a comedia humana - vol. 1 - honore de balzac

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Vol 1 - a comédia humana

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  • DADOS DE COPYRIGHT

    Sobre a obra:

    A presente obra disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com oobjetivo de oferecer contedo para uso parcial em pesquisas e estudos acadmicos, bem comoo simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.

    expressamente proibida e totalmente repudavel a venda, aluguel, ou quaisquer usocomercial do presente contedo

    Sobre ns:

    O Le Livros e seus parceiros, disponibilizam contedo de dominio publico e propriedadeintelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educao devemser acessveis e livres a toda e qualquer pessoa. Voc pode encontrar mais obras em nossosite: LeLivros.Info ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link.

    Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel.

  • Copyright da traduo 1946 Editora Globo S/ANOTAS 2012 by Cora Tausz Rnai e Laura Tausz Rnai

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edio pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer meio ou forma,seja mecnico ou eletrnico, fotocpia, gravao etc. nem apropriada ou estocada em sistema de bancos de dados, sem aexpressa autorizao da editora.

    Texto fixado conforme as regras do novo Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa (Decreto Legislativo n 54, de 1995).

    DIRETOR EDITORIAL Marcos StreckerEDITORES RESPONSVEIS Alexandre Barbosa de Souza e Ana Lima CecilioASSISTENTE EDITORIAL Juliana de Araujo RodriguesPROJETO GRFICO E CAPA Luciana FacchiniDIAGRAMAO Jussara Fino e Stella KwanPREPARAO Ana Maria BarbosaREVISO Isabel Jorge Cury e Mariana DelfiniDIGITALIZAO DE TEXTO Bonifcio MirandaPRODUO PARA EBOOK S2 BooksEDIO DIGITAL Erick Santos Cardoso

    REVISO TCNICA Gloria Carneiro do Amaral

    IMAGEM DA LOMBADA Balzac (c. 1850), de Honor Daumier (1808-1879).Art Images Archive/Glow ImagesIMAGEM DAS GUARDAS Au Thtre (c.1856), de Honor Daumier (1808-1879), The National Gallery of Art Washington D.C.De Agostini/Getty Images

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (cip)(Cmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

    Balzac, Honor de, 1799-1850.A comdia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honor de Balzac; orientao, introdues e notas dePaulo Rnai; traduo de Vidal de Oliveira; 3. ed. So Paulo: Globo, 2012.

    (A comdia humana; v. 1)Ttulo original: La comdie humaineISBN 978-85-250-5333-10.000 kb; ePUB

    1. Romance francs i. Rnai, Paulo. ii. Ttulo. iii. Srie.

    12-13086 cdd-843

    ndices para catlogo sistemtico:1. Romances: Literatura francesa 843

    1 edio, 1946-1955 [vrias reimpr.]; 2 edio, 1989-1992 [vrias reimpr.]; 3 edio 2012

    Direitos de edio em lngua portuguesaadquiridos por Editora Globo s/aAvenida Jaguar, 148505346-902 So Paulo spwww.globolivros.com.br

  • PLANO DA PRESENTE EDIO DE A COMDIA HUMANA

    DIVISO GERAL

    estudos de costumesvol. 1-4 Cenas da vida privadavol. 5-7 Cenas da vida provinciana

    vol. 8-11 Cenas da vida parisiensevol. 12 Cenas da vida polticavol. 12 Cenas da vida militar

    vol. 13-14 Cenas da vida rural

    vol. 15-17 estudos filosficos

    vol. 17 estudos analticos

    DIVISO POR VOLUMES

    1 A vida de Balzac, por Paulo Rnai Prefcio comdia humana, por Honor deBalzac Ao Chat-qui-pelote O baile de Sceaux Memrias de duas jovensesposas A bolsa Modesta Mignon

    2 Uma estreia na vida Alberto Savarus A vendeta Uma dupla famlia A pazconjugal A sra. Firmiani Estudo de mulher A falsa amante Uma filha de Eva

    3 A mensagem O romeiral A mulher abandonada Honorina Beatriz Gobseck A mulher de trinta anos

    4 O pai Goriot O coronel Chabert A missa do ateu A interdio O contrato decasamento Outro estudo de mulher

    5 rsula Mirout Eugnia Grandet OS CELIBATRIOS: Pierrette O cura de Tours

    6 Um conchego de solteiro OS PARISIENSES NA PROVNCIA: O ilustre Gaudissart A musado departamento AS RIVALIDADES: A solteirona O gabinete das antiguidades

  • 7 Iluses perdidas

    8 histria dos treze: Ferragus A duquesa de Langeais A menina dos olhos deouro Histria da grandeza e da decadncia de Csar Birotteau A casa Nucingen

    9 Esplendores e misrias das cortess Os segredos da princesa de Cadignan Facino Cane Sarrasine Pedro Grassou

    10 os parentes pobres: A prima Bete O primo Pons

    11 Um homem de negcios Um prncipe da Bomia Gaudissart II Osfuncionrios Os comediantes sem o saberem Os pequeno burgueses Oavesso da histria contempornea

    12 Um episdio do Terror Um caso tenebroso O deputado de Arcis Z. Marcas A Bretanha em 1799 Uma paixo no deserto

    13 Os camponeses O mdico rural

    14 O cura da aldeia O lrio do vale

    15 A pele de onagro Jesus Cristo em Flandres Melmoth apaziguado Massimilla Doni A obra-prima ignorada Gambara A procura do absoluto

    16 O filho maldito Adeus As Maranas O conscrito El Verdugo Um drama beira-mar Mestre Cornlius A estalagem vermelha Sobre Catarina deMdicis O elixir da longa vida Os proscritos

    17 Lus Lambert Serfita Fisiologia do casamento Pequenas misrias da vidaconjugal

  • NOTA DOS EDITORES

    Esta terceira edio de A comdia humana uma homenagem ao legado deixado por Paulo Rnai (1907-1992).Hngaro naturalizado brasileiro, Rnai teve um papel importante na vida cultural do pas que o acolheu quandofugia do nazismo na Europa.

    Estudioso de Balzac, autor ao qual dedicou uma tese ainda na juventude (As obras da mocidade de Honorde Balzac, 1930), Rnai foi convidado por Maurcio Rosenblatt, representante no Rio de Janeiro da editora Globode Porto Alegre, a participar desta edio. Seu trabalho, inicialmente limitado a um prefcio geral da obra, logose estendeu por seu conhecimento e interesse. Alm de organizar todo o aparato da publicao, a Rnai coubeestabelecer padres que inexistiam em meio aos tradutores. No havia plano inicial unificado, ou mesmo ummanual ao qual recorrer. Se Rnai no traduziu propriamente nenhum volume, funcionou como epicentro daedio que, logo nos primeiros volumes, passou a contar com seu cuidado e vigilncia. No texto A operaoBalzac, do livro A traduo vivida, ele especifica sua contribuio:

    Coube-me organizar a edio, isto , estabelecer o plano geral, escolher parte dos tradutores; cotejar eanotar toda a traduo, redigir prefcios para cada uma das 89 obras que a compem e escrever umaextensa biografia de Balzac, selecionar a documentao iconogrfica, reunir uma espcie de antologia daliteratura crtica sobre Balzac, compilar ndices e concordncias para o volume final.

    Este imenso trabalho, que comeou com o pedido de um prefcio de dez pginas e durou muitos anos,cristalizou-se na edio de dezessete volumes. A traduo contou com cerca de vinte tradutores, e Rnaiincrementou-a com a redao de 12 mil notas, que se dividiam entre explicaes sobre contextos histricos,personagens e seus antecedentes, questes de traduo expresses idiomticas e trocadilhos e ainda truquesde linguagem. Segundo Rnai, Balzac, amigo de anexins, trocadilhos, e jogos de palavras, deleitava-se comtodas as curiosidades de linguagem: etimologias, anagramas, parnimos e homnimos, elementos que, semuma nota explicativa, eram de enlouquecer qualquer tradutor.

    Todo esse rduo e cuidadoso trabalho foi respeitado. Alm de manter o texto exato das tradues aprovadaspor Rnai, corrigindo apenas o que configura erro que por algum lapso passou pelo organizador ( notvel, aindaque sejam flagrantes alguns anacronismos e regionalismos, a impressionante riqueza e preciso do vocabulriodesses tradutores), reproduzimos na presente edio as 89 apresentaes. Delas, disse Rnai:

    Sem qualquer veleidade de eruditismo, tentei dar nelas algumas informaes indispensveis a respeito dagnese e da fortuna da obra visada, dos modelos vivos das personagens, da base real (quando havia) doenredo, das reaes da crtica etc.

    Do mesmo modo, foram respeitadas todas as notas. Tambm foi mantida a deciso de Rnai de traduzir osprenomes dos personagens, ainda que no seja a opo usual nos dias de hoje. Rnai justifica essa escolhaprimeiramente pela necessidade de unificar a maneira de nomear os personagens. Em A comdia humana, elesaparecem repetidas vezes, surgem protagonistas e reaparecem coadjuvantes, compondo esse imenso quadro decostumes que a obra balzaquiana.

    Era embaraoso ver o mesmo heri com um nome ora francs, ora portugus; s vezes poderia at darconfuso. Seria uma soluo deixar todos os nomes em francs. Mas a semelhana entre as duas lnguasconvidava a usar a forma nacional em vez da francesa: Jlia em vez de Julie, Eugnia em vez deEugnie, Lus em vez de Louis, como se fazia em muitos romances traduzidos do francs, do ingls e do

  • espanhol. Foi essa a soluo que adotamos. Porm, como ficou dito acima, na fico balzaquianapersonagens inventadas acotovelam pessoas reais. Um tradutor espanhol traduziria naturalmente PierreCorneille por Pedro Corneille, um italiano por Pietro Corneille; mas a praxe brasileira era manter o nomeem francs. Adotamos, pois, um critrio algo estranho: traduziam-se os nomes das personagens de ficoe reproduziam-se na forma do original os das pessoas reais. Mesmo esta norma admitia excees: osnomes de pessoas famosas j aportuguesados, como Napoleo, Lus xiv, Maria Antonieta etc.

