a Ética aristotÉlica

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 Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 24, n. 78, 1997 383 SÍNTESE NOVA FASE V. 24 N. 78 (1997): 383-410  A  A  A  A  A  ÉTICA ÉTICA ÉTICA ÉTICA ÉTICA   A R I S T O T É L I C A  A R I S T OT É L I C A  AR I S T O T É LI C A  A R I S T OT É L I CA  A R I S T O T É L I C A Paulo Cesar Nodari UFMG — BH Resumo:   A é ti ca ari stoté li ca. O objetivo deste artigo é mostrar que o estudo da ética de Aristóteles é fundamental ao estudo da ética ocidental. A ética de Aristóteles é uma ética do bom senso, fundada nos juízos morais do homem bom e virtuoso. Neste sentido, mostraremos que a ética de Aristóteles se articula a partir de uma pergunta fundamental: qual é o bem supremo do homem e o fim a que tendem todas as coisas? Evidenciaremos, então, que o bem supremo do homem é a felicidade. É a atividade da alma conforme a razão e a virtude. É a atividade contemplativa do intelecto. Por fim, mostraremos brevemente que a verdadeira felicidade do homem bom e virtuoso está na síntese entre a vida contemplativa e a vida ativa. Palavras-chaves: Aristóteles, Ética, Virtude, Contemplação, Felicidade Summary:  The ari stoteli an e thi cs. The aim of this article is intended to show that the study of the ethics in Aristotle is fundamental to the study of the occidental ethics. The ethics in Aristotle is an ethics of good sense, groundede in the moral judgements of good end virtuous man. In this sense, we will show that the ethics of Aristotle is compound from a fundamental question: What is the supreme good of man and the end to wich all things tend? We will make evidente thus that the supreme good of man is happiness. It is agency of the soul, in accordance with reason and virtue. It is the contemplative agency of the intellect. Finally, we will show briefly that the real happiness of a good and virtuous man rests in the synthesis between the contemplative life and the active life. Key words: Aristotle, ethics, virtue, contemplation, happiness

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Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 24, n. 78, 1997  383

SÍNTESE NOVA FASE

V. 24 N. 78 (1997): 383-410

AAAAA  ÉTICAÉTICAÉTICAÉTICAÉTICA  ARISTOTÉLICAARISTOTÉLICAARISTOTÉLICAARISTOTÉLICAARISTOTÉLICA

Paulo Cesar Nodari

UFMG — BH

Resumo:  A ética aristot élica. O objetivo deste artigo é mostrar que o estud o da éticade Aristóteles é fundamental ao estudo da ética ocidental. A ética de Aristóteles éum a ética do bom sen so, fun dada n os juízos morais do hom em bom e virtuoso. Nestesentido, mostraremos que a ética de Aristóteles se articula a partir de uma perguntafund amental: qual é o b em supremo d o homem e o fim a qu e tendem todas as coisas?Evidenciaremos, então, que o b em su premo d o hom em é a felicidade. É a atividade d aalma conforme a razão e a virtude. É a atividade contemp lativa do in telecto. Por fim,mostraremos brevemente que a verdadeira felicidade do homem bom e virtuoso está

na síntese entre a vida contemplativa e a vida ativa.Palavras-chaves: Aristóteles, Ética, Virtude, Contemplação, Felicidade

Summary: The aristotelian ethics. The aim of this article is intended to show th at thestudy of the ethics in Aristotle is fundamental to the study of the occidental ethics.The ethics in Aristotle is an ethics of good sense, ground ede in th e moral judgem entsof good end virtuous man. In this sense, we will show that the ethics of Aristotle iscompoun d from a fun damental question: What is the supreme good of man and th eend to wich all things tend? We will make evidente thus that the supreme good of man is hap pin ess. It is agency of the soul, in accordance with reason and virtue. It isthe contemp lative agency of the in tellect. Finally, we w ill show briefly that th e real

happ iness of a good and virtuous m an rests in the synthesis between the contemplativelife and the active life.Key words: Aristotle, ethics, virtue, contemp lation, happ iness

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  I . Considerações gerais acerca da éticaar i s to té l i ca

Oestudo do pensamento de Aristóteles é fundamental ao estudo da ética. Ninguém consegue escrever e falar de éticasem falar e tratar de Aristóteles, seja para inspirar-se, seguir

ou criticar sua concepção. Aristóteles foi o grande sistematizador daciência ocidental1. O ponto de partida de Aristóteles é a reflexãoacerca da ciência. Divide o saber em teórico, prático e poiético. Nasistematização aristotélica do saber as ciências práticas vêm em se-gundo lugar. Estas são hierarquicamente inferiores às ciências teóri-cas, enquanto nas ciências práticas o saber não é mais fim para simesmo em sentido absoluto, mas subordinado e, em certo sentido,servo da atividade prática.

“Estas ciências práticas, de fato, dizem respeito à conduta dos homens, bemcomo ao fim que através dessa conduta eles querem alcançar, seja enquantoindivíduos, seja enquanto fazendo parte de uma sociedade, sobretudo dasociedade política”2.

Neste sentido, Aristóteles é o fundador da ética como “ciência prá-tica”, em contraposição à ética como “ciência teórica” intentada porPlatão3. O p ensamen to ético d e Aristóteles, pode-se dizer, é desenvol-vido, sobretudo, nas obras: Ética a Eudemo, Ética a Nicômacos, Políticae Grande Ética.

A Ética a Nicômacos é a obra ética mais importante de Aristóteles euma das obras que mais fortemente inspirou o pensamento ocidental.Para melhor entendê-la, urge situá-la na evolução do pensamento deAristóteles. A Ética a Nicômacos, provavelmente, situa-se na fase “ins-

1 Cf. MANFREDO ARAÚJO  DE OLIVEIRA, Ética e sociabilidade, São Paulo, Loyola, 1993,p. 55.2 GIOVANNI REALE,   História da Filosofia Antiga, V II, São Paulo, Loyola, 1994, p. 405.3

Discordando de Platão, para Aristóteles, o primado é da práxis e não da teoria. Opensamento deve contribuir para a própria atividade da vida humana. Aqui o pen-samento não tem no próprio pensamento o seu fim, mas ele é prefácio à praxis. Ofim da teoria é contribuir para a bondade da práxis humana. Para Aristóteles, oexistir e o ser éticos supõem a vida na pólis. É a condição da vida racional. Assim,o engajamento político é pressuposição de teoria política. Para Aristóteles, éticaneutra é contra-senso. Pretendê-la significa desconhecer a estrutura específica daciência em questão. A reflexão ética é o ato através do qual o homem rompe o caráteropressor de todo “ethos” e transforma sua vida, até então realizada ingenuamente noseio de determinado “ethos”, numa vida racional, produzida pela razão consciente desi. Da reflexão ética não resulta necessariamente a destruição do “ethos” vigente,mas, antes, a legitimação racional da ação humana, ou seja, a compreensão das

razões que justificam tal modo de agir. Trata-se, em Aristóteles, da unidade originá-ria entre um fato e uma exigência moral, isto é, uma síntese entre o incondicionadoe o condicionado. Ver a respeito, MANFREDO ARAÚJO  DE OLIVERIA, op. cit., pp. 55-77.

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trumental-mecanicista” do pensamento aristotélico4. Esta fase começa,em 347, quando Aristóteles deixa Atenas, após a morte de Platão, e vai,provavelmente, até 335/ 334, quand o Aristóteles rompe com certos as-pectos da doutrina platônica. Nesta fase, Aristóteles renunciara a dou-trina das idéias e rejeita o pessimismo platônico. A concepção aristotélicado homem, neste período de transição, situa a alma hierarquicamenteacima do corpo, mas sem dar-lhe qualquer transcendência. O corpo éum instrumento d a alma e deve colaborar com ela na realização da suatarefa enquanto homem. A alma comanda e o corpo obedece. O corpoé subordinado como instrumento da alma5. O corpo é, total e exclusi-vamente, feito para o bem da alma6

Outro ponto importante a elucidar é o método aristotélico subjacente àÉtica a Nicômacos. Aristóteles não aceita o método m atemático de Platão7.Condena absolutamente a exigência de um método geométrico exato.Deve-se tratar de ganhar com o raciocínio, porém empregando os fenô-menos como provas e como exemplos. Ademais, é necessário pôr anorma filosófica em harmonia com as idéias éticas imperantes, colocan-do de manifesto o núcleo de verdade encerrado nelas por meio de umamanipulação conceptual das mesmas8. Aristóteles, na Ética a Nicômacos,opõe-se, explicitamente, aos que pedem um método exato 9. Este é in-compatível com a natureza da ética. A ciência aristotélica é a éticaaplicada e não a ciência abstrata. A ética aristotélica é uma ética do

4 A respeito das fases da evolução do pensamento aristotélico, ver MARCELO PERINE,

Nas origens da Ética Ocidental: Ética a Nicômaco, in Síntese 25 (1982): 21-38. Vertambém Giovanni Reale, op. cit., pp. 315-318.5  Ética a Nicômacos, VIII, 11, 1161 a.6 Ver a este respeito, R. A. GAUTHIER,   La morale d’Aristote, Paris, 1963, p. 18.7 O procedimento metodológico, em Aristóteles, é bem diverso daquele de Platão. Areflexão ética não pode partir do incondicionado. Deve partir da experiência ético-prática. Trata-se, pois, não de partir da idéia do bem enquanto tal, mas de fazeremergir o bem a partir da pólis e das suas instituições. Ver a respeito, Manfredo deAraújo de Oliveira, op. cit., pp. 55-71. Aristóteles foi o primeiro a oferecer umaapresentação consistente das disposições da ação constitutivas para uma vida bem-sucedida, ou seja, para uma práxis racional. Para designá-la, o filósofo utilizou umanova expressão ética, criada a partir da palavra grega “ethos”. O termo grego desig-

na o local de estada permanente e habitual, e, por conseguinte, também a moradado costume e da moral. Essa morada contém e orienta nosso agir, mas é tambémreproduzida e modificada por ele. Aristóteles refere-se à disciplina que criou como a“filosofia das coisas humanas” (Ética a Nicômacos, X, 9, 1181 b), diferenciando-a dafilosofia teórica. Ver a respeito, ROBERT SPAEMANN, Felicidade e benevolência: ensaiosobre ética, São Paulo, Loyola, 1996, p. 27.8 Cf. WERNER JAEGER,  Aristotes, México, Fondo de Cultura Economica, 1946, pp. 267-269.9 Para bem compreender esta oposição de Aristóteles ao método matemático, é im-prescindível ter clareza da diferença entre as ciências exatas e a ciência ética. Aciência exata é uma ciência demonstrativa, tem um raciocínio exato, parte dos pri-meiros princípios — sendo estes adquiridos por abstração dos dados sensíveis. Já aciência ética não consiste em partir dos primeiros princípios, mas remontar aos

princípios, parte não da inteligência em si, mas disso que nos é familiar, dos fatos eremonta à razão subjacente, resgata os princípios da conduta. Além disso, a ciênciaética, deve: — aceitar, aprovar sobre questões morais, as opiniões gerais que repre-

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bom senso, fundada nos juízos morais do homem que possa conside-rar-se, em geral, bom e virtuoso. Aristóteles procurou fundar suaética referindo-se à natureza humana como tal.

