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A MANDRÁGORA NICOLAU MAQUIAVEL 1

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Page 1: A MANDRÁGORA

A MANDRÁGORA

NICOLAU MAQUIAVEL

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É madrugada. A luz ainda permanece acesa. A caminho do campo, os lenhadores e camponeses olham para aquela luz familiar e reconhecem. através da janela, o vulto de um homem frágil e magro. Sua cabeça lembra a de um pássaro: ele escreve incansavelmente, como todas as noites. A gente simples, que todos os dias se levanta antes do sol nascer, reconhece naquele ponto de luz um farol amigo nas noites escuras e frias de inverno.

Ao amanhecer, o infatigável escritor apaga a lamparina, muda de roupa e sai, a caminho do povoado. Não há muito o que fazer em San Casciano. A vida de um exilado político é muito solitária. E, para não mergulhar numa terrível apatia, Maquiavel, desde que chegou à aldeia, em 1513, faz de seus dias e noites um solene ritual. Ávido de notícias do mundo exterior, segue para o albergue local, onde, entre uma partida de truco e um copo de vinho, ouve os forasteiros falarem sobre sua querida Florença. Os limites de San Casciano são muito estreitos, e Maquiavel mal pode reprimir a dor de sentir-se isolado das coisas públicas.

Quando anoitece, o escritor sente-se menos triste. Entra em seu gabinete, despoja-se das roupas de todos os dias e, com gestos lentos e graves, veste-se como se fosse ao encontro de um príncipe ou de um papa. Mas os homens que ele encontra todas as noites são outros dignitários, mais importantes e reverentes: os autores da Antiguidade. Quando toda a casa mergulha no silêncio e na semi-obscuridade, Maquiavel está preparado para viver mais uma solitária porém esplêndida noitada, acompanhado de Tito Lívio, Ovídio ou das personagens de Plauto.

Um dia, por volta de 1518, sem muita vontade de ler ou escrever sobre Política e História, Maquiavel lançou-se à inconseqüente e divertida tarefa de escrever uma comédia: A Mandrágora. Ao terminar, o autor desculpava-se, no prólogo da peça, por escrever essa obra, indigna de um escritor “sábio e grave”. Mas isso não impediu que A Mandrágora fosse considerada uma obra-prima do teatro italiano.

A JUVENTUDE NUM PAÍS TURBULENTO

No ano de 1469, o pintor Sandro Botticelli (1444-1510) obteve em Florença a primeira encomenda importante de Lourenço, o Magnífico (1449-l492); o jovem Leonardo da Vinci (1452-1519) trabalhava com o mestre Andrea Verrocchio (1435-1488) no Batismo de Cristo e Ghirlandaio (1449-1494) ilustrava, em cores douradas, cenas da vida florentina. Nesse magnífico ano do governo de Lourenço de Médici, o grande mecenas, a 3 de maio, messer Bernardo Maquiavel agradeceu à sua mulher Bartolomea por lhe ter dado um primogênito macho e chamou-o de Nicolau. Sobre o menino lançou suas esperanças de que um dia se tornasse um importante magistrado, capaz de projetar outra vez, em Florença, o nome da então decadente família Maquiavel.

Nicolau cresceu entre os livros, pacientemente copiados por seu pai, porque os livros impressos eram ainda muito raros e caros. Na escola, não se distinguiu como aluno brilhante, mas gostava de passar horas intermináveis na biblioteca de sua casa, lendo em latim as Décadas de Tito Lívio (59 a.C. - 17 d.C.). E foi em decorrência do seu entusiasmo pela História que Nicolau Maquiavel se aproximou da importante carreira que o pai tinha sonhado para ele.

Quando Lourenço, o Magnífico, morreu, em 1492, Maquiavel reafirmou sua decisão de tornar-se um homem de Estado, independentemente de quem o governasse. Enquanto aguardava entrar para o serviço público de Florença, assistiu interessado as mudanças políticas de sua cidade: a ascensão do monge Savonarola (1452-1498) , a expulsão da família Médici, em 1494, e a conversão de Florença, a magnífica, na cidade de Deus, onde Cristo era o rei e Savonarola o chefe.

No fim do século XV, Florença não era mais o grande ateliê da Itália e a capital cultural do Renascimento. Savonarola atacava violentamente as manifestações artísticas da época, atribuindo-lhes caráter pagão e demoníaco, e levando boa parte da população a compartilhar da sua fúria iconoclasta. No carnaval de 1497, uma multidão a entoar cânticos religiosos foi até a Piazza della Signoria e, diante da enorme “fogueira das vaidades”, despojou-se de ornamentos, quadros, livros e tudo e que pudesse recordar a magnífica Florença como uma cidade secular.

Antes que os vestígios de seu passado profano fossem definitivamente destruídos, outra fogueira

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se ergueu no ano seguinte na Piazza della Signoria e suas chamas devoraram por ordem do papa Alexandre VI (1431-1503), o monge Savonarola. Em 1498, Nicolau Maquiavel entrou para a Chancelaria florentina, a serviço da República.

No início de sua carreira, Maquiavel foi um mero executor de ordens: como funcionário permanente, era responsável pela correspondência diplomática e desempenhava missões de assessor em algumas embaixadas, junto as quais se revelou um arguto observador político. Seu talento levou-o rapidamente a cargos mais importantes. Com apenas trinta anos foi indicado para segundo chanceler da República florentina.

Não era fácil ser chanceler numa República decadente. No fim do século XV Florença só oferecia instabilidade. A maior parte das manufaturas de lanifício tinham transferido seus capitais para a Inglaterra e nada menos que 33 bancos mudaram suas sedes para Lyon, na França. A Itália compunha-se de pequenos Estados divididos, convulsionados por lutas internas e pressionados por governos europeus mais poderosos. Sem uma liderança que pudesse unificá-la, a Itália parecia sucumbir.

Maquiavel percebia as limitações de seu meio e sabia como era frágil a pequena República de Florença nas relações internacionais. Em 1501 não se surpreendeu quando a França, aliada de Florença na guerra contra Pisa, negou-se a socorrê-la contra as tropas de César Bórgia (1475-1507). Era a confirmação de sua tese sobre a dúvida quanto aos aliados poderosos. E correu para Val de Chiana, ao encontro de Bórgia, que exigia o retorno dos Médicis e um contrato de defensor da cidade. Foi o primeiro contato com aquele que viria a ser o modelo de O Príncipe. Esse encontro suscitou em Maquiavel grande parte de sua produção teórica posterior.

Dois anos depois, quando foi designado para nova missão junto a César Bórgia, Maquiavel compreendeu que esse filho bastardo do papa Alexandre VI era o único homem capaz de unificar a Itália e salvá-la da dominação estrangeira.

Apesar de todo o empenho de Maquiavel em salvar a precária República de Florença, a sua carreira política estava para sofrer um sério abalo. Em 1512, um pequeno levante interno e o apoio das tropas papais foram suficientes para restituir aos Médicis o governo de Florença. Nicolau Maquiavel estava extremamente ligado ao regime deposto para obter os favores da família que assumira o poder. E, apesar de sua disposição em lhes oferecer os seus serviços, foi afastado do cargo e obrigado a permanecer em território florentino, pagando uma caução de 1 000 florins. Como não pôde pagar a fiança, ele foi solto somente quando se decretou uma anistia geral. No ano seguinte, o governo seria menos complacente.

Em fevereiro de 1513, Maquiavel e seu irmão, Bernardo, figuravam numa lista de nomes encontrada em poder de dois conspiradores, Piero-Paolo Boscoli e Agostino Capponi, líderes de um movimento contra os Médicis. Numa manhã glacial, a casa de Maquiavel foi cercada e o próprio chefe da polícia, Bargello, efetuou sua prisão. Sem compreender nada do que se passava, Maquiavel e o irmão foram levados para as masmorras, onde sofreram toda espécie de torturas.

Já estava preso há algumas semanas quando foi despertado por uma movimentação incomum. Os dois conspiradores estavam sendo levados para a guilhotina e proclamavam a altos brados a inocência dos homens que, injustamente, tinham sido presos. Posto em liberdade, Maquiavel foi obrigado a viver confinado em sua casa de campo em San Casciano.

NASCE O PENSADOR

Acompanhado da família, Nicolau Maquiavel chegou a San Casciano em meados de 1513. Para Marieta Corsini, sua mulher, o exílio do seria penoso: pelo menos por alguns anos a família Maquiavel ficaria reunida, o que raramente acontecia em Florença, quando o chefe da casa era o segundo chanceler da República.

Marietta, porém, havia se enganado. Maquiavel passava a maior parte do dia longe de casa e no outono Marieta mal o via. Saia para caçar antes do sol nascer e demorava-se nas tavernas antes de voltar, à noite, para os seus livros.

No povoado, entre a gente humilde, ouvindo suas queixas e problemas, o escritor adquiria uma

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experiência de vida que lhe poderia ser tão útil quanto o seu conhecimento profundo dos autores clássicos. Em contato com a realidade, Maquiavel verificava que a História Antiga ainda estava viva; porque a História era a vida, em sua perenidade de glórias e misérias, feita de contínuas insatisfações e desequilíbrios. Era a lei do mais forte aplicada contra os ingênuos, os tolos, os bons, os virtuosos, os honestos e os crédulos. Os fatos repetiam-se em suas linhas mestras e conhecê-los implicava a posse de um material básico para a compreensão da realidade. Bastava apenas conhecer as particularidades das novas circunstâncias.

No outono de 1513, Maquiavel percebeu que era possível, com base nessas premissas, estabelecer os cânones de uma arte de governar. E, na solidão do seu gabinete, começou a escrever O Príncipe. Em poucas semanas concluiu a obra.

O Príncipe foi mais do que uma tentativa de descoberta de um critério para dominar a realidade. Era um manual de ação política, que não foi usado por aquele a quem foi dedicado — César Bórgia , mas por outros, bastante lúcidos para perceber seu conteúdo inestimável. Henrique VIII (1491-1547) da Inglaterra foi um dos seus mais fiéis seguidores.

Maquiavel sustentava que a fortuna e a virtú eram os elementos mais importantes para a ação de um governante. A primeira corresponderia àquela parte da vida que do poderia ser controlada pelo indivíduo: as circunstâncias. A fortuna., porém, poderia proporcionar a virtú do governante, que saberia determinar, dentro das circunstâncias, o momento no qual sua ação poderia funcionar com sucesso.

O processo político, segundo Maquiavel, estaria além da moral e dos preceitos religiosos. O príncipe virtuoso seria o que soubesse ser bom e mau, traiçoeiro e piedoso, violento e complacente. Porque o Estado deveria estar acima da moral e ser governado em nome dos seus interesses.

Maquiavel não era o príncipe, mas apenas seu apóstolo. O fundador dos Estados não seria um homem qualquer, mas uma personalidade excepcional, capaz de usar meios extraordinários para a organização de reinos e repúblicas. César Bórgia, que tinha todas as condições da fortuna a seu favor, quando esteve próximo de seus objetivos, adoeceu e morreu. Mas ainda restavam para Maquiavel algumas esperanças. No último capítulo do livro ele conclamava a casa dos Médicis a determinar o príncipe virtuoso, apto a fazer da Itália uma nação unificada.

A COMÉDIA: UMA ALTERNATIVA DA SOLIDÃO

Para escrever O Príncipe, Maquiavel interrompera Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio, que só retomaria mais tarde, por volta de 1515. Maquiavel era incansável na tentativa de compreender as razões profundas da crise política italiana, e considerava que os príncipes de seu tempo poderiam mudar sua sorte se imitassem os romanos.

Durante os anos em que, inutilmente, bateu à porta dos Médicis para se reintegrar na vida pública, Maquiavel encontrou alguma compensação para suas tristezas e desenganos, escrevendo obras para divertir o público. Na verdade, suas obras de ficção iriam além da mera diversão. Nelas, o escritor espelhou a mesma concepção amarga e realista, que jamais mascarou em sua produção política e histórica.

Foi no período de San Casciano que Maquiavel tentou pela primeira vez, essas “distrações literárias”. O primeiro resultado foram os Capitoli (Capítulos), escritos em tercetos, provavelmente entre 1514 e 1517. Seguiu-se Asino D ‘Oro (Asno de Ouro), fábula satírica em versos, e uma série de Canti Carnascialeschi (Cantos Carnavalescos), que Maquiavel começou em 1514. Mas suas melhores obras cômicas são a novela Belfagor (O Demônio que se Casou) e as comédias A Mandrógora e Clizia.

A paixão de Maquiavel pelos autores latinos levou-o ao teatro. Andria, sua primeira comédia, baseou-se num tema de Terêncio (185 a.C.- 159 a.C.). Clizia, a última, inspirou-se em Casina de Plauto (254 a.C.-184 a.C.) e foi escrita em 1520, quando o escritor, gozando das boas graças da família Médici, ocupava-se das Histórias de Florença, na qualidade de historiador oficial do governo. Tinha mais de cinqüenta anos e convalescia da paixão por Barbera Salutatti, jovem e bela cantora.

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Clizia, uma comédia muito pouco original, contava a história de um jovem e de um velho, pai e filho, que se apaixonavam pela mesma mulher. Mas, na disputa da donzela, a vitória coube à juventude. Plauto ambientara a peça em Atenas. Maquiavel escolheu Florença. No prefácio dizia, ironicamente, que poucos anos antes, um caso semelhante acontecera na cidade. Fiel a seu costume de rir em meio à dor, Maquiavel zombava de si mesmo, caricaturando-se na personagem do velho.

