a crise do positivismo jurÍdico -...

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REFLEXÕES EM TORNO DO PRINCÍPIO DA CONSERVAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO REFLEXIONES SOBRE EL PRINCIPIO DE CONSERVACIÓN DE LOS NEGOCIOS JURÍDICOS Gilberto Fachetti Silvestre Guilherme Fernandes de Oliveira RESUMO Procura caracterizar o princípio da conservação dos atos jurídicos como orientação axiológica da teoria do negócio jurídico, tratando as nulidades como uma exceção no direito das relações econômicas. Para tanto, busca inter-relacionar a conservação com os princípios gerais do Código Civil (socialidade, eticidade e operabilidade) e com os princípios institucionais da relação obrigatória (autonomia privada, boa-fé e função social), compreendendo, assim, como aquele princípio corresponde a uma manifestação contemporânea da personalidade. Tem-se, pois, uma releitura do negócio jurídico à luz do personalismo ético. A categoria negocial aparece repersonalizada, elevando a pessoa como valor. Trata-se de uma oportunidade de questionar se realmente o negócio jurídico, como categoria jurídica, é um conceito em crise. Ou se, por outro lado, toda essa base teórica e principiológica não significa que a categoria “negócio” tem sim sua importância como gênero, porém necessita de uma leitura cada vez mais funcionalizada e preocupada com a jus-humanização do Direito Privado. PALAVRAS-CHAVES: NEGÓCIO JURÍDICO – PRINCÍPIO DA CONSERVAÇÃO – CONVERSÃO – NULIDADES – PERSONALIDADE. RESUMEN Trata de caracterizar el principio de conservación de los actos jurídicos como la orientación axiológica de la teoría jurídica del negocio, en que la nulidad es una excepción en el derecho de las relaciones económicas. Por lo tanto, busca interrelacionar la conservación con los principios del Código Civil brasileño de 2002 (sociabilidad, eticidad y operatividad) y los principios institucionales de la relación obligatoria (la autonomía privada, la buena fe y la función social, comprendiendo, así, como él principio de conservación es una expresión contemporánea de la personalidad. Por lo tanto, es una nueva evaluación de la transacción jurídica a la luz del personalismo ético. La categoría negocial fue repersonalizada, aportado del valor de la persona. Esta es una oportunidad para saber si realmente el negocio jurídico, como categoría jurídica, es un concepto en crisis. O, en cambio, se toda esta base teórica y principiológica no significa que el "negocio", pero, tiene su importancia como un género, sino que necesita una lectura funcionalizada y cada vez más preocupada con el jus-humanización del Derecho Privado. 7122

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REFLEXÕES EM TORNO DO PRINCÍPIO DA CONSERVAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO

REFLEXIONES SOBRE EL PRINCIPIO DE CONSERVACIÓN DE LOS NEGOCIOS JURÍDICOS

Gilberto Fachetti Silvestre Guilherme Fernandes de Oliveira

RESUMO

Procura caracterizar o princípio da conservação dos atos jurídicos como orientação axiológica da teoria do negócio jurídico, tratando as nulidades como uma exceção no direito das relações econômicas. Para tanto, busca inter-relacionar a conservação com os princípios gerais do Código Civil (socialidade, eticidade e operabilidade) e com os princípios institucionais da relação obrigatória (autonomia privada, boa-fé e função social), compreendendo, assim, como aquele princípio corresponde a uma manifestação contemporânea da personalidade. Tem-se, pois, uma releitura do negócio jurídico à luz do personalismo ético. A categoria negocial aparece repersonalizada, elevando a pessoa como valor. Trata-se de uma oportunidade de questionar se realmente o negócio jurídico, como categoria jurídica, é um conceito em crise. Ou se, por outro lado, toda essa base teórica e principiológica não significa que a categoria “negócio” tem sim sua importância como gênero, porém necessita de uma leitura cada vez mais funcionalizada e preocupada com a jus-humanização do Direito Privado.

PALAVRAS-CHAVES: NEGÓCIO JURÍDICO – PRINCÍPIO DA CONSERVAÇÃO – CONVERSÃO – NULIDADES – PERSONALIDADE.

RESUMEN

Trata de caracterizar el principio de conservación de los actos jurídicos como la orientación axiológica de la teoría jurídica del negocio, en que la nulidad es una excepción en el derecho de las relaciones económicas. Por lo tanto, busca interrelacionar la conservación con los principios del Código Civil brasileño de 2002 (sociabilidad, eticidad y operatividad) y los principios institucionales de la relación obligatoria (la autonomía privada, la buena fe y la función social, comprendiendo, así, como él principio de conservación es una expresión contemporánea de la personalidad. Por lo tanto, es una nueva evaluación de la transacción jurídica a la luz del personalismo ético. La categoría negocial fue repersonalizada, aportado del valor de la persona. Esta es una oportunidad para saber si realmente el negocio jurídico, como categoría jurídica, es un concepto en crisis. O, en cambio, se toda esta base teórica y principiológica no significa que el "negocio", pero, tiene su importancia como un género, sino que necesita una lectura funcionalizada y cada vez más preocupada con el jus-humanización del Derecho Privado.

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PALAVRAS-CLAVE: NEGOCIO JURÍDICO – PRINCIPIO DE CONSERVACIÓN – CONVERSIÓN – NULIDAD – PERSONALIDAD.

1. Introdução.

Todo o rigor do regime jurídico das nulidades passa, hoje, por certa mitigação decorrente da importância que cada vez mais se atribui à confiança que as partes depositam numa determinada relação jurídica. Mesmo nulo o ato negocial busca-se em seus escombros algo que permita uma eficácia ainda que mínima aos propósitos jurídicos perseguidos pelos contratantes. Dessa forma, a ineficácia a que seria fatalmente conduzido um ato viciado é uma exceção, principalmente quando está em jogo a boa-fé e a confiança depositada numa determinada relação jurídico-econômica, pois tal confiança não é uma exclusividade das partes ou de alguns terceiros interessados, mas de toda a sociedade, já que a consolidação da ideia de funcionalização do negócio jurídico faz com que a este seja dado um enfoque ultrassubjetivo.

Consectário lógico da preservação da confiança das partes e da função social do negócio, há um princípio de ordem interpretativa que determina seja a vontade das partes aproveitada ao máximo para a produção dos efeitos pretendidos - especialmente nos casos de invalidade do negócio jurídico -, em que será possível, muitas vezes, afastar o vício que conduz à ineficácia do ato, ou, ainda, re-categorizar, re-qualificar o ato mediante um esforço hermenêutico. Trata-se do chamado princípio da conservação do negócio jurídico.

O princípio da conservação é a principal justificativa e orientação axiológica da conversão do negócio jurídico (art. 170 do Código Civil) e das chamadas medidas sanatórias, quais sejam, confirmação e redução (artigos 172 e 184 do Código Civil).

A conservação se relaciona com aqueles princípios basilares do Código Civil de 2002 (socialidade, eticidade e operabilidade) e com aqueles que norteiam a relação obrigatória (boa-fé, função social e autonomia da vontade). Por essa razão é de se destacar que a conservação, mesmo se não estivesse expressa em dispositivos como os artigos 170, 172, 184, 479, além do § 2º do art. 157, todos do Código Civil, seria um desfecho obrigatório para um Código que se propõe a consagrar uma pauta axiológica dessa monta, pois é inegável que se trata de um meio de desenvolvimento de valores como a equidade, a função social do contrato e a boa-fé.

Este trabalho tem por objetivo, primeiramente, trazer à luz um tema que, apesar de muito desenvolvido em sede de revisão contratual por onerosidade excessiva, não recebeu, ainda, um tratamento mais detido em matéria de negócio jurídico, especificamente no que se refere à teoria das nulidades. Por isso, haverá aqui um espaço dedicado apenas a essa temática, com o propósito de melhor configurar o princípio, estabelecendo sua intrínseca relação com os princípios gerais do Código de 2002 e com toda a ideia de Direito Civil funcionalizado e jus-humanizado. Além disso, o trabalho objetivou reunir as ideias de juristas consagrados e de novos estudiosos do Direito Privado sobre o tema, indicando referências que em muito facilitam estudos futuros.

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2. A ideia de conservação do negócio jurídico.

A ideia desse princípio é basicamente direcionada a evitar, dentro do máximo possível, que o negócio maculado por um defeito deixe de produzir os efeitos (ou alguns efeitos) pretendidos pelas partes. É direcionado ao legislador e ao juiz, pautando suas atividades para que vislumbrem, sempre que possível, uma maneira ou mecanismo jurídico que permita ao negócio produzir alguma eficácia. Por tal razão, e neste sentido, pode-se afirmar que o legislador de 2002 considera o desfazimento do negócio por invalidade uma excepcionalidade[1], porque o propósito primeiro é a preservação do vínculo obrigacional.