  II. O bem supremo do homem: a  f e l i c idade

Esclarecidos esses aspectos preliminares, podemos, agora, iniciar, pro-priamente, a discussão do problema do bem supremo em Aristóteles.Logo no início da Ética a Nicômacos, Aristóteles dá o tom geral de todasua ética. Toda arte e toda investigação e igualmente toda ação e todaescolha tendem a algum bem 10. Toda ação visa alguma coisa e de sua

tendência a produzir esta coisa ela tira seu valor. A ética aristotélica énitidamente teleológica. Aristóteles interpreta a ação humana segundoa categoria de meio e fim. O fim ao qual tende uma ação particular nãopode ser senão um meio em vista de um fim ulterior, mas é necessárioque tenha um limite para a seqüência. Cada ação deve ter um fimúltimo que tenha um valor nele mesmo, e, conclui Aristóteles, semhesitação, o fim último de todas as coisas deve ser o mesmo11.

Após notar uma diferença quanto aos fins, uns na atividade, outros daobra12, Aristóteles aborda a hierarquia dos bens, descobrindo que o bem

sentam a sabedoria coletiva da raça; deve partir disso, para atingir os primeirosprincípios; — examinar as crenças, compará-las, entre si, purificando-as de suasinexatidões e incoerências, para resgatar as virtudes. A ética, portanto, não é de-monstrativa. Aristóteles raciocina dialeticamente, partindo não dos primeiros prin-cípios, mas das opiniões do grande número de homens. Ver a respeito, W. D. ROSS, Aristote, Paris, Payot, 1930, p. 265.10  Ética a Nicômacos, I, 1, 1094 a.11 Cf. W. D. ROSS, op. cit., p. 263.12 A partir da divisão da ciência, pode-se dizer que a atividade nas ciências práticas

(ética e política) constitui-se na práxis, enquanto, nas ciências poiéticas, na poíesis= no trabalho. O que caracteriza a práxis como ação imanente é a “enérgeia”, isto é,o ato, a perfeição. Enquanto que a poíesis é a “kinesis”, ou seja, a atividade vai dosujeito ao objeto. A primeira é uma ação do sujeito para o sujeito = é auto-realização.A segunda é uma ação do sujeito para o objeto = é uma hétero-realização. Enquantoa primeira busca a virtude, a segunda busca a habilidade. Na práxis, a própriaatividade se constitui no próprio fim; a atividade tem intrínseca seu próprio fim. Já,nas ciências técnicas, a atividade não tem o fim em si mesma. Ver a respeito, HenriqueClaúdio de Lima Vaz, Escritos de Filosofia II: Ética e cultura, São Paulo, Loyola,1993, pp. 80-134. Ainda neste sentido, a obra de arte requer tempo, força, concentra-ção e esforço, sem que tais fatores externos se integrem à própria obra e constituampontos de vista para seu julgamento. Por outro lado, o sucesso da vida não é, pois,

o resultado de uma poíesis, de um fazer, mas sim o todo de uma práxis, de um atuar,uma diferença que Aristóteles foi o primeiro a apreender terminologicamente. Ver arespeito ROBERT SPAEMANN , op. cit., pp. 43-47.

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não é único e unívoco, mas é algo polívoco e sempre ligado por umarelação de analogia. Não se trata de um bem transcendente, masimanente, não se trata de um bem definitivamente realizado, mas deum bem realizável e atuável pelo homem e para o homem. A noçãoaristotélica do bem é, então, uma noção analógica e não unívoca comoa idéia separada do bem por Platão13, e a ética é a ciência do bem doindivíduo, como a política é a ciência do bem na sociedade política.

Há uma variedade de ações e, conseqüentemente, uma variedade debens14. Mas há um bem soberano que não depende de nada. Dependesomente de si mesmo e em vista dele desejamos todos os demais.Este bem deve ser final, isto é, escolhido por ele mesmo e não comoum meio para atingir outra coisa qualquer. Deve ser suficiente porele mesmo, isto é, tornar, por ele mesmo, a vida digna de ser esco-lhida. É auto-suficiente e pode ser definido como aquilo que, em si,

torna a vida desejável por não ser carente de coisa alguma. É, por-tanto, algo final e auto-suficiente, e é o fim a que visam as ações 15.

Aristóteles quer saber, então, qual é o bem sup remo, absoluto e o fimde todas as nossas atividad es e d e qual ciência ele é objeto. SegundoAristóteles, é aquilo a que todas as coisas aspiram e buscam. Este fimsupremo ou soberano bem não é mais um meio em vista de um fimulterior, mas é algo buscado por ele mesmo, em vista do qual todosos outros fins particulares são buscados e subordinados hierarquica-mente. Sem este fim último, absoluto a faculdade do desejar seria

vazia e vã. Portanto, o soberano bem é a condição para que os outrossejam bens. Com essa compreensão, não podemos fazer da riqueza edo prazer16 o fim da vida, tornar-nos-íamos semelhantes a bestas enão exerceríamos a atividade específica de homens. Aristóteles acre-

13 Platão havia proposto uma espécie de bem abstrato, uma forma de bem que seriaa fonte de toda bondade. Aristóteles objeta: — porque o termo bem não tem signi-ficação comum a todas as aplicações; — porque ele não é uma forma de bem inde-pendente das manifestações particulares; — porque se ele tivesse uma forma de bemseparado, ela não serviria para nada na prática. O bem para o homem é o bem maior

no qual a contemplação deve ajudar-nos em nossa vida diária. Ver a respeito W. D.ROSS, op. cit., p. 267. Ver também, G IOVANNI REALE, op. cit., p. 408.14  Ética a Nicômaco, I, 1, 1094 a.15  Ética a Nicômacos, I, 7. A respeito de ser algo final e imprescindível, deve-se terpresente que Aristóteles, na sua doutrina, aproxima princípio e télos. Tudo aquiloque está para o “devir” caminha para o princípio e sua finalidade. Então, segundo aordem do “devir”, a felicidade é o télos, mas, na ordem da essência, a felicidade é oprincípio. Ver Aristóteles,  Met ., 1049 b 1 — 1050 a 23.16 Segundo Aristóteles, há três tipos principais de vida: a vida do prazer, a vidapolítica e a vida contemplativa (cf. Ética a Nicômacos, I, 5, 1095 b). Não há dúvidasde que, para Aristóteles, a mais perfeita e a ideal é a vida contemplativa. Nestemomento, não iremos analisar as características de cada tipo de vida. Salientamos,

no entanto, que a respeito da compreensão aristotélica do prazer em relação à feli-cidade, nós trataremos no ponto VI: o prazer e a felicidade, conforme p. 19. Veradiante a este respeito também nota “81”.

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dita que a felicidade é este bem soberano, porque é algo final e auto-suficiente. Acerca de qual ciência é objeto, aparentemente, ele é ob-

  jeto da ciência mais imperativa e predominante sobre tudo. Pareceque ela é a política, pois ela determina quais são as demais ciênciasque d evem ser estud adas em um a cidad e e legisla sobre o que d eve-mos fazer e sobre aquilo de que devemos abster-nos. Desse modo, afinalidade desta ciência inclui a finalidade das outras e esta finalida-de deve ser o bem do homem 17.

Assim, um só bem tem uma perfeição absoluta. É desejado “por si”e “por causa de si” sem jamais ser subordinado a um outro bem. Ora,como já dissemos, um só bem responde a tal exigência. É a felicidade.Deste modo, os prazeres, a potencialidade política, a contemplação,que são fins últimos para cada um dos gêneros de vida em questãopreeminente, são, na verdade, fins relativos à felicidade. Esta é umverdadeiro fim com toda a excelência e o único fim verdadeiramenteúltimo18 . A Felicidade é, então, o fim último e perfeito, isto que é

 jamais visto em v ista d e outra coisa. Mas é semp re em vista dele queo homem faz tudo o resto. É o bem supremo e final que torna ohomem feliz. A felicidade faz parte dos bens excelentes e perfeitos eela é o princípio em vista do qual nós fazemos todos os nossos atos.E nós dizemos que o princípio e a causa dos outros bens é algoestimável e divino19.

a) A felicidade é a atividade da alma conforme a razão

A felicidade é, por conseguinte, o supremo bem, o bem perfeito quese basta a si mesmo e o único capaz de nos completar 20. Porém,observando atentamente a vida humana, Aristóteles percebeu quecada um tinha seu próprio conceito de felicidade. Para fugir e supe-rar o subjetivismo e também do bem universal na concepção platô-nica, o qual não seria o bem de nenhum sujeito, Aristóteles tem amissão de encontrar qual é a atividade própria do homem. Ora, a

17  Ética a Nicômacos, I, 2, 1094 a — 1094 b.18 Eis algumas definições gerais de felicidade em Aristóteles. “Felicidade é umaatividade boa” (Fís., 197 b 5). “Felicidade é o exercício e a prática perfeita da virtude”(Pol., 1132 a 9). “Felicidade é uma atividade da alma” ( Met ., 1050 b 1). O fim é oúltimo, é perfeito, contém tudo. Não há nada além do fim ( Met ., 1021 b 25). Felici-dade não é uma atividade artística. Não é uma atividade artística que tem por fima perfeição de uma obra exterior. A moral aristotélica se afasta de toda moral quetoma como fim a plenitude formal do homem ou uma obra exterior enquanto tal, semconsiderar a bondade das intenções interiores. Ver a respeito deste último aspecto,JEAN VANIER,   Le bonheur: principe et fin de la morale aristotélicienne. Paris, Brouwer,

1965, p. 135.19  Ética a Nicômacos, I, 12, 1102 a.20  Ética a Nicômacos, I, 7, 1097 a..