    Tambm importante uma observao sobre a escolha de um texto-base para a edio. Com as inmerasreescrituras dos romances, no h um manuscrito considerado definitivo e o prprio autor retificava seu texto acada edio. Rnai adotou a edio da Pliade organizada por Marcel Bouteron, mas no se ateve a ela.Conhecedor dos originais de A comdia humana, adotou na edio brasileira solues que visavam aproximar oleitor brasileiro do formato original de publicao dos textos de Balzac:

    Mas num ponto essa edio, excelente em tudo mais, no me satisfazia. que nela o texto de Balzac, jdifcil por si em muitos trechos, saa excessivamente compacto, sem um espao branco, umainterrupo, um pargrafo numa dezena de pginas. Se tal fosse a inteno do autor, teramos queaceitar essa caracterstica, assim como os tradutores de Proust e Joyce respeitam aquela disposiomacia de linhas impressas sem um respiradouro ao longo de tantas pginas. Mas, devido familiaridade com a histria bibliogrfica da obra, sabia que todos aqueles romances tinham sadoinicialmente em rodaps de jornais, divididos em captulos breves, com ttulos muitas vezes espirituosos,engraados, pitorescos, mantidos nas primeiras edies em volumes. Foram os editores sucessivos que,contra a vontade de Balzac, suprimiram a diviso em captulos por motivos de economia. Em benefcioao leitor brasileiro, reintroduzi a diviso em captulos, assim como os ttulos primitivos.

    Resta ainda salientar que o projeto, tal qual concebido por Rnai, veio a pblico apenas em duas ocasies: naprimeira edio, entre 1946 e 1955, e na segunda, a partir de 1989. Muito o entristecia ver essa obra, qual elededicou tantos anos, esgotada e ainda com imperfeies. O desejo da Biblioteca Azul , pois, consagrar a ediodefinitiva de Rnai, considerada uma das mais importantes fora da Frana e um verdadeiro patrimnio culturalbrasileiro, e fazer a obra de Balzac reviver uma vez mais entre ns.

  • 1ESTUDOS DE COSTUMES

    CENAS DA VIDA PRIVADA

    Capa

    Crditos

    Folha de rosto

    A vida de Balzac, por Paulo Rnai

    A comdia humana

    Prefcio comdia humana, por Honor de Balzac

    Ao chat-qui-pelote

    O baile de Sceaux

    Memrias de duas jovens esposas

    A bolsa

    Modesta Mignon

  • memria de Aurlio Buarque de Holanda Ferreira

    BIOGRAFIA E MISTRIO

    O conhecimento dos fatos materiais da vida de um artista facilitar realmente acompreenso de sua obra? Talvez. A biografia esclarece diversos aspectos da criaoartstica, revela as fontes das ideias do artista, indica-lhe as inspiraes, segue acristalizao de sua personalidade intelectual, assinala os impulsos que recebeu desua poca e os que a esta comunicou. Por outro lado, graas ao paciente trabalho dereconstruo empreendido pelo bigrafo, a imagem do biografado, deformada pelotempo e pela glria, reassume feies humanas. Sua personagem lendria e irrealganha um cunho de familiaridade. Seus atos e suas atitudes encontram umaapreciao serena, justa e definitiva. O heri acaba por aparecer aos olhos dosleitores como um ser parecido com eles. Em redor da obra, no entanto, a nvoa nose dissipa em medida igual.

    Quanto mais pormenores se conhecem da existncia de um homem genial, tantomais enigmtica se torna a essncia de sua personalidade artstica. Poder-se-openetrar os seus segredos, mas no o seu mistrio. O caso de Balzac confirma esseaparente paradoxo. Inmeras pesquisas de mincias, a publicao sucessiva de umainfinidade de testemunhos e de documentos ntimos entregaram-nos toda a suavida particular. Conhecemo-lo hoje, pode-se afirmar com segurana, bem melhor doque os contemporneos o conheciam, mas nem por isso compreendemos ainda omisterioso desabrochar, naquele indivduo nascido em 16 de maio de 1799 e morto a18 de agosto de 1850, da anomalia psicolgica que o gnio.

    Hoje vemos Balzac luz dos refletores da pesquisa como nas cenas sucessivas deum filme contnuo. Criana de sentimentos recalcados, com uma viva e insatisfeitasede de amor, entre pais estrambticos. Adolescente desambientado num meioescolar de onde toda manifestao de fantasia est excluda. Jovem derrotado logonos primeiros encontros com o destino, marcado pelo resto da vida com o estigmada incapacidade. Homem j feito, arrastando complexos de inferioridade eprocurando compensar a conscincia da inata vulgaridade por um esforodesesperado para atingir os cumes brilhantes da vida, a beleza, a nobreza, a fortuna.Velho antes do tempo, esgotado por milhares de noites de trabalho feroz, abatendo-

  • se no limiar da felicidade almejada. Vemos-lhe os olhos em brasa, as facesrechonchudas, o papo do pescoo, os membros sem graa, a gesticulaoexuberante, as vestes berrantes. Ouvimos-lhe a voz retumbante e a palavra fcil, agargalhada grossa e a respirao ofegante. Apalpamos-lhe a mo poderosa, osombros largos, e at a barriga, produto da vida sedentria. Diagnosticamos as suastonturas, apanhamos com o estetoscpio os rudos de seus pulmes, o bater de seucorao hipertrofiado. Acompanhamo-lo em suas numerosas viagens, surrupiamossua correspondncia, espiamos-lhe os namoros e os amores. Acabamos por ter aimpresso de ser ele nosso velho conhecido, quase que um membro da famlia eao mesmo tempo compreendemos cada vez menos o seu talento, essamonstruosidade que o diferencia dos outros homens. A adio de todos esseselementos, e de outros mais, j descobertos ou por descobrir, no d uma somaigual a gnio. No por ter sido tudo isso, mas apesar de t-lo sido, foi que Balzaccriou A comdia humana, a maior fuso j conseguida da literatura com a vida real.O conhecimento da existncia do autor no desvenda o misterioso porqu dessarealizao; serve apenas para aumentar o assombro do espectador, para incutir-lheum terror quase religioso perante o irracional.

    UMA POCA PARA ROMANCES

    Independentemente da vontade do autor, cada obra literria reflete o momentohistrico em que foi criada. Alm dessa relao involuntria com a sua poca, a obrade Balzac est fortissimamente ligada a esta por ter-se proposto o romancista,primeiro entre todos, reproduzir a vida contempornea com toda a sua riqueza decostumes e de tipos.

    A existncia de Balzac coincide exatamente com o meio sculo que medra entredois golpes de Estado: o de 1799, pelo qual Napoleo I liquidou a RevoluoFrancesa, e o de 1851, pelo qual Napoleo III extinguiu a Segunda Repblica. Balzacainda pde conhecer testemunhas no somente da Revoluo, como tambm doAntigo Regime, e quando morreu, em 1850, j se previa a prxima ressurreio deum poder forte sob forma do Segundo Imprio.

    Criana, Honor assistiu aos captulos mais brilhantes da epopeia napolenica;ouviu com entusiasmo os anncios incessantes de novas vitrias, com consternaoas notcias das primeiras derrotas. Testemunhou o exlio de Napoleo ilha de Elba,

  • a sua volta fulminante, o relmpago efmero de seu Segundo Reinado, seudesaparecimento na longnqua Santa Helena e viveu bastante para assistir suagrande vitria pstuma, a volta de suas cinzas em 1840, um espetculo maior doque os triunfos romanos. (Durante toda a sua vida, Balzac sonharia evocar, emvrios romances, a epopeia napolenica, mas no lhe sobrou tempo para escreverestas obras que deviam fazer parte das Cenas da vida militar. No entanto, a figurade Napoleo, a quem ele devotava uma admirao extraordinria, projeta a suasombra sobre muitos episdios de A comdia humana e revive numa pgina famosad e O mdico rural a Histria do Imperador, contada numa granja por umveterano.) Acompanhou as duas Restauraes borbnicas antes e depois dos CemDias, viu surgir e desaparecer o regime conservador de Lus xviii e o sistemafrancamente reacionrio de Carlos x, este ltimo varrido pela Revoluo de Julho;presenciou todo o reinado liberal-burgus de Lus Filipe, a Revoluo de 1848 e aeleio do futuro Napoleo iii para presidente da Repblica.

    Quantas reviravoltas dentro de uma existncia de apenas 51 anos! O mundoantigo resolvia-se dificilmente a morrer... ou as convulses j eram as do partolaborioso de um mundo novo. Apesar das teorias conservadoras que professava eque examinaremos mais adiante, Balzac no se iludia quanto ao verdadeiro sentidodos acontecimentos. A liquidao da Revoluo operara-se apenas no domniopoltico, mas seus germes frutificaram em todos os setores da sociedade, onde outratransformao, menos veemente mas no menos eficaz, fazia incessantesprogressos transformao esta da qual Balzac, quisesse ou no, era um dosoperrios mais fervorosos. Tambm acompanhava com o interesse mais apaixonadoas fases dessa revoluo latente. Por trs dos debates das Cmaras, das arruaas dacapital, das polmicas dos jornais, acontecimentos mais decisivos, embora menosespalhafatosos, verificavam-se nos bastidores da sociedade. Muitas instituiesantigas foram restauradas, mas os costumes de outrora ruram definitivamente.Mais violentos do que as escaramuas reiniciadas periodicamente nas barricadaspelo povo parisiense, acendiam-se conflitos de interesse na Bolsa, nas casas decomrcio, no seio das prprias famlias. Os progressos da tcnica traziam uma sriede inovaes, antes de tudo as estradas de ferro, que, para olhos sagazes,anunciavam imensas modificaes da vida coletiva e particular. Surgiam novospoderes: o capital, a imprensa, a publicidade. Patenteava-se a ascenso prodigiosado dinheiro, que reivindicaria um papel cada vez maior em todos os domnios.

  • Estavam, pois, aparecendo e desenvolvendo-se as foras que passariam a moldartodo o perodo da histria europeia at a Primeira Guerra Mundial. Esboavam-se,desde ento, os tipos humanos que as novas possibilidades no deixariam deproduzir. A comdia humana de Balzac contm uma imagem fiel e pormenorizadade toda essa fermentao, de seus resultados visveis e de suas consequnciasconjeturveis; embora concluda em 1850, um espelho de todo o sculo xix.

    A HERANA PATERNA

    Balzac nasceu em 16 de maio de 1799, dia de so Honorato, cujo nome lhe foi dado,em Tours, capital da Touraine, o jardim da Frana, uma das regies mais belas emais agradveis da Europa. Crticos literrios tiram s vezes dessa circunstnciaconcluses apressadas, procurando explicar, pelo lugar de seu nascimento,caractersticas da fisionomia artstica do escritor. Ptria de Rabelais, o criador deGargntua, a Touraine distingue-se na prpria definio de Balzac por umesprito conservador, manhoso, trocista e epigramtico [...] e, ao mesmo tempo,ardente, artstico, potico e voluptuoso. Mas o fato que foi por mero acaso queHonor veio a nascer em Tours, para onde seu pai, Bernard-Franois,languedociano de origem, fora transferido pouco tempo antes de ele nascer,conduzindo consigo a esposa, a parisiense Laure Sallambier, com quem tinha secasado em 1797; e, como mais adiante veremos, o filho passaria em Tours apenas osanos da infncia.