Escrita depois de A Mandrágora, a melhor comédia de Maquiavel, Clizia apresenta um prólogo que deveria estar com muito mais propriedade em A Mandrógora, unanimemente considerada a melhor comédia do século XVI. Nesse prólogo o autor apresenta sua ars poetica, por meio de conceitos bastante originais sobre arte dramática. Maquiavel revela uma preocupação pouco comum nos comediógrafos da época. ao colocar o aspecto da diversão em segundo plano. A primeira finalidade da comédia seria a de giovare, ou seja, ser útil no sentido prático e espiritual, des-pertando, além do riso, uma atitude crítica, capaz de levar eventualmente a uma escolha ou resolução. Clizia foi a última obra onde Maquiavel deu vida à sua poética. Depois de 1521 não voltaria mais à literatura dramática: estava por demais empenhado na História de Florença e em servir aos Médicis em questões diplomáticas menores.

Em 1527, quando os Médicis foram depostos em favor da República de Nicolau Capponi, Nicolau Maquiavel já estava tão ligado à velha família dos príncipes florentinos que não foi cogi-tado para cargo algum no novo governo. Em vão ele esperou, como leal servidor da República, que o convidassem outra vez para a chancelaria. Recolhido em seu gabinete de trabalho, onde passava a maior parte do tempo, jamais se refez do último golpe. No dia 22 de junho de 1527, morreu, sufocado pela amargura e deixando a família na mais completa miséria. Dois séculos e meio depois, um admirador anônimo escreveu seu epitáfio: Tanto Nullum Par Elogium (Nenhum elogio é demais para este nome).

A MANDRÁGORA: RAIZ DA SEDUÇÃO

A ação de A Mandrógora desenvolve-se em Florença, no ano de 1504. Maquiavel achou prudente situar suas personagens num âmbito político que não fosse o dos Médicis, apesar de a peça não ter nenhuma alusão política.

Calímaco, homem de trinta anos, está de volta a Florença, depois de passar muito tempo vivendo e estudando em Paris. Seu objetivo é apenas o de ver uma mulher, sobre a qual lhe disseram ser a mais bela do mundo: Lucrécia, esposa de messer Nícia, um velho e rico advogado.

Tudo correria bem se Calímaco, defrontando-se com a mulher, não tivesse se apaixonado perdidamente. Mas o acesso de Calímaco ao objeto amado é remoto: Lucrécia, além de casada, é vigiada e virtuosíssima. Desse modo, a esperança para a paixão de Calímaco vai ser encontrada num problema do casal: messer Nícia e Lucrécia sofrem imensamente pelo fato de não terem fi lhos. Correm então de médico em médico à procura de conselhos e ajuda. Em Florença, todos comentam o fato.

A partir dessa informação, tece-se a intriga: Calímaco, ajudado por seu amigo Ligúrio, um parasita, e com a cumplicidade de um religioso sem escrúpulos, frei Timóteo, consegue alcançar o seu objetivo: seduzir Lucrécia.

Ligúrio apresenta Calímaco a messer Nícia como um grande especialista francês que descobriu virtudes de fertilidade numa raiz — a mandrágora —, com a qual conseguiu fazer uma poção infalível. Não fora por ela — diz Ligúrio — “a rainha de França seria estéril e, assim, um sem número de outras princesas daquele país”.

Mas o falso médico assegura ao ingênuo marido ser necessário tomar algumas precauções, pois o primeiro homem a ter contato carnal com a mulher que ingeriu a poção absorve o veneno e morre em oito dias, Messer Nícia hesita e pergunta a Calímaco o que fazer para não morrer. A resposta já estava de antemão preparada: na primeira noite o esposo podia ser substituído por um vagabundo qualquer, o que não seria difícil encontrar. “O primeiro jovem vagabundo que, à noite, encontrarmos no mercado, o empacotaremos e, à força de pancada, o levaremos para casa de V.

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Mercê. Assim, na escuridão, ele fará o serviço.” Nícia concorda imediatamente. Mas quem convencerá a piedosa e fidelíssima Lucrécia?

Para forçar sua decisão concorrem Sóstrata, sua mãe, persuadida por Ligurio. e o confessor de Lucrécia, frei Timóteo. Diz a mãe, procurando infundir coragem à filha: “Deixa-te persuadir. . . Não estás vendo que uma mulher que não possui filhos também não tem casa? Se por acaso lhe morrer o marido, ela ficará como um animal: ninguém mais quer saber dela”. Diz lhe o confessor: “Há muitas coisas que de longe parecem terríveis, insuportáveis, estranhas: entretanto, quando a gente se aproxima delas, tornam-se humanas, suportáveis, familiares: por isso, diz o ditado que são piores os receios do que os males pelos quais a gente receia. Timóteo demonstra-lhe, com toda a lógica, que Lucrécia não cometerá nenhum pecado.

Aprovada até pelos céus, Lucrécia aceita finalmente a idéia, mas com alguma repugnância. A noite, quando descobre Calímaco no vagabundo disfarçado, Lucrécia, mulher “sábia, honesta e apta a governar um reino, apenas observa: “Desde que a tua astúcia, a estultice do meu marido, o simplismo de minha mãe e a malandragem do meu confessor me levaram a fazer o que, por minha vontade, nunca teria feito . . .eu te aceito como senhor, dono e guia: tu serás o meu pai, o meu defensor e quero que tu sejas todo o meu bem . . . E aquele que meu marido quis me tivesse por uma noite, eu desejo tê-lo para sempre.. . . e ele poderá vir e ficar comigo, sem suspeita alguma, quando quiser de agora em diante”. Calímaco não deu a Lucrécia nenhuma poção de mandrágora, mas um copo de hypocrás, que serve bem para dar energia ao estômago e tornar alegre a mente.

A Mandrógora foi representada pela primeira vez em 1520, na casa de Bernardino di Giordano, com os atores da Compagnia della Cazzuola, numa montagem de cenários suntuosos. O sucesso foi estrondoso. Em 1522, em Veneza, a sala estava de tal forma lotada, e era tão grande o entusiasmo do público, que os atores não conseguiram terminar a representação. Na apresentação em Roma, diante do papa Leão X, o sucesso foi total. Numa época em que a regra dramática era a imitação dos clássicos, o público se sentiu atraído por essa peça de conteúdo extremamente inovador. A mesma gargalhada continua sonora, expandindo-se através dos séculos, e repete-se até nossos dias.

O Brasil já assistiu a várias Mandrágoras desde 1963. Essa primeira apresentação foi no Teatro de Arena de São Paulo, com cenários e figurinos de Paulo José, música de Damiano Cozzela e Ari Toledo e a direção ágil de Augusto Boal, Juca de Oliveira interpretou o velho Nicia; Isabel Ribeiro fez uma esplêndida e recatadíssima Lucrécia; Paulo José interpretou Calímaco; Gian-francesco Guarnieri, seu amigo Ligúrio; Fausi Arap, o oportunista frei Timóteo.

A mais recente encenação brasileira foi realizada em 1975, no Teatro Casa Grande do Rio de Janeiro, produzida e dirigida por Paulo José. Nessa versão, ele interpretou Ligúrio e Ney Latorraca, Calímaco; Dina Sfat representou uma obediente e astuta Lucrécia, e Lafayette Galvão, seu tolo marido: Tony Ferreira interpretou frei Timóteo e Telma Reston, depois substituída por Nélia Paula, Sóstrata, a cúpida mãe.

Em nossos dias, as platéias riem de A Mandrágora certamente de maneira diversa das primeiras apresentações da peça. Há quem afirme que e primeiro público da comédia não tinha condições para apreender a essência da obra, pois, se o tivesse, não teria rido, mas entrado em pânico. Porque Maquiavel atingia profundamente aquilo que se constituíra durante séculos no eficaz instrumento do poder temporal da Igreja: a virtude. Em A Mandrágora, a virtude é totalmente desmoralizada.

A comicidade imediata e viva da comédia de Maquiavel nasce da figura de messer Nícia que, embora seja o “mais simplório e insosso dos homens de Florença”, deseja ser astucioso num mundo de astuciosos maiores. Em nenhum momento, messer Nícia percebe ser vitima de qualquer embuste. Nem tampouco no final, quando nas comédias, usualmente, os nós da intriga se desfazem e as máscaras dos que agiram mal caem por terra. Maquiavel utilizou esse recurso dramático porque queria mostrar um mundo cínico e impiedoso, onde a vitória nem sempre cabe aos bons, mas geralmente aos mais espertos.

A personagem de messer Nícia, em alguns momentos patética, é o fio condutor da ação. À medida que a platéia vai-se dando conta da estupidez de Nícia, a gargalhada do público cresce, e fica claro que é por meio da estultice de um marido que todos os malandros da história vão lograr o seu intento. Calímaco, por sua vez, está muito longe de ser um daqueles apaixonados da comédia

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quinhentista, que se pareciam mais com autômatos do que com seres humanos. Ele possui uma personalidade diferenciada e vontade própria; seu lado cômico consiste na falta de proporção entre suas palavras grandiloqüentes e seu temperamento calculista. “Melhor morrer do que viver assim”, diz ele, refletindo um tormento — mas o tom da sua paixão não é suficiente para que ele perca a lucidez.

Lucrécia está sempre envolta numa quase penumbra. E é justamente nessa posição, passiva, apenas padecendo e aceitando tudo, que a figura da desejável mulher assume extraordinária efi-cácia. Imagem de um pietismo oco, Lucrécia foi esposa fiel mais por obediência a normas religiosas e sociais do que por convicção. Porém, é precisamente na virtude da obediência que Lucrécia encontra a satisfação de um amor adúltero. Reluta em submeter-se a uma situação constrangedora e algo pecaminosa, mas elevada por sua própria virtude aos braços de Calímaco, nos quais reafirma sua vontade de continuar: “. . .não posso recusar aquilo que o céu quis que eu aceitasse”, O céu, no caso, é frei Timóteo, o tipo do religioso sem escrúpulos, disposto a usufruir de sua condição de mentor espiritual para conseguir toda a sorte de vantagens. Por meio dele, Maquiavel dirige sua crítica violenta aos costumes imorais dos eclesiásticos de seu tempo. Frei Timóteo justifica-se, e atribui a responsabilidade de suas ações àquele diabo do Ligúrio”, mas Ligúrio, o parasita, não é mais vil que as outras personagens.

Ligúrio surge na peça não como um tipo que normalmente aparece nas comédias com o objetivo de servir de elemento de ligação cênica, para que os fatos tenham seqüência e se coordenem devidamente. O parasita de Maquiavel urde a intriga, num exercício de astúcia, porque por intermédio dela consegue conduzir como marionetes, homens e acontecimentos. Sua paixão por esse poder, maior do que sua lealdade a Calímaco, confere-lhe autonomia e vida própria no desenrolar da ação.

Há dois pólos claros em A Mandrágora: Nícia e Lucrecia. Entre eles operam as personagens intermediárias, que agem e reagem num movimento lento, Compassado, calculado desde o início. A organicidade da comédia está na obediência de cada personagem a seu papel individual e à atuação que lhe cabe no âmbito geral do grupo em que operam harmonicamente.

Além de ser a mais bela das comédias do século XVI, A Mandrágora, também foi aquela que abriu mais perspectivas de modernidade Nesse sentido, ultrapassa um dos seus múltiplos aspectos, que é o de ser, entre outras coisas, uma sátira impiedosa a certos tipos sociais e humanos de determinada época. Até então a maior parte das comédias, qualquer que fosse seu tema, concluía com um casamento: A Mandrágora subverteu a situação e instaurou o propósito de uma fidelidade adúltera.

Muitas qualidades fazem de Aandrágora uma obra eterna; mas talvez a mais significativa seja o fato de Maquiavel Ter nela apresentado o retrato de uma realidade acima de qualquer intenção moralista. Convencido de que o mundo não pode ser mudado, o artista Maquiavel se compraz em dar cores aos detalhes dessa realidade, abordando-a ora isenta e friamente, ora com profunda amargura. Acima de qualquer exigência ética convencional, o dramaturgo reconhece uma moral utilitária, na qual ao bom e ao justo não cabe corrigir o mal, mas apenas defender-se dele. Como dramaturgo, Maquiavel repetia o comportamento e a postura do pensador político.

Papas, cardeais, reis e príncipes riram de A Mandrágora, deleitando-se como Maquiavel desejava. Mas, sem saber, riram de si mesmos, porque o tipo cômico de Maquiavel nasceu naquele meio social. Os contemporâneos não compreenderam que sob aquela gargalhada estava a amargura de quem, com o rosto tenso, assistia ao fim de uma época. Maquiavel era o arauto de uma nova época: tudo o que escrevera em muitos e difíceis tratados sobre política, condensara numa comédia.

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PERSONAGENS

CALÍMACOSIRO

DOUTOR NÍCIALIGÚRIO

SÓSTRATAFREI TIMÓTEOUMA MULHER

LUCRÉCIA

(A cena se passa em Florença.)

CANÇÃOOlha, a vida é muito curta! Como são inumeráveis as dores que todos nós suportamos sobre

o peso desta dura existência! Aproveitemos, então, estes poucos anos, mais brandos, aos chamados dos nossos desejos. Aparentemente, aquele que se priva do prazer não conhece as decepções do mundo. Não sabe debaixo de que desgraças, debaixo de que estranhas fatalidades estão oprimidos quase todos os mortais.