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at ividade própria do homem é a at ividade racional da alma.Aristóteles acredita verdadeiramente que a excelência do homemestá na vida racional21.

A preocupação de Aristóteles era encontrar uma receita que permitisseao homem ser feliz. Os homens querem a felicidade. Porém, a expres-

são felicidade varia com os gregos em função do ponto de partida deseus sistemas. Aristóteles tem como ponto de partida a idéia de que háum princípio e um fim em cada ser e em cada natureza. Com essaconcepção, a partir do método da observação, Aristóteles vai construirsua moral22. O princípio fundamental é que há uma finalidade no uni-verso. Há em cada ser e em cada natureza um princípio interno demovimento, uma tendência a um fim 23. Ora, de acordo com Aristóteles,o fim de um ser é determinado por sua forma 24. Se nós somos, pornossa forma natural, seres racionais, então, é claro que o fim natural

será agir segundo a razão. Todo fundamento da moral aristotélica estánessa proposição, pois, aos olhos de Aristóteles, o homem só é felizquando realiza isto pelo e para o qual ele é feito. E isto pelo e para oqual ele é feito é o “dever” e o fim do homem. Fora dessa atividadesegundo a razão, comandada pela nossa natureza de homem, não épossível entender a felicidade. Esta, portanto, consiste essencialmentenuma atividade conforme a razão e a natureza humana25.

Todas as artes têm uma atividade própria e nesta reside seu bem esua perfeição. Aristóteles recorre a uma analogia com a arte para

mostrar, com efeito, a existência de uma atividade próp ria à natu reza

21 Cf. JOSEPH MOREAU,   Aristote e son école, Paris, 1962, p. 218.22 Cf. MARTIN STANISLAS GILLET, L’activité morale est essentiellement une activitéselon la raison in   Du fondement intellectuel de la morale d’après Aristote, Paris, Vrin,1928, pp. 111-126.23 ARISTÓTELES, Fís., II, 8, 199 a 30.24 A forma, segundo Aristóteles, não é obviamente a forma extrínseca ou a figuraexterior das coisas, mas é a natureza interior das coisas. É a essência íntima dasmesmas. A forma, ou essência do homem, por exemplo, é a sua alma, ou seja, o que

faz dele um ser vivo racional. A forma ou essência do animal é a alma sensitiva e ada planta, a alma vegetativa. Ou ainda, a essência do círculo é o que faz com que eleseja aquela figura com aquelas determinadas qualidades; e o mesmo pode-se dizerdas outras coisas. Quando definimos as coisas, referimo-nos à sua forma ou essênciae, em geral, as coisas só são conhecíveis na sua essência. Ver a respeito dasespecificações sobre os significados do ser GIOVANNI REALE, op. cit., pp. 347-362. Aindaa esse respeito, diz-nos Aristóteles: o fim final e último é o princípio do movimento,é sua causa e por causa dele fazemos tudo o resto. Tudo o que é bom por si e porsua própria natureza é um fim e uma causa no sentido de que as coisas tornam-see existem em vista disto. Ver  Met ., 996 a 24-25. Para Aristóteles, a inclinação dosseres a um fim é um princípio. E todo princípio primeiro é indemonstrável e todaciência depende dos princípios que são premissas de todo raciocínio. “Estas devem

ser verdadeiras e indemonstráveis (...) e elas devem ser as causas da conclusão”. Ver  II Anal., 71 b 24.25 Cf. MARTIN STANISLAS GILLET, op. cit., p. 116.

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do homem 26. É, então, razoável pensar que o bem do homem está naatividade humana que resulta da razão, porque é ela que distingueo homem do animal. A atividade do homem, portanto, difere daatividade do animal. Ora, o que faz a marca específica do homemnão é a potencialidade vegetativa, nem a potencialidade nutritiva enem mesmo a atividade sensitiva. Isso tudo é comum com outrosseres. O que faz a marca específica do homem é o pensamento e arazão que o segue. É a atividade intelectual. Nesta encontra-se a fonteprincipal das alegrias do homem, ou seja, a fonte donde provém averdadeira felicidade. Com efeito, a felicidade do homem consiste noaperfeiçoamento da atividade que lhe é própria, ou seja, na atividadesegundo a razão. O homem deve, então, subordinar o sensível aoracional. A subordinação da atividade sensível à atividade racionalse impõe. É o preço da felicidade humana e a condição da moralhumana. Portanto, para ser feliz, o homem deve viver pela inteligên-

cia e segundo a inteligência27

.Aristóteles afirma que a atividade própria do homem é um certomodo de vida, e este é constituído de uma atividade ou de ações daalma que pressupõem o uso da razão. A atividade própria de umhomem bom é o bom e o nobilitante exercício da atividade da razão.Assim, se o bem para o homem vem a ser o exercício ativo dasfaculdades da alma de conformidade com a excelência e se há maisde uma excelência, então, o bem deve estar em conformidade com amelhor e a mais comp leta entre elas. Mas deve-se acrescentar qu e tal

exercício ativo deve estender-se por toda a vida, porque uma ando-rinha não faz verão e um dia só não faz verão, assim como um curtolapso de tempo não faz um homem bem-aventurado e feliz28.

b) A felicidade é a atividade da alma conforme a virtude

A atividade do homem não é uma atividade da alma vegetativa ousensitiva ou ainda uma atividade ligada ao corpo. É exclusivamente

a atividade da parte racional do homem, distinta dos seres e própria

26 Aristóteles utilizou-se do conceito de “érgon” elaborado por Platão na República (I,352 d — 353 e). O “érgon” de um ser, sua função ou sua atividade própria é a operaçãopela qual ele é feito e que, enquanto seu fim, define também sua essência. Todo ser quetem uma atividade a completar existe, com efeito, para esta atividade (  Do Céu, II, 3,286 a — 8-9) e é no acabamento desta atividade que se reconhece isso que é (Pol., I,2, 1253 a 23;  Met ., 1035 b 16-17). Assim, no homem a atividade e o soberano bemconstituem-se na sua atividade de homem. Ver a respeito R.A. GAUTHIER, op. cit., p. 54.27 Para Aristóteles, a moralidade de um ser se mede, estrita e unicamente, pelarealização do fim que lhe é próprio. O homem, sendo primeiramente uma inteligên-

cia, seu fim é contemplar e sua felicidade é direcionada essencialmente à contempla-ção. Ver MARTIN , STANISLAS GILLET, op. cit., pp. 111-126.28  Ética a Nicômacos, I, 7, 1098 a.

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somente ao homem 29. A atividade racional constitui a natureza pró-pria da felicidade. Assim, para bem entender a felicidade como so-berano bem , faz-se necessário dizer isto. O homem é seu pensamento,não como algo possuído, mas na sua atividade atual. Para que ohomem seja feliz, é necessário que ele acompanhe sua atividade pró-pria de homem e não de qualquer maneira, mas da melhor maneira,isto é, bem. Ora, só acompanha bem sua atividade própria se colocarem atividade a virtude, pois a virtude não é acréscimo que se colocaem atividad e, porque a vida segund o a virtude é evidentemente parteintegrante do acabamento da natureza hu mana. E para qu e o homemse coloque em atividad e da virtud e, é necessário que ela se desenvol-va numa vida de aperfeiçoamento, ou seja, numa vida de maturida-de. Pois, o soberano bem é uma atividade da alma conforme a vir-tude numa vida cada vez mais aperfeiçoada30.

A felicidad e consiste nu ma atividad e segund o a v irtude. A virtu-de constitui a excelência do homem, mas ainda não é o soberanobem. A felicidade não consiste propriamente na virtude, mas naatividade da virtude, na vida racional, para a qual a virtude nosdispõe. A felicidade consiste, então, na atividade conforme a vir-tude, e segundo a virtude mais excelente de todas, a sabedoria. Aalma humana encontra na prática das virtudes, na atividade desuas faculdades racionais a satisfação por excelência 31. Porém,qualquer aprofundamento ulterior do conceito de virtude depen-de de um aprofundamento no conceito de alma. Convém, portan-

to, antes de entrarm os propr iamente na d iscussão da a tividad e daalma segundo a virtude, examinarmos a divisão da alma, poisAristóteles faz a dedução dos tipos de virtude a partir das partesda alma.

  I I I . Dedução da vir tudes a part ir das

  par tes da a lmaA Ética a Nicômacos pertence à fase instrumental-mecanicista do pen-samento de Aristóteles. A característica do pensamento de Aristótelesnesta fase é a concepção do corpo como instrumento e não comoobstáculo para a alma, estabelecendo assim uma relação de interessee de proveito entre os dois, em benefício da alma que está hierar-

29  Ética a Nicômacos, I, 7, 1097 b — 1098 a.

30 Cf. R.A. GAUTHIER, op. cit., p. 55.31 Cf. JOEPH MOREAU, op. cit., p. 218-219. Ver também G EORGES RODIER, La moralaristotélicienne in Études de philosophie grecque, Paris, Vrin, 1926, pp. 177-217.

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quicamente acima do corpo como o seu senhor32. O corpo é, total eexclusivamente, feito para o bem da alma, pois pode-se dizer que osverdadeiros bens do homem são os bens espirituais, que consistemna virtude da sua alma, e é neles que está a felicidade. Portanto,quando se fala de virtude humana, não se entende virtude do corpo(precisa de modo inequívoco Aristóteles), mas a virtude da alma. Aexcelência humana significa a excelência não do corpo, mas da alma33.Com efeito, a felicidade consiste numa atividade própria da alma34.