    Ao examinar os papis administrativos relativos ao nascimento de Honor,pesquisadores impertinentes depararam com a falta, entre o nome e o sobrenome,da partcula nobiliria de, que o escritor sempre ostentava com vanglria tantomaior quanto menos direito lhe cabia de us-la. Por outro lado, na certido de idadedo pai se v que este era filho de um modesto lavrador do Sul da Frana, cujo nomese grafava Balssa e no Balzac.

    O sobrenome de Balzac, alm de mais aristocrtico, tinha tambm um saborliterrio, pois fora ilustrado, desde o sculo xvii, por Jean-Louis Guez de Balzac, umdos primeiros membros da Academia Francesa, apelidado por seus contemporneosO Grande Epistolgrafo.

    Essas pequenas mistificaes devem pr-nos de sobreaviso quanto s brilhantesfunes que o romancista mais tarde atribuiria ao seu progenitor. Parece

  • estabelecido hoje que o sr. Bernard-Franois Balzac no exerceu o cargo desecretrio do Grande Conselho sob Lus xv, nem o de advogado do Conselho sobLus xvi, mas apenas o de secretrio particular de um banqueiro durante o AntigoRegime, e o de funcionrio do servio de vveres durante a Revoluo. Depois, emsua permanncia de quase vinte anos em Tours, chegou a ser adido do maire e umdos administradores do hospital local; enfim, foi nomeado funcionrio da direodo mesmo servio de vveres em Paris, chegando a ser aposentado nesse cargo.

    Nem por isso o pai de Balzac deixa de ser uma personagem curiosa. Tipo doesquisito, professava princpios la Rousseau e tinha um nmero regular demanias, todas reduzveis a uma s, a principal entre todas: a da longevidade. Queriaprolongar a vida humana em geral e a sua em particular por todos os meios, e paraisso preconizava a volta natureza, o exerccio fsico, a abstinncia alimentar egensica; estudava com entusiasmo os costumes dos chineses, povo tido como devida mais longa que os outros; fazia a propaganda mais fervorosa de certa tontinaLafargue, chamada a preservar a velhice dele e de seus concidados daspreocupaes materiais. Com ares de reformador, espalhava ideias bizarras sobre aeugenia, o aperfeioamento da raa humana, e publicou certo nmero de folhetosacerca dos assuntos mais variados, mas todos reveladores de preocupaesuniversais e humanitrias. Eis alguns ttulos (abreviados) desses opsculoscuriosos: Histria da raiva e o meio de preservar os homens desta desgraa comotambm de algumas outras que lhes ameaam a existncia; Memorial sobre asdesordens escandalosas das jovens enganadas e entregues a uma horrvel misria;Memorial sobre os meios de se premunir contra os roubos e os assassnios etc.Contudo, era um fidalgo, homem indulgente e espirituoso, e que sabia manter, nomeio das tempestades domsticas, a atitude risonha e serena de um verdadeirosbio. Tinha 53 anos quando Honor nasceu e, no fosse um acidente que o matouna idade de 83 anos, haveria enterrado, centenrio, todos os seus conscios datontina.

    Na constituio espiritual de Honor, a herana paterna revela-se na foraextraordinria da memria, na excepcional extenso da curiosidade intelectual, napredileo por ideias gerais e reformas e em certa excentricidade nos princpios enos hbitos. Em particular, as estranhas mximas da Fisiologia do casamentodemonstrariam a forte influncia dos aforismos e dos paradoxos em que o sr.Bernard-Franois resumia ironicamente suas prprias experincias matrimoniais.

  • ME E FILHO

    Este sbio, de fato, cometera um erro de consequncias graves. Casara-se com umamoa que tinha 32 anos menos que ele, Laure Sallambier, filha de um diretor doshospitais de Paris. Essa diferena enorme de idade explica, em parte, a falta de umaverdadeira atmosfera de felicidade dentro da casa paterna, falta com que Balzac iasofrer tanto. Ambiciosa, nervosa, insatisfeita ao lado de um marido que, do alto desua serenidade olmpica, pouco se importava com seus rompantes, ela, sem querer,fazia gemer os filhos sob o peso de seu temperamento spero. A sra. Balzac era umadessas mes que, embora possuindo no mais alto grau o sentimento de famlia, soincapazes de expressar ternura. Sempre sujeita a apreenses reais e imaginrias e arepentinas mudanas de humor, receava para os filhos consequncias nefastas daindulgncia paterna e procurava corrigi-la como a natureza que rodeia as rosas deespinhos e os prazeres de desgostos. Atendia com feroz energia aos interessesmateriais dos seus e atribulava-lhes o esprito com a maior boa vontade do mundo.A glria de seu filho Honor em nada lhe modificou as disposies. Consagrou-lhe aprpria existncia, mas estragou a dele com incessantes implicncias. Havia entreos dois um conflito permanente, agravado pelo fato de haver o filho, pelas dvidasque contrara logo no comeo de sua carreira e de que nunca conseguiu se livrar,reduzido a me e toda a famlia a um verdadeiro estado de pobreza. At o fim davida, o escritor, a despeito dos lucros imensos que lhe traziam os livros, no logroudesvencilhar-se das obrigaes pecunirias para com a prpria me, que ficou suacredora. Esta, por seu lado, como tantas vezes acontece, no levava a srio o filhofamoso. Balzac, j com cinquenta anos e um renome universal, queixava-se de que ame o admoestava como a uma criana. Vez por outra, o conflito entre essas duascriaturas, que talvez se estimassem, atingia uma intensidade trgica, como orevelam certos trechos da correspondncia de Balzac com a condessa Hanska, suafutura mulher. Ela a um tempo um monstro e uma monstruosidade! Nestemomento, est matando minha irm, depois de ter matado a minha pobreLaurence e minha av, exclama o escritor numa pgina de terrvel amargura, emque afirma no ter rompido definitivamente com a me unicamente porque lhedeve dinheiro; e acrescenta: Acreditvamos que estivesse louca e fomos consultaro mdico, que seu amigo h 33 anos. Ele nos respondeu: Infelizmente ela no louca; m!... Ela no nos perdoa os seus defeitos.

  • Se houvesse lido essas frases terrveis, a me teria sem dvida acusado o filho deingratido, e no sem motivo. Quem procura colocar-se na situao da sra. Balzach de reconhecer que ela pagou bastante caro a glria de ter dado luz o maiorromancista da Frana. Como podia conformar-se com a conduta daquele filhoturbulento e incompreensvel, criana eterna que no criava juzo, ganhava fortunase no pagava as dvidas mais prementes, vivia no luxo sem ter um tosto, matava-secom trabalho e caf, empreendia as especulaes mais loucas, mudava-seconstantemente, abandonava no meio os trabalhos mais urgentes e corria atrs daaventura na Sua, na Itlia, na Rssia, deixando passar meses sem escrever me?No, os instintos conservadores da sra. Balzac, encarnao do esprito de famlia,no podiam decididamente aquiescer maluquice de Honor. Por outro lado, oinstinto materno nunca lhe permitiu abandon-lo, agisse ele como quisesse, e ficouao lado dele at o fim, assistindo-o fielmente em sua agonia, pois o destino a fezsobreviver ao filho.

    Balzac no desconhecia, alis, a dedicao da me, e disso deu testemunhos emsuas cartas a ela, cheias de protestos de amor filial. Agradecia-lhe mais de uma vezos seus incessantes cuidados e afirmava que o fim principal era assegurar-lhe umavelhice tranquila e feliz. Apenas esse sentimento no suportava a proximidade;bastava que os dois morassem sob o mesmo teto para recomear a briga.

    Na medida em que possvel determinar a transmisso das qualidades dos paisaos filhos, pode-se dizer que Balzac herdou da me a imaginao quase doentia, otemperamento impressionvel, sujeito a crises de abatimento e a acessos deotimismo. Tambm foi ela que lhe transmitiu seu pendor para o misticismo, o qualprovavelmente a levara a procurar um refgio em meio s atribulaes de umaexistncia falhada, e foi entre os livros dela que Honor encontrou pela primeira vezas obras de Swedenborg, que o deviam impressionar to fortemente.

    Havia ainda, na casa do sr. Bernard-Franois, a sogra, me de Laure Sallambier.Aliada natural da filha, tentava cansar a paciente resignao do genro, cujas reaes,no entanto, se limitavam a uma ou outra observao maliciosa, cochichada aoouvido dos filhos. Vossa av, dizia-lhes num piscar de olhos, uma comediantehbil que conhece o valor de um passo, de um olhar, da maneira de cair numapoltrona. Mas pelo menos ela no partilhava a severidade da filha contra osnetinhos, a quem teria viciado com suas carcias se no fora a constante vigilnciamaterna.

  • A IRM PREFERIDA

    Dos trs irmos de Balzac, sua irm Laurence, casada jovem e morta pouco tempodepois de casada, e seu irmo Henri, o preferido da me que a sede da aventuralevou cedo s colnias, no lhe inspiravam afeio particular. Todo o seu carinhoconcentrava-se em Laure, a mais moa das irms, que lho retribuiu condignamente.Sempre foi amiga fiel e prestativa do irmo, em cujo talento teve confiana desdemuito cedo e ao qual at ajudou, com a sua colaborao nas primeiras tentativasliterrias. O casamento de Laure no modificou as relaes cordiais dos irmos,graas simpatia que seu marido, o engenheiro Surville, soube inspirar a Balzac,que mais de uma vez o consultou a respeito de seus mirficos planos de negcios.Com raras excees, que Balzac alis atribua s intrigas da me, o afeto dos irmospermaneceu firme. No entanto, num momento de desnimo, escreveria noiva,comparando a situao desta sua prpria: Por mim, eu no tenho ningum, e ocorao de minha irm bem pouca coisa, pois martelado por minha me, quepassou a vida a nos opor um ao outro. No que minha irm, aos quarenta anos, selembrou de escrever e de crer que tem talento! Pois minha me lhe diz que tenhocime dela!. Arrefecimento mais longo parece ter sido aquele que sobreveio aBalzac nos seus ltimos anos de vida, que ele passou em grande parte na Rssia,junto condessa Hanska, sob cuja influncia se afastou sentimentalmente dafamlia. Laure perdoou essa falta ao irmo, mas no futura cunhada, a quem,entre amigos, acusava de ter contribudo para a morte de Balzac com a desilusoque lhe causara. Esse ressentimento confirmado pela biografia de Balzac,publicada poucos anos depois da morte deste por Laure Surville, na qual no se l amenor aluso condessa Hanska, herona do grande romance de amor de Honordurante dezesseis anos e sua mulher nos ltimos meses de vida do escritor.

