisa que a menina conseguia ouvir além da própria voz, do farfalhar das folhas no chão e de sua própria respiração.

— A vovó foi embora e me abandonou? - temeu, sentindo uma tristeza que, novamente, só se fazia aumentar. - Eu não quero mais ficar aqui, vovó! - pediu, em voz alta, na expectativa de que Yordanka a ouvisse.

Deliberadamente perturbada com a possibilidade de ficar ali para sempre, Klara já se conformava em encontrar a saída da-quele verdadeiro labirinto verde.

— Vovó! - chamou, a menina.

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Continuou caminhando até que os pés de tomates deram lugar a um alinhamento de árvores. Viu-se diante de uma mata, encheu-se de coragem e entrou.

— Vovó, onde você está? - perguntou de novo, mas não ouviu nada que indicasse a presença de Yordanka, nem de Kristo. - Eu não quero ficar aqui sozinha, quero voltar para a casa. - emendou.

Ao contrário do que pensava, não estava sozinha. Logo em se-guida, enquanto caminhava dentro da mata, ouviu o som constan-te de latidos vindos de uma certa distância de onde ela estava.

— Aqui! - gritou.Os mesmos latidos pareciam se multiplicar, ficando cada vez

mais altos conforme Klara avançava na mata e um imponente pastor búlgaro surgiu na frente da menina.

O cão tinha o corpo coberto por uma pelagem branca e vo-lumosa, exceto no focinho e numa das patas traseiras, que eram cobertos por uma pelagem cor de avelã. Suas costas eram largas, angulosas e bem musculadas.

— Oi, meu nome é Klara. - disse, a menina, que, imediata-mente, se viu paralisada pelo medo.

Em resposta, o cão pastor começou a latir e rosnar, furioso. Klara, que só queria reencontrar a avó, acabou por achar a hos-tilidade de uma fera.

— Por favor, vai embora! - implorou, a pequena búlgara, que torceu o pescoço e olhou para trás. - Vou virar e correr o

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mais rápido que puder. - orientou-se, ensaiando mentalmente o que deveria fazer para fugir. Contudo, foi sensata e ficou para-da, julgando ter tido uma péssima ideia ao pensar em fugir do cão. - Não vou conseguir, ele é muito mais rápido do que eu. - concluiu. - Eu corro devagar. Se eu correr, ele, com certeza, vai conseguir me pegar.

Num daqueles raros instintos de sobrevivência que se têm poucas vezes na vida, Klara fechou os olhos e esperou ser ataca-da. Imaginava que estaria a salvo se permanecesse com os olhos fechados. Com todas as suas forças, deveria se tranquilizar e controlar o medo. Que mais poderia fazer, além de respirar pro-fundamente e ficar calma? Não havia ninguém por perto para ajudá-la. Se não teve coragem de se afastar do cão, só lhe restava conformar-se com o pior.

— Por favor, vai embora. - mentalizava repetidamente. - Não me machuque. Vai embora.

Mas o cão pastor não parou de latir. Insensível diante da fra-gilidade da menina, rosnava ainda mais furioso, até que, instan-tes depois, seus latidos foram ficando cada vez mais baixos.

Quase não se ouvia os rosnados e o silêncio, então, imperou.— Ele foi embora? - perguntou-se, Klara, permanecendo

com os olhos fechados.Não havia porquê abri-los, afinal, sua estratégia estava funcio-

nando. Milagrosamente, a fera, hostil e insensível, se transformou

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num cão absolutamente amigável e dócil. Não queria atacá-la. Pelo contrário, Klara sentiu-o se aproximar e a língua áspera do cão pastor lambeu-lhe o rosto.

— Isso faz cócega! - exclamou, Klara.Em resposta, o cão pastor, mais uma vez, lambeu o rosto da

menina, latindo amistosamente e abanando o rabo, pondo fim a qualquer resquício de hostilidade que ela pudesse sentir nele.

— Você me assustou, sabia? - disse, Klara, aliviada. - Pen-sei que fosse me morder. - acrescentou. - Ainda bem que você é bonzinho.

A menina tomou coragem e o acarinhou, passando a mão entre as orelhas do animal.

— O que você está fazendo aqui? - quis saber. - Também está perdido?

Em resposta, o cão latiu e abanou o rabo no ar.— Eu estou perdida. - a menina revelou, perguntando. -

Pode me ajudar a sair daqui?Imediatamente após outro latido, o cão pastor pôs-se a refazer

o caminho que havia percorrido para chegar até ela, ajudando-a, então, a encontrar a saída da mata.

— Aonde você está indo? - perguntou, a menina, que, sem hesitar, o seguiu.

Nos momentos em que percebia que se distanciava muito

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de Klara, ele parava e latia, guiando-a pela mata, que, além de úmida e escura, parecia não ter fim.

— A gente já chegou? - perguntou, Klara, cansada, após um certo tempo seguindo-o.

Não demorou e a paisagem mal iluminada foi, enfim, clare-ando na medida que a luminosidade do Sol penetrava na vege-tação. Ao se ver fora da mata, a pequena perdeu o fôlego diante de tanta beleza.

A mata escura e fechada dera lugar a um estonteante descampado.— Que lugar é esse? - perguntou-se.Não parecia real. O céu era tão profundo e vivo quanto azul e

belo. As nuvens, brancas e alvas, pareciam ter sido sopradas por Deus, que, por sua vez, também tivera o capricho de posicioná-las bem acima de um suntuoso paredão de gigantescas rochas.

Klara pôs-se a admirar a paisagem, olhando para o céu, espe-rançosa. Quem sabe até encontrava uma estrela desgarrada, cinti-lando em plena luz do dia, e assim ela lhe concedesse um desejo.

— Tudo aqui é lindo! - exclamou.Seria capaz de ficar ali para sempre, brincando com seu novo

amigo, correndo contra o vento e rolando na grama cor de jade.— Por que minha mamãe nunca me trouxe aqui?Ainda que tudo indicasse que Klara e o cão estavam sozinhos

naquele descampado, uma menina de cabelos ruivos vinha cor-rendo ao encontro deles.

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— Boris, seu malvado! - gritou para o cão, perguntando. - Onde você estava?

Assim que chegou perto do cão, o encarou, irritada, e estrei-tou os olhos.

— Te procurei por toda a parte! - repreendeu-o, com braveza, e voltou a perguntar. - Posso saber onde o senhor estava até agora?

Boris, em resposta, protestou e latiu com euforia.A menina ruiva, então, percebeu que Klara a observava e tra-

tou de se acalmar rapidamente.— Oi, o meu nome é Julia. - ela se apresentou para Kla-

ra, que, por sua vez, tímida, não disse nada. - Como você se chama? - perguntou.

— Meu nome é Klara. - respondeu, a pequena, em voz quase inaudível, e desviou o olhar para Boris.

— Sim, ele é meu. - Julia pareceu adivinhar o pensamento de Klara. - O nome dele é Boris. - revelou. - Ele é muito malvado. Quando não está sumido ou aprontando por aí, fico preocupada e até penso: será que ele se meteu em perigo?

Desembaraçada, Julia voltou a estreitar os olhos para Boris.— Não é mesmo, seu malvado? - perguntou, com ligeiro sarcas-

mo, para o cão, que, de novo, protestou, latindo e abanando o rabo.Apesar de se mostrar bastante irritada, Julia não conseguia

disfarçar seu contentamento. Bem ou mau, Boris acabou por arrumar-lhe uma amiga.

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— A sua sorte é que, mesmo aprontando tanto, ainda gosto muito de você. - acrescentou.

Logo em seguida, olhou para Klara e perguntou:— Onde você mora?— Em Gabrovo. - respondeu, a pequena. - Mas eu estou perdida.— Perdida?— Sim. - garantiu. - Estava no tomateiro quando ela sumiu

e me deixou sozinha. - explicou, brevemente, referindo-se ao sumiço de sua avó, Yordanka. - Depois eu encontrei o Boris e ele me trouxe até aqui.

Ao explicar o que havia acontecido, Klara ameaçou chorar.— Não precisa ficar triste. - disse, Julia, prontificando-se a

ajudá-la. - A gente vai encontrar sua vovó.— Onde você mora? - Klara perguntou.— Moro em Razgrad. - respondeu, Julia. - É um pouco lon-

ge daqui, mas você pode ir para lá e ficar na minha casa até a gente encontrar a sua vovó. Esta bem?

Klara não pensou duas vez em aceitar o convite.Sorriram uma para a outra e Julia, então, se lembrou que

trazia dois bombons guardados no bolso de seu vestido.— Gosta de chocolate?— Sim. - respondeu, Klara.— Eu também. - ela ofereceu um dos seus bombons. - Um é

meu e o outro eu dou para você, que é minha melhor amiga.

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— Eu sou sua melhor amiga?— Sim, você é. - assegurou, a menina ruiva, sem externar

qualquer dúvida.Ambas deram uma dentada generosa em seus respectivos

bombons e saborearam cada segundo de contentamento que os doces lhes proporcionavam. Não tinham porquê ter pressa. Após levar o último pedacinho de bombom à boca, Julia sugeriu uma brincadeira, dizendo:

— A primeira que chegar na sombra daquela árvore, é a ven-cedora. - indicou a sombra de uma árvore, alguns metros à fren-te, e ressaltou. - Eu vou contar até três e a gente corre, está bem?

Klara acenou que sim e Julia, então, contou:— Um... dois... três!Klara disparou na frente e correu em direção a sombra da árvo-

re, no entanto, Julia era mais ágil e a ultrapassou rapidamente.— Preciso correr mais rápido, senão vou perder. - motivou-

se, Klara, ao ver a amiga se distanciando.Quase na metade da corrida, Boris, que as observava com

ar de quem estava prestes a aprontar, não se conteve e também pôs-se a correr. Tão logo, deixou as duas meninas para trás e já corria na frente.

— Chega, eu desisto. - bufou, Julia, irritada, parando de correr. - Assim não é justo! - reclamou à amiga, que vinha logo atrás.

Não se trombaram por muito pouco.

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— O que aconteceu? - perguntou, Klara, preocupada.— Não adianta mais a gente correr. - Julia respondeu. - O

Boris já venceu a corrida.Ouvindo isso, a menina de Gabrovo viu o exato momento

que o cão pastor chegou na sombra da árvore. Com a língua para fora, ao olhar para sua dona com ar de quem não havia feito nada de errado, Boris latiu, eufórico.

Incontestavelmente, era o vencedor.— Viu, eu disse que ele era malvado. - resmungou, Julia, à

amiga. E acrescentou. - Deixa pra lá, vamos ignorá-lo. Quem sabe assim ele deixa de ser intrometido.

Julia e Klara deram as costas para o cão pastor búlgaro, que, mesmo assim, sem se importar, não sossegou e voltou correndo para perto delas.

— Ele está voltando. - disse, Klara.— É só a gente fazer de conta que ele não existe. - Julia res-

pondeu, concluindo. - O Boris é um cão muito malvado.— Ele não parece ser tão malvado assim. - minimizou, Klara.— Pode até não parecer, mas ele é.

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CAPÍTULO 6: A QUEDA DO BALONISTA

Sequer suspeitavam, mas, acima das nuvens, um homem, a bordo de um balão amarelo, passava apuros enquanto tentava reacender a chama do maçarico.

— Socorro! - gritava, ele, desesperado.O balão perdia altitude rapidamente conforme o ar quente

escapava por um rasgo no tecido, até que, certo tempo depois, quando já estava razoavelmente próximo do chão, uma das meninas o avistou.

— Olha, o balão está caindo! - gritou, Klara, à amiga, apon-tando para cima.

— Onde? - perguntou, Julia, que, imediatamente, tra-tou de olhar na direção em que ela apontava. Apreensiva, a menina ruiva viu o balão e perguntou. - E agora, o que a gente faz?

Klara a encarou sem resposta. Não havia pensado que al-guém dentro do balão pudesse estar em perigo. Não conseguia imaginar o sufoco que aquele balonista estava passando para evitar o inevitável.

— A gente só pode torcer para que ele não se machu-que. - respondeu.

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O cão pastor, no primeiro instante que viu o balão, explodiu em latidos e começou a correr pelo descampado.

— Quieto, seu malvado! - repreendeu-o, Julia.Mas Boris não parou de latir, parecia sentir a agonia do homem,

que, embora tomado pelo desespero, conseguiu pousar o balão brusca-mente. Com o impacto do cesto no chão, o balonista foi arremessado alguns metros à frente, para fora do cesto, e caiu de costas na grama.

Assim que chegou perto dele, Julia foi logo perguntando.— O senhor está bem?O balonista, no entanto, visivelmente atordoado, perguntou

de volta:— Onde eu estou, meninas?Julia e Klara se entreolharam, ainda mais preocupadas.— Será que ele perdeu a memória? - Julia sussurrou à amiga,

que a encarou sem qualquer resposta.— Eu ainda estou vivo? - emendou, o balonista, deitado no chão.— Sim. - respondeu, Julia, que depois perguntou. - Se machucou?— Eu acho que estou bem, meninas. - ele respondeu, acres-

centando. - Não se preocupem comigo, não me feri. Apesar de praticamente ter despencado das nuvens, eu estou bem, ou, pelo menos, não sinto nenhum osso quebrado. Só estou com o corpo dolorido e um pouco tonto, mas estou bem.

Desengonçado, o balonista se levantou do chão e insistiu na pergunta:

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— Então, onde eu estou?— A gente também gostaria de saber isso. - Julia respondeu,

levantando o olhar para ele. - Esse lugar é muito bonito, o se-nhor não acha?