Aristóteles divide a alma em três partes, duas irracionais, isto é, aalma vegetativa ou nutritiva e a alma sensitiva, e uma racional, aalma intelectiva. E dado que cada um a dessas par tes tem a sua ativida-de peculiar, cada uma tem uma peculiar virtude ou excelência. Aparte irracional da alma parece comum a todos os seres vivos e é denatureza vegetativa. É a parte responsável pela nutrição e pelo cres-cimento. Mas deixemos de lado esta faculdade vegetativa, pois, porsua própria natureza, ela não faz parte da excelência humana e nãoparticipa de forma alguma da razão. A virtude de tal faculdademostra-se, pois, como coisa comum a todos os seres e não especifi-camente humana35. Porém, a alma sensitiva ou também a parteapetititiva e, em geral, a parte concupiscente participa da razão emcerto sentido. Por natureza, a parte concupiscente é irracional, mas,por participação obediente à razão, participa da razão. Participa en-quanto é obediente e dócil à razão36. Com outras palavras, na alma,que é propriamente o homem, existe uma parte que comanda, a

racional, e uma que obedece, a irracional. Esta pode recusar-se aobedecer quando o seu desejo torna-se impermeável à razão, maspode sujeitar-se à parte racional por meio de uma participação dodesejo na racionalidade, deixando-se impregnar por ela 37. A alma émelhor que o corpo e na alma a parte melhor é a parte regrada pelopensamento e é esta parte que regra e interdita o que se deve ou nãose deve fazer. Reside no intelecto, por conseguinte, a essência mesmado homem. O homem é intelecto. Neste sentido, o homem é umprincípio de ação e um contemplador da verdade. Toda moral deAristóteles consiste em viver a vida de um outro e não a vida do

corpo. É absurdo viver a vida de um outro e não a vida do espírito38

:“é porque nós somos o nosso espírito, e porque o corpo é para nósum outro, que toda a moral consiste em viver a vida do espírito e nãoa vida deste outro”39.

32 Cf. MARCELO PERINE, art. cit., p. 26.33  Ética a Nicômacos, I, 13, 1102 a.34 Cf. GIOVANNI REALE, op. cit., p. 410.35  Ética a Nicômacos, I, 13, 1102 b.36  Ética a Nicômacos, I, 13, 1102 b.37  Ética a Nicômacos, I, 13, 1102 a — 1103 a.38  Ética a Nicômacos, X , 7, 1178 a.39 R.A. GAUTHIER, op. cit., p. 45.

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A partir das partes da alma, Aristóteles faz a dedução das virtudes.Divide, portan to, as virtud es em duas classes, as quais correspondemàs partes da alma. As virtudes éticas correspondem à parte irracionale as virtudes dianoéticas, à parte racional. Então, a parte da almaespecificamente humana, que consiste em dominar as tendências eimpulsos, que são por si desmedidos, a esta Aristóteles chama devirtude ética. Visto que existe em nós uma alma puramente racional,deverá, por conseguinte, existir uma virtude peculiar dessa parte daalma e esta será a virtude dianoética.

a) As virtudes éticas

As virtudes éticas são numerosas e bem numerosos são os impulsose os sentimentos que a razão deve moderar. As virtudes éticas deri-vam e são produto em nós do hábito. Nascem, desenvolvem-se eaperfeiçoam-se pela prática40. Não são naturais. Mas também nãopodem ir contra a natureza do ser. Pela natureza, somos potencial-mente capazes de formar os hábitos e, mediante o exercício, traduzi-mos essa potencialidade em atualidade. As virtudes são adquiridasde uma atividade prévia. O constante exercício vai nos dar a facul-dad e de agir semp re de u ma m aneira habitual. É uma p otência41 queé produzida por uma atividade. A atividade, portanto, precede apotencialidade. Para Aristóteles, as virtudes éticas são aprendidas à

semelhança do aprendizado das diferentes artes, que também sãohábitos. Assim, construindo casas, tornamo-nos arquitetos, tocandocítara, tornamo-nos citaristas, realizando coisas justas, tornamo-nos

 justos, realizando coisas moderadas, tornamo-nos moderados, fazen-do coisas corajosas, corajosos42.

Aristóteles diz que a virtude é um estado habitual que dirige a de-cisão, consistindo num justo meio relativo a nós, cuja norma é a regra

40

Nenhuma virtude é natural; logo, é preciso tornar-se virtuoso. As coisas que épreciso ter aprendido para fazê-las, é fazendo que aprendemos. É praticando as ações  justas que nos tornamos justos, praticando as ações moderadas que nos tornamosmoderados e praticando as ações corajosas que nos tornamos corajosos (cf. Ética a Nicôcamos, II, 1, 1103 a — 1103 b). Ver a respeito A NDRÉ COMTE-SPONVILLE, PequenoTratado das Grandes Virtudes, São Paulo, Martins Fontes, 1996, p. 17. A virtudemoral não é uma paixão; paixão é um movimento passageiro. Não é uma simplespotencialidade, pois toda a potencialidade é inata. A virtude moral é algo que depen-de de nós. É por livre esforço adquirida. Seu fim é concorrer à felicidade. Tem sualei e forma na razão. A virtude moral é uma conquista da liberdade que consistenuma subordinação duradoura de nossos apetites irracionais ao ditame da razão. Vera respeito CLODIUS PIAT,  Aristote, Paris, 1903, p. 303.41 Nas virtudes éticas, a atividade precede a potência. No âmbito do recebido pornatureza, a potência precede a atividade. Ver A RISTÓTELES,  Met., 1047 b 31- 35.42  Ética a Nicômacos, II, 1, 1103 a — 1103 b.

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moral, isto é, aquela mesma que o homem sábio daria 43. Definir anatureza comum de todas as virtudes éticas é primordial, pois dizerapenas como adquirimos e como possuímos essas virtudes não nosdiz ainda em que consistem as virtudes. Para Aristóteles, nunca hávirtud e, quand o há excesso ou falta, ou seja, quand o há d emais ou demenos. Virtude implica a justa proporção, que é a via de meio entredois excessos. A virtude ética é, precisamente, mediania entre doisvícios, dos quais um é por falta e o outro é por excesso. A virtudepertence ao campo do determinado e do limitado, enquanto o exces-so ou a falta (vícios) pertencem ao indeterminado ou ao ilimitado,algo repugnável para os gregos.

A virtude ética44 é, precisamente, mediania entre dois vícios, dosquais um é por falta — toda falta é uma privação do prazer e con-corre à diminuição de nossas energias —, o outro é por excesso —todo excesso da ação produz um excesso de prazer a ponto de obs-curecer as luzes da razão e tende a degenerar-se em dor 45. Nestemomento, é importante perceber, na doutrina de Aristóteles, que amediania não é mediocridade, mas sua antítese. O justo meio, defato, está acima dos extremos, representando a sua superação e,portanto, um cume, isto é, o ponto mais elevado do ponto de vistado valor, enquanto assinala a afirmação da razão sobre o irracional46.Por isso, a virtude, segundo a sua essência e segundo a razão queestabelece a sua natureza, é uma mediania, mas com relação ao beme à perfeição, ela é o ponto mais elevado47. Acompanhando este ra-

ciocínio, diz-nos Aristóteles, não há meio termo no excesso ou nafalta, porque já são vícios, já não estão de acordo com a naturezahumana. Não há meio termo de excesso e falta, nem excesso e defi-ciência de meio termo48.

Finalmente, as virtudes éticas não são dons da natureza. Não sãoresultado da boa sorte. São fruto do exercício e do hábito. As virtu-

43  Ética a Nicômacos, II, 6, 1106 b.44 Na Ética Eudêmica, Aristóteles fornece o seguinte eleco de virtudes e vícios. A

mansidão é a via média entre a iracúncia e a impassibilidade. A coragem é a viamédia entre a temeridade e a covardia. A verecúndia é a via média entre a impu-dência e a timidez. A temperança é a via média entre a intemperança e a insensi-bilidade. A indignação é a via média entre a inveja e o excesso oposto que não temnome. A  justiça é a via média entre o ganho e a  perda. A liberalidade é a via médiaentre a  prodigalidade e a avareza. A veracidade é a via média entre a  pretensãoe o autodesprezo. A amabilidade é a via média entre a hostilidade e a adulação. Aseriedade é a via média entre a complacência e a soberba. A magnanimidade éa via média entre a vaidade e a estreiteza de alma. A magnificência é a via médiaentre a suntuosidade e a mesquinharia. Ver Ética Eudêmica, II, 3 e Ética a Nicômacos,II, 7. Ver também GIOVANNI REALE, op. cit., pp. 413-417.45 Cf. CLODIUS PIAT, op. cit., p. 306.46 Cf. GIOVANNI REALE, op. cit., p. 415.47  Ética a Nicômacos, II, 6, 1106 b — 1107 a.48  Ética a Nicômacos, II, 6, 1107 a.