Segundo Vieira Lima, "há conservação quando o ato é eficaz, mas a eficácia está periclitante, como no caso de excessiva onerosidade [CC/02, art. 478]. Ao juiz é dado rever o negócio jurídico, para que a eficácia se conserve, no todo ou pelo menos em parte".[2]

O princípio da conservação permite a manutenção do vínculo relacional-obrigacional a partir de uma adequação do negócio a uma nova realidade; há uma reconsideração de alguns aspectos da estrutura negocial que possibilita ao ato sua validade. Seu âmbito de aplicação ocorre quando da verificação de uma nulidade (nulidade ou anulabilidade, dependendo da gravidade do vício que atinge o negócio), cuja consequência jurídica de tal valoração negativa conduz à invalidade do negócio jurídico, e consequente impossibilidade de produção de efeitos jurídicos. Trata-se, na verdade, de um mecanismo a serviço do sistema para evitar, no possível, a nulidade dos negócios ineficazes lato sensu.[3] Então, percebe-se que a essência do princípio é justamente conservar a vontade manifestada pelas partes para que seja possível produzir os efeitos práticos que pretendiam os celebrantes. Preserva-se, com isso, a autonomia privada, cuja manifestação de vontade, como se sabe, é capaz de criar regras nas esferas individuais dos sujeitos, apresentando-se, assim, como algo de significativa importância jurídica.

É ampla, portanto, a formulação do princípio: "l'attività negoziale deve potersi mantenere in vigore il più possibile al fine della realizzazione dello scopo pratico perseguito".[4],[5]

Destaca Schmiedel que a ideia essencial contida no princípio diz respeito à salvaguarda do negócio jurídico a partir do aproveitamento do mínimo dos elementos constitutivos do suporte fático para obtenção do máximo de eficácia[6], com a supressão do defeito; afasta-se, com isso, a sanção de nulidade, permitindo que o negócio produza os efeitos pretendidos, ou pelo menos alguns deles. É este, inclusive, o sentido atribuído por Junqueira: "Por ele [princípio da conservação], tanto o legislador quanto o intérprete, o primeiro, na criação das normas jurídicas sobre os diversos negócios, e o segundo, na aplicação dessas normas, devem procurar conservar, em qualquer um dos três planos - existência, validade e eficácia -, o máximo possível do negócio jurídico realizado pelo agente".[7]

É hora, então, de indagar qual o sentido que a ordem jurídica intentou dar à conservação do negócio. Ou, em outras palavras, por que conservar? A resposta parte do seguinte raciocínio: tento em vista que a ineficácia lato sensu do negócio pode ser nociva não só para as partes, mas também para toda a ordem social, o ordenamento

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jurídico opta por garantir e reforçar o vínculo relacional que une as partes, permitindo assim que se alcancem os efeitos práticos por elas pretendidos, uma vez que a repercussão de tais efeitos - dentro da perspectiva da nova orientação social do negócio jurídico - não é só na esfera individual dos contraentes, mas também em toda a sociedade. Isso porque o negócio deve ser visto como ele é, e não como ele surge[8]; e o negócio nada mais é do que um instrumento jurídico de circulação de bens e serviços, de realização das potencialidades e do auto-regramento (autonomia privada) dos indivíduos. Esses fatores lhe conferem uma importância tão grande da qual se infere que "o negócio não é [...] propriamente o ato de vontade de alguém, mas, sim, o que a sociedade vê como sendo o ato de vontade de alguém".[9]

Conservar a eficácia dos atos jurídicos tem um caráter social e econômico.[10] Schmiedel, por exemplo, é da opinião de que tal tendência se justifica a partir de um princípio geral do Direito, o da economia dos valores jurídicos.[11] E não poderia ser diferente: as relações jurídicas tornam-se tão complexas e interligadas na sociedade atual que a inexecução de um contrato pode prejudicar a execução de outros que a ele estão vinculados de alguma maneira. "O fundamento dessa restrição para o desfazimento do negócio jurídico está na assunção do fato de que, em uma sociedade complexa, os diferentes contratos firmados criam uma rede da qual resulta a total dependência entre os instrumentos, seja de forma direta ou indireta. Ou seja, assume-se como verdadeiro ser necessário o adimplemento de um contrato para que outro, que esteja de alguma forma vinculado a ele, também seja cumprido".[12] Todo adimplemento contratual é exemplo social para a execução de outro contrato.

Alonso escreve que a delimitação do alcance dos defeitos que viciam o negócio depende de uma interpretação adequada do negócio viciado, no sentido de permitir a produção de sua eficácia e limitar, ao mesmo tempo, as consequências jurídicas dos vícios que o afetam. É aí, então, segundo o autor, que dois princípios interpretativos encontram um terreno de manifestação: o princípio da conservação e o princípio do favor negotii - este último deriva do princípio da boa-fé objetiva e conduz à ampliação do campo de efetividade do negócio jurídico.[13],[14]

Alguns autores entendem que os mecanismos colocados pelo sistema a favor da conservação dos negócios inválidos devem ser designados de medidas sanatórias, de maneira que, na prática, o princípio da conservação atua através dessas medidas, dentre as quais se destacam a conversão do negócio jurídico (art. 170, CC/2002), a confirmação ou ratificação dos atos anuláveis (art. 172, CC/2002) e a redução ou regra utile per inutile non vitiatur (art. 184, CC/2002).[15] Entretanto, isto só faz sentido quando se está diante dos casos de confirmação ou ratificação, nulidade parcial (redução) e integração do negócio jurídico porque eles promovem verdadeira "cura", "sanação" no negócio jurídico, que deixa de ser inválido. Mas, no que se refere à conversão (art. 170), é preciso afastar qualquer noção do instituto como medida sanatória, porque ela nada cura. Segundo Del Nero, a conversão decorre de "uma qualificação jurídica em que o grau de correspondência isomórfica ou homóloga entre o negócio jurídico e um modelo jurídico-negocial, embora menor que aquele prima facie identificado, permite seja juridicamente eficaz lato sensu o negócio, que prima facie o não era".[16] Assim sendo, o procedimento de conversão não implica na modificação de um negócio viciado, "sanando-o", "curando-o" de seu vício, ou expurgando este; o "negócio conversível" decorre de uma preferência de uma qualificação jurídica capaz de permitir a produção de efeitos.[17]

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Não obstante, o princípio da conservação caracterizar-se como princípio jurídico de ordem superior (na verdade, um princípio geral do Direito que, protegendo a boa-fé, seria imposto às relações jurídicas ainda que não estivesse positivado), nem por isso ele apresenta um caráter absoluto, encontrando dois limites básicos para sua aplicação, além de outros que dependerão do caso concreto: 1º) é da sua essência que deve ser conservado tudo que for possível do negócio jurídico, ou seja, deve ser afastado nos casos em que a lei nega às partes a possibilidade de criar regras concretas; e 2º) também deve atender aos interesses práticos manifestados pelos celebrantes.[18]

No Código Civil de 2002 o princípio da conservação está disperso em diversos dispositivos, cujos mais relevantes são: o art. 170 (conversão do negócio jurídico); o art. 144, que estabelece que o erro não prejudique a validade do negócio se a pessoa, a quem a manifestação de vontade se dirige, se oferece para executá-la em conformidade com a vontade real do manifestante; o art. 184, que consagra a regra utile per inutile non vitiatur ou redução do negócio jurídico; e o art. 172, que regulamenta a confirmação do negócio anulável.

Também consta do parágrafo 2º do art. 157, aplicável nos casos de lesão e que estabelece "Não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito". Inclusive, sobre este dispositivo, o Conselho da Justiça Federal firmou entendimento da consagração do favor negotii através do Enunciado nº. 149 da III Jornada de Direito Civil: "Em atenção ao princípio da conservação dos contratos, a verificação da lesão deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial do negócio jurídico e não à sua anulação, sendo dever do magistrado incitar os contratantes a seguir as regras do art. 157, § 2º, do Código Civil de 2002".

Outros dispositivos que contêm a conservação são os artigos 317 e 479 do Código Civil, garantindo que a resolução por onerosidade excessiva do contrato poderá ser evitada oferecendo-se ao réu a possibilidade de modificação equitativa das condições do contrato. Aliás, sobre a resolução por onerosidade excessiva do contrato, disciplinada no art. 478 do Código Civil, manifestou-se da seguinte maneira o Conselho da Justiça Federal, através do Enunciado nº. 176 da III Jornada de Direito Civil: "Em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual". Essa orientação jurisprudencial demonstra a consagração plena do princípio em nosso sistema, e sua importância na conjuntura econômica do País e no cumprimento da função social do contrato. Já a IV Jornada de Direito Civil trouxe no Enunciado nº. 367 outro esclarecimento para a interpretação do art. 479, que, como visto, consagra, o favor negotii: "Em observância ao princípio da conservação do contrato, nas ações que tenham por objeto a resolução do pacto por excessiva onerosidade, pode o juiz modificá-lo equitativamente, desde que ouvida a parte autora, respeitada a sua vontade e observado o contraditório".

No que tange ao art. 156 (estado de perigo), o entendimento consagrado é de que se aplica analogicamente o disposto no § 2º do art. 157, que, como visto, consagra plenamente a conservação. É, inclusive, o entendimento do Enunciado nº. 148 da III Jornada de Direito Civil: "Ao 'estado de perigo' (art. 156) aplica-se, por analogia, o disposto no § 2º do art. 157".