— Sim, realmente. - disse, ele. - Vendo a paisagem em segu-rança, com os pés plantados no chão, dá até para ver que este é um lugar muito bonito. - atestou, com certo sarcasmo, e excla-mou. - Não fazem ideia, meninas, fiz uma aterrizagem e tanto; pensei até que fosse morrer!

Discretamente, Julia e Klara riram. Pareciam ver graça no modo como ele falava.

O balonista, por sua vez, se apresentou:— Meu nome é Lazar. - disse, pomposamente, estendendo a

mão para elas. Orgulhoso, ainda acrescentou. - Sou o primeiro balonista da cidade de Gabrovo.

Lazar era um homem alto, jovem e magro. Mas, o que cha-mava mesmo a atenção das meninas era sua bela cabeleira loira e seu rosto bem desenhado. Era charmoso e muito bonito.

— Meu nome é Julia. - respondeu, a menina ruiva, que, logo depois, olhou para o lado e apresentou Klara. - Essa aqui é a minha amiga. O nome dela é Klara.

— Olá, Klara. - Lazar a cumprimentou.— Oi.— O que faz por aqui?

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Ao invés de responder, a pequena búlgara quis saber:— O senhor não viu minha vovó quando estava lá encima?— Sua vovó?— Sim, minha vovó. - reiterou, Klara, descrevendo-a. - Ela é magra,

tem os cabelos compridos e a pele é clara, quase da mesma cor que a mi-nha. Ela também é bem mais alta do que eu. O nome dela é Yordanka.

Lazar sequer pareceu prestar atenção no que Klara dizia. Para a frustração da menina, depois que ela descreveu a avó, ele a encarou como se a visse pela primeira vez.

— Olá, pequena. - disse, carinhosamente, e, sorridente, se apresentou. - Muito prazer, meu nome é Lazar. Sou o primeiro balonista da cidade de Gabrovo.

O balonista apertou a mão de Klara e Julia, cumprimentando-as novamente, e disse o que elas já haviam ouvido por duas vezes:

— Onde eu estou? - perguntou, coçando a cabeça.Desapontada, Klara olhou para a amiga, que, rapida-

mente, interveio.— Acho que ele bateu a cabeça quando caiu no chão. - sus-

surrou, Julia, igualmente frustrada, referindo-se ao momento da queda do balão. - Deve ter perdido a memória.

— É a minha vovó. - Klara voltou as atenções ao balonista e disse pausadamente. - Ela sumiu. O nome dela é Yordanka. Não viu ela quando estava lá encima?

— Sua vovó desapareceu?

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— Sim, minha vovó desapareceu. - Klara respirava fundo para manter-se calma. - O nome dela é Yordanka e ela também tem um amigo que se chama Kristo.

Julia novamente interveio.— Não precisa ficar triste, Klara. - confortou, a menina ruiva,

perguntando ao balonista. - Tem certeza que não viu a vovó dela?— Lamento, Klara, mas eu não vi a sua vovó. - respondeu,

enfim, Lazar.Assim, a menina de Gabrovo teve a ligeira sensação de que

nunca mais voltaria a ver Yordanka.A velha desaparecera misteriosamente.— Minha vovó foi embora e me abandonou. - pensou, ingênua.Boris, nesse meio tempo, manteve-se ocupado ao fuçar no

balão de Lazar, mas, lá encima, outro balão se aproximava vaga-rosamente. O cão pastor foi o primeiro que percebeu o ponto roxo se destacar do imenso céu azul.

— O que foi dessa vez, Boris? - perguntou, Julia, irritada com o escândalo que ele fazia. - Por que está latindo? - quis saber.

A menina ruiva ainda não havia visto o balão.Latindo, Boris começou a correr, eufórico, pelo descampado

enquanto esperava que o outro balão também caísse.

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CAPÍTULO 7: O RESGATE DE LAZAR

Ao contrário do que aconteceu com Lazar, que, literalmente, despencara do céu, quem pilotava o balão roxo não externava es-tar em apuros. Quem o pilotava na verdade não era um homem, mas, sim, uma bela mulher que, habilmente, administrava o ar quente dentro do balão, fazendo-o descer suavemente.

Ao lado de Julia, Klara olhou para cima, na direção que o cão latia.

— Olha, é outro balão! - exclamou, a pequena, assim que o avistou. Ao lembrar-se do acidente de Lazar, a menina se per-guntou em voz alta. - Ele está caindo?

Ficou preocupada.Lazar, por sua vez, não mostrou preocupação alguma. Sabia

perfeitamente que aquela mulher não estava em perigo e que, ao contrário dele, também era uma exímia balonista. Apenas suspirou, olhando para o céu.

— Ele não está caindo. - disse para Klara, referindo-se ao balão.— Não está? - a pequena perguntou.— Não. - garantiu, Lazar.O balão roxo foi crescendo, conforme se aproximava do

chão e se revelava tão belo quanto era o balão de Lazar, até que,

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enfim, o cesto tocou o chão e o balão pousou tão suavemente que sequer parecia ser real.

— O que houve com o seu balão? - preocupada, a balonista foi logo perguntando para Lazar.

— Estava tão distraído com a paisagem que me esqueci de ve-rificar o quanto ainda tinha de combustível. - respondeu, Lazar, que, envergonhado, desconversou rapidamente. - Achei que ti-vesse me esquecido. Bem vinda, meu amor. Como foi a viagem?

— Fantástica, como sempre. - a bela mulher respondeu.Mesmo no chão, Boris não parava de latir para o balão. Era

como se ele fosse seu arqui-inimigo. Entretanto, assim que a bela balonista saltou para fora do cesto, o cão pastor búlgaro sustentou-se nas patas traseiras e lambeu-lhe o rosto.

— Mas que recepção mais calorosa! - exclamou, maravilha-da, penteando os pelos do animal com os dedos. A balonista perguntou para Lazar. - Qual é o nome desse adorável cão?

— O nome dele é Boris. - Lazar respondeu em tom descontraído.A bela mulher fez mais carinho no cão pastor, que retribuiu

abanando o rabo. Julia, nesse momento, juntamente com Klara, se aproximou, irritada com o cão.

— Saia de cima dela, seu malvado! - bradou, repreenden-do-o. - Vamos, peça desculpas agora mesmo!

— Não é necessário. - disse, a balonista, em tom sereno, mostrando não se importar com a travessura do cão. - O fato de

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eu passar a maior parte do tempo nas nuvens, viajando a bordo do meu balão, não significa que eu não goste de uma boa com-panhia em terra firme. - acrescentou, perguntando à menina ruiva. - Você deve ser a dona do Boris?

— Sim. - Julia respondeu. - O Boris é o meu cão pastor, mas ele é muito malvado.

— Malvado? - a bela balonista encarou a menina com precio-sismo. - Por que acha que ele é malvado? - perguntou.

— Porque ele está sempre aprontando. - respondeu, Julia, com certo exagero. - Não consegue ficar quieto, não sabe se comportar e só me arruma problemas. Quando não desaparece, está infernizando a vida de alguém.

Discreta, a balonista abriu um sorriso enquanto ouvia, pa-cientemente, Julia reclamar:

— Eu gosto muito do Boris, mas ele vive latindo para todo o mundo e para tudo. Ele é terrível.

— Mesmo assim, eu imagino que você deve gostar muito dele. - ela acrescentou, divertindo-se com a irritação da menina.

— Sim. - assegurou, Julia, confessando. - Apesar de tudo, eu gosto muito dele.

— Muito?— Sim, muito.Lazar, que assistia a conversa da amada sem interrompê-la,

apresentou as meninas:

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— Essas são Julia e Klara, minhas duas novas amigas. - indi-cou-as, respectivamente.

— Olá, meninas. - cumprimentou, a balonista, que também se apresentou. - Muito prazer, meu nome é Doriana. Sou a noiva de Lazar.

— Olá. - respondeu, Julia, alegremente.— Oi. - emendou, Klara.Além de bela e charmosa, Doriana tinha um tom de voz

amável e era alguns centímetros mais baixa em relação a La-zar. Seus cabelos eram compridos, castanhos, encarolados e, na altura do pescoço, estavam amarrados por uma fita verde-escuro de cetim.

Logo depois de apresentar as meninas, Lazar levou a amada para ver, pessoalmente, os estragos em seu balão.

— Eles estão completamente vazios. - Doriana conferiu os cilindros na qual deveria estar o combustível.

— Como já disse, não percebi que estava sem combustível. - Lazar se justificou, voltando a ficar envergonhado. - Fiz uma ater-rizagem e tanto! - bufou.

— E veja esses rasgos no tecido! - exclamou, Doriana, que seguiu conferindo os estragos no balão acidentado. - Definitiva-mente, não há nenhuma chance dele levantar voo novamente. Estou impressionada que você não tenha se machucado.

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— Fiz uma aterrizagem e tanto. - repetiu, Lazar, confessan-do. - Tive sorte. Pensei que fosse morrer.

Conforme Doriana conferia o balão, o constrangimento de Lazar só se fazia aumentar. Ele, então, desconfortável com toda aquela situação, tentou mudar de assunto.

Olhou para Boris e disse:— Estive pensando em adotarmos um cão. O que acha?— Vamos ter que seguir viagem no meu balão. - disse, Doria-

na, ao invés de responder. - Aceita uma carona? - perguntou.— Aceito, honrado, sem pensar duas vezes. - respondeu, o

balonista búlgaro, em tom solene e apaixonado.Nesse meio tempo, Julia vigiava Boris com olhos estreitos,

impedindo-o de aprontar novamente.— Comporte-se, seu malvado! - repreendeu-o, a menina.Desde que saíra do tomateiro, onde se empanturrou de tanto

comer tomates, Klara não sentia mais fome, porém, boas horas se passaram e sua barriga começava a roncar.

Julia percebeu isso e se antecipou em dizer:— Eu estou com fome, e você?— Eu também estou com fome. - a pequena respondeu.— Ótimo, a gente pode ir para a minha casa. - comemorou,

Julia, sorridente. - A minha mamãe vai adorar te conhecer!— Qual é o nome da sua mamãe?

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— Velislava. - Julia respondeu, perguntando também. - E a sua mamãe, como chama?

— Liza. - disse, Klara.Ao pronunciar o nome de sua mãe, a pequena encarou a ami-

ga com tristeza.— Não fica triste, Klara. - Julia a confortou, prometendo

logo em seguida. - A gente vai encontrar a sua mamãe.— Promete? - perguntou, Klara.Sua avó, Yordanka, havia prometido o mesmo, no entanto,

misteriosamente, desapareceu e não cumpriu a promessa.— Prometo. - respondeu, Julia, à amiga, assegurando. - A

gente vai encontrá-la.O momento de partir, enfim, se fez presente. Enquanto Do-

riana reacendia a chama do maçarico, administrando o ar quen-te dentro do seu balão, Lazar se abaixou na altura das meninas e se despediu delas.

— Adeus, Julia, adeus, Klara.— Adeus. - responderam, as duas amigas, quase ao

mesmo tempo.Emocionado, o balonista que despencara do céu pulou para

dentro do cesto e se colocou ao lado da amada instantes antes do balão se levantar alguns centímetros do chão.

— Adeus, meninas! - acenou, Doriana, calorosamente.— Adeus! - elas responderam.

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— Adeus, Boris! - Lazar gritou para o cão pastor, emendan-do. - E comporte-se, seu grandessíssimo travesso!

Em resposta, Boris explodiu em euforia e começou a correr atrás do balão, que, por sua vez, ganhava altitude com certa ra-pidez. Inexplicavelmente à medida que subia, se destacou do céu azul e desapareceu sobre o paredão de rochas, ao mergulhar numa extensa nuvem branca.

— Não sei se fizemos a coisa certa ao deixá-la para trás. - disse, Lazar, para Doriana, referindo-se à menina de Gabro-vo. - Yordanka abandonou a menina. - externando arrepen-dimento, o balonista concluiu. - Klara não tem ninguém que a proteja, precisamos voltar.

— Tenha fé. - pediu, Doriana, sem qualquer preocupação. - Você, muito mais do que eu, sabe que Klara não está sozinha, nem, tampouco, desprotegida.

Seguiram viagem absolutamente certos de que não havia porquê pensar o contrário.

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CAPÍTULO 8: PEDRO, O MUFLÃO DA MONTANHA

— Falta muito para a gente chegar? - quis saber, Klara, reve-lando. - Eu estou cansada de caminhar.

A pergunta veio após algum tempo na qual caminhavam por uma paisagem rochosa que nada lembrava o descampado. Via-se somente montanhas, gargantas verticais e penhascos. Além de cansada, Klara também estava com medo, pois o caminho era sinuoso e cheio de perigos.

— Um pouco. - Julia respondeu.— É muito longe daqui?— Não. - disse, Julia, pacientemente. Ao contrário de Klara,

não se mostrava cansada ou com medo, mas, sim, ansiosa para apresentar a nova amiga à sua mãe. - A gente está cada vez mais perto. - completou.

Julia não via a hora de chegar em casa para brincar com a nova amiga.

O cão pastor ia na frente das meninas, como se as estivesse protegendo de qualquer ameaça. Atento e silencioso, nada esca-pava ao faro de Boris. A certa altura da caminhada, ele parou e começou a farejar um rochedo.

Klara, ao vê-lo, perguntou para Julia:

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— O que ele está fazendo?— Nada, ele é assim mesmo. - respondeu, Julia, com desinte-

resse. E minimizou. - Ele só quer chamar a nossa atenção.Mais à frente, havia uma ponte velha, que era amarrada com

cordas grossas e esgarçadas nas quais a sustentava sobre um pe-nhasco, e tábuas podres, por onde as meninas e o cão teriam de pisar com muito cuidado para não as quebrarem, caso quises-sem chegar do outro lado.