    Aos vinte anos de idade, porm, quando Balzac ainda no era possudo dosentimento trgico da vida, o agitar-se dessas curiosas figuras volta dele inspirou-lhe apenas um interesse terno e divertido. Como o revelam as cartas que por essapoca escreveu a Laure, o espetculo da famlia, a presena de conflitos midos eincessantes naquele crculo to estreito, a originalidade do carter do pai, da me eda av inspiravam-lhe desde cedo o desejo de pr aquilo em romance. Esse desejono foi realizado integralmente por causa de instintivos escrpulos de delicadeza;mas deu o primeiro impulso ao talento do romancista e lhe ofereceu inesgotvel

  • mina de observao. Foi nesse ambiente reduzido, em que cada um espreitava aspalavras e os menores gestos dos outros, que ele criou o hbito de observar cenasna aparncia insignificantes, de buscar, disfarados em conversaes andinas,germes de conflitos e choques de sentimentos e paixes.

    NO COLGIO

    A respeito dos primeiros anos de Honor no se registram seno amveis ninharias.Pouco ou nada sabemos no tocante ao externato de Tours, onde comeou osestudos e que cedo abandonou para entrar, em 22 de junho de 1807, no entofamoso colgio religioso de Vendme, regido pelos oratorianos. Como a maior partedas crianas francesas at h pouco, Balzac ia estudar como interno. O colgio erauma grande oficina, onde no havia frias: o aluno entrava analfabeto e s saa aocabo de oito, nove ou dez anos, com sua dose de cultura geral adaptada snecessidades da poca, muitas humanidades e poucas cincias.

    Segundo uma curiosa reminiscncia do diretor do estabelecimento, durante osdois primeiros anos nada se podia tirar do pequeno Balzac. Nas aulas no davaoutro sinal de vida, a no ser uma repugnncia visceral a toda espcie de trabalhoobrigatrio. No tomava conhecimento das explicaes, no decorava as lies, nofazia as composies. Para casos como esse, o colgio tinha um remdio: apalmatria mas as mos de Honor estavam quase sempre cheias de frieiras, e osmestres tiveram de recorrer panaceia nmero dois, o crcere, de que o menino porpouco no se tornou pensionista, chegando a passar l uma semana inteira seminterrupo. Data tambm desse perodo sua primeira inveno, cuja lembranahaveria de perpetuar-se no colgio: uma pena de trs bicos, particularmenteapropriada a executar em menos tempo os castigos escritos que se lhe impunham.

    Graas condescendncia de um censor, o insubmisso, que em classeconservava seu ar ausente e taciturno, conseguiu levar consigo para a priso livrosda biblioteca escolar. medida que os lia, sentia desabrochar a inteligncia, masatravs de um caos, custa de esforos dolorosos. J no se contentava de ler; ps-se a escrever, imitando condiscpulos das turmas superiores e obtendo em breve oapelido, meio irnico, meio admirativo, de poeta. Dos versos que ento comps, umnico sobreviveu, to ruim que no deixa dvida acerca da qualidade dos outros.Um Tratado da vontade, com que se ocupava durante as aulas, foi-lhe confiscado

  • por um dos professores, que no lho devolveu mais.Por volta da Pscoa de 1813, o diretor mandou vir com urgncia a sra. Balzac. Em

    lugar do menino gordo, corado e forte que confiara ao colgio, ela encontrou umadolescente plido, doentio, com ar de sonmbulo, atingido por uma espcie deindigesto cerebral, devida leitura excessiva e desordenada.

    Honor teve de ser retirado sem demora do estabelecimento. Alguns meses ao arlivre e saudvel da Touraine restauraram-lhe as foras, e ei-lo com uma poro deconhecimentos confusos e as saudades do seu Tratado, cuja perda nunca cessariade deplorar.

    No se devem formar suposies exageradas quanto ao valor desse trabalhoprecoce. Quinze anos ainda decorreriam antes que Balzac escrevesse a primeirapgina que prestasse. Mas o ttulo significativo, pois indica no menino umaconscincia surpreendente do que seria a sua maior fora na vida. Com umavontade de ferro realizaria de fato um milagre sem analogias na histria dasliteraturas: de autor pssimo, abaixo de medocre, que seria at quase os trintaanos, de repente se tornaria um escritor grandioso, criador do gnero maisimportante da literatura moderna, o romance de costumes.

    Essa primeira fase de Balzac, em que o processo de transformao se operou topenosamente em seu esprito, deixou vestgios duradouros, pois est descrita emLus Lambert, uma de suas obras-primas e talvez o seu livro mais autobiogrfico,em que o escritor se desdobra em duas personagens: o prprio Lus Lambert, essegnio infeliz, e o amigo, que lhe conta a histria.

    J no momento de sua sada forada do colgio, aparece o nosso heri com acrena inabalvel em seu gnio, crena que nunca mais perder e que, no entanto,pelo menos a essa altura, no tinha nenhum argumento, nenhuma prova em seuapoio. Como a concebeu? Como conseguiu mant-la ante a indiferena e a troa doscolegas, da famlia? uma pergunta a que nenhum de seus bigrafos saberesponder.

    UM JOVEM PROVINCIANO EM PARIS

    Em 1814, o sr. Bernard-Franois de Balzac foi nomeado, como j dissemos, diretordo servio de vveres, o que determinou a mudana de toda a famlia para a capital.Ali, em duas escolas modestas, Honor conclui o curso interrompido, sempre

  • medocre, sempre sem nenhum brilho.Pelo juzo das pessoas com quem convive, no se operou ainda nele nenhuma

    modificao radical. uma criana. Mas no ntimo de seu ser, talvez sem que elemesmo o compreenda, est se operando uma revoluo. Paris, esta espantosaaglomerao de casas, homens, recordaes e inteligncias, apodera-se dele,penetra-lhe na alma com o encanto sutil de sua atmosfera, satura-lhe o esprito como fecundo veneno que se destila nas aulas da Sorbonne, nos cursos do Museu deHistria Natural, nas lojas dos alfarrabistas, nas palestras do Quartier Latin. Balzacrevista as bibliotecas, corre as ruas procura dos rastros dos grandes homens quepor ali transitaram, delicia-se em acompanhar de longe um desconhecido, em deitarum olhar pelas janelas abertas, em ler o enigma de algumas das mil fisionomias quelhe ocorrem num minuto nos bulevares, em apanhar por um instante algum dosmil destinos que diariamente cruzam o seu, em devorar livros e jornais, em escutarboquiaberto pessoas que ainda viram os grandes homens do sculo precedente,como esta velha srta. R..., amiga da me, que conhecera Beaumarchais de perto edele recorda tantos fatos admirveis.

    Poder-se-iam passar dez anos, uma vida inteira nessa divertida existncia debasbaque. Mas cada um tem de se arrumar na vida. Por felicidade de Honor,amigos no faltam a seu pai. Entre esses, dois tabelies se oferecem para facilitar aestreia do rapaz dando-lhe um lugar em seu cartrio, o que significa o acesso a umaprofisso honesta e lucrativa. Os pais resolvem, pois, que seu filho ser notrio.Dezoito meses no cartrio do sr. Merville, outros tantos no do sr. Passez so obastante para um moo criar afeio ao ofcio ou se enjoar dele para o resto davida. Foi este o caso de Balzac. Sua atuao nos dois escritrios amigos fortaleceuna famlia a convico de que ele era um incapaz; ele mesmo, porm, ficouconvencido definitivamente de que seu lugar era alhures.

    Nada se perde na vida de um gnio. Sem os anos cinzentos do colgio nohaveria Lus Lambert. Sem os sofrimentos, mais tarde, de um amor infeliz, nohaveria A duquesa de Langeais. Sem os trs anos passados nos cartrios, nohaveria Uma estreia na vida, Csar Birotteau, O contrato de casamento.

    Balzac aproveitou bem esses trs anos, embora no no sentido em que seus paiso esperavam. Nos cdigos, registros e cadastros identificou partes complicadssimase essenciais do mecanismo da vida moderna, cada vez mais amarrada por leis,formalidades e regulamentos. Penetrou no labirinto dos processos, conheceu as

  • manhas dos advogados e a obstinao das partes procura de escapatrias, derecursos lcitos e ilcitos. Viu, principalmente, o que havia atrs de tudo aquilo: odinheiro, mola de tantas aes humanas, em que pouco se falava nos sales e quenunca aparecia nos romances do tempo.

    Lembremos que agora o romance no constitui para ns apenas uma diverso. um importante instrumento de conhecimento indireto, abre ambientes eperspectivas que nunca teramos oportunidade de conhecer, fornece uma visoprtica e real do mundo. Sentados numa poltrona podemos adquirir sem risco esem cansao, e at com divertimento, a experincia humana dos observadores maisclarividentes, entrar em contato com os indivduos, as classes e os povos. Essenotvel engrandecimento do campo visual do nosso esprito, devemo-loprincipalmente a Balzac, que foi um dos primeiros a franquear ao pblico o grandelaboratrio experimental do romance moderno.

    Por sua parte, ele ainda no tinha esse recurso. A sua experincia foi toda direta,pessoal. Como veremos no decorrer de sua vida, teve de viver a sociedademoderna antes de reviv-la, em toda a sua complexidade, no papel.

    UM APRENDIZ DE LITERATURA

    Honor tem seus vinte anos quando se lhe oferece ocasio magnfica para resolvero problema do seu futuro. Outro amigo do pai, tambm notrio, prontifica-se aaceit-lo como auxiliar, para depois deix-lo com o cartrio, promessa j sedutoraem si e embelezada ainda pela perspectiva de um bom casamento. Grande foi, pois,o estupor dos Balzac ao ouvir Honor recusar terminantemente essa combinao edeclarar que estava farto de papis, cartrios e tabelies, e queria fazer o seucaminho por si mesmo. Mas da surpresa passaram indignao quando Honorenunciou que, em vez de escrevente, pretendia ser escritor. Um moo que no sabiaenfiar duas frases! E, mesmo que o soubesse, era l essa uma profisso?Justamente a famlia se encontrava em ms condies pecunirias. Aposentado opai, todos tiveram de deixar Paris e ir viver modestamente num lugarejo prximo,Villeparisis. Em vez de ajudar os pais, queria Honor impor-lhes novas despesas?

