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A IMPLANTAÇÃO DOS CURSOS DE QUÍMICA EM PARIS NO SÉCULO XVII Laís dos Santos Pinto Trindade Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência/CESIMA - PUCSP 1.Introdução Entre o final do século XVI e os primeiros anos do século XVII a discussão sobre o papel da Química na medicina e na interpretação da natureza provocou acirrados debates na Europa. Nesse período, o interesse pelos conceitos de Paracelso e os medicamentos preparados a partir de metais começou a despertar a atenção de médicos, boticários e cirurgiões. No entanto, particularmente a Faculdade de Medicina de Paris, refutava tais ideias e havia conseguido, em 1566, junto ao Parlamento francês, proibir o uso interno do antimônio, sob a alegação de que era venoso. Assim, também não aceitava a criação de um curso de Química que ensinasse como obter essas drogas e as tentativas para implantar cursos particulares de Química foram todas frustradas. (DEBUS, 2001) Muitos foram os fatores que podem ter contribuído para tal oposição. Um deles é que essa Faculdade era considerada um centro do humanismo médico. Como tal, havia reestabelecido a importância de Galeno para a medicina e só aprovava o uso de medicamentos obtidos por destilação em alguns poucos casos desde que o material de partida fosse vegetal. Outro motivo é que entre as ideias abraçadas pelos paracelsistas destacava-se a reforma do ensino, que para eles não deveria ser apenas teórico, mas unido à prática para que os médicos, conhecendo as virtudes da natureza, pudessem preparar seus próprios medicamentos. Com isso, a divisão hierárquica entre médicos, boticários e cirurgiões, que até então detinham funções específicas, estava ameaçada. Em suma, deveria ser o laboratório e não as leituras sobre Galeno e Aristóteles o foco do estudo em medicina. Além disso, os médicos franceses interessados nas ideias de Paracelso e no uso da Química na medicina eram, em sua maioria, huguenotes, o que

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A IMPLANTAÇÃO DOS CURSOS DE QUÍMICA EM PARIS NO SÉCULO XVII

Laís dos Santos Pinto Trindade

Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência/CESIMA - PUCSP

1.Introdução

Entre o final do século XVI e os primeiros anos do século XVII a discussão sobre

o papel da Química na medicina e na interpretação da natureza provocou acirrados

debates na Europa. Nesse período, o interesse pelos conceitos de Paracelso e os

medicamentos preparados a partir de metais começou a despertar a atenção de médicos,

boticários e cirurgiões.

No entanto, particularmente a Faculdade de Medicina de Paris, refutava tais ideias

e havia conseguido, em 1566, junto ao Parlamento francês, proibir o uso interno do

antimônio, sob a alegação de que era venoso. Assim, também não aceitava a criação de

um curso de Química que ensinasse como obter essas drogas e as tentativas para

implantar cursos particulares de Química foram todas frustradas. (DEBUS, 2001)

Muitos foram os fatores que podem ter contribuído para tal oposição. Um deles é

que essa Faculdade era considerada um centro do humanismo médico. Como tal, havia

reestabelecido a importância de Galeno para a medicina e só aprovava o uso de

medicamentos obtidos por destilação em alguns poucos casos desde que o material de

partida fosse vegetal. Outro motivo é que entre as ideias abraçadas pelos paracelsistas

destacava-se a reforma do ensino, que para eles não deveria ser apenas teórico, mas

unido à prática para que os médicos, conhecendo as virtudes da natureza, pudessem

preparar seus próprios medicamentos. Com isso, a divisão hierárquica entre médicos,

boticários e cirurgiões, que até então detinham funções específicas, estava ameaçada.

Em suma, deveria ser o laboratório e não as leituras sobre Galeno e Aristóteles o foco

do estudo em medicina. Além disso, os médicos franceses interessados nas ideias de

Paracelso e no uso da Química na medicina eram, em sua maioria, huguenotes, o que

também desagradava aos doutores da Faculdade de Paris e exigiam que os estudantes de

medicina fossem católicos1.

