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A INCLUSÃO COMO UM DIREITO HUMANO: CONCEITOS QUE AMPLIAM E LIMITAM. ARTERO, Tiago Tristão 1 [email protected] LIMA, Cláudia Araújo de 2 [email protected] RESUMO Este trabalho procura entender de que maneira a restrição do conceito de inclusão somente às pessoas com deficiência ignora a inclusão daqueles que possuem necessidades educacionais especiais, mesmo que estas necessidades não estejam categorizadas como uma deficiência. Especificidades que influenciam, de alguma forma, a aquisição do conhecimento estão contidas no Código Internacional de Doenças (CID 10) e, por alterarem aquilo que se espera de um aluno considerado “normal”, geram particularidades que, em um conceito amplo de inclusão, devem ser consideradas. Saber as limitações e amplitudes dos conceitos de inclusão e, a partir daí, entender como ocorre a efetiva prática da inclusão nas instituições educativas é uma questão que pode remeter ao entendimento ou não da inclusão como um direito humano. O fato de o Brasil ser signatário de declarações que versam acerca da importância em considerar as necessidades educacionais especiais, ou seja, em vislumbrar um ensino para todos, não garante que as instituições educativas apliquem este conceito, nem mesmo que conheçam estas garantias. Palavras-chave: inclusão, direitos humanos, aprendizagem.. 1 ARTERO, Tiago Tristão. Graduado em Educação Física, Especialista em Neuropsicopedagogia e Desenvolvimento Humano, As[ude Pública com ênfase em Saúde da Família, Gestão Educacional. Professor EBTT do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso do Sul Campus Corumbá. 2 LIMA, Cláudia Araújo de. Pedagoga. Doutora em Saúde Pública. Mestre em Saúde Pública. Mestre em Reabilitação e Habilitação de Pessoas com Deficiência. Professora Adjunta do Programa de Pós-Graduação em Educação - Área de Concentração: Educação Social/UFMS/Campus do Pantanal, Coordenadora e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares NEPI/Pantanal Observatório Eçaí: Educação, Saúde, Desenvolvimento e outros direitos humanos de crianças e adolescentes na fronteira Brasil e Bolívia.

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Page 1: A INCLUSÃO COMO UM DIREITO HUMANO: CONCEITOS QUE · Dislexia de desenvolvimento Leitura especular Retardo específico da leitura ... Categoria residual mal definida de transtornos

A INCLUSÃO COMO UM DIREITO HUMANO: CONCEITOS QUE

AMPLIAM E LIMITAM.

ARTERO, Tiago Tristão

1

[email protected]

LIMA, Cláudia Araújo de2

[email protected]

RESUMO

Este trabalho procura entender de que maneira a restrição do conceito de inclusão somente às

pessoas com deficiência ignora a inclusão daqueles que possuem necessidades educacionais

especiais, mesmo que estas necessidades não estejam categorizadas como uma deficiência.

Especificidades que influenciam, de alguma forma, a aquisição do conhecimento estão

contidas no Código Internacional de Doenças (CID 10) e, por alterarem aquilo que se espera

de um aluno considerado “normal”, geram particularidades que, em um conceito amplo de

inclusão, devem ser consideradas. Saber as limitações e amplitudes dos conceitos de inclusão

e, a partir daí, entender como ocorre a efetiva prática da inclusão nas instituições educativas é

uma questão que pode remeter ao entendimento ou não da inclusão como um direito humano.

O fato de o Brasil ser signatário de declarações que versam acerca da importância em

considerar as necessidades educacionais especiais, ou seja, em vislumbrar um ensino para

todos, não garante que as instituições educativas apliquem este conceito, nem mesmo que

conheçam estas garantias.

Palavras-chave: inclusão, direitos humanos, aprendizagem..

1 ARTERO, Tiago Tristão. Graduado em Educação Física, Especialista em Neuropsicopedagogia e

Desenvolvimento Humano, As[ude Pública com ênfase em Saúde da Família, Gestão Educacional. Professor

EBTT do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso do Sul – Campus Corumbá.

2 LIMA, Cláudia Araújo de. Pedagoga. Doutora em Saúde Pública. Mestre em Saúde Pública. Mestre em

Reabilitação e Habilitação de Pessoas com Deficiência. Professora Adjunta do Programa de Pós-Graduação em

Educação - Área de Concentração: Educação Social/UFMS/Campus do Pantanal, Coordenadora e pesquisadora

do Núcleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares – NEPI/Pantanal – Observatório Eçaí: Educação, Saúde,

Desenvolvimento e outros direitos humanos de crianças e adolescentes na fronteira Brasil e Bolívia.