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des não são adquiridas senão pelo exercício e pelo hábito e, nestes e n t i d o , a o i n v e r s o d a s f a c u l d a d e s n a t u r a i s , n a s q u a i s apotencialidade precede o ato, nas virtudes, a potencialidade éresultado da ação. Pode-se, no entanto, dizer que o homem foidotad o, por natu reza, de certas capacid ades e faculdad es de ação.A natureza nos tem feito capazes de virtude. Mas para que estascapacidades e faculdades ajam perfeitamente, é preciso que ohomem adquira qualidades que disponham estas faculdades aobem agir. Vê-se, assim, que as virtudes, fruto do exercício e dohábito, devem ser esclarecidas pelo conhecimento, para dar lugaràs escolhas refletidas d as ações mor ais. Portan to, se, por u m lado,Aristóteles sublinha a aq uisição d as virtu d es pelo exercício e pelohábito, por outro, não ignora o aspecto do conhecimento da ciên-cia moral, ou seja, a virtude supõe uma eleição reflexiva, umaintenção voluntária, uma inteligência. As virtudes éticas têm na

razão seu valor. Elas têm por ofício tornar participante da razãoa p arte irracional do hom em. Então, a virtud e ética é a justa m edidaque a razão impõe a sentimentos, ações ou atitudes que, sem ocontrole da razão, tenderiam para um ou outro excesso. E, nestesentido, mesmo não sendo ainda o supremo bem, a virtude éimp rescind ível à felicid ad e, pois a virtu d e nos d ispõe ao exercícioda virtude na vida racional. A alma humana encontra na práticadas virtudes, no exercício de suas faculdades racionais, a satisfa-ção mais plena. A virtude é, pois, condição fundamental da feli-

cidade49

.

b) As virtude dianoéticas

Acima das virtudes éticas, segundo Aristóteles, estão as virtudesda par te mais e levada da a lma rac ional , chamadas v i r tudesdianoéticas, virtudes intelectuais, ou virtudes da razão. Pois bem,duas são as partes ou as funções da alma racional. A parte cien-

tífica (intelecto especulativo) tem a ciência como objeto. A partecalculativa opinativa (intelecto prático) tem o contingente por ob-  jeto. Assim, a primeira conhece as coisas necessárias e imutáveis;permite-nos contemplar as coisas cujos primeiros princípios sãoinvariáveis. A segunda conhece as coisas variáveis e mutáveis;permite-nos contemplar as coisas passíveis de variação50. A dife-rença essencial entre o pensamento prático e o especulativo é que

49 Cf. LÉON OLLÉ-LAPRUNE, Essai sur la morale d’Aristote, Paris, 1881, pp. 21-51. Ver

também CHARLES WERNER, La felicidad humana in   La filosofía griega, Barcelona,Editorial Labor, 1966, pp. 134-144 e GEORGES RODIER, op. cit., p. 202.50  Ética a Nicômacos, VI, 1.

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o primeiro é pensamento impregnado de desejo, que fixa os meiospara obter o fim, enquanto o segundo é o pensamento puro cujofim é a contemplação51. Aristóteles, à luz dessa diferença, diz que atípica virtude da razão prática é a prudência, sabedoria prática,( phrónesis), enquanto a típica virtude da razão teorética é a sabedo-ria, sabedoria teórica, (sophia)52. Segundo Aristóteles, em grande par-te, as virtudes dianoéticas ou intelectuais devem tanto o seu nasci-mento quanto o seu crescimento à instrução e têm, por sua vez, apercepção da verdade como função53.

O conceito de prudência ( phrónesis) é um dos conceitos mais origi-nais da moral aristotélica. A prudência, virtude do intelecto prático,é uma virtude intelectual do tipo original e o conhecimento que lheé próprio é um conhecimento específico. Consiste em saber dirigircorretamente a vida do homem. Como virtude, ela é também um

estado habitual em vista de uma tarefa que, neste caso, não consisteno justo meio mas em dizer a verdade54. Não a verdade pura, masa verdade da ação a ser feita. Portanto, a virtude intelectual práticaé um estado habitual verdadeiro que dirige a ação. Ora, se ointelecto prático é impregnado de desejo e se sua atividade não émais a pura verdade, então, nele, a verdade é a duração da retidãodo desejo. Isso que caracteriza o intelecto prático é o fim a que elese propõe, ou seja, dirigir a ação. Em outras palavras, o intelectoprático tem a função de perceber e dizer a verdade concernente ao

51 Antes de mais nada, é bom salientar que prudência, sabedoria prática, e sabedoria,teórica teórica, não se contrapõem. Apresentar a prudência em oposição à sabedoria,dizendo que esta é especulativa, que reina, mas não governa imediatamente a açãohumana — espécie de sabedoria prática oposta à sabedoria — seria não entender enão caracterizar verdadeiramente o pensamento de Aristóteles. A sabedoria não éestranha à ação que ela dirige, assim como a prudência não pode ser qualificadasomente como disposição p rática, porqu e, então, distingu ir-se-ía mal da virtud e ética,

  justamente quando Aristóteles insiste sempre sobre o estatuto da virtude dianoética.Ver a respeito PIERRE AUBENQUE, Prudence et jugement in   La prudence chez Aristote,Paris, Presses Universitaires de France, 1986. p. 143-152.52 Cf. GIOVANNI REALE, op. cit., p. 417. Cabe-nos ainda dizer este aspecto, a partir da

nota “32a “, p. 417, feita pelos tradutores da obra de Giovanni Reale, do italiano parao português, (Henrique Claúdio de Lima Vaz e Marcelo Perine): utilizaremos nestareflexão para expressar  phrónesis (sabedoria prática): prudência e para expressarsophia (sabedoria teórica): sabedoria.53  Etica a Nicômacos, II, 1, 1103 a; VI, 2, 1139 b.54 Aristóteles, para definir o conceito de virtude intelectual, segue o mesmo caminhoda definição da virtude ética: é como um estado habitual. Especificando, porém,Aristóteles utiliza aqu i o termo “érgon”, ou seja, a noção d e atividade, obra: a virtud eética como a virtude intelectual deve permitir o bom acabamento, o aperfeiçoamenteda atividade. Mas não são totalmente idênticas. A atividade do sujeito desiderante,sujeito da virtude ética, é o justo meio. Mas a atividade da parte racional, o sujeito

da virtude intelectual, é a verdade (Ética a Nicômacos, VI, 2, 1139 b). A virtude éticaestabelece o justo meio, já a virtude intelectual habilita a dizer a verdade. Ver arespeito R.A. GAUTHIER, op. cit., p. 82-86.

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desejo verdadeiro. Deve decidir sobre os meios adequados paraalcançar o desejo verdadeiro55. “O homem considerado, enquantoautor de uma ação, é uma aliança de desejo e ação” 56.

Virtude ética e prudência incluem-se mutuamente e não podem sedefinir uma sem a outra. A ação é boa, quando prudência e virtude

se reencontram. O reencontro do pensamento e do desejo dá-se, comefeito, na decisão. Porque a prudência é o princípio da decisão e adecisão é o princípio da ação. A virtude intelectual é um estadohabitual verdadeiro que dirige a ação. Eis, então, a razão pela quala p rudência vai sempre jun to com a virtud e ética: ela dirige a decisãoafirmando a verdade enquanto a virtude deseja o justo meio. Assim,a prud ência (sabedoria prática) não é apenas u ma regulação das nossasações, mas ela exprime uma obrigação propriamente dita. A prudên-cia não julga, ela decide. Não conhece simplesmente, ela faz. Ela é,portanto, o princípio da decisão57.

Posto que o justo meio, no qual consiste a virtude ética, é determi-nad o pela pru dência, virtude do intelecto prático, deve-se reconhecerque a virtude ética está subordinada à virtude intelectual. Porém,como já dissemos, a virtude intelectual não se reduz à prudência. Hátambém a virtude do intelecto teórico, enquanto pura contemplação.Com outras palavras, assim como a virtude ética está subordinada àprud ência, esta subord ina-se à sabed oria. Esta tem por objeto as coisastal como existem em si, em sua imutável verdade, considera o neces-sário e o eterno, aquela tem por objeto as coisas contingentes, o quehá de mutável no homem. Portanto, a outra virtude do intelecto, amais elevada e a suprema, é a sabedoria. “Noutros termos, a sabedo-ria coincide com as ciências teoréticas e, antes, de modo especial, coma mais elevada delas, vale dizer, a metafísica” 58.

  IV. A perfei ta fel icidade

Dado que o soberano bem é a atividade da alma segundo a virtudemelhor e mais perfeita59, cuja atividade faz nossa felicidade, é claroagora em que ela consistirá. Sendo, com efeito, o intelecto o que há

55 A prudência deve suprimir a distância do fim idealizado e dos meios a seremescolhidos para atingir o fim, tendo presente a contingência do mundo que não é

  jamais totalmente acolhida em sua ordem. Ver a respeito PIERRE AUBENQUE, op. cit.,p. 141.56 W. D. ROSS, op. cit., p. 301.57  Ética a Nicômacos, VI, 2, 1139 b; VI, 5, 1140 b; VI, 7, 1141 b.58 GIOVANNI REALE, op. cit., p. 419.59  Ética a Nicômacos, I, 7, 1098 a.

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de mais elevado em nós, a fel icidade consist irá na at ividadecontemplativa. A atividade contemplativa do intelecto será a felicida-de perfeita. A virtude suprema e o princípio da felicidade é umestado estritamen te intelectual60. Pois é uma atividade perfeita, auto-suficiente, tendo em si o próprio fim, enquanto tende a conhecer porela mesma os objetos com os quais o intelecto se relaciona, os quaissão os melhores. Na atividad e da contemp lação intelectiva, o homemalcança o vértice das suas possibilidades e atualiza o que há de maiselevado nele. E somente esta atividade parece ser estimada por suaprópria causa, pois é auto-suficiente, ágil, ininterrupta quanto possí-vel ao homem e parece que em tal atividade encontram-se todas asqualidades atribuídas ao homem feliz61.

Para Aristóteles, a sabedoria filosófica é reconhecidamente a maisperfeita e a mais agradável das atividades conforme o intelectoespeculativo. A filosofia62 é a virtude do intelecto especulativo, habi-litando-nos a dizer a verdade e tornando-nos capazes da atividadeda contemplação. Torna-nos capazes de contemplar o que há de maissublime e divino e é dessas belas e divinas realidades que a contem-plação faz nossa felicidade63. Aqui é importante perceber isto. A con-templação de Deus não interessa tanto, para Aristóteles, quanto aperfeição do homem. Preocupa-se muito mais com um bem que ohomem possa realizar. Este bem consiste, precisamente satisfazer suaatividade própria de homem. Atividade que não é nada mais e nadamenos que a mais a l t a a t iv idade do homem. É a a t iv idade

contemplativa. A contemplação aristotélica, portanto, não saberá serapenas estritamente intelectual. Sua ambição é aperfeiçoar o sujeito,que é intelecto, para que ele seja feliz, exercendo sua atividade pró-pria de homem e não simplesmente exercendo a contemplação de umobjeto transcendental64.