Tal situação começou a ser modificada sob o reinado de Henry IV, especialmente

com a assinatura do Edito de Nantes (1598) que permitiu aos protestantes, refugiados

em outros locais da Europa desde o episódio conhecido como a noite de São

Bartolomeu (1572), retornarem para Paris. Simpático ao calvinismo, o Rei nomeou

alguns deles como seus médicos pessoais, entre eles Jean de Ribit (c.1571-1605),

Joseph Du Chesne (c.1544-1609) e mais tarde, Theodore Turquet de Mayerne (1573-

1655)2.

Finalmente, no início do século XVII, com o apoio dos médicos do Rei, Jean

Beguin (1550-1620) criou um laboratório para ministrar um curso particular de

Química, no qual ensinava como preparar medicamentos, atraindo um grande número

de interessados. Para o acompanhamento de suas aulas escreveu um livro, em 1610, o

Tyrocinium chymicum e, de acordo com Debus (2001 ) contou com mais de quarenta

edições ao longo do século XVII. Essa obra tornou-se o modelo para outras obras

publicadas com a mesma finalidade. Logo Paris presenciou a implantação de vários

cursos independentes de Química.3

Mas foi o Jardim do Rei que se tornou um centro de referência no ensino de

Química em toda a Europa, contando em seus quadros com renomados professores e

demonstradores. Foi fundado em 1626, mas apenas em 1648 é que se iniciaram as

primeiras aulas de Química, públicas e gratuitas, com a nomeação de Willian Davidson.

No decorrer do século o interesse pela preparação de medicamentos aumentou

significativamente e a Química passou a fazer parte dos currículos estabelecendo-se

como disciplina nos programas de medicina das universidades europeias. (DEBUS,

1999). Contudo, na Universidade de Paris, apenas em 1698, iniciou-se um curso de

1 Sobre o assunto vide Clericuzio, 2006, Hannaway, 1975. Dedus, A.G., 1970, 1978, 1984. 2 Sobre os médicos da corte, vide: Trevor-Roper, H, 1972, 2006. Debus, A.G., 1997. 3 Para mais detalhes sobre Jean Beguin, vide: Patterson , T.S. 1937, Keller, H., 2002. Metzger, H., 1969.

Rattansi, P.M., 1970.

Química para os estudantes de medicina, mas só em 1756 foi criada a cadeira de

Química prática e teórica. (DEBUS, 1990)

2. O Jardim do Rei

Embora desde o início do século XVI já existissem vários pequenos jardins

botânicos privados em Paris, em 1626, Guy de Brosse (1586-1641) e Jean Héroard

(1551-1628), médicos de Louis XIII, obtiveram, graças a influencia que exerciam sobre

o Rei, a autorização para o desenvolvimento de um projeto ambicioso: criar um jardim,

semelhante ao que já existia em Montpellier, onde pudessem ser adaptadas e cultivadas

plantas medicinais, tanto as nativas como as exóticas, vindas da Ásia e das Américas4.

Para isso foi adquirida um área de cinquenta mil metros quadrados na margem esquerda

do Rio Sena, ao lado da Abadia de St-Victor5. Esse local fora anteriormente utilizado

pelo boticário Nicolas Houël (c. 1524-1587), onde mantinha um curso no qual ensinava

a plantar e manipular ervas para produzir medicamentos. (WAROLIN, 2000). Durante o

século XVII, ficou conhecido como Jardin du Roy, nome que foi modificado no final do

século XVIII para não ser confundido com outra área verde de mesmo nome, um

bosque localizado no Jardim do palácio de Versailles. A partir de então, passou a ser

denominado de Jardin des plantes.

Brosse fora aluno do curso de Jean Beguin e adotava das ideias paracelsistas.

Iniciou seus trabalhos no Jardim do Rei com o plantio das sementeiras. Também

planejou um herbário para espécimes secos e um droguier, ou laboratório, onde os

futuros alunos poderiam aprender a arte da destilação e a preparação de medicamentos,

mas como o projeto gerou muitas objeções, particularmente por parte da Faculdade de

Medicina da Universidade de Paris, o edital de instauração só foi publicado em 1635.