— É muito alto, eu estou com medo. - disse, Klara, ao se aproximar e olhar para baixo da ponte.

— Não precisa ter medo, Klara. - Julia a tranquilizou. - A gente atravessa bem devagar. Não vou deixar você cair.

— Promete?— Prometo.Enchendo-a de coragem, Julia segurou a mão da amiga, e,

então, puseram-se a caminhar sobre a ponte.Passo após passo, pisavam nas tábuas podres sem qualquer pressa.— É muito alto. - murmurou, Klara, com os olhos parcial-

mente fechados. Apavorada e sentindo o vento oscilar as cordas, receou. - A gente não vai conseguir atravessar.

Julia, por sua vez, não se deixou contaminar pelo medo da amiga. Calmamente, disse:

— Não precisa ter medo, eu não vou deixar você cair.

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Enquanto Julia e Klara atravessavam a ponte, Boris já as es-perava no outro lado, até que, minutos depois, vagarosamente, as meninas também conseguiram atravessá-la a salvo.

Aliviada, a pequena Klara comemorou:— Quem bom que a gente não caiu!— Viu, eu disse que não ia deixar você cair. - lembrou-a, Julia.Voltaram a caminhar. Mas, não muito distante de onde atra-

vessaram a ponte, Boris começou a latir, furioso.— O que foi, seu malvado? - perguntou, Julia, mais preocu-

pada do que furiosa.Ela olhou na direção que ele latia e teve, imediatamente, a

ligeira sensação de que havia mais alguém por perto.— Por que ele está latindo? - perguntou, Klara, à amiga, as-

sustada com a fúria repentina do cão.— Não precisa ter medo, Klara. - Julia a tranquilizou.Tarde demais. A pequena correu para trás da amiga quando,

com valentia, um muflão montanhês saltou detrás de um ro-chedo e parou encima de uma grande pedra achatada sem dar qualquer importância ao escândalo que o cão pastor fazia. Boris se aproximava e se afastava, numa fracassada tentativa de repelir o animal, que, por sua vez, postou-se diante das meninas.

— O que ele quer? - apreensiva, Klara perguntou detrás da amiga, olhando para o animal.

— Não sei, mas fica atrás de mim. - respondeu, Julia.

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Num segundo momento, ignorando totalmente a hostilidade de Boris, o muflão saltou da pedra e deu um passo na direção delas.

— Acho melhor a gente voltar. - sugeriu, Klara, ainda mais apreensiva.

— Confia em mim, Klara. - pediu, Julia, que, ao mesmo tempo, também se obrigava a ficar calma. - Ele só quer ser nosso amigo. - disse.

— Mas ele não vai deixar a gente passar. - insistiu, a pequena búlgara.

O medo e a preocupação de Klara só se faziam aumentar.— Não precisa ter medo. - emendou, Julia, assegurando. -

Ele não quer machucar a gente.Em passadas vagarosas, o muflão passou por Boris, que ros-

nou furiosamente, e se aproximou das meninas, que, com muito esforço, não se moveram. Para a felicidade de Klara, que já espe-rava o pior, o muflão da montanha não as atacou. Ao contrário. Sem qualquer sinal de hostilidade, dobrou as patas dianteiras, reverenciando-as com a cabeça abaixada.

— Ele não é malvado. - Klara, então, suspirou, aliviada. - Ele é bonzinho.

— Eu avisei que ele só queria ser nosso amigo. - lembrou, Julia, não menos aliviada. - Boris, seu malvado, fica quieto! - repreendeu, imediatamente, o cão pastor que não parava de latir e rosnar.

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Ambas externaram surpresa com a docilidade daquele ani-mal. Julia, entretanto, foi além. Ela se encheu de coragem e aca-riciou o muflão.

— Não precisa ter medo, ele é nosso amigo. - disse, a menina, à amiga. - Ele só queria que a gente fizesse carinho nele. - completou.

Klara, então, fez o mesmo. Colocando-se ao lado da menina ruiva, ela passou a mãozinha entre os enormes chifres do muf-lão, que, surpreendentemente, se mostrou ainda mais gentil.

— Qual é o nome dele? - quis saber, curiosa.— Acho que ainda não deram um nome para ele. - respondeu,

Julia, dizendo. - Mas a gente pode escolher um. O que acha?— Um nome para ele?— Sim. - respondeu, Julia, que justificou. - Todo o mundo

tem. Ele também merece ter um nome.Pensando, então, durante alguns instantes, qual nome mais

combinava com ele, Klara sugeriu:— Que tal Pedro?— Pedro?— Sim, o nome dele pode ser Pedro. - assentiu, Klara. - Pe-

dro é um bom nome para ele.— Ótima escolha, Klara!Julia gostou do nome. Ela olhou para o muflão e o batizou.— A partir de hoje, você tem um nome. - disse. - O seu

nome é Pedro.

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— Gostou do nome que a gente escolheu para você? - per-guntou, Klara, ao muflão montanhês, que, em resposta, a enca-rou com normalidade.

Sem perda de tempo, Julia aproveitou que Pedro ainda as reverenciava e, corajosamente, montou em seu lombo. Montada do muflão, ela estendeu a mão para Klara.

— Me dê a mão que eu te ajudo a subir!A pequena búlgara, além de ser três anos mais nova do que

Julia, também era menor que ela e sequer conseguiu alcançar sua mão. Mas Pedro a ajudou. Antes que Klara tentasse montá-lo, ele dobrou as patas traseiras, abaixando-se ainda mais e ficando quase na mesma altura da menina de Gabrovo, que se sentou na frente de Julia.

Assim que o muflão esticou as patas, levantando-se e se endi-reitando, as duas amigas tiveram que segurar firme no couro do animal para não caírem.

— Ao invés de caminhar, a gente pode ir para a minha casa montada nele. - explicou, Julia, brevemente.

Pedro, então, começou a marchar.Enciumado, o cão pastor búlgaro disparou na frente, sendo

raras as vezes em que ele se preocupou em olhar para trás.— Aonde o Pedro vai levar a gente? - Klara perguntou.— Não sei. - respondeu, Julia, com absoluta sinceridade. E

desejou. - Tomara que ele saiba o caminho de casa.

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Roberto Camilotti

Ao passo que o muflão marchava, os terrenos foram se abrin-do, deixando as montanhas e os penhascos que dominavam a pai-sagem para trás e dando lugar a um bosque denso e luminoso.

— Acho que o Pedro mora no bosque. - disse, Klara.Mais à frente, além do bosque, havia também uma impo-

nente montanha que em nada se assemelhava com a altura de um pico. A montanha era larga, extendia-se por boa parte do horizonte e era coberta por árvores.

— Ele está levando a gente para aquela montanha. - constatou, Julia.

Pedro, de fato, as levava para a montanha, mais precisamente para o ponto mais alto dela.

— Está com medo? - perguntou, a menina ruiva.— Um pouco. - Klara respondeu, retribuindo a pergunta. - E

você, está com medo?— Um pouco.

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CAPÍTULO 9: BANQUETE CIGANO

Seria mais uma das incontáveis montanhas da Bulgária, sem nada em especial, senão fosse por uma particularidade: anjos ciganos viviam por ali, em um acampamento.

A vegetação se estreitava conforme Pedro, o muflão, marcha-va montanha acima.

— A gente chegou? - perguntou, Klara, olhando em volta.— Acho que não. - Julia respondeu.Num certo momento, Julia e Klara, que pareciam estar hip-

notizadas pela singularidade da paisagem, se intrigaram ao ver Boris parar e, mais uma vez, começar a latir, eufórico.

— O que foi agora, Boris? - quis saber, Julia, que, irritada, repreendeu o cão. - Comporte-se, seu malvado!

Klara olhou na direção que ele latia e viu um anjo pousar entre as árvores, onde as vigiou do meio da mata.

— Um anjo! - a pequena exclamou.— Onde ele está? - perguntou, Julia, que não conseguia vê-lo.— Ali, perto da árvore. - respondeu, Klara, apontando-o

mais à frente.Julia ficou eufórica ao ver o anjo olhando diretamente para

ela e disse, excitada:

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A Menina de Gabrovo

— Então, anjo existe!A menina de Gabrovo, por sua vez, não conseguiu esconder

sua surpresa com a reação da amiga.— É a primeira vez que você vê um anjo? - perguntou, Klara.

Até mesmo ela já havia visto anjo. - Sabia que eu já vi um anjo. - revelou à amiga.

— Eu também já vi um anjo. - respondeu, Julia, contando sobre a visão. - Mas faz muito tempo e eu quase não me lembro como foi. Eu estava no meu quarto, brincando com as minhas bonecas, quando ouvi um homem me chamar na janela.

Nesse momento, enquanto Julia contava sobre a visão, o anjo que vigiava as meninas escancarou suas asas e levantou voo.

— O que ele queria? - a pequena perguntou, curiosa.— Quando eu corri para a janela, para ver quem me chama-

va, foi o momento que eu vi que não era um homem. - contou, Julia, lembrando-se de cada detalhe. - Era um anjo. Ele era alto, tinha cabelos escuros e queria me dizer alguma coisa, mas não deu tempo. Depois que eu vi ele na janela, a minha cabeça co-meçou a doer muito forte e eu não me lembro de mais nada.

— Por que? - Klara se mostrou intrigada. - O que aconteceu?— Eu não sei. Não consigo me lembrar o que houve. - a voz

de Julia soava com certa agonia. - Só me lembro que senti muita dor na cabeça.

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— Dor na cabeça? - ao ouvir a amiga, Klara se segurou firme em Pedro para não cair decima dele. - Você estava doente? - perguntou.

— Eu não sei. - Julia respondeu. - Eu só me lembro disso.Mesmo ansiosa para saber mais sobre a visão, Klara ficou re-

ceosa em relação aonde o muflão as levava e mudou de assunto, ao perguntar:

— Aonde o Pedro está levando a gente?— Não sei. - a menina ruiva respondeu. - Você está com

medo? - perguntou.— Um pouco. - confessou, Klara.— Não precisa ter medo. - Julia a tranquilizou, referindo-se

aos anjos. - Eles não podem ser malvados.— Por que? - quis saber, Klara.— Porque eles são anjos e não existe anjo malvado. -

respondeu, Julia.Klara sorriu timidamente, concordando plenamente com

a resposta.Enfim chegaram no topo da montanha, lugar onde estava

instalado um acampamento cigano. Ao contrário do que ima-ginavam encontrar, não viram mata fechada, se depararam ape-nas com um ajuntamento de tendas brancas. A claridade do Sol penetrava entre os galhos das árvores, que ficavam ao redor do acampamento, iluminando as tendas.

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— Quem estão procurando, meninas? - perguntou, um dos anjos, ao sair de sua tenda e ver as duas meninas montadas no muflão, observando, impressionadas, o acampamento.

— A gente não está procurando ninguém. - respondeu, Julia, impressionada com a aproximação do anjo. Disse. - Foi Pedro que trouxe a gente até aqui.

Desconfiado, Boris chegou perto do anjo cigano e começou a farejar seus pés descalços.

— Pedro? - perguntou, o anjo, que não enxergava nenhuma outra pessoa por perto além das meninas. - Quem é Pedro? - emendou, antes de ajudá-las a descerem das costas do muflão.

— Pedro é o nome que a gente deu para ele. - respondeu, Julia, indicando o muflão. A menina ruiva perguntou. - Onde a gente está?

— Vocês estão no nosso acampamento. - o anjo descalço respondeu.No momento seguinte, em mais uma de suas travessuras, o cão

pastor levantou a pata traseira e ameaçou urinar nos pés do anjo.— Não pense em fazer isso, seu malvado! - Julia o advertiu.Boris latiu em protesto, mas a obedeceu, afastando-se do

anjo cigano.— Meu nome é Milosh. - cerimonioso, o anjo cigano,

então, se apresentou às meninas. - Sejam bem-vindas ao nosso acampamento.

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— Obrigada. - agradeceu, Julia.Ela olhou para o lado e notou que Klara não parava de olhar

para as asas brancas do anjo.— Como se chamam? - perguntou, Milosh.— Meu nome é Julia e essa é minha amiga, Klara. - respon-

deu, a menina ruiva. - Ela se perdeu da sua vovó. - revelou.Preocupado, o anjo voltou as atenções à pequena.— Está perdida?— Estou. - respondeu, Klara, dizendo. - Minha vovó chama

Yordanka. Ela perguntou o que eu mais gostava de comer. Eu respondi que era tomate e ela, então, me levou no tomateiro. Mas, quando percebi, já havia sumido e me deixou sozinha.

Mesmo que discretamente e sem deixar transparecer, Milosh a olhou com profundo pesar. - Mais uma pobre menina aban-donada à própria sorte. - pensou.

Preocupando-se em ajudá-la, perguntou:— E a sua mamãe, onde ela está?— Eu não sei. - respondeu, Klara, que o encarou com tristeza.Milosh se mostrou cada vez mais disposto em ajudar a meni-

na a reencontrar sua família.— Não se preocupe, vamos encontrá-la.Amoroso, o anjo passou a mão na testa da menina, confortan-

do-a, e, de repente, ouviu-se uma voz amavelmente feminina.

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— Suas novas amigas devem estar com muita fome. - colocan-do-se ao lado do anjo, ela perguntou. - Estão com fome, meninas?

Tinha cabelos compridos, lisos e castanhos. A pele era clara e os olhos eram verdes. Imediatamente, Julia e Klara ficaram boquiabertas ao vê-la.