60 Cf. R. A. GAUTHIER, op. cit., p. 98.61  Ética a Nicômacos, X, 7, 1177 a; X, 7, 1177 b;62 A filosofia é a virtude do intelecto especulativo. Em outros termos, é o estadohabitual que habilita o intelecto especulativo a dizer a verdade. A filosofia é uma

ciência coroada de inteligência e é a ciência entre as mais sublimes. Segundo Gauthier,Aristóteles estabelece três etapas para mostrar que a filosofia é a ciência coroada deinteligência. a) Nos II Analíticos, Aristóteles diz que a ciência é um estado habitualque dirige a demonstração e que nenhuma demonstração se basta a si mesma. Todaa demonstração, ao contrário, pressupõe princípios que não são objetos de demons-tração, mas de intuição. b) Se existe uma virtude do intelecto especulativo, ela nãopode, então, ser qualquer ciência, mas uma ciência perfeita, cujas demonstrações seenraizarão na inteligência dos princípios. Há uma ciência perfeita e esta é a filosofia.c) Sendo a ciência perfeita, a filosofia será, por sua vez, ciênca e inteligência. Afilosofia resulta disso. É, portanto, ciência e inteligência têm por objeto os seres osmais sublimes por sua natureza. Ver a respeito R.A. G AUTHIER, op. cit., pp. 97-100.63 Ver  Met ., 1072 b 23-24 e Ética a Nicômacos, X, 7, 1177 a.64 Cf. R.A. GAUTHIER, op. cit., p. 103. O ser humano não é Deus e nem besta, mas maisdo que todos os seres se aproxima da natureza de Deus. É um animal divino. VerPol., I, 2, 1253 a.

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Aristóteles assinala como fim do homem a contemplação e esta éessencialmente atividade do intelecto, o qual define o homem comoanimal que participa do divino65 e é o que há de mais divino nohomem. Viver, portanto, segundo o que há de mais sublime em nós,é um a exigência p rimord ial intransferível a cada hom em. O soberanobem é exercer bem sua atividade própria de homem. Assim, a con-templação de Deus leva-nos à perfeição e, conseqüentemente, à feli-cidade. Porém, para levarmos uma vida sempre divina é impossível.É uma vida d emasiado elevada p ara o homem. Contudo, nada é m aiscontínuo que a atividade da contemplação. Aristóteles sabe das difi-culdades da vida contínua da contemplação à semelhança da vidacompleta, ininterrupta e perfeita de Deus. Não obstante, insiste nanecessidade de vivê-la, pois é a mais sublime e comporta a nossanatureza humana, a qual faz-nos participar da vida divina 66.

V. A amizade e a fel icidade

Aristóteles dedica dois livros da Ética a Nicômacos ao tema da ami-zade. Ela é uma forma de virtude moral ou é concomitante com avirtude moral, além de ser extremamente necessária na vida. Detodos os bens que concorrem à felicidade, a amizade, após a sabedo-ria e a virtude, é o mais estimável e mais indispensável ao homem.

De fato, ninguém deseja viver sem amigos, mesmo dispondo de to-dos os outros bens67. A amizade ajuda as pessoas a pensar, agir,manter-se unidas, e praticar a justiça, pois considera-se que a maisautêntica forma de justiça é uma disposição amistosa. Assim, a ami-zade não é apenas necessária, ela é também uma das coisas maisnobilitantes68.

Não há, porém, apenas uma espécie de amizade. Para entendê-las, énecessário conhecermos o objeto do amor. Parece que nem todas ascoisas merecem ser amadas, mas somente aquelas que merecem ser

amadas, e estas são o que é bom, ou agradável, ou útil. Parece tam-bém que o útil é aquilo de que resulta algum bem ou prazer, de talforma que somente o bom e o agradável merecem ser amados comofins69. Existem, portanto, três espécies de amizade: amizades funda-das sobre o interesse, as amizades fundadas sobre o prazer e asamizades fundadas sobre o bem. Para Aristóteles, a amizade menos

65 Cf. GEORGES RODIER, op. cit., p. 217.66  Ética a Nicômacos, X, 7, 1177 b.67  Ética a Nicômacos, VIII, 1, 1155 a.68  Ética a Nicômacos, VIII, 1, 1155 a.69  Ética a Nicômacos, VIII, 2, 1155 b.

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estimável é aquela fundada sobre o interesse, pois estes amigos, cujaafeição é baseada no interesse, não amam um ao outro por si mes-mos, e sim por causa de algum proveito que obtém um do outro. Aamizade intermediária é aquela fundamentada no prazer, à qual seaplica o mesmo raciocínio. Não é por seu caráter que gostamos daspessoas, mas porque as achamos agradáveis.

“Logo, as pessoas que amam as outras por interesse amam por causa do queé bom para si mesmas, e aquelas que amam por causa do prazer amam por causa do que lhes é agradável, e não porque a outra pessoa é a pessoa queamam, mas porque ela é útil ou agradável”70.

A amizade melhor e a mais rara é a que nasce e fundamenta-se navirtude. Enquanto nas duas primeiras o homem não busca amar ooutro por aquilo que ele é, mas pelo que ele tem, tornand o o amigo uminstrumento para alcançar as vantagens (riqueza e prazer) que ele ve-

nha a oferecer, a terceira espécie de amizade é autêntica, porque só comela o homem ama o outro por aquilo que ele é, ou seja, pela sua bon-dade intrínseca de homem71.

Aristóteles, então, liga a amizade à virtude. A verdadeira forma deamizade é o laço que o homem virtuoso estabelece com o homemvirtuoso por causa da própria virtude, pois na atividade da virtude ohomem caracteriza-se como homem e a amizade é o laço que une oshomens segundo o próprio valor do homem 72. Assim, tem-se a neces-sidade de amigos para exercer a bondade, a generosidade e o amor ao

bem. A amizade é como um prolongamento inevitável da virtude. Elacompleta a virtude e, conseqüentemente, é essencial à verdadeira feli-cidad e. Com efeito, a amizade virtuosa é, em cada u m dos amigos, um abem-aventurança afetuosa que quer ao outro seu verdadeiro bem 73. Osamigos têm prazer ao colocar em comum o que cada um tem de me-lhor, pois nós amamos o amigo como um outro de nós mesmo.

“A amizade perfeita é a existente entre as pessoas boas e semelhantes emtermos de excelência moral; neste caso, cada uma das pessoas quer bem àoutra de maneira idêntica, porque a outra pessoa é boa, e elas são boas em

si mesmas. Então as pessoas que querem bem aos seus amigos por causadeles são amigas no sentido mais amplo, pois querem bem por causa da  própria natureza dos amigos, e não por acidente; logo, sua amizade duraráenquanto estas pessoas forem boas, e ser bom é uma coisa duradoura”74.

A verdadeira amizade, afirma Aristóteles, nasce do sentido de ami-zade para consigo mesmo e cada um quer o bem para si próprio.

70  Ética a Nicômacos, VIII, 3, 1156 a.71 Cf. GIOVANNI REALE, op. cit., p. 423.72 Cf. Ibidem.73 Cf. M. D. ROLAND GOSSELIN, op. cit., p. 128.74  Ética a Nicômacos, VIII, 3, 1156 b.

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“De fato, as opiniões de um homem bom são coerentes, e ele deseja asmesmas coisas com toda a sua alma; ele deseja portanto para si mesmo o queé bom e o que parece bom, e age de conformidade com seu desejo, pois é característico do homem bom esforçar-se por fazer o bem e fazê-lo por suacausa (...); e ele deseja viver e preservar-se, e especialmente preservar oelemento em virtude do qual ele pensa”75.

Imprescindível, aqui, dar-nos conta disto. Há duas partes existen-tes em nós: a parte relativa às riquezas e aos prazeres é a parteinferior, e a parte própria do homem, a parte superior, é a parteracional com seus bens e atividade específica. Ora, cabe ao ho-mem amar a parte superior e desejar o mesmo aos seus amigos.Pois, a amizade, para Aristóteles, é o desabrochamento da virtu-de; é desabrochamento normal de uma atividade humana plenade vida, de força, de inteligência, de alegria. Com efeito, a ami-zade virtuosa não nasce de u ma hora p ara outra, de u m d ia para

o outro ou d o acaso, exige a ativida de d a virtud e, da au tenticida-de e, conseqüentemente, a necessidade do tempo. Por isso, nasverdadeiras amizades, o útil e o agradável se encontram — massempre su bordinad os ao bem d a virtud e, ou seja, da felicidad e —e, assim, as mesmas têm a solidez m esma d a virtud e e são as maisduradouras. Mas são verdadeiramente raras76.

Quanto ao número de amigos, diz-nos Aristóteles. Assim como nãose pode fazer uma cidade com dez pessoas e se houver cem milpessoas não se tem mais uma simples cidade, também quanto aosamigos, deve-se ter o número conveniente. É óbvio que uma pessoanão p ode conviver com mu itas outras nem d ivid ir-se entre elas. Pensa-se também que é difícil a uma pessoa participar intimamente dasalegrias e tristezas de muitas pessoas. Presume-se, então, que é bomnão p rocurar ter tantos amigos quantos pu dermos, mas tantos quantosbastarem para efeito de convivência, pois parece realmente impossí-vel ser um grande amigo de muitas pessoas. A amizade verdadeirasomente pode ser sentida em relação a poucas pessoas77. Porque oamigo verdadeiro é agradável, conforta-nos tanto com sua presença

como com suas palavras, é perspicaz, pois nos conhece. A satisfaçãodo amigo é a convivência. Com efeito, a amizade é uma parceria euma pessoa está em relação a si própria da mesma forma que emrelação ao seu amigo. Então, a consciência de sua existência é umbem e a consciência da existência do seu amigo também o é. É natu-ral, portanto, que os verdadeiros amigos desejem conviver de modomais autêntico possível78.

75  Ética a Nicômacos, IX, 4, 1166 a.76 Cf. M. D. ROLAND GOSSELIN, op. cit., p. 130.77 Cf. Ética a Nicômacos, IX, 10, 1170 b — 1171 a.78 Cf. Ética a Nicômacos, IX, 12.

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VI. O prazer e a fel icidade

A relação entre prazer e felicidade, em Aristóteles, é imprescindível,porque, sem um estudo aprofundado do prazer, corre-se o risco deconsiderar a moral aristotélica unicamente um “hedonismo intelectual”

ou, então, pensar qu e a atividade virtuosa não é querida senão em vistado prazer que ela procura. O estudo do prazer revelar-nos-á mais cla-ramente isto que é a atividade prazerosa do homem 79.