Em 1640 foi inaugurado e dez anos mais tarde, aberto ao público6.

3. Os demonstradores do Jardim do Rei no século XVII

4 Sobre os jardins botânicos vide: Bouvet, M. ,1947 5 A área atual do Jardim é de trezentos mil metros quadrados. 6 Sobre a história do Jardim do Rei, vide: Jauffret, L.F., ano VI da Republica , Bernand, P e Couailhac,

L.,1842, Spary, E.C., 2010.

Finalmente, em 1648 foi iniciaram-se as aulas práticas de Química no Jardim do

Rei, cadeira que foi ocupada por William Davidson (c. 1593-1669), como

demonstrador. Para não acirrar ainda mais as tensões, Louis XIII autorizou que o curso

fosse oferecido, mas não permitiu que se fornecessem diplomas aos alunos, para não

caracterizá-lo como acadêmico. Davidson nasceu em Aberdeen, estudou medicina em

Montpellier e mudou-se para Paris por volta de 1618, onde montou seu próprio

laboratório, no qual oferecia um curso particular de Química e Farmácia7. Entre 1633 e

1665 publicou seu Philosophia Pyrotechinia seu Curriculus Chymiatricus que passou a

ser usado nas suas aulas no Jardim do Rei. Seu curso foi muito bem aceito era

frequentado tanto por filósofos, médicos, boticários e cirurgiões franceses, como

também por ingleses residentes em Paris, entre esses John Evelyn e Thomas Hobbes8.

Segundo Debus (1991), Davidson foi fortemente influenciado pela tradição

alquímica, e sua obra apresenta longas referências às Sagradas Escrituras, aos autores

neoplatônicos e à Paracelso. A maior parte dela é dedicada longas discussões sobre o

universo natural e espiritual em uma complexa articulação entre ideias aristotélicas e

paracelsistas, já que reunia os quatro elementos aos três princípios. Mas para ele, os

últimos constituintes dos corpos eram os átomos, “que em diferentes combinações

formavam os princípios e toda a diversidade de materiais conhecidos” (DAVIDSON,

1651, p.15.). O restante, que tem como tema as preparações minerais, animais e

vegetais, é apresentado na forma de um diálogo entre um aristotélico e um filósofo

químico.

Em 1651, ano em que Davidson deixou o Jardim do Rei para assumir a posição de

médico do rei da Polônia, sua obra foi traduzida para o francês com o título Les Elemens

de La Philosophie e de 1’art Du Feu ou Chemie. Embora tenha mais de setecentas

páginas, de acordo com Metzger (1969) é menor do que a escrita em latim, da qual

foram retidas muitas das especulações filosóficas, mas acrescentados alguns

procedimentos para a obtenção de medicamentos. Nela define a Química como sendo

7 Sobre Davidson, vide: Debus, A. G.,1991, 1992, 1997 e 2001, Metzger, H.1969 e Partington, J.R.,

1962 e Read, J., 1961. 8 Sobre o assunto ver: Darley, G. , 2006 e Shackelford, J., 2004.

ciência e arte, e explica suas origens, que para o autor remonta a Hermes Trimegisto

(DAVIDSON, 1651).

No mesmo ano, em 1651, Nicolas Le Fèvre (1610-1669) assumiu as aulas práticas

de Química. Nessa época, parte dos doutores da Universidade de Paris já aceitavam os

novos medicamentos e as aulas e os livros de Química se multiplicavam. Como

Davidson, Le Fevré era huguenote e adepto de Paracelso. Quando chegou a Paris,

passou exercer a função de boticário e destilador do Rei e também criou um curso

particular em Paris. Entre seus alunos no Jardim do Rei estava Kenelm Digby, que

provavelmente facilitou sua ida para a Inglaterra, em 1660, onde se tornou químico do

Rei James II e mais tarde fellow da Royal Society (DEBUS, 1991). Nesse mesmo ano,

seus apontamentos usados para as aulas foram publicados pela primeira vez, em francês

com o nome Cours de Chymie e contou com várias edições até 17519. Também foi

traduzido para o inglês, em 1662, como A Compleat Body of Chemistry. Em 1669,

escreveu o Traité de la Chymie, com pelo menos cinco edições.