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DECLARAÇÕES E CONCEITOS DE INCLUSÃO

As políticas sociais das últimas décadas indicam a necessidade de ampliar a

participação de todos no processo educativo, como prevê a Declaração Internacional dos

Direitos Humanos, a Declaração de Salamanca e órgãos como a ONU e a UNESCO. Desta

forma a “inclusão e participação são essenciais à dignidade humana e ao desfrutamento e

exercício dos direitos humanos”, de acordo com a Declaração de Salamanca (UNESCO,

1994, p.5). Observar o processo de inclusão como manifestação dos direitos humanos vem ao

encontro do objetivo de ampliar o conceito do que é realmente inclusão.

Pautar-se pela ideia de que a inclusão no “campo da educação, (...) se reflete no

desenvolvimento de estratégias que procuram promover a genuína equalização de

oportunidades”, como prega a Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994, p.5), significa

entender que todos necessitam obter uma educação de acordo com as necessidades de

aprendizagem que manifestam, independentemente se o indivíduo possui algum transtorno do

desenvolvimento das habilidades escolares, distúrbio de aprendizagem, síndrome e

comorbidades que o diferencie de um conceito de padrão de aluno esperado.

Se o que se preconiza é que a educação deve ser estendida para todos, o conceito de

“todos” não pode ter o mesmo significado do que o conceito de “alguns”. Quando o conceito

de que alguns sujeitos podem representar todos os sujeitos, temos um conceito limitante de

educação para todos, temos, ainda, um conceito limitante de inclusão (e da educação como

um direito humano), restrita, por vezes, somente às deficiências físicas e intelectuais. Quando

isso ocorre, uma instituição corre o risco de trabalhar com um conceito limitado do que seria

uma necessidade educacional especial, desprezando os indivíduos que apresentam defasagem

na aprendizagem devido ao seu histórico escolar, devido aos distúrbios de aprendizagem,

como os citados no CID10 (em sua última versão) (OMS, 2007), às diferenças étnicas (em

especial, no caso dos alunos que moram na região de fronteira e possuem diferenças

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marcantes na expressão da linguagem e em sua cultura) e tantos outros fatores que podem

promover, de alguma forma, dificuldades na aprendizagem.

Não é somente sobre os “transtornos do desenvolvimento psicológico” contidos no

CID 10 (OMS, 2007) que estamos falando, a saber:

Os transtornos classificados em F80-F89 têm em comum: a) início situado

obrigatoriamente na primeira ou segunda infância; b) comprometimento ou

retardo do desenvolvimento de funções estreitamente ligadas à maturação

biológica do sistema nervoso central; e c) evolução contínua sem remissões

nem recaídas. Na maioria dos casos, as funções atingidas compreendem a

linguagem, as habilidades espaço-visuais e a coordenação motora.

Habitualmente o retardo ou a deficiência já estava presente mesmo antes de

poder ser posta em evidência com certeza, diminuirá progressivamente com

a idade; déficits mais leves podem, contudo, persistir na idade adulta. (CID

10, OMS, 2007).

Ou ainda, sobre os transtornos específicos do desenvolvimento da fala e da

linguagem, ou sobre os transtornos específicos do desenvolvimento das habilidades escolares,

a saber:

Transtornos nos quais as modalidades habituais de aprendizado estão

alteradas desde as primeiras etapas do desenvolvimento. O

comprometimento não é somente a conseqüência da falta de oportunidade de

aprendizagem ou de um retardo mental, e ele não é devido a um traumatismo

ou doença cerebrais. (CID 10, OMS, 2007).

E tantos outros, como:

Transtorno específico de leitura

A característica essencial é um comprometimento específico e significativo

do desenvolvimento das habilidades da leitura, não atribuível

exclusivamente à idade mental, a transtornos de acuidade visual ou

escolarização inadequada. A capacidade de compreensão da leitura, o

reconhecimento das palavras, a leitura oral, e o desempenho de tarefas que

necessitam da leitura podem estar todas comprometidas. O transtorno

específico da leitura se acompanha freqüentemente de dificuldades de

soletração, persistindo comumente na adolescência, mesmo quando a criança

haja feito alguns progressos na leitura. As crianças que apresentam um

transtorno específico da leitura tem freqüentemente antecedentes de

transtornos da fala ou de linguagem. O transtorno se acompanha comumente

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de transtorno emocional e de transtorno do comportamento durante a

escolarização.