— O que querem comer, meninas? - refez a pergunta.— Tomate. - Klara respondeu.— Tomate?— Sim, eu adoro tomate.— E você, minha querida, o que quer comer? - o anjo per-

guntou para Julia.— Tudo. - a menina ruiva respondeu.— Mas tudo é muito, não acha?— Sim, mas eu gosto de tudo.— Ótimo ouvir isso, vocês chegaram na hora certa!— Por que? - Julia perguntou.— Porque estamos preparando um banquete e vocês são nos-

sas convidadas. - ela respondeu. Depois, olhou para Milosh e perguntou educadamente. - Não vai me apresentar?

— Sim, elas são Julia e Klara, minhas novas amigas. - dis-se, Milosh, indicando-as respectivamente. E revelou. - Pedro as trouxeram até aqui.

— Esse é o Pedro? - ao perguntar para Milosh, ela olhou para o cão pastor.

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— Não, o nome dele é Boris. - Julia a corrigiu. - Pedro é o nome do nosso muflão. - apontou para o animal que pastava ao lado de uma das tendas.

— Vocês têm um muflão?— Sim. - respondeu, Klara, dizendo. - A gente achou ele

perto da ponte.— Acharam ele?— Sim. - confirmou, Julia. - Foi ele que trouxe a gente até aqui.— Muito prazer, meninas, meu nome é Zita. - ela, então, foi

logo se apresentando. - Sou a irmã de Milosh.No final da tarde daquele dia, os anjos do acampamento prepa-

raram um banquete de boas vindas para as meninas, que, sentadas no chão diante de uma mesa farta, provaram a sopa fria de pepino e iogurte, conhecida como Tarator, e alguns pastéis Baklava, feitos com pasta de nozes trituradas e banhados no mel, além de dança-rem e cantarem ao som de músicas folclóricas ciganas.

— Eu queria ficar aqui para sempre. - desejou, Julia, enormemente alegre.

— Eu também. - respondeu, Klara, com igual alegria, senta-da do lado da amiga.

Antes do banquete acabar, já era tarde da noite. Julia e Klara bocejaram demoradamente, adormecendo ali mesmo, no chão. Nunca se viu tanta festa, alegria e confraternização caberem em tão pouco tempo

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CAPÍTULO 10: CÉU DE BALÕES

O primeiro balão surgiu no primeiro minuto da manhã, as-sim que os primeiros raios de Sol iluminaram o acampamento, e, por ser apenas um, não havia despertado a atenção de ninguém. Mas, tão logo o céu encheu-se deles, tornando-se absolutamente impossível não vê-los ou admirá-los.

— São lindos, realmente! - exclamou, Zita, ao ver Julia e Kla-ra observarem, enfeitiçadas, os balões colorirem o céu.

— Aonde eles estão indo? - perguntou, Klara.— Estão indo para um vale muito bonito. - Zita respondeu.— Onde fica esse vale? - quis saber, Julia, sem desviar o olhar

dos balões. - É longe daqui? - perguntou.— Bom, apesar de não conhecer o vale pessoalmente, sei que

é um pouco longe daqui. - respondeu, Zita, ressaltando. - Todos que já estiveram lá, dizem que é um lugar maravilhoso e que as meninas brincam o dia todo, sem se cansarem.

— Tem menina lá? - perguntou, Klara, que, de repente, ao ouvi-la, ficou com uma enorme vontade de conhecer o vale.

— Sim, querida. - Zita respondeu. Sua voz, propositadamen-te, ecoava num tom de fantasia. - Lá, vivem muitas meninas. - revelou. - Elas brincam o dia inteiro e não se machucam.

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— Elas não se cansam e não se machucam? - perguntou, Julia, surpresa. - Por que?

— Porque lá não existe cansaço e nem perigo. - assegurou, Zita. - É um lugar sagrado, protegido por Deus.

Ao avistar os balões, Boris, que dormia do lado de fora da tenda de Zita, voltou a ficar eufórico e pôs-se a latir. Correndo de um lado para o outro, fez, a todo custo, chamar a atenção de sua dona.

— Quieto, seu malvado! - Julia o repreendeu, dizendo. - Não é só você que está vendo os balões, eu também estou vendo eles.

Não menos impressionado, Milosh se aproximou da irmã e comentou:

— Com eles tão colados uns aos outros, fica difícil escolher o mais bonito.

— Bom dia. - Zita o cumprimentou e, descontraidamente, perguntou. - Por que alguém escolheria o mais bonito se pode contemplar todos?

— Tem toda a razão. - concordou, Milosh.Klara, ao ver o anjo do lado de Zita, não se conteve e foi

logo revelando:— Eles estão indo para um vale onde as meninas podem

brincar o dia todo.— Para um vale sagrado. - emendou, Julia.— Para um vale? - Milosh fingiu surpresa.— Sim. Para um vale muito bonito.

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— Isso mesmo, os balões estão indo para o mais bonito de todos os vales. - disse, Milosh, às meninas. - Eles estão indo para o Vale das Rosas.

— Vale das Rosas? - Klara o encarou, com certa estranheza, ao mesmo tempo que imaginava todos aqueles balões pousando numa plantação de rosas. - Onde fica esse vale? - perguntou.

— O Vale das Rosas fica perto da cidade de Kazanlak e é cer-cado por montanhas. - respondeu, Milosh, divertindo-se com a inesgotável curiosidade das duas meninas.

A resposta, obviamente, frustrou Julia e Klara que esperavam ouvir mais. - Todo o lugar que eu conheço é cercado por mon-tanhas. - pensou, a pequena Klara.

De fato, não parecia existir lugar algum na Bulgária em que não houvesse uma montanha por perto para embelezar a paisagem.

Conforme a manhã avançava, os anjos que ainda dormiam, ao saírem de suas tendas, também se impressionavam com o céu coberto por balões.

— O que está acontecendo? - perguntou, docemente, um anjinho que acabara de sair de uma das tendas, à sua mãe.

— Um milagre. - ela respondeu em tom amoroso.— Um milagre? - o anjinho perguntou de volta.— Sim, meu filho. - garantiu, a mãe, dizendo. - Esse céu é

um presente para todos nós, um maravilhoso milagre.

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Zita e Milosh, há uma certa altura da manhã, afastaram-se das meninas e retornaram para suas respectivas tendas. Ambos tinham muito o que fazer após o banquete daquela noite.

As duas amigas, porém, continuaram contemplando o céu.— Por que a minha mamãe nunca me falou sobre o vale? -

perguntou-se, Klara, silenciosa.Boris, por sua vez, ignorou os balões e voltou-se para algu-

ma coisa que parecia se mover, com rapidez, na mata fechada, clareando-a como se fosse uma fogueira viva, um vulto em cha-mas. Sem chamar a atenção de Julia, ele disparou a correr atrás da criatura, desaparecendo na vegetação.

Um certo tempo depois é que a menina ruiva notou a falta do cão pastor.

— Onde ele está? - perguntou para Klara.— Quem?— O Boris. - respondeu, Julia.Klara levantou o olhar à amiga, sem deixar qualquer dúvida

de que não sabia para onde ele havia ido.— Eu não sei. - respondeu.Rapidamente, Julia a puxou pelo braço e, então, foram procurá-lo.— Boris, seu malvado! - gritava, nervosa, caminhando apres-

sadamente entre os anjos ciganos.

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CAPÍTULO 11: VELISLAVA, A RAPOSA DE FOGO

De mãos dadas, as duas amigas foram se afastando do acampa-mento na medida em que o procuravam por uma trilha de terra.

— Aonde será que ele foi? - perguntou-se, Julia, em voz alta.Ao mesmo tempo que, atentamente, observava em volta,

Julia também olhava para Klara, que se mostrava igualmente preocupada. Boris desaparecera de repente, silenciosamente, e com todo o mistério.

— Tem alguma coisa se mexendo ali. - indicou, Klara, um ponto específico na mata.

Julia voltou as atenções na direção que a amiga apontou e logo foi surpreendida. O verde da mata se acendeu e uma raposa em chamas, majestosamente, saltou na frente delas como uma fera de fogo.

— É a minha mamãe, Velislava! - exclamou, aliviada, ao ver que se tratava da raposa.

Porém, Klara não sentiu a mesma tranquilidade. Apavorada, ela correu para trás da amiga e suplicou à fera:

— Por favor, vai embora!— Ela é a minha mamãe. - disse, Julia, tentando tranquilizá-

la. - Não vai te fazer mal.

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— Sua mamãe?— Sim. - Julia garantiu. Ela deu as costas à raposa e, colo-

cando-se de frente para a amiga, perguntou. - Não se lembra de quando eu disse que a minha mamãe se chamava Velislava?

— Sim, mas você não disse que a sua mamãe era uma rapo-sa. - respondeu, Klara.

Mesmo com tamanha tranquilidade, o pavor de Klara só se fazia aumentar. Velislava, por sua vez, pareceu antever o medo que provocaria na pequena búlgara, pois, após saltar da mata, ficou parada na frente de Julia.

— E o que há de mau em ser uma raposa? - Julia perguntou, ligeiramente ofendida com a resposta de Klara. - É a primeira vez que você vê uma raposa de fogo?

Klara balançou a cabeça, respondendo que sim. Nunca tinha visto uma raposa comum, quiçá uma igual a Velislava, que ex-pelia fogo dos pelos.

— Não precisa ter medo. - a menina ruiva tentou pôr fim ao pavor de Klara, assegurando. - Ela não vai te fazer mal.

Boris, que havia se afastado de sua dona para se ir atrás de Velislava, enfim, reapareceu, saindo da mata no mesmo lugar onde a raposa havia saltado, e se aproximou de Julia.

— Onde o senhor estava, seu malvado? - perguntou para o cão, repreendendo-o. - Fique sabendo que me deixou muito preocupada. Nunca mais saia de perto de mim!

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O cão pastor protestou, latindo baixo, e, sem externar quais-quer medo ou receio, se aproximou da majestosa raposa.

Por mais que se esforçasse, Klara não conseguia enxergar uma figura materna em Velislava. - Ela é uma raposa e Julia é uma menina. - pensou, intrigada, enquanto a observava. - Como pode ser mãe dela? - perguntou-se. Foi, então, que se convenceu de que Julia estava sendo sincera quando dizia que a fera era sua mamãe no momento em que, para seu total horror, ela se colo-cou diante da raposa e, sem que a pequena a ouvisse, pediu:

— Não machuque ela, mamãe. - logo em seguida, a menina ruiva acariciou o focinho de Velislava, uma das poucas partes do seu corpo avermelhado que não expelia fogo, e sussurrou. - Ela é a única amiga que eu tenho.

Carinhosa, a raposa de fogo respondeu, lambendo o rosto da menina. O gesto causou enorme surpresa em Klara, que, ime-diatamente, arregalou os olhos ao ver tamanha docilidade.

— Pensando bem, ela não parece ser malvada. - disse, a pe-quena búlgara, que, enfim, teve a certeza que Velislava não era uma ameaça. Ela encheu-se de coragem e se aproximou, pergun-tando para Julia. - O fogo não machuca ela?

— Não. - Julia respondeu. Convicta, garantiu. - O fogo só machuca quem tenta fazer mau para ela.

Embora mais calma, a menina de Gabrovo não conseguia desviar seu olhar de medo da raposa.

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— Quer fazer carinho nela? - perguntou, Julia.— Eu acho que ela não vai deixar.— Ela vai deixar, sim. - Julia insistiu, dizendo. - Minha mamãe

já sabe que você é minha amiga e que não vai me fazer mau.Klara, então, rompeu o medo e acariciou o focinho de Ve-

lislava, que respondeu, igualmente carinhosa, lambendo o rosto da menina.

— Sua mamãe é muito bonita! - exclamou.O que tinha por medo, rapidamente, se esvaiu. Klara, vendo-a

de perto, se mostrou ainda mais impressionada com a pelagem de Velislava, que, em momento algum, parava de expelir fogo.

A essa altura, os incontáveis balões coloridos que elas haviam visto no acampamento, aos poucos, iam desaparecendo, reve-lando um céu cor de abóbora e luminoso. Já era fim de tarde. O tempo, mais rápido do que o habitual, parecia ter ritmo próprio e passou rápido.

— Está escurecendo. - disse, Julia, à amiga, vendo o Sol se esconder nas montanhas. - A gente vai para a minha casa e pro-cura a sua vovó amanhã, o que acha? - perguntou.

— Está bem. - Klara aceitou.Julia, Klara, o cão pastor e a raposa de fogo contornaram a

trilha de terra e desceram a montanha pelo mesmo caminho na qual o muflão havia percorrido para chegar ao acampamento. Pouco caminharam e Klara logo parou.

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— O que foi? - Julia perguntou.— A gente esqueceu o Pedro no acampamento. - respondeu,

a pequena, ao se lembrar do muflão.Diante da resposta, Julia olhou rapidamente para Velislava,

que retribuiu o olhar com certa indiferença à preocupação que Klara externava.

Era como se Pedro não pudesse ir com elas.— Ele não vem com a gente. - lamentou, Julia.— Por que? - Klara quis saber.— Porque ele foi adotado pelos anjos. - Julia mentiu.Todos, então, voltaram a caminhar.Klara não conseguiu disfarçar sua ansiedade em chegar na casa

onde a amiga morava. Assim que chegasse, iria dormir e acordar o mais cedo que pudesse para brincar com ela até se cansar.

— Falta muito para a gente chegar? - perguntou, Klara, com sono.— Um pouco. - Julia respondeu.Conforme caminhavam montanha abaixo, a claridade do Sol

diminuía, anoitecendo a paisagem e fazendo com que apenas as chamas da raposa iluminassem o caminho. E tal escuridão só fazia intensificar o sono que ambas sentiam.