Sua obra, de maneira geral, mostra uma influência importante dos trabalhos de

Paracelso e Van Helmont. Na introdução, do Cours de Chymie, Le Fevré, do mesmo

modo que Davidson, discute as antiquíssimas origens da Química e os diversos nomes

que recebeu ao longo do tempo em diferentes locais. Termina a exposição afirmando

que entre todos, usará o termo “Química, que é o mais comum e o mais conhecido” (LE

FEVRÉ, 1751, p.7) Estabelece três tipos de Química: “uma que é bastante científica e

contemplativa, que pode ser chamada de filosófica. Ela tem por objetivo a

contemplação da natureza e seus efeitos” (LE FEVRÉ 1751, p. 9). Já a segunda espécie

é a Iatroquímica, ciência mista, que tem por objeto de estudo as operações, mas apenas

“aquelas que se consegue alcançar por meio da Química contemplativa e científica”

(LE FEVRÉ, 1751, p.10). O terceiro tipo é a que tem por objetivo apenas as operações,

e deveria ser praticada pelos boticários sob a supervisão de um iatroquímico. A partir

dessas colocações, Le Fevré afirma que a Química “tem por objeto de estudo todas as

coisas naturais que Deus retirou do caos para a criação” (LE FEVRÉ, 1751, p.11).10

9 Para este artigo foi consultada a quinta edição de 1751. 10 Observe-se que, para Le Fevré, as coisas naturais não são apenas aquelas compostas por matéria e

forma, mas também todas as coisa criadas que não possuem organismo.

Assim, no livro I, tece considerações sobre o Espírito Universal, “princípio primevo do

qual se originam todos os outros” que é a “fonte e raiz de todas as coisas, sendo uma

substancia homogênea, espiritual e [...] e contém os outros três princípios”. (LE

FEVRÉ, 1751, p.18).

Para o autor, a matéria é constituída por cinco substâncias: das quais três

princípios (o mercúrio ou alma, o enxofre ou óleo e o sal e dois elementos (a fleuma ou

água e a terra). Essa ideia tornou-se comum o período, provavelmente pela influência

dos trabalhos de Joseph Du Chesne (c. 1544-1909), e aparece especialmente no livro V

da obra Le Grand Mirroir du Monde (1587 ) e no Traicté de la Matière (1626) nos qual

discute os quatro elementos, afirmando que, na verdade seriam apenas dois: terra e

água. Para Du Chesne (1587), o fogo não deveria ser considerado porque não é citado

no Gênese e o ar não passaria de “água sublimada” . E de acordo com Le Frevré, os três

princípios são ativos e formais “em função de suas virtudes penetrante e sutis”

enquanto os outros dois são materiais, passivos e menos eficazes (LE FEVRÉ 1751, p.

30).

Em seguida, trás uma discussão muito interessante sobre a natureza dessas

substâncias. A questão que se coloca é reconhecer se são naturais ou artificiais, ou seja,

se preexistem na natureza ou são obtidas pela arte. Embora Le Fevré não descarte que

sejam extraídas dos compostos por meios artificiais (pela calcinação, destilação e

outros), reafirma que são naturais e a arte só “fornece os recipientes próprios para

recebê-las, porque tais vasos não existem na natureza para torná-las visíveis e

palpáveis”. (LE FEVRÉ, 1751, p.32).