Dislexia de desenvolvimento

Leitura especular

Retardo específico da leitura

(...)

Transtorno específico da soletração

A característica essencial é uma alteração específica e significativa do

desenvolvimento da habilidade para soletrar, na ausência de antecedentes de

um transtorno específico de leitura, e não atribuível à baixa idade mental,

transtornos de acuidade visual ou escolarização inadequada. A capacidade de

soletrar oralmente e a capacidade de escrever corretamente as palavras estão

ambas afetadas.

Retardo específico da soletração (sem transtorno da leitura)

(...)

Transtorno específico da habilidade em aritmética

Transtorno que implica uma alteração específica da habilidade em

aritmética, não atribuível exclusivamente a um retardo mental global ou à

escolarização inadequada. O déficit concerne ao domínio de habilidades

computacionais básicas de adição, subtração, multiplicação e divisão mais

do que as habilidades matemáticas abstratas envolvidas na álgebra,

trigonometria, geometria ou cálculo.

Acalculia de desenvolvimento

Discalculia

Síndrome de Gerstmann de desenvolvimento

Transtorno de desenvolvimento do tipo acalculia

(...)

Transtorno misto de habilidades escolares

Categoria residual mal definida de transtornos nos quais existe tanto uma

alteração significativa do cálculo quanto da leitura ou da ortografia, não

atribuíveis exclusivamente a retardo mental global ou à escolarização

inadequada. Deve ser utilizada para transtornos que satisfazem aos critérios

tanto de F81.2 quanto aos de F81.0 ou F81.1.

(...)

Outros transtornos do desenvolvimento das habilidades escolares

Transtorno de desenvolvimento da expressão escrita

(...)

Transtorno não especificado do desenvolvimento das habilidades escolares

Incapacidade (de):

· aprendizagem SOE

· aquisição de conhecimentos SOE

Transtorno de aprendizagem SOE (CID 10, OMS, 2007).

Transtornos que, há algum tempo, seriam injustificáveis tais dificuldades, já que o

indivíduo não necessariamente apresentaria alguma característica física que remetesse a

alguém com limitações. Estas características físicas que, de antemão, sugerem (mesmo que,

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em alguns casos, erroneamente) que há aspectos relativos à inclusão a serem considerados,

não definem as necessidades educativas especiais. Popularmente, as questões relacionadas ao

desenvolvimento motor ou que alteram significativamente o fenótipo, eram consideradas (e

ainda são) os únicos casos a serem pensados a partir de situações de inclusão, como pode ser

visto abaixo (para exemplificar):

Transtorno específico do desenvolvimento motor

A característica essencial é um comprometimento grave do desenvolvimento

da coordenação motora, não atribuível exclusivamente a um retardo mental

global ou a uma afecção neurológica específica, congênita ou adquirida. Na

maioria dos casos, um exame clínico detalhado permite sempre evidenciar

sinais que evidenciam imaturidade acentuada do desenvolvimento

neurológico, por exemplo movimentos coreiformes dos membros,

sincinesias e outros sinais motores associados; assim como perturbações da

coordenação motora fina e grosseira.

Debilidade motora da criança

Síndrome da “criança desajeitada”

Transtorno (da) (do):

· aquisição da coordenação

· desenvolvimento do tipo dispraxia

(...)

Transtornos específicos misto do desenvolvimento

Categoria residual de transtornos nos quais existem ao mesmo tempo sinais

de um transtorno específico do desenvolvimento da fala e da linguagem, das

habilidades escolares, e das funções motoras, mas sem que nenhum destes

elementos predomine suficientemente para constituir o diagnóstico principal.

Esta categoria mista deve estar reservada aos casos onde existe uma

superposição importante dos transtornos específicos do desenvolvimento

citados anteriormente. Os transtornos mistos se acompanham habitualmente,

mas sem sempre, de um certo grau de alteração das funções cognitivas.

(...)

Transtornos globais do desenvolvimento

Grupo de transtornos caracterizados por alterações qualitativas das

interações sociais recíprocas e modalidades de comunicação e por um

repertório de interesses e atividades restrito, estereotipado e repetitivo. Estas

anomalias qualitativas constituem uma característica global do

funcionamento do sujeito, em todas as ocasiões.