Vamos fugir destas desgraças. Cada um procure embelezar os seus momentos com bastante alegria e bastante festa. Por isso, nós atores, estamos aqui para curtirmos este som legal, para rirmos com satisfação e nos alegrarmos com a presença de vocês.

Além disso, o que nos traz aqui é o nome daquele que nos governa: Nele resplandecem todos os bens que se vêem reunidos na cabeça do Eterno. Nós, cumulados desta suprema delicadeza, entre tantas felicidades nos alegramos, estamos contentes e agradecemos àquele que nos deu tanta felicidade.

PRÓLOGO– Querido auditório – Deus vos guarde – e que sua bondade esteja de acordo com o nosso

desejo: que é o de agradar. Se vocês nos ouvirem, nós vamos contar uma história que acabou de acontecer neste país. Olhem o cenário – é Florença. Poderia também ser Roma, Pisa. . . Vocês vão se esbodegar de rir!

Esta porta à minha direita é da casa de um doutor que aprendeu leis com paciência de corno manso.

Naquele canto é a rua do Amor – onde quem cai uma vez não se levanta mais. Se vocês agüentarem mais um pouco, vocês vão conhecer, vestido de frade, o abade que mora naquela igreja.

O jovem Calímaco Guadagni, recém chegado de Paris, mora naquela porta à esquerda. No meio de seus companheiros ele deu provas de ser machão. Apaixonou-se por uma jovem distintíssima, da alta sociedade. Vocês vão ver o que ele fez para seduzi-la. É, minhas senhoras, gostaria que vocês fossem seduzidas da mesma forma que ela.

A peça se chama Mandrágora. Por que? Vendo a peça, garanto que vocês vão compreender. O autor não é um homem famoso. E se vocês acharem graça, não precisam botar nada na caixinha. Eis o divertimento para hoje: um amante desesperado, um doutor imbecil, um monge corrupto e um parasita, filho da malícia.

E se vocês acharem o assunto muito banal e indigno de um homem que quer parecer sábio e grave – desculpem. O pensamento do autor é aliviar seus dias de dor porque ele não sabe para onde olhar: foi proibido de mostrar o seu talento em outros trabalhos, e ser por eles recompensado. A única recompensa que ele tem, é que cada um interprete como quiser e faça a crítica que quiser.

É por causa desta triste mania de proibir tudo, que atualmente se degenera tudo aquilo que antigamente era virtude. Ninguém faz mais nada. E perdem-se obras que seriam capazes até de abrir os horizontes.

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Entretanto, se algum de vocês, censurado o autor, imaginava dar uma rasteira, apavorá-lo ou fazê-lo desistir do trabalho – eu aviso, que o autor também sofreu porque sabia criticar.

Porém, no mundo inteiro deve-se respeitar os que vestem os melhores casacos.Mas deixemos a censura para quem quiser fazer. Voltemos à nossa estória. Não é preciso

tomar as palavras ao pé da letra, nem transformar em monstros coisas pequeninas.Fiquem atentos, e não façam perguntas.

ADVERTÊNCIA

A canção para ser dita antes da comédia e posterior à própria comédia e foi escrita tão-só para fornecer ocasião, no inicio do espetáculo, à exibição das artes de uma dançarina. Por isso mesmo, em nosso tempo, que dispensa esse tipo de divertimento suplementar, ela é normalmente suprimida nas representações da peça. No original, o Prólogo e as Canções para os finais dos atos são rimados. Para manter-se o mais fiel possível ao pensamento do autor, preferiu o tradutor recorrer ao verso branco, que lhe dava maior possibilidade de não afastar-se desse pensamento. Contudo, para o caso de uma eventual representação da obra, resolveu fazer também versões rimadas e, naturalmente, mais livres, quer do Prólogo, quer das Canções depois dos atos; poderá o leitor encontrá-las no fim da comédia, imediatamente antes das notas destinadas a ilustrar alguns pontos do diálogo.

Mário da Silva

PERSONAGENS

CALÍMACOSIRO

MESSER NÍCIALIGÚRIO

SÓSTRATAFREI TIMÓTEOUMA MULHER

LUCRÉCIA

A cena desenrola-se em Florença

CANÇÃO

para ser dita antes da comédia,cantada conjuntamente por

ninfas e pastores

Posto que a vida è breve e muitas são as penas que vivendo e lidando se padecem, seguindo nossas ânsiasvamos passando e consumindo os anos,pois do prazer privar-se, p’ra viver em afãs e af1ições,é ignorar os enganos

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do mundo ou por quais males e estranhos casos sejam tiranizados todos os mortais. P’ra fugir desta angustia., erma existência em bosques escolhemos e sempre em gáudio e festas vivemos, belos jovens, ledas ninfas. Agora aqui viemos, com a nossa harmonia, só para honrarmos esta tão bela festa e alegre companhia.Ainda aqui nos trouxea fama do senhor que vos governa,cujo eterno semblanteacolhe em si todos os bens da terra.Por tal supernal graça,por tão feliz estadoufanar-vos podeis,gozando, e agradecer quem vo-lo deu.

PRÓLOGO

Que Deus vos salve, ouvintes meus benignos, pois depender parecedo agrado que eu vos der essa bondade. Se guardando silêncio vos seguirdes,conhecer podereisnovo caso surgido nesta terra. Atentai no cenário,tal como se apresenta:esta é a nossa Florença(de outra feita ser a ou Roma ou Pisa);e a coisa é de se morrer de riso.

Esta porta que fica à minha destra é a casa de um doutor,que aprendeu muitas leis lendo Boiécio.Aquela rua que vedes lá na esquina é a Rua do Amor,onde quem cai não se levanta mais. Conhecereis depois,pelo trajo de um frade, qual abade ou priormora num templo que está posto em frente,se não fordes embora antes do tempo.

Um mancebo, Calímaco Guadagni.que chegou de Paris, mora acolá, naquela porta à esquerda. Entre os demais alegres companheiros, traz ele claras marcas

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do primado no garbo e no donaire. Uma jovem prudente Acendeu-o de amore, por isto, enganadafoi, tal como ouvireis; e eu desejaraque enganadas corno ela fôsseis vós.

A comédia intitula-se A MANDRÁGORA;por quê, Isso diráa representação, tenho certeza. Não desfruta o autor de muita fama; se não rirdes, no entanto, aceitara pagar-vos um bom trago. Um amante infeliz, um doutor pouco astuto, um frade de má vida, um parasito fértil em malícia, hoje serão o vosso passatempo.

Se julgais o assunto pouco digno, por leve em demasia, de quem pretende ser crave e sisudo, perdoai-o, por isso que se empenha,nesses vãos pensamentos,em mais brando tornar seu triste tempo. pois não pode voltarseu rosto a outra parte. vedado que lhe foi o talento mostrar noutras façanhas e obter o galardão dc tais fadigas.

O galard~io que espera e cada qual fazer chacota a um cantoe maldizer de tudo o que ouve ou ve. Essa é. decerto, a causa pela qual de todo degeneradas antigas virtudes nosso secuh):pois, imperando em tudo maledicéncia e critica. ninguém se esforça ou anseta. com sacrif5cios mil, por fazer obra que o vento leve ou o nevoeiro encubra.

Porém, se alguém julgasse. malsinando o. fazer calar se o autor.assustã lo ou forçã lo a retirar se. previno-o de que ele também sabe criticar outrem, pois esta foi a sua arte primeira. e que, onde quer que ccoe a itálica língua.a ninguém ele estima, ainda que o vejais fazer de servoa quem manto melhor que o dele traja.

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ATO I

CENA I

CALÍMACOEspere um pouco, Siro. Eu tenho umas coisas pra te dizer.

SIROSim senhor.

CALÍMACOEu estou percebendo que você está muito espantado de eu ter partido tão rápido de Paris. E também se espanta de eu estar aqui há um mês sem fazer nada.

SIROÉ mesmo.

CALÍMACOSe até agora não te disse nada, não é porque eu desconfie de você, em absoluto. Eu acho que os segredos só devem ser ditos na hora em que se precisa. E eu preciso de você – por isso vou contar.

SIROEu estou aqui para isso. É obrigação dos criados não fazer perguntas e não se meter nos casos – mas quando os patrões querem, nós temos de ser fiéis e servir. Sempre fiz assim e farei sempre.

CALÍMACOEu sei disso. Você já ouviu isso uma porção de vezes: fiquei órfão ainda criança, meus tutores me mandaram para Paris e fiquei lá 20 anos. Eu já estava há 10 anos lá, quando começaram as guerras na Itália, com a entrada do rei Carlos. E isso arruinou o país. Foi então que resolvi me fixar em Paris. Não quis voltar mais para minha terra. Lá eu me sentia muito mais seguro.

SIRONa verdade, o senhor já tinha dito.

CALÍMACODei ordens de vender aqui todos os meus bens, menos minha casa. Preferi então ficar na França, onde vivi outros dez anos – os mais felizes da minha vida.

SIROSei disso.

CALÍMACODividi meu tempo em três partes: estudos, prazeres e negócios. As coisas caminhavam tão naturalmente, que uma não atrapalhava a outra. E desse modo eu vivia tranqüilo, atendendo aos três serviços. Posso me dizer amigo de todos: tanto do burguês como do nobre, do estrangeiro, do francês, do pobre e do rico. Enfim, preocupado somente em não magoar ninguém.SIROÉ verdade.

CALÍMACODe repente acabou-se o que era doce. Que azar! Chegou a Paris um tal de Camilo Calfucci. Que droga!

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SIROComeço a perceber o seu mal.

CALÍMACOComo todos os florentinos, ele ia freqüentemente jantar comigo. E um dia, em que por acaso o assunto era mulher, houve uma discussão para saber onde estava a mais bela: se na Itália ou na França. E como eu não podia falar das italianas – eu era guri quando saí daqui – um outro florentino ficou do lado das francesas, e depois de muita briga, Camilo, já chateado, gritou que mesmo que todas as mulheres italianas fossem um bucho – havia uma parenta sua que sozinha salvava a reputação da classe.

SIROPronto! Já sei onde vai chegar.

CALÍMACOE falou de Lucrécia, mulher do Dr. Nícia Calfucci. Ele pintou sua beleza e seu charme com tais cores que ficamos empolgados. Eu então senti um desejo tão grande de vê-la, que deixei de lado todos os outros interesses. Me mandei pra cá, E sabe? Por incrível que pareça, a fama da mulher ainda fica a dever muito à verdade. Pô! Eu já estou tão tarado pela dona que já nem sei mais o que fazer.

SIROAh! Se você tivesse me dito em Paris, eu sabia o que aconselhar. Mas agora não sei o que dizer.

CALÍMACOEpa! Que que é isso?! Eu não fiz confidências pra receber seus conselhos. Foi pra me desabafar e pra você por mãos à obra em me ajudar.

SIROEstou às suas ordens. O senhor está com boas perspectivas?

CALÍMACOPorra nenhuma. . . ou quase nenhuma. Tudo é contra mim: pra início de conversa, a natureza dela, que é de total honestidade e torce o nariz para o amor. Depois, o marido, riquíssimo, que só faz o que ela quer. E tem mais: o marido não é muito jovem, mas também não está gagá. Além disso, ela não tem parentes, nem vizinhos, não dá festinhas – vive trancada. Não entra lá um operário, uma empregada, um criado que não fique tremendo de medo da autoridade dela. De modo que não há nenhum caminho aberto para a sedução.

SIROO que é que o senhor quer fazer então?

CALÍMACONada na vida é impossível. Sempre há uma esperançazinha, um buraco de entrada. É preciso só desejar no duro!

SIROAfinal, quais são os buracos?

CALÍMACOEu tenho dois. Um é a simplicidade do Dr. Nícia, que embora doutor, é o homem mais panaca e bobo de Florença. O outro, é o desejo danado que eles têm de filhos. Estão casados há seis anos, são

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podres de rico e querem filhos como herdeiros. E tem mais: a mãe de Lucrécia foi cafetina. Agora virou rica e distinta. É meio difícil de se chegar até ela.

SIROAfinal você já tentou alguma coisa?

CALÍMACOJá. Um pouco.

SIROQue foi?CALÍMACOVocê conhece Ligúrio, né? Aquele que vem jantar todos os dias comigo. Antigamente era casamenteiro, um Santo Antônio dos pobres. Agora sua profissão é filar jantares. E como ele é muito envolvente e charmoso, o Dr. Nícia se entrosou muito com ele. Ligúrio passa-o pra trás, e embora não vá comer sempre lá, consegue lhe dar umas boas facadas. Eu me entrosei com ele e contei o meu amor. Ele me prometeu ajudar em tudo.

SIROCuidado com ele! Não é bom confiar muito nesses tipos safados.

CALÍMACOTem razão. Se ele tem algum interesse – passa a ser fiel. Eu lhe prometi uma boa nota. E se ele não conseguir nada – continua a comer comigo. Detesto comer sozinho.

SIROMas afinal, até agora, o que Ligúrio prometeu fazer?

CALÍMACOEle me prometeu convencer Dr. Nícia levar a mulher para tomar uns banhos numa estação de águas.

SIROE de que adianta isso pra você?