A segunda parte do Cours de Chymie trata das operações usadas pela Química,

tais como destilação, sublimação, cristalização, retificação, entre dezenas de outras. Em

seguida, trata dos diferentes tipos de aquecimento, dos graus de calor, recipientes,

fornos e todo tipo de material utilizado no laboratório, que são descritos

detalhadamente. Os procedimentos para a obtenção dos medicamentos seguem a

tradicional divisão entre os reinos vegetal, animal e mineral. No entanto, Le Fevré

assegura que os melhores são aqueles obtidos dos animais e dos vegetais e que a

Química os prepara de maneira que tenham um sabor mais agradável e sejam mais

benéficos ao organismo humano. Quanto àqueles extraídos a partir dos minerais, afirma

que são “mais violentos” e só devem ser utilizados no caso de doenças mais graves e

em quantidades muito pequenas, mas “eles não são venenosos e nem contrários à

natureza humana” porque são preparados da maneira correta pela arte (LE

FEVRÉ,1751, p. 186-188). Claro que ele não deixa de discorrer sobre as virtudes do

antimônio, especialmente porque a partir de 1658, depois que Louis XIV foi curado

com o vinho emético, esse medicamento passou a fazer parte da lista de purgativos

aprovados pela Faculdade de Medicina de Paris11.

Quando Nicolas Le Fevré mudou-se para Londres em 1660, onde também se

tornou fellow da Royal Society em 1663, Christophle Glaser (1615-1678) ocupou seu

lugar como demonstrador por um período de onze anos, até 1671. Como seus

antecessores também oferecera um curso particular de Química em Paris e escreveu seu

Traité de la Chymie utilizado para o acompanhamento das aulas no Jardim do Rei . Esse

livro, publicado pela primeira vez em 1663, é bastante semelhante, na forma, àqueles

que o precederam. No entanto, difere dos livros de Davidson e Le Fevré especialmente

na parte teórica, bastante sucinta. 12

No prefácio já explicita suas intenções: de escrever de maneira clara, de nada

dizer além daquilo que sabe, nada registrar que já não tenha experimentado, e utilizar-

se de um “método breve e de fácil entendimento” (GLASER, 1668, prefácio). No

primeiro capítulo da obra, como Davidson e Le Fevré, Glaser discorre sobre a

etimologia da química e as diferentes palavras usadas para designá-la, mas encerra

afirmando que se referirá a essa nobre arte científica como Química. Em seguida, lista

os grandes benefícios que esse conhecimento gera para a humanidade: considerava-a

útil, não só para os médicos, cirurgiões e boticários, que por meio desses saberes seriam

capazes de compreender “as diversas operações que ocorrem no corpo humano” sem o

que, não seria possível “promover a cura das doenças nem confeccionar medicamentos

mais puros” (GLASER, 1668, p.4). Também avalia a grande importância para outros

campos do saber e do fazer, pois a Química seria a “chave capaz de abrir a porta dos

segredos naturais ao reduzir todas as coisas aos seus princípios, dando-lhes novas

11 Sobre a inclusão do vinho emético, ver Debus, 2001. 12 Neste artigo tilizou-se a 2ª edição de 1668.

formas imitando a natureza em todas as suas produções”. Assim, “as artes mecânicas,

as mais relevantes, necessitam do auxílio da Química”, porque com ela contariam os

pintores, gravadores e tintureiros para confecção de materiais com melhor qualidade,

necessários às suas respectivas artes (GLASER, 1668, p. 5).

Embora de maneira muito breve, expõe suas ideias sobre a composição da

matéria. Sem entrar em maiores detalhes Glaser afirma que ela é formada por

“diferentes substâncias, que os filósofos chamam de princípios”. Dentre eles, três são

ativos: o espírito ou mercúrio, o óleo ou enxofre e o sal; água ou fleuma e a terra,

passivos. Contudo, ao descrever brevemente os dois últimos, justificava que eles eram

pouco importantes para os corpos, porque a fleuma tem como função “corrigir a acidez

do sal e do espírito, além de impedir a combustão do óleo, e a terra, necessária apenas

para reter os princípios ativos” e deixaria de ser útil quando os princípios fossem dela

retirados. (GLASER,1668, p.6)