Mais à frente, Klara avistou um amontoado de almofadas jogadas num canto da mata e que pareciam ser muito fofas.

— Elas estavam aqui antes? - perguntou, Klara, à amiga, re-ferindo-se às almofadas.

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Julia respondeu que não.Eufórico, Boris saltou encima delas e se deitou, confortavel-

mente, num canto do amontoado.— Além de malvado, ele é muito intrometido. - Julia res-

mungou, ao ver o cão pastor deitar sobre as almofadas.O mesmo fizeram Julia e Klara.Cercadas pela escuridão da mata e com sono, as duas ami-

gas pularam nas almofadas, bem perto de Boris, deitaram-se e adormeceram, iluminadas somente pelas chamas da imponente raposa búlgara que as protegia.

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CAPÍTULO 12: NAPOLEÃO E O MUFLÃO FRANCÊS

O mal humor só aumentava conforme, desconfiado, ele encara-va as duas meninas que dormiam pesadamente sobre as almofadas.

— Quem são essas meninas? - perguntou-se, o imperador, pensativo.Vaidoso, Napoleão Bonaparte mostrava ser muito importan-

te pelo jeito vagaroso com que se aproximou de Julia e Klara. Com sua alinhada vestimenta militar, trazia consigo uma espa-da, minuciosamente pendurada na altura da cintura, além de Pedro, o muflão que as duas meninas haviam deixado para trás, no acampamento. O imperador francês, mesmo com sua bai-xa estatura, conseguia a proeza de ficar ainda mais atarracado, quase sem pescoço, ao parar e se curvar diante das almofadas, atento, fazendo pose imperial.

Boris, por sua vez, novamente eufórico, ao vê-lo se aproximar das meninas, começou a latir e rosnar.

— Cale-se, peste peluda! - exigiu, Napoleão, ao cão pastor, que, em resposta, pôs-se a latir ainda mais alto.

Sem demora, Julia acordou em meio aos latidos. Além de se deparar com Napoleão, olhando-a com esnobismo e menospre-zo, logo viu o muflão, que mantinha inabalável indiferença ao escândalo que o cão fazia.

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— Boris, seu malvado! - a menina ruiva o repreendeu.O cão, porém, sequer pareceu ouvi-la. Continuou latindo e

rosnando para o imperador e o muflão.Não podendo ignorar tamanho escândalo, Klara acordou em

seguida, mal conseguindo abrir os olhos para ver o que estava acontecendo devido a intensa claridade do Sol que inundava seu rosto.

Ela se sentou no amontoado de almofadas e ouviu Napoleão perguntar para Julia:

— Então, a peste se chama Boris?A pergunta soou em tom de sarcasmo e rudeza.— O Boris não é nenhuma peste. - rebateu, Julia, visivelmen-

te ofendida. - Ele é o meu cão pastor e eu gosto muito dele.— Gosta dele? - o imperador a provocou.— Sim. - Julia respondeu.— Que seja. - bufou, Napoleão, em tom de tédio.Apesar de parecer se divertir com o nervosismo da menina,

ao que percebeu o olhar distante de Klara, ele voltou as atenções à pequena e perguntou:

— E você, menininha, o que faz nesse fim de mundo?Intimidada, Klara olhou para o lado, buscando resposta

na amiga.— Ela está perdida. - Julia respondeu por ela.— Perdida?

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— Sim. - confirmou, Klara, em voz quase inaudível. - A mi-nha vovó me abandonou.

— É uma pena. - disse, Napoleão, insensível. E acrescentou. - Lamento não ter tempo para ajudá-la.

Nesse meio tempo, a raposa de fogo espreitava cada mínimo gesto de Napoleão, pois não confiava nele, enquanto que Pedro, o muflão montanhês, continuava mostrando indiferença aos la-tidos que Boris lhes direcionava.

— Quieto, seu malvado! - irritada, exigiu, Julia, ao cão búl-garo, que, dessa vez, a obedeceu, afastando-se de Pedro e indo para perto da raposa.

O imperador francês logo em seguida deu as costas às meni-nas e caminhou vagarosamente até o muflão, onde, com certa dificuldade, montou no lombo do animal.

— O Pedro seguiu a gente até aqui! - exclamou, Klara, à amiga.

Devido ao tumulto, a pequena búlgara ainda não o havia visto.— Quem é Pedro? - perguntou, Napoleão, de cima do muflão.— Pedro é o nome do nosso muflão. - Julia respondeu.— Está enganada, menina. - retorquiu, Napoleão, sem perder

o tom solene em sua voz. - O nome dele é Luc. - corrigiu-a.— O nome dele é Luc? - Klara se perguntou em voz alta,

estranhando o nome.

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— Exatamente. - Napoleão respondeu. - Esse é o nome que eu escolhi para ele.

— Mas a gente achou ele quando atravessou a ponte. - a menina ruiva protestou.

— E a gente deu o nome Pedro para ele. - complementou, Klara, referindo-se ao muflão da montanha.

— Que seja, chamem-no como quiserem. - Napoleão as ig-norou. - Não me importa onde vocês o acharam, nem aonde ele as levou. - vaidoso, declarou. - O nome dele é Luc e assim será no dia de hoje, de amanhã e de todo o sempre.

Nada puderam fazer para que o imperador voltasse atrás em sua decisão. Napoleão Bonaparte deu um tapa no lombo do muflão e Luc, então, começou a marchar, voltando a atiçar a euforia de Boris.

Julia, imediatamente, estreitou os olhos para o cão pastor e se desculpou, dizendo ao imperador francês:

— Perdoa ele, moço. O Boris não está acostumado com gente estranha.

— Eu agora sou um estranho? - perguntou, Napoleão, que parou no mesmo instante.

Mesmo que por uma inocente menina, ser classificado como estranho soou ao imperador como um grave insulto.

— Sim, um estranho. - respondeu, Julia, normalmente. - Afi-nal, a gente não te conhece.

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— Pois bem, não seja por isso. - pomposamente, o impe-rador insultado se apresentou. - Meu nome é Napoleão Bona-parte. Sou o imperador da França, o rei da Itália, o protetor da Confederação do Reno e o copríncipe de Andorra.

As duas amigas arregalavam os olhos, estupefatas, na medida em que o ouvia se descrever com um orgulho de si próprio que só parecia crescer.

— Um estranho não grava o seu nome na história como eu gravei. - emendou, Napoleão, garantindo. - Estranhos não mar-cam época...

Klara o interrompeu, perguntando:— Imperador de onde?— Imperador da França. - respondeu, um Napoleão visivel-

mente contrariado.Diante de tal resposta, Klara olhou para a amiga e perguntou:— A gente está na França?— Não. - Julia respondeu. - A gente ainda está na Bulgá-

ria. - disse e foi logo perguntando para Napoleão. - Mas o que faz um imperador?

— Impera. - com má vontade, Napoleão se limitou a respon-der. - Um imperador impera.

As duas amigas sorriram uma para a outra. Pareciam achar graça no modo como ele falava.

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Por sua vez, orgulhoso, Napoleão foi rápido e pôs fim aos sorrisos.

— Por que trouxeram Luc para cá? - perguntou.— Não foi a gente que trouxe ele para cá. - respondeu, Julia,

explicando. - Foi ele que trouxe a gente até o acampamento.— Que seja! - bufou, Napoleão, que, despedindo-se num

profundo tom de tédio, concluiu. - Sendo assim, eu agradeço por terem cuidado dele. Tenham um bom dia.

— Adeus, senhor Napoleão. - responderam, Julia e Klara, quase ao mesmo tempo.

O imperador francês deu outro tapa no lombo do muflão, que, de pronto, voltou a marchar, distanciando-se lentamente das meninas.

— Onde já se viu uma coisa dessas, elas não me reconhece-ram! - em voz baixa, resmungou. - Todo o mundo sabe quem eu sou e que eu, como poucos, marquei época. Como essas menini-nhas petulantes não souberam o meu nome? - se perguntou.

Menos apreensiva ao passo que o vaidoso imperador se distanciava, a raposa de fogo se colocou perto de Julia e o observou ir embora.

— Eu nunca tinha conhecido um imperador antes. - confi-denciou, a menina de Gabrovo, à amiga.

— Eu também não. - respondeu, Julia. - Ele deve ser o único imperador que existe no mundo. A gente teve muita sorte de conhecer ele, não é mesmo?

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— Aham. - assentiu, Klara.Julia e Klara se levantaram do amontoado de almofadas e boce-

jaram demoradamente. Napoleão, por sua vez, olhou para trás, na direção delas, e mostrou a língua. Ambas ficaram chocadas com tamanha grosseria e tal atitude fez Boris explodir em latidos.

— Que coisa mais feia! - exclamou, Klara, à amiga.— É mesmo! - concordou, Julia. - Pode até ser um impera-

dor, mas não tem educação.— Não gosto dele.— Eu também não.O dia encontrava-se profundamente agradável, e o céu, cor

azul turquesa, estava luminoso.As duas amigas, Boris e a raposa de fogo deixaram, então, a

montanha para trás e seguiram para a casa de Julia, onde Klara, diferentemente do que queria, ficou ainda mais longe de reen-contrar sua mamãe.

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CAPÍTULO 13: O QUADRO MISTERIOSO

Quando atravessou o portão vazado de ferro, cuja a tinta preta se descascava e a ferrugem o corroía pelas extremidades, Klara se mostrou ligeiramente frustrada ao ver a casa onde a amiga morava.

— A gente chegou? - perguntou, esforçando-se o máximo que podia para esconder seu desapontamento.

— Sim. - respondeu, Julia, contente. - Essa é a minha casa.A casa era simples, velha e mal cuidada. Os tijolos estavam

aparentes, a varanda e o telhado eram sustentados por colunas de madeira, e, na parte externa, circundando toda a casa, o jar-dim era um gramado que parecia não receber cuidados há um bom tempo.

Klara imaginava que Julia morasse numa casa tão bonita e aconchegante quanto a sua. Não esperava que ela vivesse numa casa abandonada. Ao atravessar a porta, a menina de Gabrovo viu uma sala coberta por uma espessa camada de poeira, quase sem claridade alguma exceto a pouca luz do dia que penetrava pela janela entreaberta.

Julia agarrou a mão da amiga e foram direto para o quarto.— Vem comigo, eu quero te mostrar as minhas bonecas. -

disse, a menina ruiva, deixando Boris e Velislava para trás.

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Elas passaram pela sala e percorreram um pequeno corredor até chegarem no quarto.

— Essas são as minhas bonecas! - apontou para uma pratelei-ra onde não havia nada mais do que três bonecas velhas e uma pilha de livros antigos.

A pequena búlgara, mais uma vez, respirou fundo para não transparecer a frustração que sentiu ao ver aquelas bonecas.

— Posso pegar uma? - perguntou, normalmente.— Claro que pode. - respondeu, Julia.Klara pegou a boneca que estava no canto da prateleira, segui-

da por Julia, que pegou as outras duas e as jogou sobre a cama.— A gente também pode brincar com as três juntas. - suge-

riu, sentando-se na cama e perguntando. - O que acha?— Legal. - Klara respondeu. Sentou-se na cama, de frente

para a amiga, e perguntou. - Que nomes você deu para elas?— Nomes? - perguntou, Julia, visivelmente surpresa.Por mais impossível que pudesse soar, ela nunca havia pensado

em dar nome às suas bonecas. Então, sem pensar muito, Julia as observou e disse os três primeiros nomes que lhe veio na cabeça:

— Klara, Julia e Velislava.A menina de Gabrovo, imediatamente, abriu um sorriso, achan-

do engraçado que uma daquelas bonecas tivesse o seu nome.— Qual delas se parece comigo? - perguntou.

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— Esta aqui. - a menina ruiva indicou a menor delas e retri-buiu a pergunta. - E qual você acha que se parece comigo?

Antes que Klara respondesse, Boris invadiu o quarto e, eufó-rico, pulou encima da cama, ameaçando morder justamente a boneca que a pequena búlgara havia pego.

— Não pense em fazer isso, seu malvado! - Julia foi rápida e o empurrou para fora da cama. - Dessa vez, não vou deixar você pegar nenhuma delas. - disse e exigiu, brava. - Cães não brincam com bonecas! Sai do meu quarto agora mesmo!

O cão pastor, em resposta, aprontou mais uma de suas traves-suras. Antes de correr para fora do quarto, ele latiu para sua dona e mordeu a boneca que Klara segurava, levando-a consigo.

Em resposta, Julia puxou a amiga pelo braço e, juntas, foram atrás dele.

— Boris, seu malvado, devolve a minha boneca! - gritou, a menina ruiva, correndo atrás do cão.

Quando elas saíram do quarto e passaram pelo pequeno cor-redor, Klara parou no mesmo instante. Viu, pendurada na pare-de branca, uma pintura onde uma mulher estava sentada numa cadeira, de frente para uma menina, que, por sua vez, encontra-va-se deitada numa cama. A mulher do quadro não aparentava ter mais de trinta anos e a menina tinha os mesmos traços de Julia, os mesmos cabelos ruivos, a mesma pele clara e o mesmo rostinho delicado.

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Instantes depois, trazendo consigo a boneca que Boris havia roubado, Julia se aproximou de Klara.

— Ele sempre faz isso! - reclamou, irritada, referindo-se ao cão pastor. - Vive roubando as minhas bonecas e enterrando elas em volta da casa.

Mas as atenções de Klara ainda estavam direcionadas ao qua-dro. Sem prestar atenção na reclamação da amiga, ela o apontou.