CALÍMACOO que que adianta? Puxa, Seria o ideal pra mim – lá só dá transas. Eu usaria todo o meu charme, faria tudo pra agradar e devagarinho ia me intrometendo na intimidade dela e do marido. Uma coisa puxa a outra, você sabe. É só dar tempo ao tempo.

SIROGenial!

CALÍMACOHoje de manhã, Ligúrio me disse que ia conversar com o Dr. Nícia sobre o assunto, e depois me contava tudo.

SIROOlha lá os dois.

CALÍMACOVá, vá embora! Eu fico aqui. Quero segurar Ligúrio depois da conversa dos dois. Vá cuidar de sua vida. Se eu precisar, te chamo.

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SIROEstá bem.

CENA II

NÍCIAEu acho que os teus conselhos valeram. Já falei com minha mulher, ontem à tarde. Ela me disse que daria a resposta hoje. Mas pra falar a verdade, eu estou achando isto um saco!

LIGÚRIOPor que?

NÍCIA Eu não gosto de mudar de campo – meu jogo é aqui. Levar mulher, empregado, bagagem – ih! Não dá. E depois eu falei com vários médicos. Cada um dá um palpite diferente. Uns acham que a ferruginosa é a melhor. Pra outros, é a radioativa – ah! merda. Esses médicos do unificado são uns bostas, não sabem nada.

LIGÚRIONão é isso que te chateia não! Foi o que você me disse antes. Você é minhoca da terra – é um jogador que não sabe jogar em outra posição.

NÍCIAVocê não sabe o que está dizendo. Quando eu era jovem farreei à beça. Ia a tudo quanto era feira, visitei todos os lugares, viajei muito, fui a tudo quanto era festa. Eu, eu mesmo!

LIGÚRIOEntão você já ficou atrás da torre empinada de Pisa?

NÍCIAEmpinada? Você quer dizer enclinada.

LIGÚRIOÉ. Enclinada. . . e você já viu o mar?

NÍCIAClaro que já vi.

LIGÚRIOÉ maior que um rio?NÍCIAClaro! Umas quatro vezes maior. . . não, seis. . . não, mais de sete. . . ih! Deus me livre! Nem sei. Sabe de uma coisa: só se vê água, água e mais água.

LIGÚRIOEntão, você que já mijou em tanto lugar, por que tanta frescura em fazer uma estação de água?

NÍCIAVocê parece criança! Pensa que é fácil viajar com a merda da família inteira! É, mas sabe, você tem razão – valia a pena – tenho tanta vontade de ter um filho. . . quem sabe as águas não resolvem a

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parada. Vá você conversar com os médicos e pergunte qual o melhor lugar pra isso. Eu falo de novo com a minha mulher. Depois a gente se encontra.

LIGÚRIOFalou.

CENA III

LIGÚRIOQue babaca! Não existe homem mais babaca que esse – e sortudo. É rico, tem uma mulher bonita, boa, inteligente, virtuosa – uma dona capaz de governar o mundo inteiro. Deus faz os homens e eles se acavalam. Pois é: agora acredito – raramente se vê nos casamentos realizar-se o provérbio: “Cada um tem o que merece”. Taí: um homem de mérito escolhe uma burra; enquanto uma mulher inteligente tem um babaca inteligente pra marido. Dessa babaquice a gente vai se aproveitar. Ei, que que há? Calímaco, está me vigiando?

CALÍMACOTe vi com o doutor, estou aflito pra saber as novidades.

LIGÚRIOVocê sabe como ele é chato – não resolve nada. Não quer se animar a viajar. Mas conversei o homem e ele está disposto a fazer o que eu quero. Pelo menos eu acho que está. Basta a gente querer, que se carrega todo o mundo pras águas. Mas eu não sei se é este o melhor golpe.

CALÍMACOPor que?

LIGÚRIOSei lá. Muita gente vai a esses banhos – alguém pode agradar mais à Lucrécia do que você. Ter mais dinheiro, mais charme. Você vai se arriscar muito. Pode acontecer dela ficar durona com o maior número de rivais, ou então dela abrir pra outro.

CALÍMACOÉ, você disse o negócio certo! E agora, o que que eu faço? É preciso tentar alguma coisa – mesmo perigosa. Dê no que der. Prefiro morrer do que viver assim. Não agüento mais: não consigo dormir, não tenho fome, estou numa fossa danada. Se não tem mesmo remédio, e nada me dá esperança – eu sou um homem morto. Morrer por morrer. . . vale a pena me arriscar a tudo. Não agüento mais, estou desesperado.

LIGÚRIOEi! Calma! Sossega o facho.

CALÍMACOSó sossega de um jeito, e eu não consigo ter nenhuma outra idéia. Por isso eu acho que devemos insistir na estação de águas. Ou então bolar outra coisa, que me dê esperança, que me console, que me faça acreditar na vida, que acabe com os meus tormentos.

LIGÚRIOTá bom. Eu vou ver.

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CALÍMACOAcho bom! Sei muito bem que pessoas do seu tipo vivem explorando os outros, fazendo trapaças. Claro que não é o teu caso. Entretanto é bom ficar avisado – se eu descobrir que você está me enganando, você não põe mais os pés na minha casa e pode perder a esperança – não vai receber um tostão do que te prometi.

LIGÚRIONão duvide de mim! O que é que há? Mesmo que não ganhe nada, faço isso porque tenho muita simpatia por você. Os teus desejos são os meus. Bom, vamos deixar isso de lado. O doutor me encarregou de procurar um médico para dizer qual é a melhor das águas. Você vai ser este médico. O resto deixa por minha conta. Você vai dizer que fez o curso de medicina, praticou em Paris. Como ele é muito trouxa vai cair direitinho. E já que você é culto, fale algumas frases em latim. Impressiona!

CALÍMACOE isso vai servir pra que?

LIGÚRIOVai servir pra mandar o velho aos banhos que nos convém, ou então pra executar um outro plano que já pensei. E na minha opinião será muito mais fácil e certo que os banhos.

CALÍMACOO que é que você tá querendo dizer?

LIGÚRIOQue se você tiver um pouco de coragem e alguma confiança em mim – amanhã por estas horas o teu caso estará liquidado. Mesmo que o doutor fosse homem (coisa que não é) de fuçar pra descobrir se você é mesmo médico – a falta de tempo e a própria natureza do plano farão que ele não duvide de nada. A idéia é tão boa que ele não terá chance de nos atrapalhar, nem que tenha alguma dúvida.

CALÍMACOPuxa! Você me deu alma nova! Olha que é uma promessa da pesada, que me enche de esperanças loucas. Como você vai fazer?

LIGÚRIONa hora H você saberá. Agora é inútil dizer. Não vamos ficar batendo papo e perder o tempo de agir. Vá pra casa e me espere. Eu vou procurar o doutor. E quando chegar com o velho – fique atento no que eu disser e concorde comigo.

CALÍMACOEu não faltarei. Estou tão cheio de esperança que tenho até medo de tudo se evaporar.

CANÇÃOAquele que jamais experimentou tua irresistível força, amor, espera em vão ser testemunha

do que existe de mais delicioso no céu. Não sabe como se pode viver e morrer ao mesmo tempo. Como se vai ao encontro da infelicidade e se foge da felicidade. Como se ama o outro mais que a si mesmo. Como freqüentemente o medo e a esperança gelam e acabam com o coração. E ignora enfim, como os deuses receiam da tua força – oh! Amor.

(Fim do Ato I)

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ATO II

CENA I

LIGÚRIOComo eu te disse, acho que foi Deus que nos mandou este homem para realizar todos os seus desejos. Ele fez em Paris pesquisas curiosíssimas. . . e não se espante dele não praticar aqui em Florença: é muito rico e pretende voltar para Paris.

NÍCIADroga! Isso não me interessa! Eu não quero é que ele me passe pra trás, dê no pé e me deixe enrabado.

LIGÚRIOQuanto a isso não se preocupe. Pode acontecer somente que ele não se interesse pelo teu caso. Agora, se ele aceitar, só larga depois da cura feita.NÍCIANisso eu confio em você. O que eu quero saber é se ele é um homem de eficiência. Basta ele dizer duas palavras que eu sei de cara. Não é a mim que vai vender gato por lebre.

LIGÚRIOPorque eu te conheço, é que vou te levar até ele. Depois do teu papo, se ele não for o que eu digo – um homem inteligente, culto, digno – eu não me chamo Ligúrio.

NÍCIAEstá bom. Então vamos logo. Onde é que ele mora?

LIGÚRIONesta praça. Naquela porta ali em frente.

NÍCIABom. Tomara que dê certo.

LIGÚRIOPronto. Já bati.

SIROQuem é?

LIGÚRIOCalímaco está?

SIROEstá.NÍCIAPor que você não diz Dr. Calímaco?

LIGÚRIOEle não liga pra essas besteiras.

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NÍCIANão o trate assim. Dê-lhe o título que tem. Se ele não gostar, que se foda. Título é título!

CENA II

CALÍMACOQuem deseja falar comigo?

NÍCIABona die, domine doctor.

CALÍMACOEt vobis bona, domine doctor.

LIGÚRIOQue tal, hein?

NICIAPuta merda! Genial!

LIGÚRIOFale de jeito que eu entenda, senão a gente se trumbica.

CALÍMACOEm que posso servir?

NICIAComo direi. . . estou aqui procurando duas coisas: embaraço para mim e para os outros. Coisa de que muita gente foge. Eu não tenho filhos mas gostaria de ter. É pro senhor me dar essa preocupação – os filhos – é que eu estou aqui chateando o senhor.

CALÍMACOÉ com o máximo prazer que lhe atendo, assim como a todas as pessoas tão dignas como o senhor. Foi para ser útil à humanidade que eu me dediquei inteiramente ao estudo, em Paris.

NICIAMuito obrigado. E se o senhor precisar de mim, estarei às suas ordens. Mas voltemos “to the question” ou seja “as rem nostram”. O senhor já pensou se os banhos vão servir para engravidar minha mulher? Eu sei que Ligúrio já contou tudo, não é?

CALÍMACOÉ verdade. Mas para dar uma opinião mais segura, eu preciso saber a causa da esterilidade de sua mulher. Podem ser várias. Nam causae sterilitatis sunt: aut semine, aut in matrice, aut in instrumentis seminaris, aut in virga, aut in causa evtrinseca. Aut pilulorum.

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NICIAPô! Como o homem é bom.

CALÍMACOA causa dessa esterilidade pode ser também uma impotência de sua parte. Neste caso. . . incurável.

NICIAImpotente? Não me faça rir. Em Florença não tem homem mais verde e fresco do que eu. Mais machão.

CALÍMACOSe não for esta a causa, fique tranqüilo. Nós encontraremos um remédio.

NICIANão tem outro remédio sem ser os banhos? É que eu gostaria de evitar a viagem, e minha mulher também – não quer sair de Florença.

LIGÚRIOClaro que tem. Muitos outros remédios. Calímaco é extremamente reservado. Não foi você que me disse que inventou um chá capaz de engravidar?CALÍMACOSim, mas primeiro vejo com quem estou falando. Não quero passar por charlatão.NICIAOra doutor, fique tranqüilo. Eu já senti com quem estou falando. E realmente estou maravilhado, completamente desbundado.

LIGÚRIONão seria melhor primeiro ver os sinais?CALÍMACOSem dúvida. É o mínimo que se pode fazer.LIGÚRIOChame Siro para acompanhar o doutor. Nós estaremos em casa esperando.

CALÍMACOSiro, acompanhe o doutor. Se o senhor quiser volte logo e nós daremos o resultado do exame.

NÍCIAMas claro. Volto imediatamente. Eu tenho mais confiança no senhor do que uma tropa de burros na campainha da madrinha.

CENA III

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NÍCIAPoxa! Como é inteligente, o teu patrão.

SIROMuito mais que o senhor pensa.

NÍCIADeve ser muito considerado pelo governo francês .

SIROMuitíssimo.

NÍCIAPor isso ele se sente tão bem lá.

SIROJustamente.

NÍCIAE tem razão! Aqui só tem cambada de safado. Mérito mesmo que é bom – nada. Se ele morasse aqui, ninguém daria nada por ele. Eu posso falar de cadeira: me caguei todo para falar o ABC. Se eu fosse esperar reconhecimento para sobreviver, a essa altura eu estava fudido.

SIROVocê ganha muitos milhões por ano?

NÍCIAQue nada! Uma tiquinha por ano. Aqui quem não tem medalhão só serve para fazer número nos enterros, puxa saco e bater palma pros governadores. Mas eu não topo isso. Não preciso de ninguém. Quem dera que muitos estivessem como eu. Mas boca de siri – se eles sabem, dão em cima de mim com impostos, e eu que fico de cu ardido.

SIRONão se preocupe.

NÍCIAChegamos. Me espere aqui, volto logo.

SIROEstá bem. Eu espero.

CENA IV

SIROSe todos os doutores fossem como esse, nós, os ditos analfabetos, o que seríamos!. . . Será que o convencido do Ligúrio e o louco do meu patrão vão conseguir passar esse palhaço pra trás? Ia ser gozado! Eles não podem saber, senão eu perco o emprego e o meu patrão, a vida e o dinheiro. Ele já se fingiu até de médico. Não sei até aonde ele vai. Pronto, lá vem ele. Com o pinico cheio de mijo. É isso aí, gente. São os doutores. . .