Aristóteles liga a felicidade à atividade virtuosa. Visto que o homemnão consegue viver sem uma certa dose de alegria e deleite, o prazeré uma recompensa natural da vida virtuosa. O prazer torna as ativida-des perfeitas e torna, portanto, a vida perfeita e isto é o que as pessoasdesejam 80. Contrapondo-se a Êudoxos e também a Platão, Aristótelesdiz, respectivamente, que o prazer é algo desejável e um dos bens, não

é a satisfação das carências, como também não é o resultado de ummovimento ou de um processo de geração81. Para Aristóteles, o prazeraperfeiçoa a atividade própria do homem. Agir pelo prazer, conformea concepção aristotélica, é uma necessidade, porque a regra do prazeré precisamente favorecer a atividade pelo incentivo desta finalidade, ouseja, ordenar todo ser a imitar a atividade divina, buscando participardo prazer eterno de Deus. O prazer não é ele mesmo o fim da ativida-de, mas ele é para a atividade perfeita um suplemento de finalidade82.

O prazer, como o ato de ver, parece perfeito. O ato de ver pareceperfeito a qualquer momento, pois ele não necessita de qualquer coisasuperveniente que torne perfeita a sua forma. Parece que esta tambémé a natureza do prazer, pois ele é um todo, e em tempo algum se podeachar um prazer cuja forma será mais perfeita se ele durar mais 83. Ele

79 Cf. JEAN VANIER, op. cit., p. 188.80  Ética a Nicômacos, X, 4, 1175 a.81 Êudoxos pensa que o prazer é o bem soberano, o bem mais desejado (Ética a Nicômacos, X, 2, 1172 b). Para Platão, por sua vez, o prazer é indefinido, porque

admite uma graduação (Filebo, 24 e — 25 a, 31 a); apresenta o prazer como sendoum movimento e um processo de geração(Filebo, 53 c — 54 d); e sendo o sofrimentoa carência daquilo que é conforme a natureza, o prazer é a satisfação desta carência(Filebo, 31 e — 32 b, 42 c -d). Para Aristóteles, o prazer é um todo, é como umaperfeição cumulativa e não é um processo. É uma “enérgeia”. O movimento cessaquando chega ao seu termo, enquanto a “enérgeia”, ao contrário, dura em sua per-feição, em seu acabamento. O movimento tende a um resultado exterior a ele mesmo( Met ., 1048 b 30-34). A “enérgeia”, ao contrário, tem seu fim nela mesma, em seupróprio exercício. A visão e a atividade contemplativa são exemplos da “enérgeia”(Ética a Nicômacos, X, 4, 1174 a). O prazer, segundo Aristóteles, é da mesma natu-reza da “enérgeia”. Ele está em vista da realização, mas plenamente realizado eperfeito a cada instante de sua duração e sua prolongação não acrescenta nada à sua

essência puramente espiritual. Ver a respeito JOSEPH MOREAU, op. cit., p. 221.82 Ver R. A. GAUTHIER, op. cit., p. 117 e JOSEPH MOREAU, op. cit., p. 222.83  Ética a Nicômacos, X, 4, 1174 a.

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não é um prolongamento mais perfeito em qualidade. Como já disse-mos, também não é um movimento, isto é, um processo ou umatransição, porque todo movimento exige um certo tempo, visa umcerto fim e não se completa se não atingir este fim, seja no tempo queele ocupa, considerado na totalidade, seja no momento em que eleatinge seu fim. Cada uma das partes do movimento é incompleto edifere especificamente dos outros e do todo. O prazer, ao contrário,é todo um movimento perfeito na sua espécie, é um todo. Nós nãosomos felizes em tempos determinados. Não podemos nos tornarfelizes rapidamente. O prazer é, de fato, qualquer coisa de completonele mesmo e suficiente a todo momento, totalmente como ato depercepção ou ato de pensamento84 . O homem sente prazer no seuestado sadio e quando está ocupado com um objeto bom de suaespécie. A atividade desse sentido é necessariamente agradável nomais alto grau e a mesma coisa é verdadeira do ato de pensamento.

O p razer, portan to, comp leta o ato. Intensifica-o, tornan do o momen-to tão intenso que ele não seria de outro modo. Com efeito, se oprazer está intimamente ligado à atividade, pode-se, então, suporque os homens desejam o prazer, porque eles desejam a vida e por-que o prazer conclui as atividades e, sobretudo, a “atividade” que oconstitui homem enquanto tal.

Para Aristóteles, a aspiração ao prazer é totalmente natural, porquenaturalmente acompanha o viver e toda atividade própria do viverà guisa da perfeição das atividades do homem. Assim, o prazer écomo que o coroamento de toda atividade, a qual deve visar sempreo fim ú ltimo d o homem, a contemp lação. Porque a questão crucial doprazer, para Aristóteles, não está em agir pelo prazer, mas na leiteleológica que ordena ao homem tender a imitar sempre a atividadede Deus que é puro prazer. Deve-se buscar participar pela contem-plação no prazer eterno de Deus. Ora, quanto mais a atividade tendeà sua realização perfeita, mais a atividade é agradável. Logo, o grau defelicidade é medido pelo grau de contemplação85, pois tanto quanto seestende a contemplação, igualmente se estende a felicidade86.

VII. A decisão moral

O estado habitual é a qualidade do sujeito virtuoso, adquirido pelarepetição de atos que procedem da virtude, isto é, atos penetrados de

84 Ver Ética a Nicômacos, 1174 a — 1176 a. Ver também W. D. ROSS, op. cit., p. 317.85  Ética a Nicômacos, X, 4, 1174 b; X, 8, 1178 b.86  Ética a Nicômacos, X, 8, 1178 b.

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razão que, por força da repetição, acabam por tornar razoável aparte desiderante do homem. O homem virtuoso está presente comoum homem harmonioso que não se deixa levar pelas paixões, por-que age segundo a razão. Mantém sempre um equilíbrio entre osextremos. É homem cultivado e completo em todos os sentidos87.Neste sentido Aristóteles pode dizer que o virtuoso é infalível, por-que nele o desejo já está completamente submetido à razão e nadamais pode incliná-lo ao mal. É dentro desta perspectiva que deve sercompreendida a doutrina da decisão moral na Ética a Nicômacos88.

Para Aristóteles, os atos, para serem morais, devem ser determina-dos por uma escolha ( proáiresis). A escolha pertence ao homem queraciocina e reflete. Não pertence à criança ou ao animal. Com efeito,a escolha semp re implica raciocínio e reflexão e, precisamen te, aque-le tipo d e raciocínio e reflexão relativos às coisas e ações que d epen -

dem de nós e estão na ordem do realizável89

. O homem age, portan-to, segundo a razão, de um a maneira deliberada segundo um a med idae uma regra que o orientam para o fim. Este homem não é levadopelas paixões, porque o princípio de sua atividade está nele. Ele age,consciente e voluntariamente, segundo uma regra que sua razãodetermina como verdade. Esse tipo de raciocínio e reflexão é chama-do por Aristóteles deliberação. A diferença entre deliberação e esco-lha consiste basicamente nisto: a deliberação estabelece quais equantas são as ações e os meios necessários pa ra alcançar certos fins:estabelece, assim, toda a série de coisas a realizar para chegar aofim, das mais remotas às mais próximas e imediatas; a escolha agesobre estas últimas e as descarta quando são irrealizáveis, põe-nasem ato quando as encontra realizáveis90. Ora, o estabelecimento dasmelhores ações e meios é obra da deliberação. A  proáiresis é, então,o momento da decisão, o voto sucedendo a deliberação e que não émais somente a manifestação da inteligência deliberante, mas a von-tade desiderante, aquela que intervém para colocar em oscilação adeliberação, mas também para colocar fim. A origem da ação é aescolha e a origem da escolha está no desejo e no raciocínio dirigido

a algum fim 91. Pela  proáiresis, o meditado ou projetado torna-se pos-sível desejo, querido não por ele mesmo, mas como meio em vista

87 Para Aristóteles, a qualidade própria da atividade humana virtuosa reside naintenção, isto é, implica disposição ao outro. A atividade moral está no “bem fazer”.O fim do homem é o bem e consiste essencialmente, não em adquirir qualidadesespirituais, hábitos ou uma certa plenitude para comprazer-se, mas propriamenteordenar-se ao bem comum, isto é, aos outros cidadãos. Ver a respeito JEAN VANIER,L’acte humain et l’acte vertueux in op. cit ., pp. 243-258.88 Cf. MARCELO PERINE, art. cit., p. 33.89 Cf. GIOVANNI REALE, op. cit., p. 428.90 Cf. GIOVANNI REALE, op. cit., p. 429.91 Cf. Ética a Nicômacos, VI, 2, 1139 b.

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de um fim 92. A  proáiresis é o desejar deliberativo das coisas quedependem de nós93.

Aristóteles introduz uma novidade na relação meio-fim. A escolha,segundo Aristóteles, não é uma escolha absoluta. A escolha é umaatividade comparativa e não uma escolha de superioridade ou de

inferioridade. A escolha é sempre a escolha do melhor e esse melhordesigna um superlativo relativo e não absoluto. A escolha, estandoguiada para o melhor, não pode estar dirigida ao impossível. Estáorientada verso às condições da realização do melhor. Tende a ex-cluir o querer mesmo rumo à inútil mira do impossível. A escolhatorna e restringe a von tade na consideração dos possíveis. A escolha,med iatizando a vontade (boúlesis), a faz passar do estado da intençãoveladora àquele do querer possível, eficaz e formador do homembom. Com efeito, a escolha é a penhora e a apoderação simultânea d o

fim e dos meios, vontad e do fim e vontad e do realizar-se pelos meiosmais adequados94.