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O princípio da conservação, no Direito positivo brasileiro, também encontra guarida na Lei nº. 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor), cujo parágrafo 2º do art. 51 determina que "A nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes". Apesar de pertencer à seara consumerista, esse dispositivo fundamenta o favor negotii no Direito brasileiro. Além disso, o entendimento que predomina hodiernamente é no sentido de que os princípios contidos no Código de Defesa do Consumidor expressam verdadeiros valores de ordem constitucional, o que, então, vem revelar a importância superior do princípio da conservação.[19]

3. Conservação, convalidação e conversão do negócio jurídico.

Uma possibilidade de análise do princípio da conservação encontra-se na chamada convalidação do negócio jurídico. Segundo Vieira Neto[20] o termo comporta vários sentidos: ora significa remédio contra os vícios dos atos (é como define Carnelutti); ora significa a ratificação ou confirmação do negócio anulável, expressa ou tácita (é o sentido dado por Carlon Furno); e, de forma mais ampla, significa tanto o restabelecimento como a conservação da eficácia do ato jurídico. Daí percebe-se a íntima relação que existe entre o termo "convalidação" e o princípio da conservação, que, sendo medida oferecida pelo sistema jurídico para a produção dos efeitos práticos perseguidos pelas partes, é justamente uma "convalidação" (no sentido de confirmação).[21]

No Direito brasileiro, a convalidação - vista como confirmação do negócio anulável - está consagrada no art. 172 do Código Civil de 2002, que assim determina: "O negócio anulável pode ser confirmado pelas partes, salvo direito de terceiro". Como já visto, esse dispositivo decorre do princípio da conservação, que aqui significa a convalidação do negócio passível de anulação.

A convalidação só faz sentido quando da análise das medidas contrárias à ineficácia do negócio por anulabilidade.[22] Já no que diz respeito ao instituto da conversão do negócio jurídico, a análise da convalidação - mesmo em seu sentido amplo de conservação da eficácia do negócio - não tem nenhum significado, porque a conversão é medida que vai de encontro à nulidade de um negócio, e os atos nulos são inconvalidáveis (art. 169 do Código Civil).[23] É a opinião de Valdecasas: "El negocio nulo no pude ser convalidado; su ineficacia es definitiva e incurable. Así pues, no sana o se convalida por el hecho de que, con posterioridad a su celebración, cese la causa de su nulidad; por ejemplo, porque las prestaciones imposibles al concluir el contrato resulten después posibles; o porque la prohibición legal entonces vigente desaparezca. Para alcanzar los efectos jurídicos frustrados por la nulidad del negocio, las partes no tienen otra vía que celebrar de nuevo el negocio, una vez que haya cesado la causa de nulidad"[24], ou, então, não se oporem à conversão do negócio jurídico.

Tendo em vista que a conversão do negócio jurídico é medida relacionada aos negócios nulos, não se pode, então, entendê-la como medida de convalidação (nem mesmo em seu sentido amplo, de conservação) e muito menos como medida sanatória de vícios, porque ela não sana os vícios e nem convalida o negócio; a conversão, simplesmente,

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conserva a manifestação da vontade das partes em produzir efeitos jurídicos a partir da possibilidade de prevalência de um juízo de qualificação sobre outro, que permita a produção de efeitos a partir dos elementos que integram a qualificação de um negócio a priori considerado nulo. A eficácia da manifestação de vontade averigua-se a partir de um processo de subsunção dos elementos configuradores do negócio a um arquétipo jurídico-negocial, que é o ato qualificador.[25]

Isso leva ao seguinte entendimento: o princípio da conservação é um dogma que objetiva evitar a ineficácia lato sensu do negócio viciado, seja ele nulo ou anulável. No entanto, deve ser analisado sob duas perspectivas: quando contrário a uma anulabilidade, ele pode ser caracterizado como medida de convalidação (confirmação, ratificação); e será, por outro lado, conversão, quando for de encontro ao negócio nulo.

4. A conservação e os princípios gerais do Código Civil de 2002.

Uma das características fundamentais do Código Civil de 2002 - se colocado em contraposição ao de 1916 - é a consagração de uma nova orientação axiológica e a superação das formulações individualistas, ruralistas e patriarcalistas do Código Beviláqua, que além do mais, segundo Amaral[26], consagrava um modelo metodológico legalista e positivista.

A nova codificação seguiu a esteira de três princípios básicos e gerais, quais sejam: socialidade, eticidade e operabilidade. A tarefa do operador do Direito é, dessa maneira, analisar as normas de Direito Privado a partir dessa perspectiva principiológica. Com a conservação do negócio jurídico, então, não poderia ser diferente. A importância da análise desses princípios está no fato de que eles são o suporte orientador da atividade do intérprete que objetiva chegar à fattispecie que garantirá a eficácia da manifestação de vontade viciada das partes.[27]

Preliminarmente à caracterização de cada princípio deve-se estabelecer que nem sempre eles podem ser analisados em separado, pois, tal qual destaca Mazzei, em determinadas situações, "nota-se que há uma zona cinzenta de interseção entre as diretrizes, resultante do caminho abstrato seguido pelo orientador".[28] O interessante é que a conservação é uma dessas situações que está nessa zona de intersecção. A conservação é manifestação da eticidade, pois diz respeito à boa-fé, ou seja, à fidelidade das partes que se propõem um vínculo obrigacional. De igual forma, tem um caráter operativo, pois permite operacionalizar o contrato ao determinar que se imponha outra qualificação jurídica que possibilite a validade do negócio. E, por fim, também se relaciona com a socialidade, cujo enfoque é ultrassubjetivo, pois da conservação decorre, verdadeiramente, uma fundamentação objetiva, baseada na ordem jurídica, cujo propósito é a preservação do contrato e de sua função social.

A conservação tem um objetivo de ordem prática, que é o de permitir a produção de efeitos pretendidos pelas partes. Além deste, apresenta, ainda, objetivo de ordem jurídica, filosófica e social, representado pela valorização do ser humano na sociedade, pois o indivíduo, a partir da autonomia privada, é visto como criador de normas jurídicas, ou seja, sua atividade negocial é fonte do Direito. Tal é a importância do negócio jurídico. E eis aí o ponto de toque entre a conservação, a eticidade, a

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socialidade e a operabilidade: estes princípios significam a valorização do indivíduo no âmbito social, e a conservação torna-se instrumento dessa valorização no sentido em que permite, pela sua aplicação, justiça e equidade nas relações jurídicas privadas.

Passe-se, agora, a uma análise mais detida de cada princípio com o propósito de estabelecer com mais precisão a relação de cada um com a conservação.

4.1. Socialidade e eticidade.

Previamente, destaque-se que são princípios diferentes, não obstante estreita relação entre ambos, e justamente por este motivo é que são aqui colocados no mesmo tópico.[29]

Reale destaca que "se não houve a vitória do socialismo, houve o triunfo da 'socialidade', fazendo prevalecer os valores coletivos sobre os individuais, sem perda, porém, do valor fundante da pessoa humana".[30] Assim, pelo princípio da socialidade, os vínculos intersubjetivos passam a interessar a toda a ordem social, o que justifica, segundo Mazzei, a intervenção estatal em determinadas hipóteses legais.[31] A conservação - através das medidas dela decorrentes (conversão, confirmação e redução) - é, nesse ínterim, justamente uma dessas hipóteses de intervenção do Estado, pois representa o propósito da ordem jurídica em preservar o poder criador de normas dos indivíduos.

Por isso, pode-se dizer que com o Código Civil de 2002 as relações privadas passam a ter um enfoque "ultrassubjetivo", em que "as relações entre os particulares não sofrem análise apenas no âmbito do vínculo entre eles, sendo necessário projetar os efeitos das relações ao enquadramento da sociedade como um todo".[32]

As relações privadas ganham esse enfoque ultrassubjetivo em decorrência da importância que elas têm para a sociedade, pois - nunca é demais repetir - a autonomia privada repercute no âmbito social já que ela permite a criação de normas de Direito que em muito podem influenciar os demais sujeitos em seus atos da vida privada. Por essas razões, não significa a socialidade uma redução da importância do indivíduo na esfera privatística, porque o princípio é consequência exatamente de uma importância do sujeito - enquanto parte de uma relação jurídica criadora de normas - para toda a sociedade.

Pelo princípio da socialidade tem-se, ainda, que o negócio jurídico deve cumprir sua função social. A conservação do negócio jurídico apresenta-se, nesse aspecto, como um instrumento que permite a concreção dessa função, pois se o intento prático perseguido pelas partes não se conservar, ainda que sob o rótulo de outro negócio, válido, isto é, que possa produzir efeitos, como o negócio cumprirá sua função social? Dessa maneira, as regras, por exemplo, dos artigos 170, 172, 184, 317, 479 etc. do Código Civil são verdadeiros instrumentos de promoção e realização da função social do contrato, permitindo, assim, o exercício de direitos subjetivos e a concretude de limites apontados pelo Codex.