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CENA V

NÍCIAEu já te fiz tudo que é vontade. Agora chegou a minha vez. Sou eu quem mando. Porra! Se eu soubesse que não ia ter filhos, teria me casado logo com uma mulher qualquer. Ah! Você está aí, Siro? Vamos. Que dificuldade para a besta da minha mulher fazer xixi. Não é porque ela não tenha vontade de ter filhos. Ela quer mais do que eu. Mas quando eu quero que ela faça qualquer coisa – é uma merda.

SIROPaciência! Com jeitinho se convence as mulheres.

NÍCIAO que você quer dizer com “jeitinho”? Ela vive me aporrinhando. Vá logo dizer ao teu patrão e a Ligúrio que eu já estou aqui.

SIRONem é preciso. Eles já estão saindo.

CENA VI

LIGÚRIOTapear o doutor é fácil. O mais difícil é a mulher. Mas nós vamos mandar brasa.

CALÍMACOO senhor trouxe a urina?

NÍCIAEstá com Siro.

CALÍMACOEntão me dê. Oh! Os rins não estão bons.

NÍCIABem que eu achei. Mas é fresca – ela fez ainda há pouco.

CALÍMACONão se preocupe. “Quod abundat non noscet”. Nam mulieris urinae sunt semper maioris prossitiei et albedinis, et minoris pulchritudinis, quam virorum. Huis autem, et caetera, causa est amplitudo canalium mistio corum quae ex matrice exeunt cum urina.

NÍCIAFoda de São Pucio! Como o homem sabe!

CALÍMACOProvavelmente ela apanha friagem à noite. Isso produz urina crua.

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NÍCIAEla tem bons cobertores. Mas acontece, que antes de deitar fica horas de joelho, rezando, rezando, rezando. . . a vaca fica toda gelada.CALÍMACODentro em breve o senhor doutor terá confiança em mim. Vou medicá-la. Meu remédio é muito bom. Pode dar sem medo. Se daqui há um anos, sua mulher não estiver com um filho nos braços, eu te pago dois milhões.

NÍCIAMe dê – estou pronto a obedecer. Acredito no senhor mais do que no meu confessor.

CALÍMACOÉ preciso que o senhor saiba que nada é melhor para engravidar uma mulher que um chá de mandrágora. Todas as minhas clientes que tomaram, engravidaram. Sem ele, a rainha da França seria estéril, e quantas outras senhoras distintas. . .

NÍCIAÉ mesmo?

CALÍMACOClaro. E o senhor está com muita sorte. Trouxe todos os ingredientes necessários. O senhor pode levar agora.

NÍCIAE quando ela deve tomar?

CALÍMACOEsta noite, depois do jantar. A lua está propícia – é um período de alto austral.

NÍCIAÓtimo! Ela vai tomar.

CALÍMACOSó preciso lhe avisar uma coisinha: o 1º homem que dormir com ela – morre depois de oito dias. Não há remédio pra isso.

NÍCIAAqui, óh! Isso é que não! Já não quero mais essa porcaria. O que é que o senhor está pensando, hein?

CALÍMACONão!. . . O senhor não me entendeu bem. Há um remédio.

NÍCIAE qual?

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CALÍMACOSimplesmente trazer um homem pra dormir com ela. Ele vai receber a infecção da mandrágora. Depois, o senhor dorme com ela sem perigo.

NÍCIASê besta! Assim não quero. Nada disso.

CALÍMACOMas, por que?

NÍCIANão vou fazer minha mulher uma puta e eu um corno manso.

CALÍMACOQue que é isso, doutor? Pensei que o senhor fosse mais inteligente. O senhor está se recusando a fazer uma coisa que foi feita até pelo rei da França e toda a sua corte?

NÍCIAQue diabo! Onde é que eu vou encontrar um cara que faça essa loucura? Se disser que é com minha mulher, ele não vai querer. Se não disser nada é uma sacanagem. Vai dar até investigação policial. E eu não quero cair nas suas garras.

CALÍMACOSe é só por isso que te preocupa, deixe por minha conta.

NÍCIAO que é que vai fazer?CALÍMACOJá te digo. Vou te entregar o chá à noite, depois do jantar. Você vai fazer sua mulher beber e mandá-la pra cama, mais ou menos pelas dez horas. Depois, nós nos disfarçaremos – você, Ligúrio, Siro e eu. Sairemos procurando pelo mercado, pelas ruas, por toda parte. O primeiro malandro que a gente encontrar vadiando, a gente pega. Põe uma mordaça e o leva na base da porrada até a sua casa. E no escuro a gente o põe no teu quarto. Depois de explicar o que ele deve fazer, o mete na cama. Vai ser tudo tranqüilo. De manhã bem cedinho você o manda embora. Dê um banho na sua mulher, e aí então você se deita com ela e pode fazer tudo o que quiser, sem nenhum perigo.

NÍCIABem, já que você me disse que até o rei e gente da alta sociedade fez isso – eu vou fazer também. Mas que a polícia não saiba.

CALÍMACOAh! Mas quem é que vai dizer?

NÍCIATem ainda um problema. E este não é mole.

CALÍMACOQual é?

NÍCIAÉ convencer minha mulher. Ela nunca vai aceitar isso!

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CALÍMACOÉ possível. Mas marido que se preze é sempre obedecido.

LIGÚRIOJá encontrei a solução!

NÍCIAComo?

LIGÚRIOPor meio do padre confessor.

CALÍMACOE quem vai convencer o padre?

LIGÚRIOEu, você, o dinheiro, a nossa malandragem, e a dele.

NÍCIADuvido muito. Ela não vai de maneira nenhuma falar com o confessor, principalmente se a idéia sair de mim.

LIGÚRIOPra isso também tem solução.

CALÍMACODiga logo.LIGÚRIOÉ fazer com que a mãe dela a leve lá.

NÍCIANão há dúvidas! Na mãe ela confia.

LIGÚRIOE eu sei que a mãe está do nosso lado. Taí. Vamos mandar brasa que já é tarde. Não há tempo a perder – já está escurecendo. E você, Calímaco, vá dar um giro, e as oito horas esteja em casa com o chá pronto. Eu e o doutor vamos na casa da mãe bater um papo. Ela é velha conhecida minha. Em seguida vamos falar com o padre e depois eu te ponho a par de tudo.

CALÍMACOPelo amor de Deus, Ligúrio, não me deixe aqui sozinho!

LIGÚRIOO que é que há? Está com cagaço?

CALÍMACOOnde você quer que eu vá a essas horas?

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LIGÚRIOAnde por aí, badale um pouco, a cidade é tão grande. . .

CALÍMACOÉ hoje que eu morro.

CANÇÃOBem aventurados os que nascem bobos e crêem em tudo. Qualquer um consegue convencê-los. Não serão atacados nem pela ambição nem pelo medo – principais fontes de aborrecimentos e dores. Na ânsia de ser pai, o pobre Dr. Nícia acredita que os burros voam. Ele só tem esse ideal.

ATO III

CENA I

SÓSTRATAEu sempre ouvi dizer: entre os males se escolhe o menor. Como não há outra maneira de ter filho, aproveite logo esta, desde que não te doa a consciência.

NÍCIAÉ, é isso mesmo.

LIGÚRIOEntão você vá falar com sua filhinha, enquanto eu e o doutor vamos procurar o padre. Explicaremos todo o caso a ele. Você não precisará falar nada. Só ouvir o que ele disser.SÓSTRATAÓtimo. Mãos à obra. Eu vou ver a Lucrécia. E dê no que der ela vai falar com o confessor.

CENA II

NÍCIAVocê se espanta, Ligúrio, de ver tanto trabalho pra convencer minha mulher, não é? Ah, Mas se você soubesse das coisas, não se espantaria não.

LIGÚRIOEu não me espanto não. Acho que todas as mulheres são assim mesmo: desconfiadas.

NÍCIAQue nada! Ela era a criatura mais dócil do mundo. Mas uma vizinha lhe disse que ela ficaria grávida se fizesse uma promessa se ouvir missa durante quarenta dias no convento dos capuchinhos. Pois bem, ela fez. E foi lá. Mas não é que um safado de um frade começou a dar em cima dela? Por isso não voltou mais lá. Que merda, né? Quem devia dar bons exemplos, faz tais safadezas. É ou não é verdade o que estou dizendo?

LIGÚRIOClaro que é verdade.

NÍCIAA partir de então ela ficou viúva. Tem sempre uma pulga atrás da orelha. Basta uma palavra – e pronto – ela estraga tudo. Cria mil problemas.

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LIGÚRIOEntendi. Mas ela cumpriu a promessa?

NÍCIANão! Que que você está pensando? Ela obteve dispensa.

LIGÚRIOAh! Desculpe. A propósito, é bom você me dar algum dinheiro agora. Nesses casos, sempre é bom correr um dinheirinho pro padre. Esperando mais, ele passa pro nosso, lado.

NÍCIATome lá. Não me incomodo com isso não. Consigo catar pro outro lado.

LIGÚRIOEsses padres são muito vivos e interesseiros, e têm razão: conhecem os nossos pecados e os deles. Quem não os conhecer muito bem, não manjar suas jogadas, pode se dar mal e não conseguir nenhuma ajuda deles. Por isso eu tenho medo que o senhor se embarace com eles. Um doutor como o senhor, que passa a vida estudando – conhece bem os livros, mas não compreende as sujeiras do mundo (este homem é tão burro que é capaz de esculhambar tudo).

NÍCIAEntão me diga o que eu vou fazer.

LIGÚRIOQuero que você fique calado. Deixa eu falar. E só abra a boca quando eu fizer um sinal.

NÍCIATopo! Qual vai ser o sinal?

LIGÚRIOEu mordo os lábios e fecho um olho. Ih! Não vai dar certo! Vamos fazer outra coisa, Há quanto tempo você não fala com o padre?

NÍCIAMais de dez anos.

LIGÚRIOÓtimo! Então vou falar que você ficou surdo. Você não responde nada. Não abra a boca pra nada, só responda se a gente falar muito alto.

NÍCIAEstá bem.

LIGÚRIONão se incomode se eu disser coisas que não vêm ao caso. Sei perfeitamente o que estou fazendo.

NÍCIAAssim espero.

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CENA III

F. TIMÓTEOQuer confessar, minha filha? Estou pronto!MULHERNão! Hoje não! Tenho um encontro. . . só em bater papo com o senhor já me aliviei. O senhor já rezou aquelas missas de Nossa Senhora?

F. TIMÓTEOSim, minha filha.

MULHERTome aqui mais este dinheiro pra celebrar todas as segundas-feiras, durante dois meses, uma missa por alma do meu marido. Ele era um cavalão. A carne é tão fraca! Quando eu penso nele, sinto um fogo danado bem aqui: Será que ele está no purgatório?

F. TIMÓTEOSem dúvida alguma.

MULHERAh! Eu não sei não! O senhor sabe o que ele fazia comigo. Quantas vezes eu me desabafei. Eu tentava me descartar, tirar o corpo fora. . . Mas ele era tão insistente que . . . ah! meu Deus do céu!

F. TIMÓTEOTranqüilize-se, minha filha. A misericórdia de Deus é grande; todo o tempo é tempo pra se arrepender.

MULHERO senhor acha que os turcos chegarão aqui?

F. TIMÓTEOSim. Reze a Deus pra que isso não aconteça.

MULHERAi! Pobre de nós mulheres! Com todos esses homens! Eles são invenção do diabo! Eu morro de pavor de sua fúria e de suas espadas. . . Ah! Olha lá! Acaba de entrar na igreja uma mulher que me deve um dinheirão. Preciso falar com ela. A sua bênção, padre.

CENA IV

F. TIMÓTEOAs mulheres! Tão generosas. . . tão chatas. Longe delas: nenhuma chateação mas também nenhum proveito. Perto delas: muito proveito e muita chateação. É verdade: não há mel sem mosca. Não é o doutor Nícia que estou vendo? O que que esta gente de bem faz por aqui?

LIGÚRIOFale alto! Ele está surdo como uma porta.

F. TIMÓTEOSejam benvindos.

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LIGÚRIOMais alto!

F. TIMÓTEOBenvindos!

NÍCIAÉ uma satisfação, padre.

F. TIMÓTEOComo vão vocês?

NÍCIAMuito bem.

LIGÚRIOFale comigo, padre. Se o senhor ficar gritando assim, todo o mundo vai ouvir.

F. TIMÓTEOO que você quer de mim, meu filho?

LIGÚRIOO Dr. Nícia e um outro homem muito bom, que o senhor vai conhecer, querem fazer um donativo – tem um dinheirinho pros seus pobres.

NÍCIAPuta merda!

LIGÚRIOCala a boca, peste! Não se espante, reverendo, com o que ele disser. Ele não ouve nada – pensa ouvir uma coisa e responde atravessado.

F. TIMÓTEODeixe ele falar à vontade.

LIGÚRIOIsto é uma parte. Ninguém melhor que o senhor para distribuir esta esmola.

F. TIMÓTEOAh! Com muito prazer!

LIGÚRIOAntes, padre, nós precisamos da sua ajuda, num caso muito difícil que aconteceu ao doutor. Só senhor poderá nos salvar. Está em jogo a honra da família dele.

F. TIMÓTEOO que aconteceu?

LIGÚRIOO senhor conhece Camilo Calfucci, o sobrinho do doutor?

F. TIMÓTEO

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Conheço.