— Quem é ela? - quis saber sobre a mulher do quadro.— Ela era a antiga dona da casa. - respondeu, Julia, mostran-

do curiosidade pela pergunta. - Por que?— Porque a menina que está deitada na cama é muito pare-

cida com você. - Klara respondeu.Surpresa com o que a amiga dissera, Julia, então, analisou a

pintura. Apesar de já ter visto o quadro inúmeras vezes, ela nunca havia reparado nas semelhanças que tinha com aquela menina.

— Parece comigo? - perguntou-se, em voz baixa, mas em tom suficientemente alto para que Klara a ouvisse.

— Sim, muito. - a menina de Gabrovo respondeu.Enquanto isso, Velislava, da porta, observava as duas meni-

nas paradas diante do quadro. A majestosa raposa parecia querer dizer alguma coisa que nem ela própria compreendia bem o que era. Tinha uma ligação muito forte com a mulher do quadro e, de um certo angulo de vista, guardadas as devidas peculiarida-des, pareciam até ser a mesma pessoa.

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— Como ela se chama? - perguntou, Klara, à amiga, olhando fixamente para o rosto da mulher.

— Não sei. - respondeu, Julia, que, entediada com aquele mistério e ansiosa para voltar a brincar, convidou. - Vem, esque-ce esse quadro e vamos voltar a brincar.

De volta no quarto, assim que sentou na cama e pôs a boneca menor junto com as outras duas, Julia fez a seguinte pergunta:

— Como é o seu quarto?Estava curiosa para saber se a amiga tinha muito mais bone-

cas do que ela.— O meu quarto tem muito espaço para brincar. - respon-

deu, Klara, que fechou os olhos e se lembrou de cada detalhe en-quanto dizia. - Fica na parte de cima da casa, ao lado do quarto da minha mamãe. As paredes são brancas e a janela é grande o bastante para a luz do Sol entrar. - imaginando-se, de volta, em seu quarto, a pequena podia sentir os raios de Sol aquecer seu rostinho. - Sabia que eu moro perto de um rio? - perguntou.

Julia abanou a cabeça, respondendo que não.— O nome dele é Yantra. - emendou, Klara, ainda com

os olhos fechados. - Meu quarto é cheio de bonecas e a mi-nha cama tem quatro travesseiros. Eu adoro brincar no meu quarto! - exclamou.

Por um instante, teve a sensação de nunca ter saído dele. Sentia-se estranha, pois, desde que acordara, sozinha, na clareira

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e encontrara a avó era como se o mundo de antes, doente e cin-zento, estivesse morto e outro renascido no lugar.

Klara abriu os olhos e disse:— Quando eu voltar para a minha casa, você pode me visitar,

se quiser. Eu te mostro as minhas bonecas.— Você tem mesmo muitas bonecas? - perguntou, Julia,

pondo uma das suas três bonecas velhas sentada na cama.A pequena respondeu que sim.Brincando, o tempo passou rápido naquela manhã. No en-

tanto, em momento algum, Velislava foi até o quarto da filha. A raposa de fogo chegou a entrar na sala empoeirada, mas, rapi-damente, voltou e se sentou perto da varanda, onde, junto com Boris e com o focinho voltado para cima, ficou vigiando o céu azul-turquesa.

Pareciam esperar alguém que não demorou a chegar.

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CAPÍTULO 14: A SEGUNDA QUEDA DO BALONISTA

Foi Boris, ao latir e correr, quem avisou Julia e Klara sobre a aproximação do balão amarelo.

— Eu gosto muito dele, mas sempre consegue me irritar. - disse, Julia, à amiga, referindo-se ao cão pastor búlgaro. Ambas brincavam no quarto e, portanto, ainda não haviam visto o ba-lão. - O que será que ele quer agora? - perguntou-se.

Sem demora, foram ver o que estava acontecendo. Ao atra-vessarem a sala e saírem da casa, viram Velislava, olhando para o céu, e Boris, latindo cada vez mais alto conforme o balão, aos poucos, se aproximava.

— Fica quieto, seu malvado! - Julia o repreendeu e, logo em seguida, exclamou para Klara, colocando-se ao lado da raposa e olhando para o céu. - Olha, é um balão!

Klara, prontamente, olhou na direção que Julia apontou. Ao avistar o balão, perguntou:

— Ele está vindo para cá?Julia respondeu que sim.— Mas quem é que está vindo? - quis saber, Klara, curiosa.— Só pode ser ele. - murmurou, Julia, como se a resposta

fosse a mais óbvia do mundo.

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Aquele balão não era estranho para ela, no entanto, Klara se mostrou ainda mais curiosa.

— Ele, quem? - perguntou.— Aquele é o balão de Lazar. - disse, a menina ruiva.A resposta causou enorme estranhamento em Klara. Quando

o balão já estava bastante próximo do chão, a menina de Gabro-vo quis saber:

— Mas por quê ele está vindo para cá?— Não sei. - Julia respondeu com sinceridade.Mal sabiam que a bordo daquele balão Lazar passava apuros.

Tentava, desesperadamente e sem sucesso, reacender a chama do maçarico enquanto que o imponente balão amarelo murchava, despencando do céu.

— Saiam da frente, meninas! - ao vê-las, o balonista búlgaro debruçou-se sobre o cesto e gritou. - O balão está caindo!

— O que ele disse? - Klara olhou para a amiga.— Ele disse para a gente se abaixar! - exclamou, Julia, que,

imediatamente, a puxou pelo braço e a deitou no chão.A queda se deu com razoável violência. Passando alguns cen-

tímetros acima delas, ao tocar o chão, o cesto virou e Lazar foi arremessado para a frente, caindo de barriga para cima.

Igualmente preocupadas, Julia e Klara se levantaram do chão e correram para ajudá-lo.

— O senhor está bem? - perguntou, Julia.

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Ao invés de responder, Lazar perguntou de volta:— Onde eu estou, meninas?— Na minha casa. - respondeu, a menina ruiva.Boris, reconhecendo o balonista caído no chão, parou de la-

tir e lambeu-lhe o rosto.— Como vai, Boris? - ele cumprimentou o cão, que, em res-

posta, latiu, abanando o rabo.Julia, preocupada com o balonista, voltou a perguntar:— O senhor está bem?— Sim. - respondeu, Lazar, revirando os olhos. - Dessa

vez, se eu não tiver quebrado nenhum osso, estou conven-cido de que serei o homem mais sortudo do mundo. - tran-quilizou-as, descontraidamente. - Se meu corpo ainda não reclamou é porquê não me machuquei, mas obrigado pela preocupação. Estou bem.

Com cuidado, elas o ajudaram a se levantar e Lazar, então, recompondo-se da queda e do enorme susto, ficou de frente para a casa de Julia. O balonista búlgaro viu a imponente raposa de fogo perto da varanda, e, junto com as meninas e o cão pas-tor, foi até ela e a cumprimentou:

— Como vai, minha velha amiga?Pelo modo com que perguntou, Lazar parecia conhecer Ve-

lislava. O que também causou certa surpresa em Klara, que, ao ouvi-lo, aguçou os ouvidos na expectativa de que a raposa lhe

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respondesse alguma coisa. Porém, a fera limitou-se a chicotear sua longa cauda avermelhada no ar, desapontando a pequena.

Logo em seguida, o balonista voltou as atenções para Klara.— E você, pequena, como está? - perguntou, em tom caloroso.Queria saber se ela, finalmente, havia reencontrado sua

vovó, Yordanka.— Estou bem. - respondeu, Klara, timidamente.— A gente estava brincando com as minhas bonecas antes de

você chegar. - acrescentou, Julia.Fingindo surpresa, o balonista arregalou os olhos para Klara

e emendou outra pergunta:— Estavam brincando?— Sim. - ela confirmou.— Encontrou a sua vovó?— Não. - respondeu, Klara, com tristeza.Apesar de feliz, por ter a amizade de Julia, e tranquila, com a

proteção de Velislava, ainda sentia falta de sua casa, de brincar, em seu quarto, com suas amigas e todas as suas bonecas.

Julia percebeu a tristeza da amiga e interveio, perguntando ao balonista:

— O que aconteceu com o seu balão?— O que aconteceu? - envergonhado, Lazar respirou fundo

e tentou explicar. - O problema é que, às vezes, eu me distraio tanto com a paisagem que não percebo o combustível acabar.

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Julia e Klara se entreolharam, parecendo achar graça nas pa-lavras do balonista, que, por sua vez, as interrompeu, dizendo:

— É uma longa história, meninas. Estou com muita fome, prometo que conto tudo se me convidarem para o almoço.

— Quer almoçar com a gente? - perguntou, Julia, de imediato.— Sim, obrigado. - respondeu, Lazar.Ao contrário de Velislava, que voltou a se sentar perto da

varanda, e de Boris, que correu até o balão acidentado e pôs-se a estragar o que ainda, por milagre ou providência da sorte, pudesse ter algum conserto, Lazar, Julia e Klara atravessaram a varanda e entraram na casa.

Mas, pouco tempo depois, desconfiada da ausência do cão pastor, Julia se perguntou em voz alta:

— Aonde será que ele foi?— Ele, quem? - Lazar perguntou de volta.— O Boris. - ela respondeu.Saiu da casa para procurá-lo e o flagrou encima do cesto,

mordendo e puxando o tecido amarelo do balão.— Boris, seu malvado! - repreendeu-o, exigindo. - Venha

para cá agora mesmo!O cão pastor protestou com um só latido, mas a obedeceu e

voltou para perto de Julia. Enquanto corria para dentro da casa, a menina ruiva se perguntou o que havia feito de mau para me-recer um cão tão levado e arteiro.

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— Por que será que ele nunca se comporta? - perguntou-se, murmurando. - Não é a toa que é malvado.

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CAPÍTULO 15: O INTERROGATÓRIO

— Não se lembra de nada? - perguntou, Lazar, que, cada vez mais intrigado pelo esquecimento de Klara, insistiu. - Tente se lembrar de qualquer coisa que possa ter acontecido antes de você acordar na clareira.

A pequena búlgara, então, se esforçou para lembrar de al-guma coisa. Fechou os olhos, imaginando-se de volta naquele lugar, mas nada que importasse lhe veio na cabeça.

— Eu não consigo me lembrar de nada. - disse, aflita.Diferentemente de Boris, que o observava de um canto da

sala, e de Velislava, que se sentou perto da porta, Lazar estava sentado de frente para uma mesa, entre Julia e Klara, onde havia um prato oval de porcelana com espigas de milho que ele próprio cozeu.

— Sua vovó foi a primeira pessoa que você viu? - quis saber, o balonista, enquanto garfava uma das espigas cozidas.

— Sim. - Klara respondeu.Ela olhou para Julia, que, ao perceber a agonia no seu

olhar, interveio.— Não precisa ficar preocupada, Klara. - disse, a menina rui-

va, igualmente intrigada pelo esquecimento da amiga. Mesmo

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não externando a preocupação que sentia e com receio de ago-niá-la ainda mais, Julia foi logo prometendo. - A gente vai en-contrar a sua vovó.

— Exatamente. - emendou, Lazar, que, enfim, se deu conta de que a menina verdadeiramente estava sendo sincero quando dizia não se lembrar de nada. - A gente vai encontrar a sua famí-lia. - prometeu. - Não precisa ficar triste, você não está sozinha. Dou a minha palavra que vou ajudá-la. - tranquilizou-a, per-guntando. - Você confia em mim?

Tímida, Klara sorriu discretamente e respondeu que sim. Não era difícil, para ela, confiar em Lazar. A pequena sentia nele a mesma sensação de conforto que sentia em Velislava. Sentia-se acarinhada, cuidada e protegida.

A raposa de fogo, nesse meio tempo, passou ao lado da mesa e se deitou no corredor, bem embaixo do quadro misterioso que havia despertado a atenção de Klara.

— Ela não está mais pegando fogo! - exclamou, Klara.Para o seu espanto, as chamas que Velislava expelia da pela-

gem avermelhada havia, quase que por completo, se apagado segundos antes de chegar no corredor.

— De quem você está falando? - Julia perguntou.— A sua mamãe. - apontou, Klara, a raposa deitada no corredor.Julia, então, se virou e olhou para Velislava afim de saber

sobre o que a amiga se referia.

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— Isso sempre acontece. - disse, com absoluta normalidade. E explicou. - O fogo apaga para ela poder entrar na casa.

— Por que? - Klara perguntou.— Porque assim ela não machuca ninguém.— Não machuca ninguém?— Isso mesmo. - disse, Julia, que voltou a explicar. - O fogo

apaga para ela não queimar a casa e não machucar ninguém.Enquanto conversavam, Velislava olhou fixamente nos olhos

de Lazar. Era como se lhe dissesse algo apenas por telepatia. O balonista, em resposta, fez um discreto aceno com a cabeça e perguntou às meninas:

— Soube que vocês subiram a montanha cigana e conhece-ram o acampamento. Eles são legais?

— Sim. - Julia respondeu.— Eles são muito legais. - emendou, Klara.Lazar as encarou, fingindo surpresa com o que ouviu.— Apesar de ter sobrevoado aquela montanha incontáveis ve-

zes, a bordo do meu balão, só os vi de longe. - comentou, referin-do-se aos anjos ciganos. - Eu não conheço o acampamento e tam-bém nunca estive na montanha. Como eles são? - perguntou.

— A gente também não conhecia o acampamento. - ressal-tou, Klara, explicando antes de dar uma dentada em sua espiga de milho. - Mas eles foram muito legais com a gente.

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— Foi o Pedro que levou a gente até lá. - acrescentou, Julia.Atento, Lazar não escondeu sua estranheza.— Quem é Pedro? - perguntou.— Pedro é um muflão. - Julia respondeu.— Foi ele quem levou a gente ate à montanha. - continuou,

Klara, contentemente. Lembrando-se do banquete servido pelos anjos, revelou ao balonista. - Milosh também é muito legal e a comida cigana é muito gostosa.