    Foi por esses trilhos que a discusso enveredou, mas o rapaz no se rendeu aosargumentos mais sensatos. Finalmente, o sr. Bernard-Franois cedeu,compreendendo que no podia condenar a profisso de escritor sem renegar a sua

  • Histria da raiva. Pai e filho concluram ento um acordo em regra. Honor iriapassar dois anos em Paris, custa da famlia. Dentro desse perodo devia fornecerprovas inequvocas da sua vocao literria. Como a tentativa podia dar emmalogro, o literato aprendiz obrigava-se a viver incgnito em Paris, escondendo-se,para no comprometer o nome da famlia. Em casa dir-se-ia s visitas que ele forapara o campo, estava viajando, continuava os estudos... Qualquer mentira servia,desde que nada transpirasse do projeto monstruoso.

    Havia ainda o perigo das sedues de Paris, porm fcil de conjurar. Bastavarestringir a mesada ao mnimo necessrio e confinar o jovem num quartomiservel, pequeno, com a moblia mais sumria possvel, aos cuidados de umavelha criada. Restries essas que nada importavam a Balzac. Sentia-se o homemmais feliz do mundo ao tomar posse, em abril de 1819, de sua mansarda, na rueLesdiguires, perto das nuvens e da biblioteca do Arsenal. Transbordante deentusiasmo, num trecho das cartas alegres e espirituosas que manda irm, a quempede ora o Tcito da biblioteca paterna, ora mais um cobertor (fazia um frio namansarda!), ouvimo-lo exclamar: Pegou fogo, na rue Lesdiguires n 9, na cabeade um pobre rapaz, e os bombeiros no conseguiram apag-lo. Foi ateado por umabela mulher que ele no conhece: dizem que mora na Collge des Quatre-Nations,no fim da Pont des Arts; chama-se Glria.

    Comea o trabalho, isto , pe-se a ler, a meditar, a passear, a observar, a ver. Amatria principal de seu estudo Paris. Depois de ter escolhido para lugar de suasmeditaes o Jardin des Plantes, abandona-o por t-lo achado triste demais etransfere-se para o Pre Lachaise, o grande cemitrio de Paris, terreno admirvelpara se fazerem estudos de dor. E, cheio de confiana, constri projetos, um apso outro, e nem mesmo o pressgio dos sofrimentos morais ligados sua profissochega a desanim-lo: Quer tenha gnio, quer no, estou preparando muitasmgoas para um e outro caso.

    A srie dessas mgoas ia ter comeo. Ao cabo de um ano passado em Paris, voltaBalzac a Villeparisis para ler famlia e aos amigos a sua primeira obra, a tragdiaCromwell, que, em sua opinio, dever marcar poca. (Por uma coincidnciadeveras curiosa, dois outros estreantes, sem nada saber um do outro nem de Balzac,trabalhavam mais ou menos na mesma poca em dramas acerca de Cromwell. Umdeles era Mrime, cujo drama se perdeu; outro, Hugo, cuja pea, impossvel derepresentar, se tornou famosa pelo prefcio com que saiu publicada em 1827,

  • verdadeira declarao de guerra arte clssica, profisso de f do movimentoromntico. O assunto, romntico avant la lettre, pairava no ar espera deescritores.) Por infelicidade de Balzac, a famlia toda concorda em qualificar seudrama de pssimo. O escritor recusa o tribunal e pede a sentena de um rbitro;este, escolhido de comum acordo, um sr. Andrieux, professor de literatura na EscolaPolitcnica, ouve a pea por sua vez. Sentiu, finalmente, esse temor que se apoderade quase todos os autores quando leem uma obra, que julgavam perfeita, para umcrtico exigente ou enfastiado; as frases mais corretas, mais trabalhadas, parecemcapengas ou caolhas; as imagens careteiam e se contrariam, o que falso salta aosolhos, escrever Balzac uns quinze anos depois a respeito de uma personagem de Asolteirona, baseada evidentemente em reminiscncias pessoais. A impresso do sr.Andrieux foi a pior possvel. As palavras que se lhe atribuem O autor deve fazerqualquer coisa, exceto literatura parecem inventadas pelo anedotismo que secompraz em contrastes imprevistos e motes picantes; seu sentido, porm, no deviaser muito diferente.

    Caberia aqui uma bela digresso sobre a incompreenso das famlias e doscontemporneos em geral diante do gnio. Mas o fato que o drama de Balzac erarealmente pssimo. Nisso os rbitros no se enganavam absolutamente. Foi culpadeles no suporem que um rapaz que aos vinte anos escrevia dramas pssimos fariaromances esplndidos aos trinta? Tudo isso significa apenas que conhecemos malas leis da gnese do gnio se que existem.

    O autor nada podia opor-lhes seno a sua certeza interior. Se os outros ojulgavam falhado na literatura, ele sabia restringir essa condenao a um s gnero.Se no lograra xito no drama, era porque a sua vocao consistia no romance.Voltou mansarda da rue Lesdiguires para fazer romances. No tardou muito emcompreender, porm, que dentro do prazo combinado no podia tornar-se umverdadeiro escritor. Para s-lo, era preciso aprender muito mais, ordenar as suasideias, formar um estilo, ver e viver. Continuava a sentir com segurana absolutaque havia nele um mundo que clamava por ser revelado. Mas j sabia que sem onecessrio amadurecimento no poderia revel-lo, e que esse processo no sedeixava apressar. Vejo agora, confessa irm, que Cromwell no tinha sequer omrito de ser um embrio.

    Decorridos os dois anos, no poderia mais contar com a famlia. A independncianecessria ao preparo de uma carreira de escritor, tinha de adquiri-la ele mesmo. E

  • como no sentisse capacidade para nenhuma outra profisso, s podia faz-loescrevendo. Da esta resoluo paradoxal: para poder um dia compor livros bons,resignava-se por enquanto a fabricar livros maus, frvolos, vazios, feitos em cima daperna, de lucro imediato. O que h de mais estranho que esse plano absurdochegou a ser realizado, exatamente como concebera Balzac.

    OS PRIMEIROS ROMANCES

    Rousseau e Richardson haviam iniciado a moda dos romances sentimentais,devorados por um nmero sempre crescente de leitores. Este novo pblico nadatinha a ver com os leitores eruditos de outrora, amigos e colecionadores de beloslivros. As moas liam com sede de aventura, liam em busca de emoes e de evaso,liam para matar o tempo. Uma vez lido um livro, nunca mais o retomariam. Poucoolhavam para a qualidade e no faziam questo de possuir a obra cuja leituraterminaram. As exigncias de tal pblico deram um surto extraordinrio instituio dos gabinetes de leitura, onde os livros se emprestavam por um tanto ovolume. Os donos, portanto, preferiam obras em muitos volumes: um leitor quetivesse lido o primeiro volume era um fregus certo para todos os demais. Por suavez, os editores, cujos consumidores principais eram justamente os gabinetes deleitura, procuravam satisfaz-los. No somente encomendavam romances longos,como tambm reduziam o formato, alargavam as margens, esbanjavam o papel,numa palavra faziam tudo para dividir um s romance no maior nmero possvelde volumes. Os escritores, naturalmente, no deixavam de se adaptar s exignciasda moda: estiravam os romances multiplicando os episdios, arrastando os herisatravs de uma srie interminvel de aventuras, no se decidindo a mat-los senodepois de vrias mortes simuladas e outras tantas ressurreies; por outro lado, aochegar ao fim de um volume, interrompiam a ao no ponto culminante, com o fitode espicaar a curiosidade do leitor.

    Certas caractersticas do novo gnero foram em parte determinadas por motivospuramente tcnicos e fortuitos. Em sua evoluo tambm interfeririam, no entanto,influncias literrias, sobretudo inglesas. Na Gr-Bretanha perdurava osentimentalismo doentio e lgubre, caracterstico do pr-romantismo, produto doscantos do pseudo-Ossian, das Noites, de Young, e de toda uma poesia sepulcral. Dalrica, a melancolia passou para o romance, mas degenerando em frentica procura

  • de impresses terrificantes. Nos romances sombrios de Matthew Gregory Lewis, deCharles Robert Maturin, de Ann Radcliffe h um no acabar de subterrneos, decastelos abandonados, de assassnios, de aparies e fantasmas.

    Se demoramos em descrever os traos dessa literatura foi porque elescaracterizam perfeitamente os romances escritos por Balzac de 1822 a 1825.Obrigado a ler esses trinta volumes da primeira ltima pgina, fiquei espantadocom seu nvel baixo. Apenas nos ltimos desses romances se vislumbra, de vez emquando, uma observao curiosa ou uma frase bem cunhada, mas que de formaalguma anuncia o criador de A comdia humana.

    O prprio Balzac no tinha a menor iluso a respeito dessas publicaes, e topouco as levava a srio que, para acab-las mais depressa, pedia irm Laure queescrevesse por ele captulos inteiros. Em suas cartas a esta no hesita em qualific-las de porcarias literrias, e certa vez exclama: Contudo, preciso escrever,escrever todos os dias para conquistar a independncia que me recusam. Procurartornar-se livre por meio de romances, e que romances! Oh, Laure, que tombo demeus sonhos de glria!. Mas a melhor prova de que Balzac julgava em seu justovalor A herdeira de Birague, Joo Lus ou a enjeitada, Clotilde de Lusignan ou obelo judeu, O centenrio ou os dois Bringheld, O vigrio das Ardenas, A ltimafada ou a nova lmpada maravilhosa, Anette e o criminoso, Wann-Chlore queno punha o seu nome em nenhum deles, mas publicava-os sob pseudnimos Lord Rhoone (anagrama de Honor), Horace de Saint-Aubin etc. ouanonimamente. Mais tarde, embora necessidades de dinheiro o tenham forado anegociar outra vez os direitos dessas obras, no as quis jamais reconhecerexpressamente.

    Esses livrecos, bastante bem pagos pelos editores, que, acossados pelo pblico,lanavam qualquer coisa, deram para Balzac viver e permitiam-lhe no adotar outraprofisso; no resolveram, porm, o problema da independncia to desejada. Poroutro lado, cada mau livro sado de sua pena confirmava o julgamento dos seus arespeito de sua incapacidade.