LIGÚRIOEle é viúvo. Tem uma filha bonita, em idade de casar. Quando teve de fazer uma viagem, deixou a moça num convento – que acho melhor não dizer o nome.

F. TIMÓTEOMas o que aconteceu?

LIGÚRIOAconteceu que, por descuido das freiras ou por leviandade da jovem, ela está grávida de quatro meses. Ora, se não se der um jeito nesta infelicidade – todos estarão desmoralizados: o doutor, as religiosas, a moça, Camilo e toda a família Calfucci. E o doutor faz tanta questão de preservar a honra, que prometeu dar três milhões para a igreja.

NÍCIAQue diabo você está falando?

LIGÚRIOFique quieto! E é ao senhor que ele vai dar. Só mesmo o senhor com a abadessa poderão resolver o caso.

F. TIMÓTEOE como fazer?

LIGÚRIOConvencendo a superiora a fazer a moça beber um chá para abortar.

F. TIMÓTEOO caso pede reflexão.

LIGÚRIOVeja bem. Reflita sobre os bens que o senhor vai fazer, se conseguir isto. Vai salvar a reputação de um convento inteiro, de uma moça, de toda uma família. Vai devolver uma filha a um pai. E vai satisfazer o doutor e todos os seus parentes. Com os três milhões vai poder distribuir muitas esmolas. E por outro lado o que se vai eliminar é apenas um pedacinho de carne que ainda nem veio ao mundo e que tem mil chances de se perder. De minha parte acho que, se tantas pessoas são favorecidas, não resta dúvida que é um bem que se faz.

F. TIMÓTEODeus seja louvado! O que você deseja será feito, por amor a Deus e ao próximo. Diga-me o nome do convento e me dê o tal chá. Ah, e também se você quiser, um pouco deste dinheiro para eu começar as boas obras.

LIGÚRIOAgora, realmente, eu vejo que o senhor é aquele bom padre que eu julgava. Tome o dinheiro. O convento é. . . espere um pouco. Eu volto logo. Vou falar com aquela mulher que está me chamando. Segura aí o Dr. Nícia pra mim, tá? É coisa rápida.

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CENA V

F. TIMÓTEOHá quantos meses a moça está grávida?

NÍCIAJá estou de saco cheio!

F. TIMÓTEONão. Eu perguntei: quantos meses ela está grávida.

NÍCIAVá andar. Vá ver se eu estou na esquina.

F. TIMÓTEOPor que?

NÍCIASenão eu estouro!

F. TIMÓTEOTambém já estou de saco cheio. Ter que lidar com um doido e um surdo. Um se manda e o outro não ouve nada. Se não fosse pelo dinheiro mandava tudo para o inferno! Lá vem ele.

CENA VI LIGÚRIOContinue calado, doutor. Ótimas novidades, reverendo!

F. TIMÓTEOQuais são?

LIGÚRIOAquela mulher acabou de me dizer que a nossa moça abortou naturalmente.

F. TIMÓTEODeus seja louvado! A esmola será Ação de Graças.

LIGÚRIOO quê?

F. TIMÓTEOEu estou dizendo que agora, mais do que nunca, as esmolas devem ser distribuídas.

LIGÚRIOA distribuição fica por sua conta. Mas antes, é preciso ajudar o doutor em outra coisa.

F. TIMÓTEODe que se trata agora?

LIGÚRIO

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Um negócio bem mais fácil. Sem perigo de escândalo. Mais agradável para nós e mais útil pro senhor.

F. TIMÓTEODiga logo o que é. Já estou na de vocês, e me sinto completamente à vontade. Topo tudo!LIGÚRIOÉ só entre nós, vamos pra igreja que te explico. Por favor, doutor, fique aqui. Voltamos logo.

NÍCIAVá. Desgraça pouca é besteira!

F. TIMÓTEOVamos.

CENA VII

NÍCIA É dia ou é noite? Estou sonhando ou acordado? Não estou de porre (Não bebi nada hoje) pra não estar entendendo porra nenhuma dessas elucubrações! Nós combinamos dizer um troço ao padre, e Ligúrio diz outra. E ainda por cima quer que eu fique bancando surdo. Imagine se eu fosse um sujeito tapado e burro pra me deixar levar nas loucuras dele. Só Deus sabe a cagada que ia dar! E o desgraçado até já conseguiu arrancar dinheiro! E até agora não pude dizer uma palavra. Eles me botaram cabresto como uma mula. Ah! Lá estão eles. Eles vão se danar – pois agora quem vai falar sou eu.

CENA VIII

F. TIMÓTEOTrate de trazer logo sua mulher. Já sei o que fazer. E se ainda tenho crédito, à noitinha tudo está resolvido.

LIGÚRIODr. Nícia, o frei Timóteo está disposto a fazer tudo pelo senhor. Basta só as mulheres aparecerem.

NÍCIAÉ verdade? Você me ressuscita? Vai ser menino?

LIGÚRIOUm menino.

NÍCIAChoro de alegria!F. TIMÓTEOEntrem na igreja, meus filhos, esperarei aqui. É bom que elas não os vejam. Depois eu contarei tudo.

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CENA IX

F. TIMÓTEONão sei quem está enganando quem. Esse malandro do Ligúrio veio me sondar com sua primeira estória. Se eu não tivesse consentido ele não me diria a verdade – não abriria o jogo. E por incrível que pareça, eles debocharam de mim. É, na verdade eu caí direitinho. . . e daí? De qualquer forma eu tirei proveito. Dr. Nícia e Calímaco são cheio da grana e eu tenho meios de me aproveitar, tanto de um, como de outro. Mas é preciso bastante segredo: senão eu entro pelo cano. Por Deus – aconteça o que acontecer eu não me arrependo. Na verdade o negócio não é fácil. Dona Lucrécia é esperta e virtuosa. Vou aproveitar-me de sua bondade. Mulher é bicho burro mesmo. Se a gente encontra uma que perceba alguma coisa – já é gênio. Em terra de cegos quem tem um olho é rei. Lá vem ela com a mãe! A mãe é uma besta mas vai me valer pra eu convencer a filha.

CENA X

SÓSTRATAVocê sabe, minha filha, que para mim sua honra está acima de qualquer coisa. Eu nunca lhe aconselharia a fazer uma coisa indigna. Já disse e repito: o que frei Timóteo vai te aconselhar, não ferirá sua consciência.

LUCRÉCIAA vontade que Nícia tem de Ter filhos me assusta. Toda vez que ele inventa um meio pra isso – eu desconfio. Principalmente depois que aconteceu aquilo com o capuchinho. Mas de todas as besteiras que inventou, esta última foi a mais sórdida. Consentir que me entregue a um desconhecido que no final vai morrer... nem que fosse a única mulher no mundo, que tivesse de conservar a espécie humana – isso não teria sentido.

SÓSTRATAPor favor, minha filha, não precisa dramatizar. Você falará com o padre, verá o que ele vai dizer, e fará o que ele te aconselhar. Isto será um bem para você, para nós, para todos os que te amam.

LUCRÉCIAEu tremo de medo.

CENA XI

F.TIMÓTEOSejam benvindas. Já sei o que querem de mim. Dr. Nícia me disse. Realmente há mais de duas horas que estou mergulhado nos livros, estudando teu caso. E depois de muito pensar, refletir, encontrei soluções, tanto gerais como particulares, boas para todos nós.

LUCRÉCIAO senhor está brincando ou falando sério?

F.TIMÓTEOAh, minha senhora. Isto não é para brincadeira. Não é de hoje que a senhora me conhece.

LUCRÉCIANão, padre. Mas nunca ouvi coisa tão revoltante.

F.TIMÓTEO

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Estou de acordo, minha filha. Mas não fale assim. Há coisas que são aparentemente terríveis, insuportáveis, absurdas. Mas vistas de outro ângulo são lógicas, fáceis, praticáveis. E válidas. Em tudo há mais medo do que pecado. É o nosso caso.

LUCRÉCIADeus me livre!

F.TIMÓTEOVoltando ao que dizia, há uma regra geral nos casos de consciência: onde há um bem certo e um mal incerto, não se deve temer o mal e deixar de fazer o bem. No seu caso o bem é bem claro: você ficará grávida e será mais uma alma para servir ao Nosso Senhor Jesus Cristo. O mal pode não acontecer. O homem que tomar o chá e dormir com você, por sorte pode não morrer! Entretanto, como tudo é duvidoso, é bom Dr. Nícia não se expor ao perigo. Quanto à ação em si, é uma imaginação dizer que é pecado. Quem é que peca? É a vontade, não o corpo, é desagradar seu marido, mas você está agradando, é ter prazer, mas você não quer este prazer. E finalmente, é preciso considerar isto: sua missão é dar mais uma alma a Deus e contentar seu marido. Está na Bíblia: que as filhas de Lot, para não ficarem sozinhas no mundo, dormiram com seu pai, e nem por isso pecaram. Sabe por que, minha filha? Porque a intenção era boa.

LUCRÉCIASerá possível que o senhor quer que eu faça isto?

SÓSTRATAAcredite no que ele diz, minha filha. Você não sabe que mulher sem filhos é mulher sem lar? Quando seu marido morrer, você será igual a um animal. Inteiramente abandonada.

F.TIMÓTEOEu juro, minha cara senhora, sob minha responsabilidade sacerdotal, que você deve ter mais escrúpulos em desobedecer seu marido, do que comer carne na sexta-feira santa. Este pecado se perdoa com água benta, o outro não.

LUCRÉCIAA que absurdo o senhor está me levando?

F.TIMÓTEOA um absurdo que você jamais se esquecerá de me agradecer, pedindo a Deus por mim. Ano que vem você estará mais feliz que agora.

SÓSTRATAEla fará tudo o que o senhor quiser. Eu mesma vou preparar a cama para ela. De que é que você tem medo, pobre criança? Existem muitas mulheres que levantariam as mãos aos céus para fazer isto!

LUCRÉCIAEstá bem, estou conformada, mas não acredito que amanheça viva.

F.TIMÓTEOControle-se, minha filha. Vai. Eu rezarei por você. Vou pedir ao anjo Rafael que te acompanhe. Vai na graça de Deus e prepare-se para este grande mistério que te espera.

SÓSTRATAAdeus, padre. Fique em paz.

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LUCRÉCIAQue Deus e Nossa Senhora tenham piedade de mim! Que não me aconteça nenhuma desgraça!

CENA XII

F.TIMÓTEOEi, Ligúrio. Venha cá.

LIGÚRIOE que tal?F.TIMÓTEOTudo bem. Elas já vão para cara. E não vai ter dificuldade nenhuma. A própria mãe vai levá-la pra cama.

NÍCIAÉ verdade o que o senhor está dizendo?

F.TIMÓTEOMilagre! O doutor ficou bom da surdez.

LIGÚRIOSim. Milagre de Santo Antônio.

F.TIMÓTEOIsto merece divulgação, donativos e uns trocados para mim.

NÍCIAVamos parar de dizer besteira. Ela vai mesmo fazer o que eu quero?

F.TIMÓTEOVai sim.

NÍCIASou o homem mais feliz do mundo!

F.TIMÓTEOCreio que sim – o senhor vai ganhar um herdeiro macho. Infeliz do que não tem.

LIGÚRIOPois bem. Continue rezando, e se a gente precisar, voltamos aqui. E o senhor, doutor, volte para junto de sua mulher. E não deixe ela desanimar. Vou falar com Calímaco para não esquecer de preparar o chá. Arranje tudo de forma que a gente se encontre antes das dez horas da noite para combinarmos tudo.

NÍCIACombinado. Até já.

F.TIMÓTEOPasse bem.

CANÇÃO

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Como é doce a angústia que é conduzida pelo desejo da paixão! Como ela nos tira das tristezas e muda em doçura todo sabor amargo! Raro e soberano remédio! Mostra o caminho certo, a alma que caminha incerta. Dos bens de amor, tudo que é picante, é um atrativo a mais. Pedras, venenos, encantamentos – tudo é vencido por sua força.

ATO IV

CENA I

CALÍMACOEstou doido para saber o que eles fizeram! Não vejo a hora de falar com Ligúrio. Já está quase na hora. . . um dia inteiro de angústia! Não agüento mais esta espera. Estou desesperado. E ainda estou aqui. É uma verdade que a felicidade e infelicidade são pratos da mesma balança. A felicidade nunca vem sozinha. Quanto mais cresce minha esperança maior o meu medo. Sou um desgraçado, cercado de medos e esperanças por todos os lados. Sou um navio em tempestade – mais me aproximo do porto, mais perigo corro. A burrice do Dr. Nícia me dá esperanças; o calculismo e a frieza de Lucrécia me apavoram. Tanto de um lado como de outro – há perigo. Por um eu procuro me vencer; por outro reprovo minha loucura. E digo a mim mesmo: “Qual é a tua, Calímaco? Você está maluco? Se arriscar a tanto por tão poucos minutos? Não está vendo que o prazer está na espera? Pode acontecer de você entrar pelo cano: morrer e ir pro inferno. O inferno está cheio de gente que morreu transando uma dessas. Você não tem vergonha de ser um deles, Calímaco? Fuja enquanto é tempo, e se não puder, seja homem: enfrente, não dê uma de donzela.” É isso que faço pra me animar. Estou tão tarado pela mulher que todo o meu corpo se ouriça. Minhas pernas tremem, meus braços caem. Um frio na barriga, um fogo no coração. Meus olhos ardem. Minha língua está seca. Minha cabeça gira. Ah, Se Ligúrio estivesse aqui! Preciso me desabafar. Olha! É ele! Será que traz boas notícias, ou vai acabar comigo?