Feliz ao ver a alegria estampar-se no rostinho da pequena, Lazar abriu um largo sorriso.

— Enquanto a isso, eu não tenho nenhuma dúvida! - excla-mou, confidenciando. - Minha mamãe é cigana e sempre fez comidas muito gostosas para mim.

Em seguida, o balonista búlgaro deu uma generosa dentada em sua espiga de milho cozido.

— Qual é o nome dela? - perguntou, Klara, curiosa.— Minha mamãe se chama Napolina. - ele respondeu.

Lazar não queria pôr fim à conversa, por isso foi logo per-guntando. - E Milosh, quem é? É algum outro muflão que vocês conheceram?

— Não. - respondeu, Klara, dizendo. - Milosh é um dos an-jos ciganos que a gente conheceu no acampamento.

— Se Milosh foi legal com vocês, que são minhas amigas, mesmo sem conhecê-lo, já o considero meu amigo. - ao dizer, o

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balonista pôs a espiga de milho em seu prato e perguntou des-contraidamente. - Quem mais vocês conheceram?

— A gente conheceu Zita. - respondeu, Julia.— E Zita, quem é?— Zita é a irmã de Milosh. - Klara respondeu.Lazar, de novo, fingiu surpresa ao ouvir a resposta de Klara,

que, por sua vez, emendou:— E ela também foi muito legal com a gente.Ao concluir seu pequeno interrogatório, o balonista

suspirou, dizendo:— Não fazem ideia de como me deixaram ansioso para co-

nhecer esse acampamento.Julia e Klara, em resposta, sorriram para ele.Sem que ninguém notasse, observando a conversa, entediado,

Boris atravessou a porta da sala e disparou até o balão de Lazar. Na medida em que começava a retalhar um pedaço do tecido amarelo com seus dentes pontiagudos, explodiu em euforia.

— Aonde será que ele foi agora? - perguntou, Julia, à amiga, referindo-se ao cão pastor.

— Quem? - Klara perguntou.— O Boris. - disse, Julia.— Eu não sei. - a pequena respondeu.Desconfiada, Julia, então, se levantou da cadeira, parecendo

adivinhar os momentos em que ele aprontava, e foi procurá-lo

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fora da casa. Logo que atravessou a porta da sala, viu-o encima do cesto do balão que havia tombado na queda e o repreendeu:

— Boris, venha já para cá!Em resposta, o cão pastor búlgaro saltou de cima do cesto e

correu ao encontro da menina, trazendo consigo um retalho de tecido que arrancara do balão.

— O que é isso? - quis saber, Julia, ao pegar o tecido. E per-guntou, nervosa. - Onde você o achou?

Mas Boris apenas latiu.Percebendo que se tratava de um retalho do balão de Lazar,

a menina ruiva o encarou, mostrou o que segurava nas mãos e bufou:

— Olha o que você fez, seu malvado!

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CAPÍTULO 16: A DESPEDIDA

— Não está chateado com o Boris? - quis saber, Julia, ao mesmo tempo que encarava o balonista.

A pergunta veio após Lazar conferir os estragos, causados por Boris, no seu balão e não demonstrar qualquer irritação com o que via.

— E por quê eu deveria me chatear com ele? - ao invés de responder, o balonista perguntou de volta. - Boris é um bom cão! - exclamou. - É muito levado, eu reconheço, mas, mesmo assim, é um bom cão.

— O Boris, um bom cão? - visivelmente intrigada, Julia arre-galou os olhos. Logo em seguida, olhou para Klara convicta de que ele não o conhecia tão bem quanto elas o conhecia. Disse para Lazar, referindo-se ao cão pastor. - Ele não pode ser bom. Ele é um grande desastrado e um trapalhão, isso sim.

O ceticismo, rapidamente, daria lugar a uma surpresa. No céu, um ponto roxo, que só se fazia aumentar, chamou a atenção de Boris, que começou a latir e correr ao encontro do balão.

— O que será que ele quer agora? - perguntou-se, Julia, ao ouvi-lo latir. A menina ruiva olhou para cima e viu o ponto roxo, aos poucos, se destacar do céu. - Olha, é outro balão! - exclamou.

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— Sim. - disse, Lazar, afirmando. - É o balão de Doriana.— De quem? - Klara perguntou.— É o balão de Doriana, a minha amada. - respondeu, ele,

em tom apaixonado.Quando o cesto, enfim, tocou o chão, para o indisfarçável or-

gulho das meninas, o balão roxo pousou suavemente, um feito aparentemente impossível para Lazar, que, em suas duas últimas aterrizagens, tivera muita sorte de não se machucar.

Com desenvoltura, a bela balonista saltou para fora do cesto.— Me atrasei? - perguntou, depois de beijá-lo.Lazar respondeu que não, balançando a cabeça.— Enquanto descia, vi alguns rasgos no seu balão. - conti-

nuou, Doriana, perguntando, preocupada. - O que houve?— Digamos que eu tive outra má sorte. - respondeu, Lazar,

com certo constrangimento. - Aliás, não sei o que seria de mim sem você. - desconversou, sorrindo para ela. - Eu estou bem. - garantiu. - Apesar de ter feito uma aterrissagem bastante difícil, estou bem.

— Fico feliz em ouvir isso. - assentiu, Doriana, mais tran-quila. No entanto, ao ver Klara observando-a timidamente, per-guntou. - E a pequena, como ela está?

Queria saber se Klara havia, enfim, reencontrado a sua família.— Ela está bem. - respondeu, Lazar, que, em voz suficiente-

mente baixa para que somente a amada o ouvisse, completou,

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não hesitando em lamentar. - Pobre menina órfã, não tem nin-guém que a cuide.

— Yordanka a abandonou? - perguntou, Doriana, também em voz baixa.

— Sim. - Lazar respondeu. Convicto, ainda disse. - Vamos ter que lavá-la para o vale.

Igualmente convencida de que era o ideal a se fazer, Doriana concordou de imediato.

— Não podemos partir e deixá-la aqui. - sussurrou.No momento em que o casal de balonistas se aproximava das

meninas, Boris se levantou, sustentando-se nas patas traseiras, e lambeu o rosto de Doriana.

— Também senti a sua falta, Boris! - exclamou, a bela ba-lonista, penteando os pelos do animal com os dedos. Ao ver a menina de Gabrovo, cumprimentou-a. - Como vai, pequena?

— Estou bem.— A gente estava brincando com as minhas bonecas. - Julia

foi logo dizendo.— E a gente deu nome para elas. - emendou, Klara.— Deram nomes para elas? - Doriana fingiu surpresa.— Sim. - Klara confirmou.— Quais?— Klara, Julia e Velislava.Doriana sorriu ao ouvir os nomes.

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— Quando eu era pequena, também ficava horas brincando com as minhas bonecas. - confidenciou, carinhosa. E revelou. - Fi-cava tão feliz e despreocupada que sequer percebia o tempo passar.

Surpresas com a confidência, Julia e Klara se entreolharam.— Eu adorava brincar com elas. - continuou, Doriana. - Elas

eram muito bonitas!— Quais nomes você deu para as suas bonecas? - perguntou, Julia.— Uma chamava Branka, a outra, Dana. - a bela balonista

citou os nomes que se lembrava. - Tinha também a Valeska, a Ana e a Vera.

Doriana ficou conversando com as meninas por mais algum tempo, até que Lazar se aproximou e ela, então, decidiu que seguiriam viagem o mais rápido possível.

— Não há mais o que esperar. - disse, a balonista, ao amado, referindo-se à impossibilidade de que Klara pudesse reencontrar sua família. - Partiremos agora mesmo. - concluiu.

Enquanto ela reacendia a chama do maçarico, reaquecendo o ar dentro do balão, Lazar se abaixou na altura de Klara e revelou à menina:

— Tenho uma ótima notícia para lhe dar.— Qual? - Klara perguntou.— Vamos levá-la para a casa. - revelou, o balonista búlgaro.Julia, que vigiava Boris para que ele não voltasse a latir para o

balão de Doriana, encontrava-se suficientemente perto da amiga

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para ouvir, com clareza, o que ela também havia escutado. - Klara não vai querer ir embora. - pensou, torcendo para que a amiga ficasse, para sempre, em sua casa. Sentiu um nó se formar na garganta, além de uma irresistível vontade de expulsar o casal de balonistas de sua casa. A menina ruiva estreitou os olhos para Lazar, mas se conteve e não fez nada.

Limitou-se, apenas, a prestar atenção na conversa.— Eu vou voltar para a minha casa? - perguntou, Klara,

enormemente surpresa com a revelação de Lazar. Sem reação, era como se ela mal pudesse acreditar no que ouviu. - Vai mes-mo me levar para a casa?

— Sim. - respondeu, Lazar, em tom carinhoso. Sem especificar que a levaria para o vale e estranhando a falta de reação da menina de Gabrovo, ele perguntou. - Por que, não quer mais ir para a casa?

Antes de responder, Klara olhou rapidamente para Julia afim de saber se a amiga ficaria triste com a sua partida. Viu nos olhos dela, além de muita tristeza, a mais genuína das solidões. Por mais que a considerasse sua melhor amiga, ainda sentia falta de sua casa, de ouvir as histórias que sua mãe contava antes de dor-mir, e de brincar, em seu quarto, com todas as sua bonecas.

Enfim, inspirando profundamente, a pequena encheu-se de coragem e respondeu ao balonista que voltar para casa era o que ela mais vinha desejando nos últimos dias. Se despediu de Julia.

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— Eu vou ir para a casa. - disse, abraçando-a. - Então, adeus.— Adeus. - murmurou, Julia.Klara voltou para perto de Lazar, que a observava um pouco

mais afastado, e foram até o balão de Doriana. Estava prestes a entrar no cesto, quando olhou para trás e viu a imponente rapo-sa de fogo caminhar majestosamente em sua direção.

— Adeus, Velislava. - despediu-se dela.Em resposta, a fera lambeu as buchechas de Klara, que, por

sua vez, agradeceu, acariciando o focinho da amorosa raposa.— Isso faz cócegas! - exclamou.Sob o olhar atento de sua dona, Boris também se despediu

de Klara. O cão pastor búlgaro, antes que a pequena búlgara saltasse para dentro do cesto, começou a latir como se soubesse que nunca mais a veria.

O difícil e igualmente amargo momento da partida, enfim, de fizera presente. Lazar levantou Klara do chão e a colocou dentro do cesto.

— Podemos ir, querida? - perguntou, Doriana, enquanto re-gulava a chama do maçarico.

— Sim. - respondeu, Klara.O balão de Doriana começou a ganhar altitude rapidamente,

obrigando Lazar, que ainda estava do lado de fora do cesto, a se agarrar numa das cordas e a pular para dentro.

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— Você foi a melhor amiga que eu já tive em toda a minha vida! - gritou, Klara, para Julia, que assistia, com o coração pe-sado, a amiga partir.

— Adeus! - respondeu, Julia.E na ingenuidade de que ainda podia convencê-la a ficar, a

menina ruiva pôs-se a correr atrás do balão.— Não vai embora! - gritava, inutilmente.Já Velislava, nesse meio tempo, pouco parecia se abalar com a

partida repentina da pequena búlgara. Majestosamente e não me-nos serena, ela ficou observando o balão se distanciar do chão.

— Adeus, Boris! - gritou, Klara, para o cão pastor, que, eu-fórico ao ouvi-la, explodiu em latidos e pôs-se a correr atrás do balão juntamente com Julia.

Mergulhando num céu quase sem nuvens, os ventos sopra-ram o balão roxo de Doriana pouco acima das montanhas, onde, por ventura, desapareceu como se nunca houvesse existido.

Raramente se viu, por aquelas terras búlgaras, amizade tão intensa e verdadeira.

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CAPÍTULO 17: VIAGEM INESQUECÍVEL

Um tom alaranjado e incomum iluminava as extremidades do céu na medida em que um Sol generoso se escondia no horizonte.

Klara viajava há horas.— Falta muito para a gente chegar? - ela perguntou ao casal

de balonistas.— Não, querida. - respondeu, Doriana, pacientemente. - Es-

tamos quase chegando.Tinha pressa. Queria, logo, chegar em casa para reencontrar

sua mamãe, enquanto que Doriana parecia achar graça que uma menina tão pequena conseguisse arranjar tantas perguntas.

Klara mal podia imaginar que não estava voltando para Ga-brovo como pensava, mas, sim, para o Vale das Rosas. Sem que-rer, Lazar acabou revelando para onde estavam indo.

— Está curiosa para conhecer o vale? - perguntou, o balonis-ta, de repente.

— Qual vale? - intrigada, Klara perguntou de volta.— O Vale das Rosas. - ele respondeu. E, logo em seguida,

encarou a amada sem esconder seu constrangimento.Não era justo sustentar tal mentira. Klara tinha que sa-

ber a verdade.

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— A gente não está indo para a minha casa? - a pequena perguntou.— Não. - ele respondeu.— Por que?Antes de responder, Lazar se abaixou e olhou diretamente

nos olhos da pequena búlgara.— Porque a sua mamãe não está mais lá.— Aonde ela foi?— Infelizmente, não sabemos. - respondeu, Lazar.Nesse meio tempo, fazendo o mesmo trajeto do balão roxo

de Doriana, dezenas de balões começavam a surgir, deixando o céu mais colorido conforme se multiplicavam.