Glaser identificou o mercúrio como sendo “dos três [princípios], na combustão

[dos mistos], o primeiro que se apresenta aos nossos sentidos” e o responsável por

gerar a vida e permitir o crescimento dos corpos. Entretanto, por ser muito volátil é

facilmente eliminado, “por isso os materiais nos quais há o predomínio dessa

substância não são muito duráveis”. Tal fato, de acordo com Glaser, pode ser

comprovado ao se observar os animais e vegetais “que perecem bem, antes que os

minerais e metais, por serem estes últimos praticamente destituídos desse princípio”.

Quanto ao enxofre “substância oleaginosa, sutil, penetrante e inflamável [...] é o

responsável pela beleza ou deformidade dos animais, pelas diferentes cores e odores

dos vegetais e pela ductibilidade e maleabilidade dos metais”. Mas diferentemente dos

seus antecessores, identifica dois tipos diferentes de enxofre em função da presença de

outros princípios: um, mais leve, impregnado de “partículas espirituais, flutuam na

água”; o outro, mais pesado contém “porções de sal”. (GLASER, 1668, p.6-8)

O segundo livro é dedicado aos procedimentos para o preparo de medicamentos e

os de origem mineral, ocupam lugar de destaque na obra, provavelmente porque Glaser

os considerava mais importantes e eficazes para a cura das doenças graves. Os outros

dois capítulos são destinados às drogas medicinais obtidas dos animais e vegetais.

Em 1671 Glaser foi convidado a encerrar suas aulas no Jardim do Rei por sua

implicação em um dos maiores escândalos de homicídio de Paris, conhecido

como “L'Affaire des Poisons”. Acusado de preparar o veneno utilizado nos diversos

crimes cometidos pela marquesa de Brinvilliers, foi enviado para a Bastilha, mas acabou

sendo libertado por não haver evidência de sua participação, afinal o arsênico branco era

usado contra os ratos e Glaser não teria como saber que seria usado com finalidades

criminais. (JAUSSAUD & PORTIER).

O Traité de Glaser alcançou um grande sucesso entre seus leitores. Segundo

Ferguson (1909) foram oito edições francesas: quatro em Paris nos anos de 1663,

166813, 1673, 1678; três em Lyon em 1670, 1676, 1679, e uma em Bruxelas, de 1676;

três germânicas em 1677, 1684 e 1710 e uma edição inglesa intitulada The Compleat

Chymist publicada em Londres em 1677.

Com o afastamento de Glaser, Moyse Charas (1619-1698) assumiu o lugar de

demonstrador, no qual permaneceu por nove anos, entre 1671 e1680. Escreveu um

grande número de obras, das quais as mais conhecidas são o seu tratado farmacêutico

sobre as víboras, Nouvelles expériences sur la vipère (1669) e a Pharmacopée royale

galénique et chimique (1676), esta última com três edições francesas, foi traduzida para

várias outras línguas, inclusive para o chinês (DEBUS, 1991). A Pharmacopée royale

se assemelha em muito às publicações do período, mas discute mais longamente sobre

as operações, com especial destaque às destilações. Sobre a composição da matéria,

como seus antecessores, adota a ideia de que era formada por três princípios ativos e

dois passivos: o espírito, ou mercúrio, o óleo ou enxofre e o sal, e terra e água. Por ser

calvinista, Charas foi obrigado a deixar a França em 168014.

4. Outros autores

Não foram apenas os demonstradores do Jardim do Rei que obtiveram êxito na

divulgação de seus livros. Três anos após a primeira edição do Traité de Glaser foi

13 Há aqui uma divergência de datas. Ferguson (1906) aponta a segunda edição francesa com tendo sido

impressa em 1667, no entanto essa é a data da renovação do privilégio do Rei. O livro foi editado em

1668. 14 Utilizou-se a edição de 1704

publicada, em Paris, em 1666, uma pequena obra intitulada La Chymie Charitable et

facile, en faveur des dames, com seis edições em francês nos anos de 1666 (foram duas

impressões no mesmo ano), 1674, 1680, 1687, 1711; outras seis no germânico datadas

de 1673,1676,1689, 1712, 1731 e 1738 e uma em Veneza, de 168215. Além dessas, há

ainda uma reimpressão publicada em 1999 pelo Centre National de la Recherche

Scientifique. Isso não seria excepcional, caso não fosse dedicada às damas e assinada

por uma mulher: Marie Meurdrac.