CENA II

LIGÚRIOQuanto mais preciso encontrar Calímaco, mais o diabo desaparece. Se fosse pra más notícias já o tinha encontrado. Procurei por todos os lados. Esses amantes têm fogo no rabo. Não esquentam lugar.

CALÍMACOLigúrio está igual a uma barata tonta. Tá procurando por mim. Merda, que é que eu faço aqui que não o chamo logo? Ele parece tão feliz! Ligúrio, ó Ligúrio!!!

LIGÚRIOEi, Calímaco. Que diabo encontra você?

CALÍMACOTem novidades?

LIGÚRIOExcelentes!

CALÍMACOVerdade?

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LIGÚRIODivinas! Maravilhosas!

CALÍMACOLucrécia topa?

LIGÚRIOSe topa!

CALÍMACOO padre está do nosso lado.

LIGÚRIOSe está!

CALÍMACOOh! Santo Padre! Rezarei por ele eternamente.

LIGÚRIOMaravilhoso! Como se Deus recompensasse o mal como recompensa o bem!. . O padre tá querendo é outra coisa.

CALÍMACOO quê?

LIGÚRIODinheiro, bobo.

CALÍMACOA gente dá. Quanto você prometeu?

LIGÚRIOTrês milhões.

CALÍMACOTá bom.

LIGÚRIOO doutor já deu uma entrada.

CALÍMACOComo?

LIGÚRIOO suficiente como sinal.

CALÍMACOE a mãe de Lucrécia?

LIGÚRIO

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Ela que fez quase tudo. Como prometeu, ela não se cansou de rezar, de dar mão forte e encorajar Lucrécia, para esta feliz noite, embora ela tenha pedido reforço ao padre.

CALÍMACOOh, Deus! Eu não mereço tanta felicidade! Morro de alegria!

LIGÚRIOQue homem mais besta! Morro de alegria, morre de tristeza. Olha que acaba morrendo mesmo. Afinal, o chá está pronto?

CALÍMACOSim.

LIGÚRIOO que você vai mandar?

CALÍMACOUm copo de licor maravilhoso. . . pra esquentar o estômago e a cabeça. Ih, puta merda! Estou perdido.

LIGÚRIOQue que há?

CALÍMACOEstou num mato sem cachorro.

LIGÚRIOQue diabo aconteceu agora?

CALÍMACOFudeu tudo. Tô num beco sem saída.

LIGÚRIOMas por quê? Que tá acontecendo? Tire a mão da cara e fale.

CALÍMACOVocê não se lembra que eu combinei com Dr. Nícia, que você, ele, Siro e eu íamos sair juntos para catar alguém para dormir com a mulher?

LIGÚRIOE daí?

CALÍMACOComo, e daí? Olha, se eu for com vocês, não posso ser aquele que vai ser apanhado. E se eu não for, Nícia vai desconfiar e descobrir a trapaça.

LIGÚRIOVocê tem razão. Será que não há um jeito?

CALÍMACOEu acho que não.

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LIGÚRIOPois acho que sim.

CALÍMACOE qual?

LIGÚRIOAgüenta aí. Deixe eu pensar.

CALÍMACOEstou bem arranjado! Justamente nestas horas você se põe a pensar.

LIGÚRIOJá sei! Achei!CALÍMACOO que?

LIGÚRIOVou fazer com que o padre, que até agora nos ajudou, faça o resto.

CALÍMACOMas como?

LIGÚRIOA gente vai se disfarçar, não é? Pois vou fazer o padre se disfarçar também. Ele modificará a voz, o rosto e as maneiras. E vou dizer ao doutor que ele é você. Pode estar certo: ele acredita.

CALÍMACOÉ, legal! E eu, que vou fazer?

LIGÚRIOOlha!!! Você põe uma capa, pega um alaúde e vem cantar por aqui.

CALÍMACOMas com a cara descoberta?

LIGÚRIOClaro! Se você estiver com máscara – dá pra desconfiar.

CALÍMACOEle vai me reconhecer.

LIGÚRIONão Você entorta a cara. Estique a boca. Faça um bico. Feche um olho. É, faça uma careta. Experimenta.

CALÍMACOAssim tá bom?

LIGÚRIONão.

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CALÍMACOE agora?

LIGÚRIOTambém não!CALÍMACOE agora, que tal?

LIGÚRIOBoa! Guarde esta. Tenho um nariz postiço que você vai usar.

CALÍMACOTá bom. E depois?

LIGÚRIOAssim que você aparecer na esquina, nós te caímos em cima. Tiramos o teu alaúde, te levamos pra casa e te colocamos direitinho na cama. O resto. . . é por tua conta.

CALÍMACOÉ. O negócio é chegar lá.

LIGÚRIOQuanto a isto, está garantido. Agora, você voltar lá é papo teu, e não da gente.

CALÍMACOMas o que é que eu faço?

LIGÚRIOVocê passa a cantada nela, e diz quem você é. Conta toda a fofoca e fale da tua paixão por ela, do seu amor. Mostre que ela pode ser sua amiga sem nenhuma vergonha. Mostre também o perigo que ela corre se for sua inimiga. É impossível ela não concordar, e querer apenas te dar uma noite.

CALÍMACOVocê acha?

LIGÚRIOClaro. Nós já estamos atrasados – tá em cima da hora. Chame Siro, mande ele levar o chá para o Dr. Nícia, e me espere em casa. Vou procurar o padre, ele vai se disfarçar, e a gente vem pra cá, se encontra com o doutor e o resto que falta, será feito.

CALÍMACOÓtimo. Vamos logo.

CENA III

CALÍMACOÓ Siro!

SIROSenhor!

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CALÍMACOVem cá!

SIROPronto.

CALÍMACOApanhe aquele copo que está em cima do meu armário, cubra com um pano e traga aqui. Cuidado para não entornar!

SIROImediatamente.

CALÍMACOJá tem muito tempo que ele é meu criado. Até agora foi muito fiel. Acho que posso contar com ele. Não lhe falei nada, mas ele já sacou. O bicho é vivo como o diabo. Vai entendendo e se acomodando a tudo.

SIROAqui está o que o senhor pediu.

CALÍMACOÓtimo. Corra até a casa do Dr. Nícia e entregue a ele o remédio de sua mulher. Ela deve tomar depois do jantar. E quanto mais cedo for o jantar, melhor. Diga que nós estaremos esperando na esquina, na hora marcada. E que ele não se atrase. Ande, vá depressa!

SIROVou correndo.

CALÍMACOEscuta aqui! Se ele te mandar esperar – espera e venha com ele. Caso contrário volte logo pra casa.

SIROSim senhor.

CENA IV

CALÍMACOTomara que Ligúrio chegue logo com o padre. A espera mata. Quando penso onde estou agora e onde estarei daqui a duas horas – emagreço com medo que alguma coisa aconteça pra estragar este plano. Ah! Se isto acontecer eu me mato. Será a última noite de minha vida. Me jogo no rio, me atiro na janela. Me enforco. Me apunhalo na frente da porta dela. Serei capaz de tudo. Parece que é Ligúrio! Ah! É ele! Vem com ele alguém que parece coxo e corcunda. Deve ser o padre disfarçado. Ah, padres, padres! Quem conhece um, conhece todos. Quem é o outro? Ah! É Siro. Já deve ter dado o recado ao doutor. Vou esperar aqui pra combinar tudo com eles.

CENA V

SIROQuem que tá aí, Ligúrio?

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LIGÚRIOUm homem de bem.

SIROÉ coxo, ou está fingindo?

LIGÚRIOVocê quer se meter na sua vida!

SIROEle tem uma cara de safado.

LIGÚRIOQuer calar o bico? Senão você estraga tudo. Onde está teu patrão?

CALÍMACOEstou aqui, sejam benvindos.

LIGÚRIOCalímaco, dá um jeito neste metido do Siro. Ele já falou mil besteiras.

CALÍMACOSiro, escuta aqui. Hoje você vai obedecer a Ligúrio. Faz de conta que sou eu. Tudo o que você ver, ouvir, ou perceber – guarde segredo. Está em jogo a minha fortuna, minha honra, e minha vida. E também o seu próprio interesse.

SIROEstá bem.

CALÍMACOVocê entregou o remédio ao Dr. Nícia?

SIROSim senhor.

CALÍMACOO que ele disse?

SIROQue tudo será como o combinado.

F.TIMÓTEOQuem está aí? É Calímaco?

CALÍMACOSim. Estou às suas ordens. Vamos entrar num acordo. Você pode dispor de mim e do meu dinheiro como bem entender.

F.TIMÓTEOConfio na tua palavra. O que eu estou fazendo por você, jamais faria por ninguém no mundo.

CALÍMACO

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Você não vai se arrepender.

F.TIMÓTEOFaço tudo por amizade.

LIGÚRIOVamos deixar de lado as frescuras. . . tá na hora de se disfarçar. Venha, Siro. E você também, Calímaco: comece a cuidar da tua parte. Frei Timóteo nos espera aqui. Não vamos demorar. Daqui a pouquinho vamos buscar o Dr. Nícia.

CALÍMACOÓtimo, vamos.

F.TIMÓTEOEu espero.

CENA VI

F.TIMÓTEO“Diz-me com quem andas e te direi quem és”. Quem é muito mau ou muito bom – sempre acaba mal. Só Deus sabe a minha intenção: não quero fazer mal a ninguém. Vivia rezando minhas orações, meditando tranqüilamente, consolando as minhas beatas. . . até o dia em que apareceu este demônio do Ligúrio. Primeiro me fez meter o dedo, depois o braço, e agora o corpo todo. Tou atolado no pecado. Só Deus sabe onde vou parar. A única coisa que me consola é que quando uma coisa interessa a muita gente, muita gente fica preocupada. Eles estão voltando.

CENA VII

F.TIMÓTEOSejam benvindos.

LIGÚRIOEstamos bem assim?

F.TIMÓTEOMuito bem.

LIGÚRIOSó falta o doutor. Vamos até sua casa. Já são quase nove horas. Vamos logo.

SIROOlha! Quem está abrindo a porta? É ele ou o criado?

LIGÚRIOPorra! É ele. Há, há, há, há.!

SIROEstão rindo, hein?

LIGÚRIO

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E não é pra rir? Vem com uma capa que nem tapa o cu. . . que diabo ele tem na cabeça? Parece um camelo. . . Não! Essa não! Tem uma espada entre as pernas. . há, há, há! Ele está resmungando. Vamos nos esconder para ouvir. O pau com a mulher deve ter sido feio.

CENA VIII

NÍCIAEssa mulher tá me enchendo o saco! Mandou uma criada pra casa da mãe e outra pra viajar. Até que isso é bom. A merda foi as frescuras e chiliques que fez pra ir pra cama. “Eu não quero! Não vou! Vejo o que vocês estão me obrigando a fazer! Mamãe, me salva!” E se a mãe não lhe fala da porra nunca que se metia na cama. Que vá pra merda! Eu gosto de mulher um pouco fresca – mas assim já é demais. Ela me estoura a cabeça – aquela vaca teimosa. Deixa só o chifre entrar pra ver como ela amacia o rabo! Será que estou bem assim? Será que vão me reconhecer? Eu pareço muito mais alto, mais jovem, mais charmoso. Hoje não precisava pagar mulher pra dormir comigo. Mas onde está o resto do pessoal?

CENA IX

LIGÚRIOBoa noite, doutor!.

NÍCIAEi! Oh! Olá! Ah!

LIGÚRIONão tenha medo – somos nós.

NÍCIAAh, são vocês? Se não tivesse reconhecido, teria enfiado a espada. Você é Ligúrio? E você, Siro? E este outro é o médico?

LIGÚRIOSim, doutor.

NÍCIAÉ mesmo! Sai da frente! Puxa, como está bem disfarçado! Trá-lá-lá. Foi difícil reconhecer!

LIGÚRIOEle está com duas nozes na boca, pra ninguém reconhecer sua voz.

NÍCIAVocê é uma besta.

LIGÚRIOPor quê?NÍCIAPorque você não me disse isso? Eu também teria metido duas – você sabe como é importante não ser reconhecido pela voz.

LIGÚRIOEntão meta isso na sua boca.

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NÍCIAO que é?

LIGÚRIOUma bola de cera.

NÍCIAEntão me dê. Dá-a cá. . . cá. . . cá. . . pu. . . pu. . . pá. . . pá. . . a . . vá a merda – seu filho da puta.

LIGÚRIOEu peço perdão. Te dei uma bola trocada.

NÍCIACa. . . cá. . . pu. . . pu. . . de que era?

LIGÚRIODe pimenta.

NÍCIAFilho da puta. Diabo. E o senhor, não diz nada, mestre?

F.TIMÓTEOAh! Desgraçado do Lígúrio. Já está me enfezando.

NÍCIAOh! Como você disfarça bem a voz.

LIGÚRIOÉ bom não perder tempo. Vou ser o general e comandar a batalha. Calímaco para a direita. Eu para a esquerda. O doutor no centro. Siro na traseira pra socorrer quem fraquejar. O grito de guerra será São Corno.