    Tudo isso era de pssimo agouro para uma futura glria literria. Sem dvida,Balzac continuava a crer firmemente em seu talento, mas encontrava obstculosterrveis: a pobreza, a descrena dos amigos e os sarcasmos da famlia e,principalmente, a falta de espontaneidade com que se exprimia, a dificuldade emencontrar a palavra justa, escrever com elegncia. Desistiria, talvez, se no tivesse

  • chegado, no momento oportuno, o mais precioso dos auxlios. Conseguiucomunicar a outra pessoa a sua f ardente em si mesmo.

    A DILECTA

    Essa pessoa s podia ser uma mulher amorosa. Para adivinhar nesse industrial deromances de cordel o futuro autor de A comdia humana, no bastaria ainteligncia mais penetrante: era preciso a intuio do amor.

    Decorrido o prazo combinado para dar provas do seu gnio, Balzac teve de voltara Villeparisis. Conquanto se tivessem resignado a no lhe impor mais o notariado,os pais achavam a vida de provncia mais saudvel para ele e, principalmente, maiseconmica para eles. Talvez alimentassem, ao mesmo tempo, a iluso de que,menos exposto s tentaes da glria, seu filho acabaria renunciando literatura.Cedo tiveram, porm, de abandonar tal esperana, pois foi em Villeparisis queBalzac escreveu a maioria dos romances inconfessveis de seu primeiro perodo; del, levava seus manuscritos prxima capital.

    Depois do casamento da irm Laure, que fora viver com o marido em Bayeux, ojovem literato sentia-se muito s numa casa onde o compreendiam to pouco.Estava, alis, na idade em que se espera impacientemente a grande paixo; ademais,alm do fogo de um amor, buscava tambm, sem o saber, o calor menos veementede outro sentimento que sempre lhe fizera falta: a afeio materna. Uma mulherlhe traria um e outro.

    A celeste criatura de quem a senhora de Mortsauf de O lrio do vale apenasuma plida cpia era a esposa do sr. Gabriel de Berny, conselheiro da corte, vizinhodos Balzac em Villeparisis. Mulher de uma beleza melanclica e um tanto murcha,tinha em seu passivo 28 anos de casamento, sete filhos vivos (dos nove que tivera)e a idade de 44 anos, um pouco mais do que a da sra. Balzac e exatamente o dobroda de Honor. A tristeza pattica e a fora desesperada do seu maior e ltimo amordecorrem desses algarismos implacveis. Um matrimnio fecundo mas infeliz, arecluso num lugarejo morto onde o marido viera restabelecer a sade abalada, asinquietaes permanentes causadas pelas doenas de seus filhos, e, por outro lado,seu esprito fino e culto, sua imaginao excitada pelas leituras, suas reminiscnciasde uma infncia feliz, passada margem da corte, tudo a predispunha aventura, efoi com alvoroo que acolheu a suprema e imprevista oportunidade que se lhe

  • ofereceu na pessoa um pouco vulgar e barulhenta, mas boa, forte, alegre einteressante, do jovem Balzac, em quem ela, s ela descobria, pelo fogo dos olhos,pela vivacidade dos gestos, pela firmeza da f em si mesmo, por mil pormenoresimpossveis de definir, o gnio vindouro. Umas aulas dadas pelo moo ao caula docasal serviram de preldio ao namoro, iniciado por uma srie de cartas patticasque o futuro romancista enche de tiradas inflamadas (s vezes simplesmentecopiadas de suas leituras) para vencer a resistncia no muito forte da mulher dequarenta anos. O amor dos dois devia durar mais de dez anos, para depois setransformar em amizade profunda, s se apagando com a morte de Laure, em 1836.

    Todos os bigrafos do romancista insistem na influncia importante exercidapela Dilecta (nome dado por Balzac sua amiga) sobre o rumo no apenas da vida,mas da obra deste. Animando-o desde o comeo de sua carreira, no cessava deaconselh-lo no apogeu de sua glria, lia-lhe as obras, estimulava-o com elogios,forava-o com censuras a se emendar: ajudava-o eficazmente, como veremos, emsuas dificuldades financeiras. M esposa e me infeliz, soube ser amante perfeita.

    Foi ela, sem dvida, que lhe afinou os gostos rsticos e aprimorou as maneiraspouco elegantes, polindo-lhe as asperezas com o tato de sua experincia. S ela teriaa coragem de observar ao romancista vitorioso que seus anjos falavam comoraparigas. Balzac a tinha em conta de um rbitro seguro e executava religiosamenteas modificaes que ela lhe impunha. Em sua ltima carta, a moribunda podia comrazo orgulhar-se de sua contribuio glria de Balzac, a quem consagrara o quetinha de melhor na alma: Posso morrer: estou certa de que voc tem na fronte acoroa que eu nela quisera ver. O lrio do vale uma obra sublime, sem mancha nemfalta. O amante no pecou por falta de gratido. Mesmo quando a velhice extinguiuos encantos de Dilecta, conservava-lhe uma afeio sincera e, antes e depois damorte dela, costumava lembr-la a suas outras amantes e amigas sempre comverdadeira venerao.

    Durante muito tempo, pairou dvida sobre a identidade da Dilecta. ForamGeorges Vicaire e Gabriel Hanotaux que, ao examinar os papis da falncia dafundio de caracteres Laurent, Balzac & Barbier, de que mais adiante falaremos,descobriram neles o nome da sra. de Berny que acorreu no momento crtico e fez-sescia de Balzac para salvar a firma. Outras pesquisas permitiram aos doisestudiosos estabelecer que ela, em solteira Laure-Louise-Antoniette Hinner, erafilha de um harpista alemo da rainha Maria Antonieta e de uma camareira desta;

  • seus padrinhos eram nada menos que o rei Lus xvi e a rainha; tinha sete anosquando lhe morreu o pai e dez quando sua me casou em segundas npcias com ocavaleiro de Jarjayes, monarquista conhecido por haver tentado salvar a rainha nomomento da Revoluo. Com a me, o padrasto e o marido (com quem casara em1793), Laure foi presa em 1794 e s conseguiu salvar-se graas queda deRobespierre. Sua me conservava at o fim da vida uma madeixa e um par debrincos que Maria Antonieta lhe mandara antes de morrer. Testemunha deconspiraes e tramas, participante de fugas e perseguies, remanescente de umacorte brilhante, a Dilecta contava a Balzac todas as cenas romanescas de suamocidade, e o escritor estreante sorvia-lhe as palavras de que se lembraria aoescrever Um episdio do Terror e O avesso da histria contempornea.Contrariamente ao que se poderia pensar, no foi a Dilecta que inspirou a ideologiapoltica de Balzac: mulher de inteligncia superior, clarividente e generosa, elacompreendia que a Revoluo cortara as andadeiras dos homens e, ao ver o seuHonor enveredar pelo atalho do legitimismo, advertiu-o repetidas vezes contra operigo de se comprometer com os monarquistas. Mesmo que vencesse, escreveu-lhe numa das poucas cartas que dela se conservaram, essa gente que sempre foiingrata por princpio no mudaria por tua causa; tm todos os defeitos do egosmo[...] e um desdm, que toca as raias do desprezo, por aqueles que saram de umoutro sangue.

    As tendncias monarquistas de Balzac originadas em seu esnobismo (lembre-seo caso da partcula de!) devem ter sido fortalecidas pela atmosfera geral da poca,em que era moda entre os jovens literatos ser favorvel Restaurao da qualprecisamente o futuro apstolo republicano, Victor Hugo, era o poeta oficial , peloexemplo de certos amigos e, principalmente, de certas amigas. Sim, a vida toda deBalzac parece subordinada a influncias femininas. Entre essas, conta-se a daduquesa de Abrantes, sua amante durante algum tempo e cujas Memrias maistarde o escritor levaria, por gratido, a um editor amigo. Pouco mais moa do que asra. de Berny, e muito mais velha do que Honor, esta famosa intrigante atraa ojovem escritor menos por seus encantos j algo murchos do que pelo reflexo de seuantigo brilho, o falso luxo de seu salo e seus sonhos ulicos. s interminveispalestras em seu boudoir a sombra de Metternich, seu amigo amante, devia estarpresente segundo uma observao mordaz da sra. de Berny.

    Duas outras mulheres, mais moas e mais belas, viriam logo depois continuar a

  • obra da duquesa de Abrantes, acendendo cada vez mais na alma de Balzac o desejoda ascenso social. Mas desde 1824, data em que publica dois panfletos, Do direitode primogenitura e Histria imparcial dos jesutas, o escritor aparece j comopartidrio militante da monarquia e da Igreja. Teremos a ocasio de mostrar quenem por isso A comdia humana, este grandioso fresco da sociedade daRestaurao, ficaria manchada de parcialidade, pois o gnio do autor felizmentesobrepujou as tendncias do seu esprito. Mas o homem nunca se libertaria dessedeplorvel esnobismo que lhe faria buscar as rodas aristocrticas, estragando-lhe afelicidade.

    BALZAC EDITOR E IMPRESSOR

    Se a literatura de cordel rende o suficiente para salvar Balzac do notariado e faz-loganhar a vida, no lhe garante ainda a independncia para a realizao das grandesobras sonhadas, das quais, passados 26 anos, ainda no escrevera a primeira linha.No contato com os editores que lhe publicavam as produes annimas, ocorreu aBalzac a ideia de adotar-lhes a profisso. Comearia editando obras alheias, cujolucro lhe traria o desafogo indispensvel para realmente escrever as suas.

    A ideia concretizou-se no dia em que o livreiro Urbain Canel encomendou aBalzac um prefcio para a edio, num s volume, das obras completas de LaFontaine que estava preparando. Entusiasmado com o plano de reunir num nicovolume compacto o material de muitos volumes de formato comum, o prefaciadorvislumbrou um xito comercial extraordinrio. Nenhum amador de La Fontaine,pensava ele, deixaria de comprar uma edio to prtica, mesmo que j tivesse asobras soltas. No contente de escrever o prefcio, pediu ao livreiro que o associasse empresa. Em breve est constituda a sociedade, com a participao de Balzac,Canel e terceiros para a publicao de Obras completas dos grandes escritores numvolume s. O La Fontaine ainda estava no prelo quando se comeou a compor oMolire.

    Foram os associados que comearam a duvidar do bom xito, ou, pelo contrrio,foi Balzac que, arrebatado pelo otimismo, queria para si todo o lucro fabuloso dainiciativa? Seja como for, em 1 de maro de 1826 a sociedade dissolvida, ficandoBalzac como nico proprietrio. Desinteressando os ex-scios, compra-lhes a firmapor uns 9 mil francos, dinheiro este emprestado pela Dilecta. A necessria inverso

  • de capital novo, 5 mil francos, fornecida por um sr. DAssonvillez, amigo dafamlia.