Pouco se sabe sobre sua vida, o fato é que dela restou apenas esse tratado

dedicado à Marguerite-Louize-Suzanne de Bethune Sully (1645-1726), bisneta do

Duque de Sully, ministro do Rei Henry IV. Como se trata de uma família huguenote é

possível que Meurdrac igualmente o fosse. De qualquer forma, sua obra conta com o

privilégio do Rei e com a autorização dos médicos da Universidade de Paris. Também

não há qualquer informação acerca de sua relação com o Jardim do Rei, mas exemplares

de seu livro pertenceram às coleções particulares de John Locke (1633-1704) , Michel

Eugène Chevreul, (1786-1889) ambos ligados àquela instituição, e do médico e

professor da Universidade de Paris Pierre-Jean Burette (1665-1748). 16 Além disso, o La

Chymie Chatitable foi publicado por Jean d’ Hoüry, uma importante casa editorial da

época, que também detinha o direto de impressão dos livros de Nicolas Le Fevré e

Christophle Glaser. Desse modo, é possível que Meurdrac frequentasse as aulas de

Química.

Na introdução, Marie Meurdrac detalha a organização da obra e os motivos que a

levaram a publicá-la. Embora assegure que não tinha a intenção de ensinar, já que “não

é uma profissão feminina” e que os homens “desaprovam e desprezam as produções

que partem do intelecto de uma mulher”, afirma que estava convencida que não seria

ela a primeira a escrever um livro, pois “a mente não tem sexo” e que se fossem

instruídas como o são os homens, poderiam igualar-se a eles (MEURDRAC,

introdução). Na primeira parte da obra, fundamenta sua teoria sobre a matéria,

discorrendo, em seguida, sobre as operações – especialmente as destilações – as formas

de aquecimento, os banhos e lutos. Inicia a segunda parte anunciando as vantagens dos

15 Vide Tosi, L. (1995). 16 Sobre Marie Meurdrac, vide Trindade, 2010.

simples e dos medicamentos destilados a partir deles, sobre aqueles obtidos a partir de

minerais e animais17. A terceira parte é dedicada aos medicamentos produzidos a partir

dos animais. Na quarta, a mais curta de seu trabalho, encontram-se os procedimentos

para a obtenção de drogas a partir dos metais e minerais. Observa que devem ser

preparados com precisão e utilizados com muito cuidado, por serem “medicamentos

violentos.” (MEURDRAC, 1674, p. 153). A quinta parte é a dos medicamentos

compostos, isto é, preparados a partir de dois ou mais simples. A parte mais extensa da

obra é constituída por uma coletânea de “segredos raros” para uso feminino que incluía

entre os cosméticos “águas” cicatrizantes contra as rugas, sardas e vermelhidão da face.

Outras seriam indicadas para tingir os cabelos, clarear as mãos, curar algumas doenças

da pele e há ainda, pomadas, óleos e dentifrícios para branquear os dentes. Utilizava

nessas destilações folhas, flores, frutos, sementes, cascas e raízes de vegetais e produtos

de origem animal e mineral, mas alerta contra o uso do mercúrio, uma vez que “produz

doenças muito desagradáveis e algumas incuráveis” (MEURDRAC, 1674, p. 252)18.

Em poucas páginas Meurdrac expõe sua concepção sobre a matéria, o que

concorda com sua ideia de que a Química é uma arte que teria como objetivo estudar

“os corpos mistos divisíveis e solúveis sobre os quais ela age para extrair os três

princípios que são sal, enxofre e mercúrio” (MEURDRAC, 1674, p. 8). Nesse aspecto,

difere do conceito mais comum na época que, como já foi visto, incluía A tria prima e

os elementos água e terra. Para ela, existiriam três formas diferentes de cada um desses

princípios.