NÍCIAQue santo é esse? São Corno?LIGÚRIOÉ o santo do homem moderno. Vamos! Vamos ficar de tocaia. Espere. . . ouço um alaúde.

NÍCIAÉ verdade. Que vamos fazer?

LIGÚRIOVamos mandar um espia para averiguar.

NÍCIAE quem é que vai?

LIGÚRIOSiro. Marche! Você sabe o que fazer: Olhe: examine, pesquise – volte rápido e nos faça um relatório.

SIRO

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Pronto!

NÍCIAEspero que não seja um velho caquético e doente. Não quero representar amanhã esta mesma comédia.

LIGÚRIONão se preocupe. Siro é um rapaz vivo. Já tá de volta, não viu? O que foi que você encontrou, Siro?

SIROO mais belo homem que já vi. Tem uns 25 anos. Está sozinho, vestido com uma capa, e toca alaúde.

NÍCIASe for verdade: este é o bom. Mas cuidado: não vá confundir alho com bugalho. Senão leva. . .

SIROEu disse a verdade!

LIGÚRIOVamos esperar aqui. E quando ele passar, a gente cai em cima dele.

NÍCIAChega pra lá, doutor. O senhor parece um boneco de pau. Psiu. . . aí vem ele.

CENA X

CALÍMACOQue o diabo te visite na cama, uma vez que eu não posso te visitar.

LIGÚRIOAlto lá! Me dê aqui o alaúde.

CALÍMACOO que que há? Meu Deus, o que que eu fiz?!

NÍCIAVocê já vai saber. Tape a cabeça dele. Ponha uma mordaça.

LIGÚRIORode bastante, até ele ficar tonto.

NÍCIAMais uma. Mais uma. Isso. Empurra-o lá pra dentro.

F.TIMÓTEODr. Nícia, eu vou repousar. Estou com uma terrível dor de cabeça. Se o senhor não precisar de mim, não virei amanhã.

NÍCIANão tem importância. Pode ir. Nós fazemos o resto sozinhos.

CENA XI

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F.TIMÓTEOEles entraram em casa e eu vou pro convento. E vocês, espectadores – não nos critique. Ninguém vai dormir esta noite. Eu rezarei minhas orações. Ligúrio e Siro finalmente vão jantar. Dr. Nícia andará de um lado para o outro, preocupado para que tudo não entre pelo cano, ou melhor, para que tudo entre bem. Calímaco e Lucrécia também não dormirão. Pois se eu fosse ele e vocês ela – a gente não dormiria, né?

CANÇÃOOh, doce noite! Oh, santas e agradáveis horas noturnas, companheira dos amantes

apaixonados. Quantas delícias se fazem debaixo da tua sombra e que dá à alma uma celeste beatitude. Sejam os amantes recompensados pelos longos tormentos de espera. São vocês – horas noturnas que queimam de amor os corações mais gelados.

ATO V

CENA I

F.TIMÓTEONão consegui pregar o olho esta noite de tanta curiosidade para saber como Calímaco e os outros se saíram. Fiz mil coisas para passar o tempo: rezei, li uma vida de Santo, fui a igreja, acendi as velas e troquei o véu da Virgem, que faz milagres. Quantas vezes eu já falei pros frades para a conservarem limpa. Por isso que a devoção está em decadência! Antigamente, quantos donativos para a Virgem! Agora. . . nada. É por nossa culpa – nós não soubemos manter essa devoção. Antigamente tinha procissões lindas, cantos, músicas, andores, filhas de Maria. Hoje, não temos nada disso. Tá tudo reformado. Por isso que a fé esmorece! Ah, esses religiosos não têm juízo! Ih! Está havendo uma zorra na casa do Nícia. Ah! São eles que estão expulsando o prisioneiro. Cheguei a tempo! Eles não perderam nada – sugaram tudo. Está amanhecendo. Vou ouvir, sem ser visto, o que aconteceu.

CENA II

NÍCIAAgarre por este lado, que eu agarro pelo outro. E você, Siro, agarre pela bunda.

CALÍMACONão me machuque!

LIGÚRIONão tenha medo. Vai-te embora.

NÍCIANão vamos muito longe.

LIGÚRIOÉ, tem razão. Largue este desgraçado aqui mesmo. Vamos rodá-lo para que ele não saiba de onde saiu. Rode, Siro

NÍCIAMais uma.

SIRO

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Já dei.

CALÍMACOE o meu alaúde?

LIGÚRIOVá-te embora logo, seu filho da mãe. suma! Se você disser uma palavra eu te arrebento a cabeça.

NÍCIAFugiu! Vamos sair bem cedo pra ninguém pensar que a gente passou a noite em claro.

LIGÚRIOÓtima idéia!

NÍCIAVá e fale com Dr. Calímaco que tudo correu as mil maravilhas.

LIGÚRIOQue vamos dizer? Não vimos nada. Esqueceu que assim que o senhor entrou em casa, nós fomos pra cozinha, beber? O senhor e sua sogra é que se encarregaram do caso. Só voltamos a nos ver no fim – pra botar o homem pra fora.

NÍCIAAh! É mesmo. Eu tenho boas pra te contar! Minha mulher estava na cama. Estava tudo escuro. Sóstrata me esperava na sala. Aí, eu ainda disfarçado, peguei o camarada e fui instruí-lo como fazer. Levei-o para um canto meio escuro, pra que ele não visse meu rosto.

LIGÚRIOMuito prudente de sua parte.

NÍCIAEu mandei ele tirar a roupa. Ele se invocou! Aí eu virei fera e insisti. Então não teve outro jeito: começou a tirar a roupa, e ficou nu em pelo. Que cara feia que ele tem! Nariz grande, boca torta. Mas de corpo – uhh! Nunca vi carnes tão lindas: branquinhas, macias, gostosas. Quanto ao resto, nem se fala!

LIGÚRIOOra essa! Temos que saber tudo. A parte essencial é que você devia examinar!

NÍCIAE você me acha um bobo? Já que estava com a mão na massa, eu fui até o fim. Para ver se ele era sadio! Já pensou se ele fosse brocha, em que fria eu estava metido? Eu não brinco em serviço!LIGÚRIOVocê tá com a razão.

NÍCIADepois de verificar que tudo estava funcionando bem, agarrei-o e o levei no escuro pra cama. Antes de ir embora, verifiquei mais uma vez, com minhas mãos, se a coisa estava no ponto. Eu não compro gato por lebre!

LIGÚRIOParabéns! O senhor teve muita prudência.

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NÍCIADepois de verificar e apalpar tudo, saí do quarto. Fechei a porta. Fui pra sala. E fiquei conversando com minha sogra e noite toda.

LIGÚRIOSobre o quê?

NÍCIASobre as frescuras de Lucrécia. . . não seria muito melhor ela ter aceitado logo, sem tanto reboliço? Depois nós falamos do neném – eu sentia nos meus braços aquele pomponzinho! Aí escutei bater as horas. Fiquei com medo de clarear logo o dia. Entrei no quarto. Você nem imagina a dificuldade para tirar de lá, aquele desgraçado.

LIGÚRIOEu acredito.

NÍCIAEle tava gostando da foda! Por fim, levantou, chamei-o e nós o botamos no olho da rua.

LIGÚRIOA coisa correu bem.

NÍCIAE sabe que eu sinto pena?

LIGÚRIODe que?

NÍCIAAh! Esse pobre homem que vai morrer tão cedo. Como essa noite foi cara pra ele!LIGÚRIOCorta essa! Não se preocupe por tão pouco. São coisas da vida.

NÍCIAÉ mesmo, você tá certo. Mas estou doido pra me encontrar com o Dr. Calímaco. Ele vai vibrar!

LIGÚRIOEle chegará daqui a pouco. Mas já é dia. Podemos tirar os disfarces. E o senhor, que vai fazer?

NÍCIAVou para casa botar uma roupa limpa. Vou acordar minha mulher para ela se lavar. E depois vamos à missa, receber a bênção e santificar o acontecimento. Gostaria que você e Calímaco estivessem lá! Pra gente falar com o padre – agradecer e recompensá-lo pelos bons serviços prestados.

LIGÚRIOÓtimo! Estaremos lá.

CENA III

F.TIMÓTEO

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Ouvi tudo. Nada me diverte mais que a burrice do Dr. Nícia! Do que mais gostei, foi a resolução final. Já que eles vão encontrar comigo – vou logo para igreja. Lá o meu comércio valerá mais dinheiro. Quem tá saindo daquela casa? Parece Ligúrio. Calímaco deve estar com ele. Não quero que eles me vejam. Tenho meus motivos, né? E se não vierem me procurar – terei tempo de ir até eles.

CENA IV

CALÍMACOComo te disse, meu caro Ligúrio, por umas horas eu passei maus bocados. Embora estivesse curtindo os maiores prazeres – não estava feliz. Mas depois eu disse a ela quem eu era; revelei meu amor, disse como seria fácil, devido à babaquice do marido, viver feliz e sem ter vergonha. Cheguei a lhe prometer casamento, se Deus carregasse o marido. Ela, por sua vez me compreendeu. E além do mais ela percebeu a diferença que existe entre o meu modo de fazer amor e o do Dr. Nícia. Entre os beijos de um amante jovem e os de um marido velho. E suspirando ela disse: “Já que a tua malícia, a burrice do meu marido, a insistência de minha mãe e a devassidão de meu confessor, me fizeram fazer uma coisa que nunca teria feito por mim mesma – sinto que é um designo de Deus. Quem sou eu para recusar a um apelo divino. De agora em diante eu te considero meu senhor meu mestre, meu guia. Eu te amo do fundo do coração. Você será meu pai, meu defensor, minha única felicidade. E o que meu marido quis que acontecesse somente esta noite, eu quero que venha acontecer para sempre. Você vai ser seu amigo. Vai à igreja hoje e depois venha almoçar com a gente. Você será íntimo da casa – e assim poderemos ficar juntos sem levantar suspeitas.” Quando ela falou isso – quase morri de alegria – nem tive palavras pra responder e dizer-lhe tudo o que queria. Como sou feliz! E se essa felicidade não acabar logo, serei o mais feliz dos homens e o mais santo dos santos.

LIGÚRIOMe alegro com a tua felicidade. O que eu previ, aconteceu, né? Mas. . . e agora? Que vamos fazer?

CALÍMACOVamos pra igreja. Eu prometi. Ela, o doutor e a mãe, estarão lá.

LÍGÚRIOOlha! Elas estão saindo de casa. E o doutor vem com elas.

CALÍMACOVamos esperar na igreja.

CENA V

NÍCIALucrécia! Acho bom você se comportar, e não ficar assim frenética

LUCRÉCIAE daí, heim?

NÍCIAVeja só como ela me responde. Parece uma galinha com esporão de galo.

SÓSTRATANão ligue. Ela está um pouco nervosa.

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LUCRÉCIAQue que você quer dizer?

NÍCIAOlha! Vou passar na igreja para avisar ao padre, para ele nos dar a bênção. Hoje é o dia do teu renascimento.

LUCRÉCIAEntão vai logo!NÍCIAVocê está muito atrevida hoje. Ontem à noite, parecia que ia morrer. . . e hoje. . .

LUCRÉCIATudo graças a você.

SÓSTRATAVá procurar o padre. Ah! Nem precisa mais: ele está saindo da igreja.

NÍCIAAh! é mesmo.

CENA VI

F.TIMÓTEOVim aqui porque Calímaco e Ligúrio me disseram que o doutor e as senhoras viriam à igreja.

NÍCIABênção, padre.

F.TIMÓTEODeus vos abençoe, e a Virgem também. E que o Bom Deus lhe dê um lindo filhinho.

LUCRÉCIADeus queira!

F.TIMÓTEOSem dúvida.

NÍCIAEstou vendo Calímaco e Ligúrio na porta da igreja.

F.TIMÓTEOSim, doutor.

NÍCIAChame-os aqui.

F.TIMÓTEOAproximem-se.CALÍMACODeus vos guarde.

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NÍCIADoutor, dê a mão à minha mulher.

CALÍMACOCom prazer.

NÍCIALucrécia, quero que você conheça aquele que nos deu um amparo para a velhice.

LUCRÉCIAEstou muito feliz. E quero que você seja nosso compadre – o padrinho do nosso filho.

NÍCIAVocê é adorável, querida Lucrécia. Quero que o Sr. Ligúrio venha almoçar com a gente.

LUCRÉCIAIsso nem se discute.

NÍCIAVou lhe dar a chave do quarto do terraço, para que vocês possam vir quando quiserem. A casa será de vocês. Eles são solteiros e vivem como bichos.

F.TIMÓTEOE as minhas esmolas?

NÍCIAVou mandar hoje mesmo, reverendo.

LIGÚRIOE ninguém vai se lembrar de Siro?

NÍCIANão se preocupe: o que é meu é dele. E você, Lucrécia? Quanto quer que eu dê ao padre?

LUCRÉCIADê dois milhões pras obras de caridade.NÍCIAPorra! Tudo isso!

F.TIMÓTEOE dona Sóstrata, como remoçou! É a vovó mais no ponto que conheço.

SÓSTRATAE quem não ficaria, né padre?

F.TIMÓTEOEntremos na igreja e rezemos ao Senhor. Depois da missa iremos almoçar.

E vocês, espectadores, não esperem a gente sair. A missa é longa. E se precisarem de mim, estarei sempre lá na igreja. Até já.

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F I M

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