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Quanto ao princípio da eticidade, este conduz o Código de 2002 a uma superação do rigor lógico-formal do processo interpretativo juspositivista e normativista. O rigorismo formal do Código Civil de 1916 permitiu constatar a insuficiência da plenitude da norma jurídica positiva e do simples método de subsunção, que nem sempre conduzem a soluções justas. Daí a preferência à previsão de recursos de critérios ético-jurídicos que permitam à decisão judicial uma solução mais equitativa.[33]

São três as características principais da eticidade, apontadas por Amaral: 1) atribuir "maior importância aos critérios ético-jurídicos do que aos critérios lógico-formais no processo de realização do direito, a chamada concreção jurídica"; 2) conferir "maior grau de poder e de responsabilidade do juiz, chamado não a aplicar, mas a criar o direito para o caso concreto"; e 3) representar "a crença de que o equilíbrio econômico dos contratos é a base ética de todo o direito obrigacional o que o aproxima do princípio da boa-fé, no seu sentido ético, objetivo".[34]

Essas três inferências feitas do princípio da eticidade pelo Professor Amaral têm estreita relação com a conservação do negócio nulo: a primeira porque a conservação representa a concreção jurídica do cumprimento da função social do negócio, a partir da consideração de que o referido princípio é um instrumento de equidade; a segunda porque a conversão representa muito bem a tradição jurisprudencialista que o novel Código pretende inaugurar, uma vez que ela depende da atividade judicial de valoração e qualificação do negócio para encontrar aplicabilidade; por fim, a terceira representa uma pauta de orientação à aplicação dos artigos 170, 172, 184, 479 etc., porque a conservação objetivará justamente a preservação do contrato e do equilíbrio das partes, não permitindo que a nulidade possa beneficiar um contraente em detrimento de outro. Além disso, outro ponto de toque é que a eticidade visa dar eficácia e efetividade a princípios superiores como a honestidade nas relações jurídicas de Direito Privado.[35]

A conservação e seus instrumentos corolários (conversão, confirmação, redução etc.) permitem a realização dessa ética consagrada pelo Código, uma vez que da sua aplicação resulta a preservação da fidelidade ao vínculo obrigacional, do equilíbrio entre os contraentes e da confiança depositada pelas partes.

4.2. Operabilidade.

Também conhecido como concretude ou concretitude, é um princípio destinado à realização prática do Direito, tendo, por isso, essência filosófica, jurídica, hermenêutica e metodológica.[36]

Ensina Mazzei que com tal diretiva o legislador de 2002 pretendeu tornar as matérias do Código de fácil aplicação, para que não se verificassem embaraços na execução do mandamento normativo.[37] Foi o que aconteceu, por exemplo com a conversão do negócio jurídico, consagrada no art. 170 do Código de 2002, e que não se fazia presente expressamente no diploma de 1916. É exatamente no propósito legislativo de afastar controvérsias que se encontra a operabilidade da norma do art. 170 do Código Civil, porque ao explicitar expressamente a norma de conservação dos negócios nulos a partir da conversão ela extingue aquela dúvida que existia na lei civil

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de 1916 quanto à possibilidade de se "converter" um negócio nulo em outro válido.[38] Com a consagração desse instituto tem-se uma solução simplificada para o problema da nulidade absoluta (mais vista como uma exceção do que uma regra), que não prejudica o interesse das partes - pelo contrário, favorece - e constitui instrumento contra possível prejuízo na esfera jurídica de terceiro, situação que pode surgir com a nulidade. Sua importância está na efetivação prática do princípio da conservação sem distorções e embaraços, atendendo aos postulados de justiça e segurança jurídica.

5. A conservação e os princípios institucionais da relação obrigatória.

Amaral destaca que a codificação de 2002 orientou-se por princípios gerais e informadores na disciplina das obrigações.[39] Compõem a última classe os princípios da autonomia privada, boa-fé objetiva, função social, equidade e responsabilidade patrimonial. Interessa, aqui, a análise dos três primeiros dado sua estreita relação com a conservação do negócio passível de nulidade.

5.1. Autonomia privada.

A concepção doutrinária para o princípio da autonomia privada que melhor atende aos propósitos dessa pesquisa é dada por Menezes Cordeiro: "corresponde ao espaço de liberdade jurígena, isto é, à área reservada na qual as pessoas podem desenvolver as actividades jurídicas que entenderem. [...] podendo definir-se como uma permissão genérica de produção de efeitos jurídicos".[40] Essa noção só vem reforçar a ideia que exaustivamente já fora apresentada nas linhas anteriores, referentemente à importância da autonomia privada para o Direito e a sociedade: é que a atividade negocial que dela decorre constitui verdadeira fonte criadora do Direito, localizando-se aí, justamente, uma das razões de ser da conservação do negócio jurídico, uma vez que de sua operabilidade ocorrerá a preservação da intenção prática das partes e de seu poder de produzir efeitos jurídicos.

"A verdadeira essência do conteúdo do negócio jurídico estaria na autonomia privada, no auto-regulamento que o particular não deve limitar-se a desejar ou querer [...]."[41] Nesse sentido, a conservação é um instrumento de preservação e realização da autonomia privada, ou seja, do poder auto-regulatório da pessoa; aparece meio de desenvolvimento das relações econômicas e, por conseguinte, mais um instrumento que confere plenitude à dignidade da pessoa humana, na sua liberdade de contratar.

5.2. Função social.

O princípio da função social do contrato (art. 421, CC) é verdadeiro consectário do princípio da socialidade, tomado como curador do Código Civil. Por isso, significa um compromisso do contrato com a coletividade, de maneira a propiciar justiça e desenvolvimento sociais.[42]

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Mais uma vez a conservação apresenta-se como mecanismo a serviço da justiça negocial, pois se o negócio é nulo - e, portanto, ineficaz lato sensu - como poderá ele cumprir sua função social? Então, se há a possibilidade de uma interpretação diversa, capaz de permitir a produção de efeitos, deve-se optar por esta, pois a conservação do vínculo negocial permitirá o cumprimento da função social da autonomia privada, que deve, essencialmente, permear todo contrato.

Além disso, uma das aplicações da função social é verificada na imposição da conservação do negócio jurídico inválido quando o desfazimento deste apresentar-se prejudicial a outras relações jurídicas a ele vinculadas. O princípio da conservação, então, é reforçado e reforça os dogmas da função social e da boa-fé.[43]

Nesse sentido, as palavras de Kliemann: "Outra possibilidade de aplicação do princípio da função social, ainda não tão celebrada pela jurisprudência e pela doutrina, refere-se à manutenção do negócio jurídico. Isso porque a solidariedade e a cooperação, valores que compõem o princípio da função social, exigem a manutenção do negócio jurídico. O fundamento dessa restrição para o desfazimento do negócio jurídico está na assunção do fato de que, em uma sociedade complexa, os diferentes contratos firmados criam uma rede da qual resulta a total dependência entre os instrumentos, seja de forma direta ou indireta".[44] Assim, tendo em vista a importância social de cada negócio para a sociabilidade, a conservação do intento prático das partes representa a intenção do Código Civil de ir de encontro à desconstituição da relação obrigacional.

5.3. Boa-fé objetiva.

A boa-fé é uma regra de comportamento ético que dirige a relação jurídica estabelecida entre as partes contratantes, impondo determinados deveres de lealdade, honestidade, solidariedade, correição, probidade e confiança, de maneira que o acordo de vontades e a execução e interpretação do negócio jurídico ocorram de forma ética. Trata-se de um arquétipo de conduta jurídico-social pelo qual as partes deverão se comportar com lealdade e correção. Aliás, Bianca considera boa-fé (buona fede) e correição (correttezza) como sinonímias.[45] Então, simplificadamente, a boa-fé traduz a ideia de que o comportamento das partes deve ser desenvolvido com consideração mútua e honestidade, a partir de critérios éticos e objetivos.

O princípio da boa-fé encontra três âmbitos de aplicabilidade na relação negocial: formação, interpretação e execução do negócio.[46] Aí encontram-se suas três funções básicas: interpretativa, em que a interpretação do contrato é feita de acordo com os deveres de lealdade que as partes devem ter para consigo; integrativa, pela qual as omissões das partes são supridas com os padrões impostos pelo princípio; e controle da autonomia da vontade, ou seja, o poder de auto-regulamentação das partes está condicionado aos ideais de lealdade, solidariedade e lisura entre as partes.[47]

Postas essas premissas, indaga-se: em que consiste a importância do estudo da boa-fé objetiva no âmbito da conservação do negócio jurídico? Ou melhor: qual a relação entre boa-fé e conservação? Ganham destaque, nesse sentido, as opiniões de Mosco e Alonso que apesar de se referirem diretamente ao instituto da conversão, suas

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reflexões cabem perfeitamente ao princípio da conservação, já que este é a fundamentação da conversão.

Para Mosco, à base do instituto da conversão está o princípio da boa-fé que sempre é levado em consideração na disciplina do contrato; é uma regra que prima pela prevalência da confiança e pela exigência de estabilidade das relações jurídicas.[48] E doutrina: "E ao mesmo princípio se pode conduzir a particular norma dispositiva que estabelece [sancisce] a conversão. Qualquer uma das partes contratuais tem o direito de confiar no exato adimplemento das obrigações que do negócio derivam, e onde os efeitos não são possíveis de serem inteiramente reunidos, há também o direito de confiar naqueles efeitos mais limitados que o negócio viciado é capaz de produzir".[49] Pode-se dizer, então, que a boa-fé exige a conservação sempre que com esta seja possível a produção de efeitos que o negócio viciado não poderia produzir. Então, a conservação é exigência da boa-fé, no sentido de preservar a confiança das partes.