Outra obra que merece destaque e parece ter ofuscado as anteriores em função de

seu sucesso foi o Cours de Chymie (1675) de Nicolas Lémery (1645-1715). Foi

impresso não apenas em Paris, mas também em Lion, Avignon e Bruxelas, e traduzido

para o alemão, espanhol, latim e inglês, num total de 23 edições ampliadas e revisadas

pelo autor 19.

17 Para Meurdrac, simples são os vegetais com propriedades curativas. 18 Foi consultada a 2º edição francesa da obra, de 1674. 19 Sobre o assunto ver Metzger (1969), Guedón (1974) e Hannaway ( 1975).

Lémery frequentou o curso de C. Glaser e continuou seus estudos em Montpellier.

Em 1672 retornou para Paris e em 1676 abriu um curso de Química que atraiu a atenção

de aprendizes de boticários, médicos, intelectuais e também da sociedade parisiense

interessada em demonstrações científicas ( HANNAWAY, 1975).

O Cours de Chymie segue a mesma linha de seus antecessores. Começa

explicando a origem grega da palavra química e a define como arte, em seguida disserta

sobre os princípios, fornos, lutos, tipos de aquecimento e os termos mais utilizados. A

primeira parte é dedicada a obtenção de medicamentos a partir dos metais, a segunda,

dos vegetais e por fim dos animais. 20

Também admitia a ideia de um princípio primevo, o espírito Universal, que “se

difundia por tudo, produzindo as diferentes coisas”, mas por considerar tal ideia “um

pouco metafísica” preferiu levar em conta apenas as “substâncias sensíveis” obtidas dos

procedimentos químicos. (LÉMERY, 1675, p. 7). Utiliza-se da ideia corrente de que

esses princípios ou substâncias dividiam-se em três ativos: o espírito ou enxofre, o óleo

ou enxofre e o sal; e a terra e água, os passivos. No entanto, Lémery (1675, p.8) admitia

a existência de três diferentes tipos de sais: o fixo, o essencial e o volátil. Como Marie

Meurdrac, Lémery também obteve a autorização da Faculdade de Medicina de Paris

para sua publicação.

5. Considerações finais

Esses livros possuem praticamente a mesma estrutura e tiveram um número

bastante expressivo de edições, o que pode indicar que, apesar de ainda não ser estudada

na Faculdade de Medicina de Paris, a Química francesa vinha conquistando seu espaço,

não apenas na França, mas também na Europa. Esses professores e demonstradores

começaram libertar a disciplina de sua subordinação à medicina e cursos por eles

oferecidos tornaram-se cada vez mais populares. Os livros, dirigidos a um público mais

amplo e diversificado, foram lidos por médicos, acadêmicos, filósofos naturais,

boticários e leigos interessados no assunto. Se a descrição das diversas operações e

instrumentos mostra pequenas mudanças no decorrer do século, o aprofundamento

20 Neste estudo utilizou-se a primeira edição do Cours de Chymie, de 1675.

sobre as ideias de composição da matéria, bem como a definição e escopo de química se

altera. A mudança é sensível: da seção curta dedicada à teoria em Tyrocynium do

Beguin, passou-se a longas discussões metafísicas sobre a teoria da matéria e

composição mistos nos textos de Le Fevré para uma visão mais operacional nos livros

de Glaser, Meurdrac e Lemery. A difusão desses livros pela Europa mostra que nesse

período foi sendo construída uma sólida tradição no ensino da Química, embora o

debate sobre o estatuto científico da química como área de conhecimento só começou a

ocorrer no século XVIII. Sob a inspiração desses professores foi introduzida como

disciplina nas Universidades europeias e alcançou uma posição acadêmica respeitável

no curso do século XVII.

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