(...)

Autismo infantil

Transtorno global do desenvolvimento caracterizado por a) um

desenvolvimento anormal ou alterado, manifestado antes da idade de três

anos, e b) apresentando uma perturbação característica do funcionamento em

cada um dos três domínios seguintes: interações sociais, comunicação,

comportamento focalizado e repetitivo. Além disso, o transtorno se

acompanha comumente de numerosas outras manifestações inespecíficas,

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por exemplo fobias, perturbações de sono ou da alimentação, crises de birra

ou agressividade (auto-agressividade).

Autismo î infantil

Psicose ì

Síndrome de Kanner

Transtorno autístico

(...)

Autismo atípico

Transtorno global do desenvolvimento, ocorrendo após a idade de três anos

ou que não responde a todos os três grupos de critérios diagnósticos do

autismo infantil.

(...)

Síndrome de Rett

Transtorno descrito até o momento unicamente em meninas, caracterizado

por um desenvolvimento inicial aparentemente normal, seguido de uma

perda parcial ou completa de linguagem, da marcha e do uso das mãos,

associado a um retardo do desenvolvimento craniano e ocorrendo

habitualmente entre 7 e 24 meses. A perda dos movimentos propositais das

mãos, a torsão estereotipada das mãos e a hiperventilação são características

deste transtorno. O desenvolvimento social e o desenvolvimento lúdico estão

detidos enquanto o interesse social continua em geral conservado. A partir

da idade de quatro anos manifesta-se uma ataxia do tronco e uma apraxia,

seguidas freqüentemente por movimentos coreoatetósicos. O transtorno leva

quase sempre a um retardo mental grave.

(...)

Outro transtorno desintegrativo da infância

Transtorno global do desenvolvimento caracterizado pela presença de um

período de desenvolvimento completamente normal antes da ocorrência do

transtorno, sendo que este período é seguido de uma perda manifesta dos

habilidades anteriormente adquiridas em vários domínios do

desenvolvimento no período de alguns meses.

(...)

Síndrome de Asperger

Transtorno de validade nosológica incerta, caracterizado por uma alteração

qualitativa das interações sociais recíprocas, semelhante à observada no

autismo, com um repertório de interesses e atividades restrito, estereotipado

e repetitivo. Ele se diferencia do autismo essencialmente pelo fato de que

não se acompanha de um retardo ou de uma deficiência de linguagem ou do

desenvolvimento cognitivo. Os sujeitos que apresentam este transtorno são

em geral muito desajeitados. As anomalias persistem freqüentemente na

adolescência e idade adulta. O transtorno se acompanha por vezes de

episódios psicóticos no início da idade adulta.

Psicopatia autística

Transtorno esquizóide da infância. (CID 10, OMS, 2007)

Situações contidas no CID 10 que dão parâmetros não somente para avaliação, mas

para a intervenção multiprofissional e auxílio no âmbito educativo. Longe de um aspectos de

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medicalização, o que pode ser inserido no contexto escolar são os conceitos, técnicas e

possibilidades relacionados à inclusão. Para tanto, é preciso que se saiba a diferença entre um

conceito amplo ou restrito de inclusão, abarcando neste olhar os direitos humanos. O primeiro

conceito terá como pauta somente aqueles que, a olhos vistos, demandam um esforço para sua

adaptação no sistema de ensino de uma instituição educativa. O segundo irá englobar aqueles

que, por vezes, permanecem em segundo plano por não apresentarem alguma deficiência

notória, mas que, conforme a Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994, p.3), possuem

“necessidades educacionais especiais”. Estas necessidades podem decorrer de uma

dificuldade ou distúrbio de aprendizagem (bem como as comorbidades decorrentes deste

distúrbio) que podem gerar evasão escolar e estar sujeito a uma maior vulnerabilidade social

(o que fere o direito de aprender). Os que, porventura, têm seu direito de aprender ferido,

certamente, não estão sendo considerado em suas necessidades educacionais especiais.