Alonso entende que a conversão do negócio jurídico é um efeito típico e manifestação da boa-fé, em que "en definitiva se actúa la determinación de la norma o principio que rige la relación jurídica nacida del negocio; de esta manera la buena fe sirve para atenuar una norma demasiado rígida o para completar o llenar otra demasiado escueta [...]".[50] Entende que uma das manifestações da boa-fé é o princípio do favor negotii, que se verifica no sentido dado à conversão do negócio jurídico. Então, a conservação do negócio e a gestão máxima esforços para a produção dos efeitos pretendidos são exigências da boa-fé para que o negócio alcance seus propósitos de solidariedade, lealdade e confiança entre as partes.[51] Daí que, aplicando a boa-fé em sua função integradora, o pressuposto negocial incompleto é preenchido, e mediante esse auxílio a vontade privada se completa em um negócio eficaz, sendo que essa integração se consegue, justamente, a partir da conversão.[52] Veja, então, mais uma vez o princípio da conservação sendo empregado como meio de realização dos princípios contemporâneos que orientam as atividades jurídico-econômicas e conduzem à tão desejada justiça contratual.

A conclusão que o exposto permite chegar é a de que não "conservar" o negócio (ou não prever sistematicamente essa possibilidade) significaria que toda correição, lealdade e confiança das partes no decorrer da relação contratual foi em vão. Assim, a conservação, sempre que possível, impõe-se com o propósito de preservar essa conduta de lealdade que serve de exemplo para toda a sociedade. Por isso o sistema jurídico deve oferecer mecanismos para a operabilidade da ideia de "conservação do negócio nulo", uma vez que, como visto, ele é um meio de preservação da boa-fé que deve imperar nas relações jurídicas, especialmente nas de índole contratual.

A ideia que se defende aqui é a de que a conservação é um mecanismo de preservação da confiança manifestada pelas partes. Imagine o prejuízo para a ordem social, jurídica e subjetiva (dos contraentes) se todo o investimento de confiança feito na relação jurídica tivesse sido inútil porque o negócio, por ser nulo, não pode persistir. Por isso parece não restar dúvidas de que a conservação se justifica por uma questão de boa-fé.[53] "[...] todos os investimentos, sejam eles econômicos ou meramente pessoais, postulam a credibilidade das situações: ninguém dá hoje, para receber (apenas) amanhã, se não houver confiança nos intervenientes e nas situações".[54]

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As palavras de Bianca também permitem que se vislumbre a conservação como manifestação da boa-fé: "Nell'esecuzione del contratto e del rapporto obbligatorio, la buona fede si specifica anche come obbligo di salvaguardia. Qui la buona fede impone a ciascuna delle parti dia gire in modo da preservare gli interessi dell'altra a prescindere da specifici obblighi contrattuali e da dovere extracontrattuale del neminem laedere. Questo impegno di solidarietà, che si proietta al di là del contenuto dell'obligazzione e dei doveri di rispetto altrui, trova il suo limite nell'interesse proprio del soggetto. Il soggetto è tenuto a far salvo l'interesse altrui ma non fino al punto di subire un apprezzabile sacrificio, personale o economico. In mancanza di una particolare tutela giuridica dell'interesse altrui non si giustificherebbe infatti la prevalenza di esse sull'interesse proprio del soggetto. Quale obbligo di salvaguardia la buona fede può dunque essere identificata como l'obbligo di ciascuna parte di salvaguardare l'utilità dell'altra nei limiti in cui ciò non importi un aprezzabile sacrificio a suo carico."[55] A conservação está a serviço do sistema e é empregada para a salvaguarda da obrigação e da utilidade prática que resulta da relação obrigacional. Além disso, a conservação também é um meio de diligência da obrigação, que consiste na emprego de meios e energias idôneos à realização do fim a que se determina o negócio.[56]

Outro vínculo fático-conceptual entre conservação e boa-fé que se pode destacar diz respeito à situação em que no decorrer da execução contratual a boa-fé poderá exigir das partes uma modificação do próprio comportamento, quando tal se fizer necessário justamente para a salvaguarda da utilidade prática da obrigação.[57] Nesse caso, a conservação, enquanto interpretação que conduz à validade do negócio, requer exatamente uma mudança de comportamento das partes, pautada na boa-fé, para o alcance dos fins pretendidos (salvaguarda da utilidade do negócio). Basta lembrar que a conservação implica numa re-valoração (modificação) da situação negocial e comportamental dos contratantes, que estará direcionada pela boa-fé e pela exigência de preservar a utilidade prática almejada no negócio jurídico.

6. Conclusão: a conservação como dimensão da personalidade na contemporaneidade.

Pelo princípio da conservação dos atos jurídicos deve-se preservar, dentro das possibilidades, a manifestação de vontade das partes para o alcance dos fins práticos pretendidos. Importa a finalidade prática, e não o meio jurídico para tanto. Esse princípio implica na derrogação do antigo adágio quod nullum est, nullum producit effectum[58], e se manifesta, principalmente, pelas medidas da conversão, confirmação, e redução (respectivamente, artigos 170, 172 e 184 do Código Civil), e pela revisão por onerosidade excessiva (artigos 317 e 479 do Código Civil) e por lesão (§ 2º do art. 157 do Código Civil).

O favor negotti consiste numa maneira de interpretar o negócio jurídico sempre buscando sua permanência. Ou seja, quando houver duas ou mais possíveis interpretações para o ato, pelo princípio da conservação, deve-se escolher aquela que preserve a relação jurídica negocial e, assim, a liberdade jurígena dos indivíduos.

A conservação, quando operacionalizada, nada mais faz que preservar a manifestação de vontade dos interessados em alcançar seus legítimos interesses

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jurídicos, que repercutem diretamente no desenvolvimento econômico e social do País. Dessa forma, o princípio favorece a manutenção de relações constituídas honestamente a partir da liberdade dos sujeitos, interface da personalidade em seu aspecto moral e intelectual. A conservação, desse modo, diz respeito diretamente a uma dimensão da personalidade na contemporaneidade: a liberdade dos sujeitos de, agindo honesta e solidariamente, criar normas para seu próprio agir, visando ao atingimento de resultados jurídico-econômicos.

Tem-se, pois, uma releitura do negócio jurídico à luz do personalismo ético. A categoria negocial aparece repersonalizada, elevando a pessoa como valor.

Verdadeiramente, faz-se um convite à reflexão quanto a esta pauta axiológica que hoje ganha importância para a preservação da boa-fé, da autonomia privada e da função social do tráfico jurídico, elementos estes que se referem diretamente à dignidade humana e à proteção da personalidade, afinal, as relações negociais são uma manifestação da personalidade dos indivíduos, no exercício de sua liberdade, na promoção de seu aspecto moral e intelectual. Trata-se de uma oportunidade de questionar se realmente o negócio jurídico, como categoria jurídica, é um conceito em crise. Ou se, por outro lado, toda essa base teórica e principiológica não significa que a categoria "negócio" tem sim sua importância como gênero, porém necessita de uma leitura cada vez mais funcionalizada e preocupada com a jus-humanização do Direito Privado.[59]

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[1] Ana Carolina Kliemann, O princípio da manutenção do negócio jurídico: uma proposta de aplicação, In Revista Trimestral de Direito Civil, ano 07, vol. 26, Rio de Janeiro, Padma, abr./jun. 2006, p. 04. É também o entendimento que se extrai de Eduardo Luiz Bussatta, Conversão substancial do negócio jurídico, In Revista de Direito Privado, ano 7, vol. 26, São Paulo, Revista dos Tribunais, abr./jun. 2006, pp. 157-158: "A idéia subjacente a tal princípio é que a ordem jurídica somente deve impor a destruição de atos jurídicos afetados de qualquer vício quando o vício não for remediável. Se possível, o negócio deve ser tratado de forma que mantenha a produção de efeitos jurídicos ainda que pouco diverso dos objetivamente queridos. [...] o intérprete deverá sempre envidar seus melhores esforços a fim de que o negócio jurídico produza algum efeito prático, não obstante a invalidade que sobre ele pesa, na medida em que o negócio jurídico concreto foi criado com uma finalidade e esta deve, tanto quanto possível, ser atingida". Nesse sentido a jurisprudência: TJMG, Apelação Cível nº. 2.0000.00.516983-1/000(1), Rel. Des. Márcia de Paoli Balbino, j. em 08.09.2005, DJ de 20.10.2005: "CIVIL - APELAÇÃO - ANULATÓRIA DE NEGÓCIO JURÍDICO - AGRAVO RETIDO - CERCEAMENTO DE DEFESA - INCORRÊNCIA ARTIGO 795 DO CÓDIGO CIVIL DE 2.002 - NULIDADE DA TRANSAÇÃO COM PAGAMENTO DE SEGURO A MENOR - INVALIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO - POSSIBILIDADE DE APROVEITAMENTO DO ACORDO HAVIDO, SANANDO-SE A NULIDADE EXISTENTE - PRINCÍPIO DA CONSERVAÇÃO - APLICABILIDADE. [...]. De acordo com o artigo 795 do Código Civil de 2.002, são nulos os acordos de pagamento de seguro a menor que o contratado. A invalidade do acordo não afeta sua essência, havendo possibilidade de aproveitamento do ato, sanada a nulidade existente, aplicando-se o princípio da conservação do negócio jurídico".

[2] Manuel Augusto Vieira Lima, Convalidação do ato jurídico, In Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 20, São Paulo, Saraiva, 1977, p. 306.

[3] Alberto Trabucchi, Instituciones de derecho civil, vol. I, citado por Raquel Campani Schmiedel, Negócio jurídico: nulidades e medidas sanatórias, São Paulo, Saraiva, 1981, p. 41.