    O programa da editora era, na verdade, interessante. Edies anlogas realizadasmais tarde (na Inglaterra, das obras completas de Shakespeare; na Frana, demuitos clssicos franceses nos volumes compactos da edio da Pliade, naEspanha e no Brasil pelas edies Aguilar etc.) deram excelente resultado.Infelizmente os contemporneos de Balzac no gostaram da coleo, talvez porcausa dos caracteres fininhos, das gravuras mal executadas ou do preo elevado. Aslivrarias recusavam os La Fontaine e os Molire, e a edio teve de ser vendida aostrapeiros ao preo de papel sujo.

    Meditando sobre o insucesso, julgou-o Balzac devido a motivos puramentetcnicos. Os impressores trabalhavam mal e cobravam caro. Se a editora possussetipografia prpria, o trabalho sairia melhor e mais barato, podendo-se vender oslivros a preos bem mais acessveis. Richardson, autor de Clarisse Harlowe, um dosprimeiros best-sellers, imprimia por sua conta os prprios livros. Balzac resolveento comprar uma tipografia que justamente nessa ocasio estava venda;compra-a pela ninharia de 30 mil francos. Como no entende do ofcio, associa-se aum tipgrafo, Barbier, a quem indeniza pelo abandono do emprego com 12 milfrancos. Mais 15 mil so necessrios para pagar a licena, obtida graas interveno do conselheiro de Berny (o marido enganado!). O sr. DAssonvillez,ansioso de recuperar o primeiro capital, empresta um segundo a Balzac. O pai desteconsente em entregar ao filho o capital de que enviara os juros a Paris durante osanos da aprendizagem literria. A Dilecta empenha outra parte de seus bens. spr as mquinas em movimento.

    Ainda dessa vez a ideia era boa; alm dos trabalhos da editora, a tipografiaaceitava encomendas vindas de fora ou antes aceitaria, pois elas escasseiam cadavez mais, e ao cabo de poucos meses a empresa se torna deficitria nas mos donovo proprietrio. Balzac entra a meditar outra vez e sai com outra observaoexata: a impresso custava caro porque a tipografia pagava caro os caracteres. Erapreciso fabric-los em casa. Da a comprar uma fundio de caracteres era umpasso. Balzac comprou uma, falida, e ei-lo quase senhor de si. Se conseguissefabricar o papel (etapa a que necessariamente haveria chegado se a empresa tivessevivido mais tempo), alcanaria a autonomia completa de sua editora.

    As concepes de Balzac no s eram justas mas tambm essencialmente

  • modernas. Compreendeu perfeitamente a interdependncia das indstrias do papele do livro e foi um dos primeiros a considerar a editora no como simplesintermediria entre a tipografia e o pblico, mas, sim, como coordenadora demltiplas atividades industriais, isto , o tipo da grande empresa capitalista.

    O que faltava era apenas o capital, as dvidas ainda no tinham comeado a serpagas, e a firma exigia sem cessar novos investimentos. Barbier assustou-se eabandonou a sociedade. A famlia de Balzac, depois de alguns meses de esforos,recusou-se a supri-lo de dinheiro. No havia com que pagar os operrios, querecorreram ao tribunal. A sra. de Berny, alarmada, entrou a fazer parte da firma;nada, porm, podia j impedir a debandada. Em abril de 1828 seria inevitvel afalncia se no fosse a interveno dos pais de Balzac, ciosos da honra do nome.Liquida-se tudo, vendem-se a tipografia e a fundio. Para Balzac resta apenas umdvida de uns 70 e tantos mil francos e uma tima oportunidade para dar um tiro nacabea.

    Felizmente, dessa vez declinou a soluo lgica. Estudante falhado, escrivodespedido, dramaturgo vaiado antes da representao, clandestino romancista,comerciante falido, tendo a cerc-lo o desprezo da famlia e a comiserao dosamigos, escreve duquesa de Abrantes: Posso lhe afirmar, minha senhora, que setenho uma qualidade aquela que v recusarem-me com a maior frequncia,aquela que todos os que julgam conhecer-me so unnimes em me negar: energia.

    Durante os anos duros da estreia literria, da editora e da tipografia quereviveria magnificamente em Iluses perdidas , as experincias amargas dasensibilidade, as contnuas decepes e a luta recomeada tantas vezes, o durocontato cotidiano com a impiedosa vida moderna amadureceram o romancista, quesentia em si um desabrochar de dons maravilhosos e de repente se julgava de posse,ele mesmo nem sabia como, de todos os meios de um artista. Para ele a vida tinhaagora dois objetivos: tornar-se famoso e, para pagar as dvidas, rico. Felizmente amesma atividade levava a esses dois fins. Bastava escrever uma dzia de obras-primas. Foi o que fez.

    O PRIMEIRO ROMANCE DE VERDADE

    Havia anos, Balzac devorava os romances de Walter Scott, que desde 1814, data dapublicao de Waverley, conheceram uma sucesso ininterrupta de xitos dentro e

  • fora da Inglaterra. Lia com entusiasmo crescente todas as obras traduzidas para ofrancs desse trouveur moderno que elevava o romance ao valor filosfico dahistria, unindo nele o drama, o dilogo, o retrato, a paisagem, a descrio eintroduzindo no gnero o maravilhoso e o verdadeiro, esses elementos da epopeia.

    Com exceo de dois romances, Guy Mannering e The antiquary, de assuntomoderno, todas as outras narrativas em prosa de Scott entram na categoria doromance histrico. O escritor escocs revivia as pocas heroicas de seu pas emamplas vises picas, cheias de poesia. Sara cedo do gnero frentico e sombrio,distinguindo-se logo por um talento equilibrado e feliz e pelo trabalhoconsciencioso que se impunha na reconstruo do ambiente histrico por meio deuma infinidade de pormenores, fruto de pacientes pesquisas. Fazia viagensperidicas nas regies da Esccia que escolhera para cenrio de seus romances,examinava os lugares, visitava as casas antigas, percorria os arquivos, dava umaverdadeira caa s antiguidades, criando assim o romance histrico baseado emdocumentos.

    A leitura dos livros de Scott fizera Balzac compreender ainda mais a nulidade desuas primeiras tentativas literrias. As suas personagens, fantoches sem realidade,movimentavam-se no vcuo, faltando-lhes o dom da vida e, em volta delas, umambiente de verossimilhana. Mas a aprendizagem da vida e as leiturasmodificaram completamente o seu conceito de literatura. Tinha agora um assuntograndioso, que, bem realizado, podia dar um verdadeiro fresco da histria recenteda Frana; queria dar um quadro da sangrenta insurreio dos Chouans, osmonarquistas da Bretanha contra a Revoluo Francesa e, bem no centro, a histriaempolgante da paixo de uma bela espi, a servio do governo, pelo chefe das forasrebeldes que viera espionar e seduzir. Movido pelo exemplo de Scott e aproveitandoa hospitalidade de uma casa amiga, dirigiu-se a Fougres, na Bretanha, para aestudar de perto o seu cenrio. No se contentou em examinar os lugares. Alembrana da insurreio ainda estava viva: ps-se a procurar informaes, arecolher o testemunho de pessoas idosas, a anotar tudo, e voltou a Paris com omanuscrito quase pronto do primeiro romance de verdade que sairia da sua pena eque no hesitaria mais em assinar: Le Dernier Chouan ou la Bretagne en 1800(ttulo mudado mais tarde para Les Chouans ou la Bretagne en 1799).[1]

    Que diferena entre este e todos os livros precedentes de Balzac! O enredo ainda o que pode haver de mais romanesco, mas os personagens vivem; alis, o

  • interesse partilha-se entre a histria dos amantes, o quadro da poca e arepresentao do cenrio. O autor conseguiu dar bem mais do que umamovimentada histria de amor: a epopeia de toda a insurreio, fazendo que naspginas do livro se sintam as palpitaes de uma alma coletiva, brbara e dominadapor instintos primrios. Outro encanto do livro eram as descries das paisagensselvagens e sombrias da Bretanha, quase outra personagem da ao.

    Com todas as suas desigualdades, essa obra j revela mo de mestre. Oromancista encontrou-se definitivamente, e nunca mais reincidiria na subliteratura.Tudo o que escreveria depois dos Chouans, em matria de romance e de contos,teria valor.

    Comparado com Walter Scott, seu discpulo assinala-se por uma particularidadebem francesa, de que, alis, tinha plena conscincia. O romancista escocs idealiza apaixo. Por temperamento ou para agradar a um pblico maior, desconhece o amorsexual e faz intervir em suas narrativas mulheres sublimes e plidas, quase figurasde altar. O romancista francs, desde seu primeiro verdadeiro romance, exploratodas as riquezas da mina das paixes. A paixo toda a humanidade!, escreveranos depois no prefcio de A comdia humana, ao reconhecer a sua dvida para comWalter Scott.

    Por outro lado, em oposio a Scott atrado pelas pocas mais remotas dahistria nacional , Balzac logo de incio escolhe um passado muito mais prximo,contguo ao seu prprio tempo. No conjunto de sua obra, o romance histricoconstituiria uma exceo, pois o romancista se compenetra cada vez mais de que asua tarefa consiste em escrever a histria dos costumes da sociedade francesa deseu tempo.

    A repercusso de Le Dernier Chouan no nada extraordinria, mas jrecomenda o autor ateno de alguns entendidos em literatura. No mesmo ano,porm, alcana um sucesso retumbante, pois um sucesso de escndalo, com aespirituosa mas escabrosa Fisiologia do casamento. Este livro, que saiu poucosmeses depois da morte do pai de Balzac, a quem o autor provavelmente deve a ideiacentral e que teria ficado bem contente com o alvoroo, conquistou de chofre umpblico enorme. As mulheres censuravam-no, os homens defendiam-no, era objetode discusses em todos os sales, e todos o compravam. O anonimato foi facilmentedesvendado; a fortuna literria do autor estava feita, sobretudo depois dapublicao, em 1830, das Cenas da vida privada, deliciosos quadros de interior, que

  • o reconciliavam com todo o pblico feminino.