Nesse sentido, a Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994, p.03) traz que ”as

escolas deveriam acomodar todas as crianças independentemente de suas condições físicas,

intelectuais, sociais, emocionais, lingüísticas ou outras”. Ao declarar estas diversas condições,

eminentemente orgânicas, nas quais a criança está inserida e a necessidade de serem

consideradas em sua diversidade, a Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994, p.3) ainda

acrescenta que as escolas “deveriam incluir crianças deficientes e super-dotadas, crianças de

rua e que trabalham, crianças de origem remota ou de população nômade, crianças

pertencentes a minorias lingüísticas, étnicas ou culturais, e crianças de outros grupos

desavantajados ou marginalizados”, momento em que cita distintas condições sociais que não

podem ser negligenciadas no contexto de ensino e aprendizagem. É certo que, a partir da

Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994, p.3) é possível entender que estas “condições

geram uma variedade de diferentes desafios aos sistemas escolares”, o que não impede que a

educação seja estendida a todos, como deve ser a partir do que indica a Declaração Universal

dos Direitos Humanos (1994, p.5), quando diz, no artigo 26°, que “Toda a pessoa tem direito

à educação”. Vai além, quando indica que:

A educação deve visar à plena expansão da personalidade humana

e ao reforço dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais e deve

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favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e

todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento das

actividades das Nações Unidas para a manutenção da paz. (Declaração

Universal dos Direitos Humanos, 1994, p.5).

Se a educação deve visar ao reforço dos direitos do Homem (entenda-se, ser

humano), a própria educação deveria se direcionar para que o direito de inclusão fosse

garantido, já que a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1994, p.5) reforça que a

compreensão deve ser estendida aos diferentes grupos, conceito que cabe, justamente, para ser

aplicado nas ações de inclusão. Mais do que pautar-se em ações unilaterais e tentar direcionar

os esforços da educação para determinado grupo que possui características em comum, a

Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994, p.4) expande o conceito de inclusão, de maneira

que haja uma pedagogia “da qual todas as crianças possam se beneficiar”. Este conceito se

justifica porque a educação não pode limitar sua atuação à grupos específicos, mas à todos, já

que “as diferenças humanas são normais”, de acordo com a Declaração de Salamanca

(UNESCO, 1994, p.4). Logo, a aprendizagem deverá ser direcionada às características do

indivíduo, ao invés deste se adaptar “às assunções pré-concebidas a respeito do ritmo e da

natureza do processo de aprendizagem”, como pode ser visto na Declaração de Salamanca

(UNESCO, 1994, p.4). Esta declaração define que a consequência da pedagogia voltada às

necessidades da criança será benéfica a toda sociedade, já que reduz a evasão escolar, bem

como as taxas de repetência. A Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994, p.4) traz a ideia

de que a ação pedagógica inclusiva “pode impedir o desperdício de recursos e o

enfraquecimento de esperanças, tão freqüentemente conseqüências de uma instrução de baixa

qualidade e de uma mentalidade educacional baseada na idéia de que ‘um tamanho serve a

todos’.”

De fato, o que se busca para um melhor conceito de inclusão é uma mudança de

perspectiva social, o que é amplamente apregoado na Declaração de Salamanca (UNESCO,

1994, p.4), quando indica alguns obstáculos como o fato de que “Por um tempo

demasiadamente longo os problemas das pessoas portadoras de deficiências têm sido

compostos por uma sociedade que inabilita, que tem prestado mais atenção aos impedimentos

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do que aos potenciais de tais pessoas”. Essa mudança de perspectiva é crucial para que o

trabalho docente se paute por aquilo que o discente pode desenvolver, por uma mudança de

ótica que valoriza o aluno, por um olhar que busca ações docentes para todos – e não somente

para uma determinada classificação de maioria ou de minoria. Somente dessa forma estará

sendo cumprido o que determina o art. 205 da Constituição Federal de 1988, quando diz que a

“educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com

a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o

exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

A educação não é direito de alguns, mas sim de todos. Esta foi uma importante condição de

organização social que permite que o direito de ser educado seja amplo. Este amplo conceito

de direito à educação também não pode ficar contido somente no contexto escolar, já que a

Lei 9.394/1996, em seu art. 1° (LDB, 1996) diz que a educação envolve “os processos

formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas

instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e

nas manifestações culturais”. Logo, o conceito de inclusão deve ser estendido a toda a

sociedade, ao ensino formal e informal, nas mais diversas instituições e nas formas com que

os indivíduos culturalmente se organizam e manifestam. O Estado deverá ser o protetor desse

direito e o ensino regular deverá ter em seu currículo e em suas práticas a previsão de que

todos devem aprender, não somente determinado grupo com características cognitivas ditas

“normais”.