[4] É o que ensina Cariota Ferrara, citado por Manoel Augusto Vieira Neto, Convalidação do ato jurídico, ob. cit., p. 306. O autor somente faz referência ao jurista italiano, não indicando o título da obra em que se encontra aquela citação. É importante destacar, ainda, que o âmbito de aplicação do princípio não se restringe somente ao Direito Privado, também se fazendo presente nos ramos públicos. É o entendimento de José Abreu, O negócio jurídico e sua teoria geral, 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 1988, pp. 327. Escreve o autor que o princípio da conservação "se manifesta de forma atuante no direito público, sobretudo em matéria processual". Tome-se como exemplo a seguinte decisão do TJES, Embargos de Declaração nº. 012.03.007988-8, 4ª Câm. Cível, Rel. Des. Manoel Alves Rabelo, j. em 04.07.2006, v.u., DJ de 28.08.2006: "[...] Atendo-se ao princípio da causalidade, bem como a regra da conservação dos atos jurídicos,

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apenas a parte viciada da sentença de primeiro grau deve ser anulada, preservando-se os demais termos. [...]". Porém, José de Abreu destaca a diferença de concepção de nulidade existente no Direito Civil e no Direito Processual, este último caracterizado pelo critério do prejuízo, pelo qual pas de nullité sans grief.

[5] Há, em sede doutrinária, quem designe o princípio da conservação como "princípio da manutenção do negócio jurídico". É o caso de Ana Carolina Kliemann, O princípio da manutenção do negócio jurídico..., ob. cit., p. 04 e outras. Todavia, deve-se ressaltar que no âmbito da chamada "conversão" substancial do negócio jurídico, tal designação não faz nenhum sentido, pois da aplicação do art. 170 do Código Civil não ocorre a manutenção do negócio jurídico. O Professor João Alberto Schützer Del Nero, Conversão substancial do negócio jurídico, Rio de Janeiro, Renovar, 2001, pp. 46-47, bem explicitou que na conversão não há "modificação" negocial, ou manutenção do negócio, mas sim uma preferência de uma qualificação jurídica que garante a eficácia da vontade manifestada pelas partes: as partes celebram um determinado negócio, cujo modelo negocial conduz à invalidade jurídica do ato, e caberá ao juiz, então, "corrigir" esse ato qualificador, verificando se há outra qualificação que permita reunir aqueles elementos do negócio apriorístico em um outro modelo jurídico-negocial, que neste caso permitirá que se alcancem os efeitos práticos pretendidos pelas partes. Veja, então, que não há modificação (a não ser da valoração da situação jurídica) e nem manutenção do negócio, porque o que decorre do art. 170 é a possibilidade de fazer prevalecer uma qualificação jurídica sobre outra, ou seja, um arquétipo negocial sobre outro. O que o princípio pretender conservar (ou manter) é o intento prático das partes, mas não o negócio em si. Por isso, impróprio, pelo menos em parte, o sentido de manutenção dado à conservação do negócio jurídico.

[6] Raquel Campani Schmiedel, Negócio jurídico..., ob. cit., p. 41. Destaca Giovanni Criscuoli, La nullità parziale del negozio giuridico, Milano, Giuffrè, 1959, p. 103, que o princípio da conservação é uma "manifestação do ordenamento jurídico voltada a salvaguardar, o quanto possível, os valores criados no mundo do direito". Também neste sentido, José Luis de los Mozos, El negocio jurídico (estudios de derecho civil), Madrid, Montecorvo, 1987, p. 589, empregando o termo "favor negotii" para denominar ao princípio aqui estudado, ensina que ele corresponde à ideia de salvar, dentro do possível, a vontade das partes.

[7] Antonio Junqueira de Azevedo, Negócio jurídico: existência, validade e eficácia, 4ª ed., São Paulo, Saraiva, 2002, p. 66. E continua, na página seguinte: "O princípio da conservação, portanto, é a conseqüência necessária do fato de o ordenamento jurídico, ao admitir a categoria negócio jurídico, estar implicitamente reconhecendo a utilidade de cada negócio jurídico concreto".

[8] Antonio Junqueira de Azevedo, Negócio jurídico..., ob. cit., p. 15. Cabe, ainda, a afirmação de Ana Carolina Kliemann, O princípio da manutenção do negócio jurídico..., ob. cit., p. 04, que entende que a "manutenção do negócio jurídico" (melhor seria empregar o termo "conservação") decorre do princípio da função social do contrato, impondo-se a conservação sempre que o desfazimento do vínculo obrigatório mostrar-se prejudicial às relações jurídicas e ele vinculadas, direta ou indiretamente.

[9] Antonio Junqueira de Azevedo, A conversão dos negócios jurídicos: seu interesse teórico e prático, In Estudos e pareceres de direito privado, São Paulo, Saraiva, 2004, p.

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131, concluindo que o intérprete deve se preocupar com o atendimento das circunstâncias que rodeiam o negócio e que "socialmente lhe fixam os contornos, isto é, com aquilo que aos outros parece ser o que o agente queria". Próximo da ideia que se pretende transmitir está o magistério de Eduardo Correia, A conversão dos negócios jurídicos ineficazes, In Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. XXIV, 1948, p. 360. Para o jurista luso, a ordem jurídica não é uma inimiga dos interesses dos indivíduos e do desenvolvimento da vida social. Aí, então, residiria o fundamento do princípio da conservação: "A ordem jurídica não é tabu que fulmine totalmente tudo que lhe não é conforme, mas, muito ao contrário, meio de garantir a consecução dos interesses do homem e da vida social; não é inimiga da modelação dos fins dos indivíduos - mas ordenadora e coordenadora da sua realização".

[10] Alberto Trabucchi, Instituciones de derecho civil, vol. I, citado por Raquel Campani Schmiedel, Negócio jurídico..., ob. cit., p. 42.

[11] Negócio jurídico..., ob. cit., p. 42. Semelhantemente, Giovanni Criscuoli, La nullità..., ob. cit., p. 115: "La conservazione del negozio parzialmente nullo, quando non risulti essenziale la sua parte invalida, riposa, quindi, su una presunzione di ordine pratica rigorosissima, conforme perfettamente al principio della economia giuridica".

[12] Ana Carolina Kliemann, A princípio da manutenção do negócio jurídico..., ob. cit., p. 12.

[13] Eduardo Serrano Alonso, La confirmación de los negocios jurídicos, Madrid, Tecnos, 1976, p. 28. Também caracterizando o princípio de conservação dos atos jurídicos como de essência interpretativa, Francisco Amaral, Direito civil: introdução, 5ª ed., Rio de Janeiro, Renovar, 2003, p. 544. Para este jurista, o princípio da conservação dos atos jurídicos determina que "em caso de dúvida, deve interpretar-se o ato no sentido de produzir algum efeito, e não no sentido contrário, de não produzir nada. Coerentemente com esse princípio, a doutrina alemã da segunda metade do séc. XX criou a figura da conversão do negócio jurídico nulo ou anulável, concretizando-a no par. 140 do Código Civil alemão".

[14] Pelo exposto, percebe-se que Eduardo Serrano Alonso tenta separar conservação e favor negotii como princípios interpretativos diferentes. Já Eduardo Luiz Bussatta, Conversão substancial do negócio jurídico, ob. cit., p. 157, coloca o princípio da conservação e o favor negotii como sinonímias: "Essa tentativa de salvar o ato que de alguma forma encontra-se inquinado de vício é o que se chama princípio da conservação ou favor negotii". Assim também a lição de Leonardo de Andrade Mattietto, Invalidade dos atos e negócios jurídicos, In Gustavo Tepedino (coord.), A parte geral do novo código civil: estudos na perspectiva civil constitucional, 2ª ed., Rio de Janeiro, Renovar, 2003, p. 347, ao se ocupar do princípio ora estudado, ensina que "o direito contemporâneo caminha, portanto, no sentido de assegurar os efeitos do negócio celebrado entre as partes, tanto quanto seja possível, em um autêntico favor contractus. Espera-se, afinal, que as partes tenham contratado para que o negócio valha e produza normalmente os seus efeitos, e não o contrário". O que importa no âmbito desse princípio da conservação não é sua concepção ou acepção, mas sua teleologia. A verdade é, então, que não faz sentido tratar esses conservação e favor negotii como sendo princípios diferentes, pois o objetivo de ambos se aproximam tanto que eles mais se diferenciam pelo fato do o favor negotii pertencer ao âmbito da boa-fé objetiva do

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que por suas caracterizações jurídicas. Até porque, como mais adiante se verá, também a conservação está numa necessária intersecção com a boa-fé. Quer dizer: é muito mais relevante em sede de invalidade negocial a análise desses princípios naquilo que se aproximam - aliás, coincidem -, do que naquilo que os distancia ou diferencia, que é tão tênue que nem se faz conveniente qualquer consideração nesse sentido. Tanto a conservação quanto o favor negotii caminham no sentido de salvar o intento prático das partes. E é isso que é importante para esta pesquisa e os propósitos deste capítulo.