Neste sentido, Aristóteles contrapõe-se a Platão. Platão insiste sobrea subordinação do meio ao fim, cuidando para não isolar o meio emmomento independente. A vontade do fim dá sentido ao meio, tor-nando-o sempre bom. Em Platão, o meio é sempre meio em vista deum fim. Por isso, a administração dos meios deve ser subordinada àciência do fim, isto é, em última análise, do fim supremo que é aIdéia do Bem. Aristóteles, por sua vez, tem uma compreensão da

relação meios e fins diferente daquela de Platão. No início da Ética a Nicômacos, Aristóteles também diz que os meios devem levar ao fim.Sem a ordenação ao fim, o desejo será vazio e inútil. Aristóteles sepreocupa com a adaptação dos meios aos fins; adaptação que não éimediatamente dada, mas se impõe ao homem como uma atividadedifícil. Platão insiste que o meio não é nada sem o fim. Aristótelesinsiste antes sobre a dep endência inversa: o fim não é n ada se ele nãose realiza com os meios aprop riados. Para Platão, a ded ução do m odode realização a partir do fim a realizar parece não levantar dificulda-

92 Ver a respeito PIERRE AUBENQUE, op. cit., p. 121 e G IOVANNI REALE, op. cit., 427-431.93  Ética a Nicômacos, III, 3, 1113 a.94 A vontade do fim e a escolha dos meios querem concordar em sua igual importân-cia. Para uma boa ação moral, deve-se levar em conta primeiramente as condiçõestécnicas da ação moral, isto é, a ação não pode desinteressar-se pela realização dosfins. Compreende-se, então, porque a prudência é a virtude da deliberação mais queda contemplação, e, da escolha, mais que da vontade. Ela é uma virtude do risco eda decisão. Aristóteles, portanto, transfere à escolha dos meios uma parte da respon-sabilidade moral. O momento propriamente ético não se situa então no nível davontade, nem da ação, mas entre os dois, ou seja, na escolha racional, a qual, guiada

pela vontade do bem, decide o melhor possível a cada passo. A moral aristotélicasitua, portanto, o bem e o mal não no absoluto da vontade, mas na escolha dos meios.Ver brilhante síntese a este respeito em PIERRE AUBENQUE, op. cit., pp. 119-143.

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de, ao menos para quem age segundo o intelecto e não segundo asaventuras. Aristóteles, de modo brilhante, coloca, pela primeira vez,a possibilidade da dissonância entre os meios e o fim e sublinhatambém que a qualidade de uma ação se mede não somente pelaretidão da intenção, mas também pela conveniência dos meios. Exis-tem, portanto, dois domínios onde se produz o bom agir: um resideno estabelecimento correto do intuito, da intenção do fim das nossasações e o outro na descoberta dos m eios que conduzem ao fim. À luzdesse raciocínio, podemos dizer: Aristóteles transfere à escolha dosmeios uma parte da responsabilidade moral. O momento propria-mente ético não se situa então no nível da vontade e nem da ação,mas entre os dois, ou seja, na escolha racional95.

Convém ainda recordar aqui que o virtuoso de Aristóteles age sem-pre sob o imperativo da  phrónesis, prudência, que, como virtude do

intelecto prático, inclui o desejo e a virtude: a prudência é o princípioúltimo da decisão que escolhe os meios para a ação moral. A prudên-cia é o princípio da escolha racional, a qual, guiada pelo desejo dobem, decide sempre pelos melhores meios. Cabe, por conseguinte, àprud ência levar-nos a colocar os m eios para alcançarmos o fim inten-cionado pelo desejo que está impregnado de razão. Para agir bem énecessário, ao mesmo temp o, conhecer o objeto com verdade (virtudedianoética) e desejá-lo com retidão (virtude moral). A ação será boaquando as duas coincidirem sobre o mesmo objeto, o que conduziránecessariamente à decisão e, pela decisão, à ação96. Em suma, para

Aristóteles, não basta conhecer o bem, é preciso tornar-se bom, ouseja, devemos conhecer o bem, o melhor e o mais perfeito, para quea escolha, que é um pré-julgamento, fruto da deliberação, nos ajudea encontrar os melhores meios para atingirmos o fim desejado, a fimde tornarmo-nos bons e alcançarmos o fim da natureza de homensenquanto tal.

VIII. Conclusão: a relação Ética ePol í t i ca

Ética e política implicam-se mu tuamente. Para Aristóteles, assim comopara Platão, a ética não pode ser separada da política, à qual elaparece, às vezes, subordinada. Se, com efeito, o objeto da ética con-siste na determinação de um bem supremo, que é o fim de todas as

95 Ler novamente nota anterior “94”. A respeito desta relação nova entre meios e fins,introduzida por Aristóteles, ver PIERRE AUBENQUE, op. cit., sobretudo, pp. 131-143.96 Cf. MARCELO PERINE, art. cit., p. 34.

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nossas atividades, e ao redor do qual todos os outros bens não sãosenão meios, este objeto é igualmente aquele da política, cuja finali-dade é dirigir-se em vista do bem comum de todas as atividadeshumanas no interior da “pólis” 97. A política é a arte real, ouarqu itetônica, que coman da todas as outras, como o arqu iteto coman-dand o aos d iversos artesãos na construção do ed ifício. Ora, se o bemsupremo é também um bem comum, a política tende a assegurar atodos este bem comu m. Pois o fim d a vida política é a consecução deuma vida feliz em acordo com a essência do homem. Com outraspalavras, a auto-realização do homem enquanto ser racional e livre.Ademais, a política tem esta função, porque somente na “pólis” ohomem encontra o caminho da realização de suas possibilidades. Aauto-realização do homem encontra seu único caminho na “pólis” 98.

A sociedade é um fato natural. O homem é naturalmente um sersociável. Não pode ser plenamente homem, não pode exercer todasas suas funções, que constituem sua natureza essencial, senão nomeio social. Ele não pode realizar a virtude e a felicidade em atosenão na vida social. É a necessidade mais fundamental de todas jáque sem a vida social o homem não terá natureza humana 99. A po-lítica é, então, o complemento necessário da ética, ou, com outraspalavras, a ética é uma forma da política. Assim, o indivíduo deveestar subord inado inteiramente à ética e a condu ta de cada um deveestar dirigida de maneira a assumir a maior felicidade de todos ou

97 A “pólis” é a cidade-estado grega. É essencialmente uma comunidade de cidadãos,isto é, membros plenos de uma cidade. Cidadão significa aqui ter cidadania, isto é,consiste na participação ativa na administração, na jurisdição e na legislação. Ocidadão é aquele que vive em função de si mesmo e não de outro. A “pólis” e asociedade constituída pela liberdade dos cidadãos têm como conteúdo a humanidadedo homem. Na sociedade de cidadãos, orientada pela razão, a natureza do homem seatualiza. A “pólis” tem sua substância na natureza humana, porque nela a razão seatualiza. Só na “pólis” é possível conhecer o homem como ser racional, já que atravésda comunidade de homens livres a razão pode se atualizar. A natureza racional dohomem só se tornou cognoscível, quando, através da “pólis”, surgiu na história asociedade racional. A “pólis”, segundo Aristóteles, é a comunidade perfeita. Ver a

respeito MANFREDO ARAÚJO OLIVEIRA, op. cit., pp. 77-83.98 Com efeito, se a felicidad e do homem d epend e das condições sociais e se é somentena cidade que o homem da ação pode exercer suas virtudes ou que o sábio podeencontrar seu “lazer e repouso” necessários à contemplação, então, a ética deveconvergir na subordinação à política. Porém, cabe ressaltar este aspecto. Mesmodiante da subordinação, a ética conserva, por ela mesma, sua especificidade e não sedeixa absorver pura e simplesmente na política. Ela não se confunde neste encontro.Ela exprime um ponto de vista particular, certamente, incompleto, mas fundamentalno estudo do bem supremo do homem. Ver a respeito JOSEPH MOREAU, La vie socialein op. cit., pp. 227-233.99 “ (...) e um homem incapaz de integrar-se numa comunidade, ou que seja auto-suficiente a ponto de não ter necessidade de fazê-lo, não é parte de uma cidade, por

ser um animal selvagem ou um deus. Existe naturalmente em todos os homens oimpulso para participar de tal comunidade, e o homem que pela primeira vez uniuos indivíduos assim foi o maior dos benfeitores.” (Política, I, 2, 1253 a).

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do maior número possível. Agindo assim, o indivíduo não cessade perseguir sua própria felicidade100. Enfim, é manifesto a todosque o fim de uma política digna desse nome é de procurar aoscidadãos a felicidade e a virtude, pois afirmamos que a finalidadeda ciência política é a finalidade suprema, e o principal empenhodesta ciência é infundir um certo caráter nos cidadãos, por exem-plo, torná-los bons e capazes de praticar boas ações 101.

Para concluir, Aristóteles se preocupa com a felicidade concretado homem. Fazer o homem é, com efeito, agir. A vida política,por conseguinte, é tornada, para Aristóteles, essencialmente, umavida prática. Vida esta que implica a prática das virtudes éticassob a égide da prudência e estas, por sua vez, devem tornarpossível a contemplação. Assim, é no exercício das magistraturascivis ou dos comandos militares que as virtudes éticas encontram

seu campo de ação privilegiado. Aristóteles insiste na união dasduas vidas. Ora, é o mesmo homem que deve, por sua vez, viverem Deus contemplando e viver no homem agindo. A felicidadedo homem está na vida contemplativa e na vida ativa. Com ou-tras palavras, a contemplação é uma vida racional por essência,visto que é a vida do intelecto, exercendo-se no estado puro. Poroutro lado, a atividade das virtudes éticas, onde a atividade seinscreve em term os de su bordinação e obediência, não é um a vidaracional e, então, uma felicidade senão por participação. Pode-sedizer, assim, que a ação está para a contemplação como o aciden-

te está para a substância numa relação de hierarquia ontológica.A felicidade, portanto, está na síntese e simbiose entre a vidacontemplativa e ativa102.

 B ib l iogra f ia

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. (Trad. do grego: Mário da Gama Kury).Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1985.

ARISTÓTELES. Política. (Trad. do grego: Mário da Gama Kury). Brasília,Editora da Universidade de Brasília, 1985.

AUBENQUE, Pierre.   La prudence chez Aristot e. 3e éd., Paris, PressesUniversitaires de France, 1986.

100 Cf. GEORGES RODIER, op. cit., pp. 202-204.

101 Ver respectivamente a este respeito Ética a Nicômacos, I, 1, 1094 b; Política, III,7, 1283 a; VIII, 1, 1337 a; Ética a Nicômacos, I, 9, 1099 b.102 Cf. R.A. GAUTHIER, op. cit., pp. 101-111.

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