Há importantes constituições e tratados internacionais que abordam os direitos

humanos, como a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, realizada pela

Organização das Nações Unidas (ONU, 2006), assinada em 2007, que chegou ao Brasil via

Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de 2009. Este decreto proíbe qualquer forma de exclusão

das pessoas com deficiência, indicando que a educação deve buscar a inclusão de uma

maneira ampla. Este é um avanço se compararmos com a Idade Média, em que as deficiências

eram vistas como algo divino ou maligno, ou ainda o modelo médico que predominava até

meados do século passado. Buscar uma abordagem de inclusão e valorizar o conceito de

educação para todos os indivíduos, ao invés de segregar para que não incomode nem o

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governo (com os “gastos” decorrentes do processo de inclusão), nem a

família (PESSOTTI, 1994, p.52).

Mais do que uma educação básica de qualidade, mais, ainda, do que dispor de uma

sala de recursos para o ensino especial, já está garantido em lei (além do ensino regular) o

atendimento complementar – que deverá ser especializado (Constituição Federal, art. 3°, IV;

art. 5°, caput; e art. 208, III).

Visitando a história da educação no Brasil, a partir da década de 1920 foram

disseminados, na educação, conceitos que buscavam diminuir as desigualdades sociais (e

incluir os deficientes no processo educativo), decorrentes de concepções pedagógicas

influenciadas por pensadores como Montessori, Decroly, dentre outros, além do

escolanovismo (momento em que foi pronunciado o Manifesto dos Pioneiros da Educação

Nova) (Jannuzzi, 1992, p.63). Essa concepção inclusiva se deu com o aumento na oferta do

ensino primário, à época.

AMPLIANDO O CONCEITO DE INCLUSÃO

O conceito de inclusão deve estar presente em todos os níveis de educação, como,

por exemplo, na Educação de Jovens e Adultos, na Educação Profissional e Tecnológica, na

Educação Escolar Indígena, dentre os mais diversos públicos que expressem a diversidade de

características e condições. Esta prerrogativa está prevista na Lei de Diretrizes e Bases da

Educação (1996), quando indica a necessidade de considerar a bagagem cultural na Educação

de Jovens e Adultos e valorizar as dimensões do trabalho e da tecnologia na Educação

Profissional e Tecnológica. É preciso ir além, e reconhecer que a educação se estende até

mesmo aos Jovens e Adultos em Situação de Privação de Liberdade nos Estabelecimentos

Penais, como está previsto no Plano Nacional de Educação – PNE e na Lei de Execução Penal

– LEP (Lei 7.210/84).

Não somente os públicos citados são diferentes entre si, como também, o mesmo

público possui indivíduos diferentes entre si, o que condiciona um olhar singular para cada

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ação docente realizada – o que não é possível quando há a tentativa de homogeneizar o ensino

a partir de características gerais, padronizadas.

Se a compreensão do que há de produção científica e de avanço social a respeito da

temática da inclusão não servir para modificar as práticas dentro das instituições educacionais,

a inclusão não estará contida no planejamento e na organização das mesmas.

Mesmo que as ‘necessidades educativas especiais’ (termo contido na

LDBEN 9.394/96) tenham fundo orgânico ou não (CNE/CBE nº. 2/2001, p.44), a busca por

uma educação de qualidade deve ser estendida a todos (MEC/SEESP, 2004). Se por um lado a

educação ganha quando os conceitos relacionados à inclusão são colocados em prática, por

outro, perde quando este conceito de inclusão está limitado a poucos.

Quando dificuldades de aprendizagem que não possuem causa orgânica são notadas,

há um distanciamento dos conceitos antigamente relacionados à inclusão (que previam

deficiências facilmente notadas, de cunho físico ou de limitação intelectual aparente). Causas

de dificuldades não orgânicas podem estar relacionadas a aspectos ligados ao histórico

escolar, limitações dos agentes responsáveis pelo ensino, dentre tantos outros fatores. Fruto

destas limitações, as dificuldades geradas em decorrência da combinação de diversos fatores

devem ser consideradas para que o processo de ensino-aprendizagem ocorra, de fato. Os

parâmetros que limitam o conceito de inclusão podem estar ligados à necessidade de

estabelecer padrões para o que é passível de ser tratado como inclusão e o que não é, como

indica Bossa (2005, p.19) ao dizer que na sociedade “a norma é referência, os desvios à norma

passam a ser objeto de maior controle”, fazendo com que haja “regras para impedir os

desvios, ajustar as diferenças e produzir as individualizações”. Pensamento que está arraigado

na sociedade como forma de controle social e pode fazer com que o conceito de inclusão

esteja vinculado a determinados padrões, perdendo a característica da inclusão para todos –

independentemente da causa que esteja dificultando a aprendizagem.