[15] Raquel Campani Schmiedel, Negocio jurídico..., ob. cit., p. 60: "As medidas sanatórias são instrumentos jurídicos destinados a salvaguardar a manifestação de vontade das partes, preservando-a da deficiência que inquina o ato, tornando-o nulo ou anulável". Manoel Augusto Vieira Neto, Convalidação do ato jurídico, ob. cit., p. 306, afirma que "Há sanatória quando o ato padece de um vício que pode destruir sua eficácia. O mesmo princípio de conservação vem em socorro do ato viciado e concede remédios contra o vício, para sanar o ato". Sobre as sanatórias (conversão - art. 170 -, ratificação - art. 172 - e redução - art. 184), Cristiano Chaves de Farias, Direito civil - teoria geral, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 462, assevera que esses institutos "convergem na busca incessante do respeito ao fim visado pelas partes, sempre que possível. É dizer: esses institutos servem como instrumento de busca da máxima preservação do elemento volitivo, assegurando o desiderato almejado na declaração de vontade".

[16] João Alberto S. Del Nero, Conversão substancial do negócio jurídico, ob. cit., p. 388.

[17] Sobre essa questão há manifestação de Giovanni B. Ferri, Il c.d. recupero del negozio invalido, ob. cit., p. 23, porém apresentando-se contrário à ideia de que convalidação seja medida sanatória: "Non ha senso configurar la convalida come uno strumento per sanare il negozio, perché la convalida non toglie di mezzo i vizi del contratto, né la mancanza di capacità al momento in cui questo fu stipulato. Vizi del negozio, mancanza di capacità, sono fatti storici che, una volta accaduti, piaccia o non piaccia, non possono essere cancellati". Essa reflexão tem total aplicação no que se refere à conversão como medida sanatória.

[18] É o que entende Antonio Junqueira de Azevedo, Negócio jurídico..., ob. cit., nota nº. 91, p. 67, e Raquel Campani Schmiedel, Negocio jurídico..., ob. cit., p. 42. Próximo do que foi dito é o magistério de Manoel Augusto Vieira Neto, Convalidação do ato jurídico, ob. cit., p. 306 - entendimento também verificável em sua obra Ineficácia e convalidação do ato jurídico, São Paulo, Max Limonad, s/d., pp. 127-130 -, em que pelo princípio da conservação "impõe-se o reconhecimento da validade dos efeitos da manifstação da vontade (eficácia), em toda a extensão juridicamente possível e útil".

[19] O princípio também encontra aplicação em leis civis estrangeiras. É o caso dos Códigos Civis espanhol (art. 1.284), português (art. 237), francês (art. 1.157) e italiano (art. 1.367). Além disso, de acordo com Leonardo de Andrade Mattietto, Invalidade dos atos e negócios jurídicos, ob. cit., p. 347, as jurisprudências alemã, austríaca e inglesa têm admitido o princípio ora analisado, que também é adotado pelo Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (Unidroit), pois o art. 4.5 dos Princípios dos Contratos Comerciais Internacionais estabelece que "todos os termos de um contrato devem ser interpretados de maneira a produzir efeitos". Sobre a aplicação

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do princípio no âmbito dos contratos internacionais veja Valesca Raizer Borges Moschen e Gilberto Fachetti, A possibilidade de conversão dos contratos internacionais nulos na perspectiva dos Princípios do UNIDROIT, In Wagner Menezes (Coord.), Estudos de Direito Internacional, vol. XI. Curitiba, Juruá, 2007, pp. 499-507

[20] Manoel Augusto Vieira Neto, Ineficácia e convalidação do ato jurídico, São Paulo, Max Limonad, s/d., pp. 128-129.

[21] Eduardo Serrano Alonso, La confirmación de los negocios jurídicos, ob. cit., p. 20, define convalidação como "aquella situación en virtud de la cual y por obra de un hecho, un negocio que hasta entonces era ineficaz comienza a producir sus efectos jurídicos como si no hubiese estado viciado, o también, se la puede definir desde otro punto de vista como la desaparición de la acción de impugnación, la cual quiere decir que en puridad de principios la convalidación no elimina el vicio que afectaba al negocio, sino que simplemente elimina la posibilidad de hacerlo valer". Manuel Albaladejo, El negocio jurídico, Barcelona, Bosch, 1958, pp. 417-418, faz coro à corrente doutrinária que entende ser a convalidação "la desaparición de la impugnabilidad", com a ressalva de que "la convalidación no elimina la causa de impugnabilidad, sino sólo sus efectos: es decir, exclusivamente la impugnabilidad misma". Giovanni Batistta Ferri, Il c.d. recupero del negozio invalido, In Rivista del diritto commerciale e del diritto generale delle obbligazione, ano LXXXIV, n. 1-2/3-4, gen./apr. 1986, pp. 22-23, destaca que, sobre a "convalida del negozio annullabile" verificam-se duas posições doutrinárias: uma primeira que atribui à convalidação o efeito de sanar ["sanare", "guarire", "rinvigorire", "integrare"] o contrato anulável, de maneira que seus efeitos seriam retroativos; para outra parte da doutrina, o instituto importaria na renúncia à ação de anulação, na qual não há que se falar em retroatividade. E conclui: "a me pare che si debba aderire a qualla che vede nella convalida una perdita dell'azione di annullamento".

[22] A doutrina aponta que as medidas de convalidação podem ser reduzidas a dois grupos: a) convalidação ex voluntate - que depende da vontade do sujeito negocial, como no caso de confirmação (art. 172, CC/2002), de execução voluntária (art. 175, CC/2002) e de redução (art. 184, CC/2002) -; e b) convalidação ex lege - porque determinada pela lei, como no caso da prescrição sanatória e da perda da coisa.

[23] Manuel Albaladejo, El negocio jurídico, ob. cit., p. 418: "[...] solo son convalidables los negocios impugnables, pero no los nulos". Tanto é assim que o art. 1.310 do Código Civil espanhol estabelece que "sólo son confirmables [convalidáveis] los contratos que reunan los requisitos expresados en el art. 1.216", requisitos sem os quais o contrato é considerado nulo. Também nesse sentido está Eduardo Serrano Alonso, La confirmación de los negocios jurídicos, ob. cit., pp. 21-2. Porém, este autor assevera uma exceção à regra de que somente os atos anuláveis são convalidáveis, admitindo, no Direito espanhol, dois pressupostos de convalidação dos negócios nulos, quais sejam: 1) negócios incompletos (arts. 269, 296, 1.259, 1.729, 1.892, 1.893, todos do CC espanhol); e 2) por razões de conveniência e utilidade.

[24] Guillermo Garcia Valdecasas, Parte general del derecho civil español, Madrid, Civitas, 1983, p. 435.

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[25] João Alberto Schützer Del Nero, Conversão substancial do negócio jurídico, ob. cit., p. 03. Essas razões levam a concluir como incongruente a designação dada por Ana Carolina Kliemann, O princípio da manutenção do negócio jurídico..., ob. cit., p. 05, que intitula o instituto do art. 170 do CC de "convalidação do nulo". O nulo não se convalida, como insistentemente se destacou. Além disso, não é da essência da conversão convalidar um negócio, ou seja, salvá-lo. A realidade prática é bem diferente do sentido literal que a expressão "conversão" pode, a princípio, querer significar.

[26] Francisco Amaral, Os princípios jurídicos na relação obrigatória, In Revista da AJURIS - Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, vol. 32, nº. 99, Porto Alegre, AJURIS, set. 2005, p. 134. Não há dúvidas que o novel Código, abandonando as falíveis orientações juspositivistas e consagrando uma ordem axiológica caracterizada por princípios fundamentais de ordem moral, torna-se instrumento de consagração da perspectiva pós-positivista e pós-moderna, que cuida de não separar Direito e Moral, tal qual o fez o positivismo e o normativismo, de que a "Teoria pura do Direito" é representante mais comum.

[27] Francisco Amaral, Os princípios jurídicos da relação obrigatória, ob. cit., pp. 134-135, ensina que "Esses princípios têm, além da função normal e tradicionalmente reconhecida, de orientar a interpretação e a integração das regras jurídicas em caso de lacunas da lei, a função de dirigir o trabalho do legislador na sua atividade de formalizar, juridicamente, os preceitos legais e ainda, a função de orientar o intérprete na tarefa de construir as normas jurídicas adequadas aos casos concretos que porventura se apresentem, e que não tenham, no quadro sistemático e regulamentar, uma fattispecie determinada".

[28] Rodrigo Reis Mazzei, Notas iniciais à leitura do novo código civil, In.: Arruda Alvim e Thereza Alvim (coords.), Comentários ao código civil brasileiro - parte geral, vol. I, Rio de Janeiro, Forense, 2005, p. CXI.

[29] Judith Martins-Costa e Gerson Luiz Carlos Branco, Diretrizes teóricas do novo código civil brasileiro, São Paulo, Saraiva, 2002, p. 131, ensinam que "Ambas - eticidade e socialidade - constituem perspectivas reservadamente conexas, pois as regras dotadas de alto conteúdo social são fundamentalmente éticas, assim como as normas éticas têm afinidade com a socialidade".