— Como ele é? - perguntou, Klara, referindo-se ao vale.— Ele? - Doriana a encarou, sem saber a quem ela se referia. -

De quem está falando? - perguntou.— Do vale. - a pequena respondeu.— Imagine um imenso campo de rosas. - em tom de fantasia,

Doriana pediu, respondendo. - Imagine um lugar onde a terra é perfumada e a pressa não governa ninguém; se é que algum dia o tempo governou por lá!

A menina de Gabrovo fechou os olhos, tratando de imaginar uma linda plantação de rosas brancas, e Doriana, enquanto isso, continuou descrevendo o vale:

— Imagine um lugar onde o clima é sempre fresco, agradá-vel, onde o céu nunca perde seu tom azul e, quando escurece,

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é cheio de estrelas. - a bela balonista pediu à menina. - Tente imaginar um lugar onde não exista tristeza.

— Ninguém fica triste no vale? - Klara perguntou.— Não, minha querida. - garantiu, Doriana. - Ninguém.— Por que?— Porque o vale é um lugar muito bonito.Ao vê-la com os olhos fechados e o rostinho absolutamente

encantado, Doriana não conteve sua curiosidade em saber o que Klara estava imaginando. Perguntou:

— O que está vendo?— Eu estou vendo um lago cercado por árvores cheias de

folhas e de borboletas e de passarinhos. - ela foi descrevendo tudo que lhe vinha na mente. - Os coelhos são branquinhos e os gatos e os cachorros estão correndo um atrás do outro, e o céu também é muito bonito. - disse, concluindo. - Têm peixes coloridos, nadando num lago, para a gente dar comida para eles, além de almofadas e bonecas para a gente sentar e brincar o dia todo.

— Não disse que era um lugar muito bonito! - exclamou, Doriana, arrancando um breve sorriso da menina.

Ansiosa, Klara não via a hora de descobrir, com seus próprios olhos, se o Vale das Rosas era tão bonito quanto em sua imaginação. - Como será que ele é? - perguntou-se, silenciosamente. Nesse meio tempo, olhou para fora do cesto e teve uma grande surpresa.

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Viu um anjo, que parecia ser Milosh, se aproximar com certa rapidez.

— Como vai, pequena? - perguntou, o anjo, assim que che-gou perto dela.

Não só parecia ser Milosh, como era ele. Milagrosamente, Klara reencontrou o anjo cigano que pensara nunca mais ver.

— Milosh! - ela explodiu em alegria. - Eu estou indo para o vale. - contou ao anjo, que, por sua vez, voava bem ao lado do cesto.

— Está indo para o vale? - Milosh fingiu surpresa.Ele sabia perfeitamente para onde Klara estava indo, além

de ficar extremamente feliz ao ver a alegria da menina com sua presença.

— Sim. - Klara o respondeu.Lazar e Doriana, ao contrário da pequena búlgara, não de-

monstraram surpresa com a aproximação do anjo. Sutilmente e com ar de aprovação, Doriana olhou para o amado, antes de perguntar para Milosh:

— Não quer se juntar a nós?— Sim, obrigado. - agradeceu, Milosh, que recolheu as asas

no contorno das costas e saltou para dentro do cesto.— Muito prazer, meu nome é Lazar. - pomposo, o balonis-

ta búlgaro apertou a mão do anjo, apresentando-se. - Sou o primeiro balonista da cidade de Gabrovo. - depois, olhou para

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o lado e apresentou a amada. - Essa é minha noiva, o nome dela é Doriana.

— Olá, eu me chamo Milosh. - educadamente, o anjo ci-gano se apresentou ao casal de balonistas. - Como está indo a viagem? - perguntou.

— Bem. - respondeu, Doriana, que voltou a regular a chama do maçarico, administrando, mais uma vez, o ar quente dentro do balão.

Percebendo a alegria e a admiração se estamparem no rosti-nho de Klara, ela foi logo perguntando para Milosh:

— Você é um daqueles anjos ciganos?— Sim. - respondeu, Milosh, perguntando. - Por que?— Porque temos uma amiga que nos falou muito bem de

você. - disse, Doriana, descontraidamente, ao mesmo tempo que olhava para Klara.

Milosh, fingiu surpresa, arregalando os olhos para a pequena búlgara.

— Me elogiou tanto assim? - perguntou.— Aham. - ela respondeu, sorrindo.— De qualquer forma, não sei se mereço os elogios. - acres-

centou, o anjo, modestamente. E minimizou. - Se Klara falou bem de mim, certamente é porquê é muito generosa, não por-quê mereço.

Em resposta, tímida, a pequena voltou a sorrir.

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Percebendo, então, uma crescente curiosidade por sua pre-sença, o anjo cigano foi direto ao assunto.

— Quando soube que estava indo para o vale, fiquei muito feliz. - revelou, ele, para Klara, dizendo. - Vim o mais rápido que pude para me despedir.

O casal de balonistas o ouvia com atenção.— Como soube? - perguntou, Doriana.— Julia me disse. - Milosh respondeu. Sem perda de tempo,

explicou. - Fui até a casa velha, pensando que encontraria Klara por lá. No entanto, quando cheguei, vocês já haviam partido.

— Você seguiu a gente só para se despedir de mim? - pergun-tou, Klara, impressionada com a atitude do anjo.

— Sim, pequena. - respondeu, Milosh. - Ficou surpre-sa? - perguntou.

— Sim. - disse, Klara, que, lembrando-se da amiga que dei-xou para trás, completou. - Julia disse a verdade. A gente está indo para o vale.

— Você é uma menina de sorte! - exclamou, Milosh, garan-tindo. - O Vale das Rosas é um lugar muito bonito.

— Conhece o vale? - Klara quis saber.— Sim. - o anjo respondeu, revelando. - Mas eu era muito

pequeno, por isso, não me lembro de muita coisa.Mesmo com o Sol completamente postado no horizon-

te, ainda havia luminosidade nas extremidades do céu. Klara,

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igualmente encantada com a paisagem noturna e os incontáveis balões a sua volta, se inclinou para fora do cesto e acenou para uma menina que voava a bordo de um balão vermelho.

— Oi! - gritou. - Eu me chamo Klara!A menina, porém, sequer pareceu ouvi-la e o balão vermelho

foi se distanciando lentamente.A noite fazia-se mágica e não havia qualquer nuvem ou estre-

la no céu. Só se viam meninas, balonistas e balões.— Para onde elas estão indo? - perguntou, Klara, pouco tem-

po depois, referindo-se às meninas nos balões.— Para o vale. - Milosh respondeu.— Para o vale?— Isso mesmo, elas também estão indo para o Vale das Rosas.Enormemente contente com o que acabara de ouvir, Klara

olhou para trás, na direção de Lazar, e exclamou para ele:— Aquelas meninas estão indo para o vale!— Exatamente. - o balonista búlgaro assentiu. - Está fe-

liz? - perguntou.— Sim, muito.Não demorou e Milosh, então, se despediu.— Adeus, pequena. - disse, ele, em tom afetuoso, abraçan-

do-a carinhosamente.— Adeus. - Klara respondeu e, enquanto o abraçava, sentiu

que nunca mais o veria de novo.

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Com extrema desenvoltura, o anjo cigano saltou para fora do cesto e escancarou suas asas, planando majestosamente no ar.

— Adeus. - murmurou, Klara, pela última vez, vendo Milosh se afastar e desaparecer ao contornar um balão que era pilotado por uma habilidosa mulher e três meninas russas graciosamente fantasiadas de bailarina.

Já não cabia mais naquele céu qualquer outro balão, tam-pouco tristeza ou desesperança que voltasse a afligir a menina de Gabrovo.

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CAPÍTULO 18: O VALE DOS ÓRFÃOS

Por mais que Klara se esforçasse foi difícil acreditar no que seus olhos enxergavam.

O vale ficava ainda mais belo conforme as estrelas distribuíam-se um pouco acima do horizonte montanhoso e, no céu, uma tonalida-de alaranjada só se intensificava. Tudo era deslumbrante. Não havia o lago com peixes coloridos que a pequena búlgara imaginou existir, porém, enquanto o balão ainda se aproximava, ela se deparou com um rio harmonioso e cristalino, cuja as águas pareciam deslizar sobre a terra, e com uma extensa plantação de rosas brancas e amarelas.

O imenso balão roxo, enfim, pousou.Lazar levantou Klara e a ajudou a saltar para o lado de fora,

onde, sem dizer nada, ficou observando o vale. Só depois, des-pertando-se do encantamento na qual pareceu ter sido tomada, é que Klara olhou para trás e perguntou para Doriana:

— Esse é o vale?— Sim, querida. - respondeu, a balonista, amorosamente.

De dentro do balão, perguntou. - O que achou?— É muito bonito. - Klara respondeu.Numa felicidade que só aumentaria, começou a andar, afas-

tando-se do balão. Não podia ficar parada, só observando, tinha que conhecer cada canto daquele lugar.

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O casal de balonistas permaneceu dentro do cesto. Serenos, limitaram-se a observá-la até que uma menina, que havia de-sembarcado de um balão verde-escuro, se aproximou de Klara.

— Olá, o meu nome é Milena. - se apresentou.Milena aparentava ser mais nova do que Klara. Tinha olhos

azuis, sua pele era naturalmente pálida e os cabelos eram lisos e castanhos. No rosto, seus traços eram absolutamente graciosos.

Longe de serem as duas únicas meninas que desembarcavam naquele vale, dos balões que, antes, cobriam o céu também de-sembarcavam outras meninas.

— Oi, eu me chamo Klara. - timidamente, a pequena búlgara se apresentou à menina de olhos azuis. - Eu vim naquele balão roxo. - disse, ao olhar para trás e ver Lazar e Doriana dentro do cesto. - Eles me trouxeram até aqui. - revelou. - Eles são muito legais.

— Como é o nome da sua mamãe? - perguntou, Milena.Curiosa, queria saber mais sobre Klara, que, sem hesitar, respondeu:— O nome dela é Liza.Nesse meio tempo, enquanto as duas meninas começavam

a se conhecer, Lazar e Doriana decidiram, então, que deveriam partir, deixando Klara no vale. A bela balonista reacendeu a cha-ma do maçarico, aquecendo, mais uma vez, o ar dentro do balão roxo, que pôs-se a subir rapidamente.

Milena se mostrava tão encantada com o vale quanto a pequena Klara.

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— Minha mamãe nunca me trouxe aqui antes. - revelou.— Qual é o nome dela? - perguntou, Klara, que não se en-

tristeceu no momento em que viu o casal de balonistas partir sem se despedir dela.

Encontrara, afinal, uma nova amiga e não havia porquê ficar triste. E também havia chegado no Vale das Rosas, o lugar mais bonito na qual imaginou existir.

Ganhando altitude e como se nunca houvesse existido, o ba-lão de Doriana desapareceu atrás de uma nuvem solitária.

— Minha mamãe chama Zorka. - Milena respondeu a per-gunta de Klara. Graciosa, revelou. - Mas eu não sei onde ela está. Ela desapareceu.

Surpresa, Klara arregalou os olhos. — Você está perdida?— Sim. - respondeu, a menina de olhos azuis. - Por que? -

quis saber.— Porque eu também estou perdida. - respondeu, Klara.— Sua mamãe também desapareceu?— Sim. - respondeu, Klara. Rapidamente, a pequena prome-

teu. - Não se preocupa, eu te ajudo a encontrar a sua mamãe.— Vai me ajudar a encontrar minha mamãe?— Aham. - assegurou, Klara, dizendo. - A gente vai encon-

trá-la. - ela segurou a mão de Milena e, juntas, puseram-se a caminhar pelo vale. - Quer ser minha amiga? - perguntou.

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— Quero. - disse, Milena.Instantes depois, sem que tivessem ido muito longe, Klara e

Milena avistaram uma majestosa raposa de fogo se aproximar de um rio, que atravessava todo o vale, para beber água.

Milena, apavorada, parou no mesmo instante e perguntou:— O que é aquilo?— É uma raposa de fogo. - respondeu, Klara, normalmente.Assim que viu a raposa em chamas, ao contrário da nova

amiga, Klara não teve medo. Lembrou-se vagamente de Gabro-vo, da própria raposa Velislava, da amiga Julia irritando-se com a euforia de Boris, do banquete servido pelos anjos ciganos e de todas as aventuras que viveu desde o momento em que desper-tara, sozinha, na clareira.

— Raposa de Fogo? - Milena se perguntou em voz alta.— Sim. - Klara confirmou.Ainda apavorada, Milena não desviou seu olhar receoso da

imponente raposa. Disse, ela, para Klara:— Acho melhor a gente ir embora.— Não precisa ter medo, ela não é malvada. - Klara a tran-

quilizou. - Ela não vai te fazer mal.— Promete?— Prometo. - disse, Klara.Referindo-se às chamas expelidas da pelagem da raposa, Mi-

lena emendou a pergunta:

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— Ela não se machuca?— Não se machuca... com o quê?— Com o fogo.— Não. - disse, Klara. Ela sorriu para a amiga e explicou. - O

fogo só machuca quem faz mal para ela. Ela só quer ser amiga da gente.

Klara voltou a segurar a mão de Milena. Juntas, se aproxima-ram da fera, que, por sua vez, ao vê-las, se deitou, docilmente, na margem do rio.

— Ela não parece ser malvada! - exclamou, Milena, enfim, se convencendo de que a raposa não oferecia perigo algum.

— Eu te disse que ela não era malvada. - lembrou, a me-nina de Gabrovo.

Iluminadas pelas chamas da raposa de fogo, Klara e Milena bo-cejaram, deitaram-se na margem do rio e adormeceram docemente. Não havia motivos para tristeza. Sentiam-se plenamente felizes.

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Este livro foi composto em Adobe Garamond Pro pela

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