Bossa (2005), ao fazer uma análise histórico-filosófica da instituição escolar cita o

poder disciplinar contido nestas, de maneira que sua capacidade de normatizar “hierarquiza,

regulamenta, padroniza, distribui lugares, normaliza”. Utilizando esta análise para

entendermos a inclusão é possível visualizar que o conceito de normal não pode prevalecer

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nas instituições educativas, já que todos somos diferentes e todos necessitamos ser incluídos

(como tratam as declarações que versam sobre o tema relacionado à inclusão). Bossa (2005,

p.19), vai além quando diz que para que a escola não fracassasse foi instituída a “idéia de uma

infância ‘desviante’ que, por sua vez, precisa ser disciplinada, assistida, controlada, tratada”,

como se houvesse uma linha comum a ser alcançada por todos (linha que delimita o quanto

próximo ou distante um indivíduo está de alcançar um padrão de normalidade). Este tipo de

padronização insere uma ótica que faz com que as diferenças não sejam normais,

necessitando, por sua vez, serem combatidas. Fato que vai de encontro com a visão de uma

educação inclusiva, ou seja, vai contra os avanços já obtidos nas declarações e políticas

voltadas à educação para todos.

O ideal de que todos os alunos estejam integrados no processo de ensino-

aprendizagem faz com que sirva de reflexão afirmação que diz que “continuamos a

discriminar os alunos que não damos conta de ensinar.” (MANTOAN, 2003, p.28). Nesse

sentido, é mais fácil rotular, medir e criar parâmetros para que a aprendizagem do aluno seja

considerada “normal” ou passível de inclusão, poupando-se do esforço de cumprir as

diretrizes mundiais acerca do acesso aos alunos com e sem deficiência (ou seja, todos) no

ensino regular – como recomenda o documento

‘O Acesso de Alunos com Deficiência as Escolas e Classes Comuns da Rede

Regular’, baseado no Decreto nº. 3.956/2001, publicado em 2004 pelo Ministério

Público Federal.

Para que se busque uma escola que integre todos e garanta o ensino como um direito

humano, Mantoan (2003) indica a importância do aluno ser considerado no âmbito escolar

independentemente das características que apresenta, inseridos em:

(...) escolas que não são indiferentes às diferenças (...)

ambientes educacionais que se caracterizam por um ensino de

qualidade, que não exclui, não categoriza os alunos em grupos

arbitrariamente definidos por perfis de aproveitamento escolar e por

avaliações padronizadas e que não admitem a dicotomia entre

educação regular e especial. As escolas para todos são escolas

inclusivas, em que todos os alunos estudam juntos, em salas de aula de

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ensino regular. Esses ambientes educativos desafiam as possibilidades

de aprendizagem de todos os alunos e as estratégias de trabalho pedagógico

são adequadas às habilidades e necessidades de todos. (MANTOAN, 2003,

p. 7-8)

Estes ambientes que não se pautam por atender somente determinado público, que

não se pautam somente pelo rendimento, mas que primam pelo desenvolvimento do indivíduo

e pela sua emancipação a partir do conhecimento e da prática deste conhecimento, são

ambientes que desafiam os alunos, que prezam pelo trabalho pedagógico adequado às

habilidades dos educandos, conforme orienta Mantoan (2003, p.8). São ambientes que

valorizam o direito de aprender acima do que geralmente se vê por meio de avaliações

padronizadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que se busca a respeito da compreensão de uma inclusão como um direito humano

é a reafirmação do conceito de que “Toda a pessoa tem direito à educação” (Declaração

Universal dos Direitos Humanos, 1994 artigo 26°). Mesmo que existam garantias de que o

ensino deve ser para todos e, mesmo que existam muitos documentos que versem sobre o

assunto, a efetivação deste direito ainda necessita ser conquistada. Conhecer aspectos

cognitivos urge, não para confundir a área da saúde com a área da educação, mas para que o

avanço de uma área contribua com a outra, fazendo com que, em última instância, o ser

humano se desenvolva socialmente, a partir de seus direitos e necessidades. A compreensão

do que é inclusão pode ser realizada a partir de diversos documentos como um conceito

amplo, não um conceito que limita, pois a educação não pode ser restrita, é um direito de

todos.

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