[30] Miguel Reale, As diretrizes fundamentais do projeto do código civil, In.: Conselho da Justiça Federal, Comentários sobre o projeto do código civil brasileiro, Brasília, CJF, 2002, p. 15. Semelhantemente, José Camacho Santos, A novo código civil brasileiro em suas coordenadas axiológicas: do liberalismo à socialidade, In Revista da AJURIS - Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, vol. 88, t. II, ano 29, dez. 2002, p. 213: "a pragmática evidenciou que o esquema individualista tinha de ser revisto, porque o ser humano, a despeito de ser tido como o centro dos interesses, não pode ser individualista, guiado por sentimentos egoísticos. Deve, antes disso, assumir a condição de membro da comunidade, de compromissado com a prioritária proteção dos valores da coletividade, com o que também os individuais legítimos. Equivale a dizer: o bem-estar individual deve se harmonizar ou se condicionar ao bem-estar geral, como, a propósito, preconiza a Constituição Federal vigente". E continua à p. 214: "a opção pelo social não só é tendência jurídica mundial, porquanto fundamental à realização dos valores básicos das pessoas, como é necessária ao combate de posturas arrimadas no

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vício do 'jeitinho', do 'oportunismo', da 'esperteza', da prevalência dos poderosos. Atende, enfim, aos reclamos de justiça social, distributiva, abominando a ganância dos que se acostumaram com os códigos e leis utilizados como instrumento de dominação".

[31] Rodrigo Reis Mazzei, Notas iniciais à leitura do novo código civil, ob. cit., p. CXVI.

[32] Rodrigo Reis Mazzei, Notas iniciais à leitura do novo código civil, ob. cit., p. CXVII.

[33] Ensina Miguel Reale, As diretrizes fundamentais do projeto do código civil, ob. cit., p. 16: "O novo Código, por conseguinte, confere ao juiz não só poder para suprir lacunas, mas também para resolver, onde e quando previsto, de conformidade com valores éticos, ou se a regra jurídica for deficiente ou inajustável à especifidade do caso concreto".

[34] As três características são extraídas do texto do Professor Francisco Amaral, Os princípios jurídicos da relação obrigatória, ob. cit., p. 136. O Professor Amaral (pp. 136-7) enumera, ainda, as aplicações do princípio da eticidade no Código Civil, que estariam presentes nas seguintes regras: art. 156 (estado de perigo, caracterizado pela obrigação excessivamente onerosa assumida pela parte para salvar a si ou pessoa da família de grave dano); art. 157 (lesão, representada por um prejuízo econômico em que uma das partes recebe muito mais do que efetivamente dá); e art. 478 (que objetiva o equilíbrio econômico contratual entre as partes ante onerosidade excessiva). Ora, já se demonstrou que os referidos dispositivos consagram, também, o princípio da conservação do negócio jurídico inválido. Comprova-se, dessa feita, que existe uma estreita relação entre eticidade e conservação.

[35] É o entendimento de José Augusto Delgado, A ética e a boa fé no Código Civil, citado por Rodrigo Reis Mazzei, Notas iniciais à leitura do novo código civil, ob. cit., nota nº. 278, p. CXIII.

[36] Francisco Amaral, Os princípios jurídicos da relação obrigatória, ob. cit., p. 137.

[37] Rodrigo Reis Mazzei, Notas iniciais à leitura do novo código civil, ob. cit., p. CXXIII.

[38] Afirma Miguel Reale, As diretrizes fundamentais do projeto do código civil, ob. cit., p. 18: "[...] é indispensável que a norma tenha operabilidade, a fim de evitar uma série de equívocos e de dificuldades que hoje entravam a vida do Código Civil".

[39] Francisco Amaral, Os princípios jurídicos na relação obrigatória, ob. cit., p. 138.

[40] António Menezes Cordeiro, Tratado de direito civil português, vol. I, t. I, 3ª ed., Coimbra, Almedina, 2005, p. 391-2. Nesse mesmo sentido, Luigi Ferri, La autonomia privata, citado por Érico Pina Cabral, A "autonomia" no direito privado, In Revista de Direito Privado, ano 05, vol. 19, São Paulo, Revista dos Tribunais, jul./set. 2004, p. 109: a autonomia privada é a "manifestação do poder de criar normas jurídicas dentro dos limites estabelecidos pela lei, por sua vez, identifica-se mais com o poder reconhecido aos particulares de criar normas jurídicas".

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[41] Érico Pina Cabral, A "autonomia" no direito privado, ob. cit., p. 109.

[42] Daniela Vasconcellos Gomes, Os princípios da boa-fé e da função social do contrato e a teoria contratual contemporânea, In Revista de Direito Privado, ano 7, vol. 26, São Paulo, Revista dos Tribunais, abr./jun. 2006, p. 97. Arnaldo Wald, A dupla função econômica e social do contrato, In Revista Trimestral de Direito Civil, ano 5, vol. 17, Rio de Janeiro, Padma, jan./mar. 2004, p. 04, ensina que com o princípio da função social o "contrato não deixou de exercer a sua função econômica, constituindo um reflexo patrimonial da liberdade individual constitucionalmente garantida. Apenas acrescentou-se-lhe a função social, de modo a evitar que houvesse uma atividade contrária ao interesse da sociedade, que passou, assim, a constituir um verdadeiro abuso de direito ou um desvio de poder, já condenados de modo implícito na legislação anterior". Isso demonstra que a função social não está contrária à autonomia da vontade, mas sim é uma nova maneira de avaliar este tradicional instituto de Direito Civil, que passa a ser visto num âmbito social, e de importância não só para os sujeitos, mas para toda a coletividade.

[43] Ana Carolina Kliemann, O princípio da manutenção do negócio jurídico: uma proposta de aplicação, ob. cit., p. 04-05.

[44] Ana Carolina Kliemann, O princípio da manutenção do negócio jurídico: uma proposta de aplicação, ob. cit., p. 13.

[45] Cesare Massimo Bianca, La nozione di buona fede, In Guido Alpa e Paolo Zatti, Letture di diritto civile, Padova, Cedam, 1990, p. 509. "La prevalenza del principio di buona fede sulle determinazioni contrattuali consegue al suo carattere di ordine pubblico. La buona fede rappresenta infatti uno dei principi portanti del nostro ordinamento, e il fondamento etico che le viene riconosciuto trova rispondenza nell'idea di una morale sociale attiva o soclidade, che si pone al di là dei tradizionali confini del buon costume" (pp. 510-1). Daniela Vasconcellos Gomes, Os princípios da boa-fé e da função social do contrato e a teoria contratual contemporânea, ob. cit., p. 93, ensina que "a boa-fé objetiva impõe uma conduta correta, que serve para limitar a autonomia da vontade, e para criar novos deveres contratuais, chamados de deveres anexos. Esses deveres de conduta estão relacionados com o a boa-fé pela imposição de agir com lealdade e licitude, respeitando os interesses do parceiro contratual". Há ainda a opinião de António Menezes Cordeiro, Tratado..., ob. cit., p. 410, que entende que com a boa-fé ocorre uma valorização da confiança.

[46] Francisco Amaral, Os princípios jurídicos na relação obrigatória, ob. cit., p. 139.

[47] Eduardo Sens dos Santos, A função social do contrato - elementos para uma conceituação, In Revista de Direito Privado, ano 4, vol. 13, São Paulo, Revista dos Tribunais, jan./mar. 2003, p. 107. A importância da fixação dessas funções diz respeito ao fato de a conversão do negócio jurídico relacionar-se com as três, como se verá mais adiante.

[48] Luigi Mosco, La conversione del negozio giuridico, Napoli, Jovene, 1947, p. 106.

[49] Luigi Mosco, La conversione del negozio giuridico, ob. cit., p. 107.

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[50] Eduardo Serrano Alonso, La confirmación de los negocios jurídicos, ob. cit., p. 29.

[51] Eduardo Serrano Alonso, La confirmación de los negocios jurídicos, ob. cit., pp. 29-30.

[52] Eduardo Serrano Alonso, La confirmación de los negocios jurídicos, ob. cit., p. 31.

[53] Segundo António Menezes Cordeiro, Tratado..., ob. cit., pp. 411-413, da tutela da confiança resultam as seguintes situações de proteção jurídica: 1) "um investimento de confiança, consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efectivo de actividades jurídicas sobre a crença consubstanciada"; e 2) "a imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela protecção dado ao confiante: tal pessoa, por acção ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao factor objectivo que a tanto conduziu". Disso decorre que "O investimento de confiança exige que a pessoa a proteger tenha, de modo efectivo, desenvolvido toda uma actuação baseada na própria confiança, actuação essa que não possa ser desfeita sem prejuízos inadmissíveis; isto é: uma confiança puramente interior, que não desse lugar a comportamentos, não requer protecção. A imputação da confiança implica a existência de um autor a quem se deva a entrega confiante do tutelado. Ao proteger-se a confiança de uma pessoa vai-se, em regra, onerar outra; isso implica que esta outra seja, de algum modo, a responsável pela situação criada".

[54] António Menezes Cordeiro, Tratado..., p. 414.

[55] La nozione di buona fede, ob. cit., p. 514.

[56] Cesare Massimo Bianca, La nozione di buona fede, ob. cit., p. 515. Ensina o autor que "Nei rapporti obbligatori e nella vita di realizione l'obbligo della diligenza impone, precisamente, l'adeguato sforzo volitivo e tecnico per realizzare l'interesse del creditore e per non ledere i diritti altrui".

[57] Cesare Massimo Bianca, La nozione di buona fede, ob. cit., p. 517.

[58] Teresa Luso Soares, A conversão do negócio jurídico, ob. cit., p. 81.

[59] Nesse sentido, Hernán Corral Talciani, El negocio jurídico: ¿Un concepto en crisis? A proposito de una obra de Giovanni B. Ferri, In Revista de Derecho Privado, Madrid, Editoriales de Derecho Reunidas, enero 1991, pp. 26-32.

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