    ANOS FELIZES

    Comea ento uma atividade literria espantosa, espetculo sem par na histrialiterria. Os jornais, as revistas escancaravam as suas portas ao novo talento, eBalzac atendia a todos os convites. S em 1830, alm de inmeros artigos, escreveuas seguintes novelas e contos que hoje compem A comdia humana: El verdugo,Estudo de mulher, seis novelas das Cenas da vida privada: A paz conjugal, AoChat-qui-pelote , O baile de Sceaux, A vendeta, Gobseck, Uma dupla famlia, e,ainda, Adeus, O elixir da longa vida, Sarrasine, Uma paixo no deserto, Umepisdio do Terror, sem falar de grandes trechos de Pequenas misrias da vidaconjugal, Beatriz, A pele de onagro, Catarina de Mdicis. Os leitores descobriam,admirados, nesses esplndidos contos e fragmentos de romances, o prprio mundoem que viviam, seu salo, sua sala de jantar e, mesmo, seu quarto de dormir, nosomente representados com fidelidade, mas interpretados, revestidos de umaimportncia que nunca se lhes teria atribudo, realados, por assim dizer, dignidade de cenrios histricos. A popularidade do escritor aumenta a cada dia,principalmente nas rodas femininas, que encontram nele um conhecedor admirvelde seus segredos mais escondidos. Multiplicam-se os convites mundanos, e, sinalainda mais evidente do sucesso, as cartas de mulheres, umas annimas, outras comnome e endereo completo, chovem s dzias.

    Sem parar, como quem depois de longo silncio recupera a voz, o escritor lanauma obra aps outra: O conscrito, Os proscritos, A obra-prima ignorada, Aestalagem vermelha, A pele de onagro, Jesus Cristo em Flandres, Mestre Cornlius,sem falar numa multido de artigos e crnicas e em grande parte da Mulher detrinta anos e ainda estamos no fim de 1831!

    1830, 1831 so, talvez, os anos mais felizes da vida de Balzac. Aps uma srie tolonga de insucessos e dissabores, eis o xito pleno, fragoroso, esplndido, tal comoo sonhava. Heri do dia, bem-vindo em todos os sales, tratado como igual peloscontemporneos mais ilustres: Hugo, Lamartine, Nodier, George Sand e tantosoutros. Cheio de ideias, de projetos, de energia, basta que entre numa sala para setornar, imediatamente, o centro do interesse. Fala muito, mas o assunto invariavelmente um s: ele mesmo. Fala nos livros que j fez, que est fazendo, que

  • far; conta as suas orgias de trabalho, as filas de noites passadas escrivaninha,as xcaras de caf com que mantm a excitao do crebro; apresenta aspersonagens de seus livros futuros, os enredos em que as pretende meter, os nomesque para elas achou; gaba os bibels que encontrou na loja de um antiqurio e asriquezas de sua casa, em parte imaginrias. Os ouvintes ficam basbaques, trocamolhares espantados. As pessoas que o conheciam nessa poca pintam-no comohomem antes feio que bonito, com uma gordura incipiente que a vida sedentriaacentua cada vez mais; vestido ou com desalinho ou com elegncia espalhafatosa;baixo, atarracado, de nariz disforme, rosto redondo, cabelos compridos e uns olhoscujo brilho devia ser algo de excepcional, pois nenhuma testemunha deixa de falarno fogo desses olhos de ouro.

    Pueril e poderoso, escreve George Sand, que o conheceu nessa poca, semprecom inveja de algum bibel e nunca ciumento de uma glria, sincero at amodstia, jactancioso at a bazfia, confiante em si mesmo e nos outros, muitoexpansivo, muito bom e muito maluco, com um santurio de razo interior onde serecolhia para dominar tudo em sua obra, cnico porm casto, brio bebendo gua,intemperante no trabalho e sbrio em outras paixes, positivo e romanesco comexcesso igual, crdulo e ctico, cheio de contrastes e mistrios, assim era Balzacainda moo, j inexplicvel para quem se cansava com o estudo demasiadamenteconstante dele, mesmo a que ele condenava os amigos, e que ainda no parecia atodos to interessante como realmente era... A sua alma era de uma grandeserenidade, e em momento algum o vi carrancudo.

    A partir da Fisiologia do casamento, Balzac entrou a ganhar bem com a suapena, muito bem at, e os seus honorrios, calculados no valor do dinheiro de hoje,dariam importncias elevadssimas. Podia finalmente, em dois ou trs anos,liquidar as suas dvidas, e ainda lhe restava com que viver muito bem. Mas, em vezde diminuir, estas aumentavam constantemente, em razo da vida luxuosa do nossoescritor, com suas pretenses a dndi que no dispensa uma casa brilhante, calea,cavalos, mveis artsticos, ternos magnficos (no se esquea de que a modamasculina de ento era muito menos uniformizada que hoje, permitindo umaescala extraordinria de fazendas suntuosas de cores e de cortes diferentes), todasessas coisas que criam em redor da pessoa uma aurola publicitria na crnicamundana dos jornais. De todas as suas extravagncias ficou famosa a enormebengala, ornada de pedras preciosas, que forneceu sra. de Girardin o assunto para

  • um romance. Junte-se a isso a sua paixo de colecionador de objetos de arte eantiguidades, que, com o correr dos anos, se transformou em mania. Assim, as suasfinanas nunca chegaram a um ponto de equilbrio, e foi preciso que ele morressepara suas dvidas poderem ser saldadas com a renda dos direitos autorais.

    Uma bela manh, conta ainda George Sand, Balzac, tendo vendido bem A pelede onagro, desprezou a sua sobreloja e quis deix-la; mas, depois de refletir,contentou-se de transformar seus pequenos quartos num conjunto de boudoirs demarquesa e um belo dia convidou-nos a tomar sorvete entre suas paredes cobertasde seda e bordadas de renda. Isso me fez rir muito; no pensava que ele levasse asrio essa necessidade de luxo vo e que aquilo fosse para ele mais do que umafantasia passageira. Enganava-me: essas necessidades de imaginao faceiratornaram-se os tiranos de sua vida e para satisfaz-las sacrificou mais de uma vez obem-estar mais elementar.

    A partir dessa poca, a vida de Balzac torna-se complicada para os bigrafos; elecomo que se comprazia em dificultar-lhes a tarefa. Ningum pode ter a pretensode fazer uma biografia completa de Balzac: qualquer ligao com ele eranecessariamente cortada por lacunas, ausncias e desaparies. O trabalhodominava de modo absoluto a sua vida, afirma seu amigo Thophile Gautier. Defato, Balzac desaparecia frequentemente durante semanas inteiras, emergindo oranesta ora naquela cidadezinha, em casa de um ou de outro amigo, para descansar dealgum esforo excepcional e, mais frequentemente ainda, desaparecia para acabarno silncio da provncia algum livro que incubava. Outras vezes os amigosacreditavam-no em viagem, mas ele estava em Paris, escondido numa residnciasecreta a escrever, mas tambm a fugir aos credores e s convocaes da GuardaNacional; depois, ao cabo de uma recluso voluntria de trinta ou quarenta dias,reaparecia brandindo alguma nova obra-prima. Em outras ocasies, quando osamigos o acreditavam em casa, recebiam dele um bilhete vindo da Itlia, da Sua,da Alemanha ou da Rssia, e isso num tempo em que as viagens eram muito maisincmodas e demoradas do que hoje.

    INTERMEZZO POLTICO

    Antes, porm, dessas viagens ao estrangeiro, cuja srie comeara em 1833, vemosBalzac cruzar a Frana em todos os sentidos. Ao aceitar o convite de amigos ou

  • amigas, tem sempre em vista a possibilidade de achar, para a ao de um ou outroromance em preparo, algum cenrio ainda inexplorado: Issoudun, Nemours,Angoulme, Saumur etc. Poder-se-ia fazer um mapa quase completo da Frana comas localidades que o gnio de Balzac introduziu na literatura. Uma das razes queexplicam a rpida voga do sr. de Balzac por toda a Frana, observa a esse respeitoSainte-Beuve, o grande adversrio do romancista que, para explicar-lhe o bom xito,admitia todas as razes menos o gnio,

    a habilidade na escolha sucessiva dos lugares onde coloca o cenrio de suas narrativas [...] Essa lisonjadirigida a cada cidade em que o autor situa suas personagens significa para ele a conquista do lugar; aesperana que tm as cidades ainda obscuras de ser em breve descritas em algum romance novo predispepara ele todos os coraes literrios do lugar. Este, pelo menos dizem , no orgulhoso; no exclusivamente parisiense, e de sua Chausse dAntin no despreza as nossas ruas e as nossas granjas.

    Por volta de 1831, as viagens de Balzac tm, no entanto, um outro fim alm doliterrio. Confiando na popularidade do seu nome, quer, precisamente, sair doterreno da literatura. Desejoso de no apenas observar e descrever, mas plasmar aevoluo da sociedade, candidata-se s eleies legislativas em Cambrai e emAngoulme. Para ser eleito, conta especialmente com o apoio da alta sociedade, poisesse plebeu est resolvido a fazer-se campeo da aristocracia. Os que gostariam dever os grandes escritores na primeira fila dos que combatem pela ascenso dasclasses laboriosas e para a encarnao, nas instituies do Estado, do esprito deliberdade, notam, com desapontamento, que desde o comeo de sua carreira Balzacse filiou outra frente, adotando um programa poltico nitidamente conservador emesmo reacionrio. A esse respeito, o prefcio de A comdia humana, escrito em1842, contm uma declarao bastante categrica; mas j doze anos antes, numacarta sra. Zulma Carraud, Balzac faz uma profisso de f poltica no mesmosentido. Achamos interessante citar-lhe os itens principais, pois esclarecem muitostrechos de A comdia humana em que as personagens ou o prprio autorcomentam assuntos polticos:

    A Frana deve ser uma monarquia constitucional, ter uma famlia real hereditria, uma Cmara dos Paresextremamente poderosa que represente a propriedade com todas as garantias possveis de hereditariedade eprivilgios cuja natureza deve ser discutida; depois, uma segunda Assembleia, eletiva, que represente todosos interesses da massa intermediria que separa as altas posies sociais do que se chama o povo. A massadas leis e seu esprito devem tender a procurar esclarecer o mais possvel o povo, as pessoas que no tm

  • nada, os operrios, os proletrios etc., a fim de fazer chegar o maior nmero possvel de homens ao estadode bem-estar que distingue a massa intermediria; contudo, o povo deve ser deixado sob o mais poderosodos jugos; deve ter toda a oportunidade para que seus indivduos possam encontrar luzes, auxlio e proteo,e para que nenhuma ideia, forma ou transao o torne turbulento. A maior liberdade possvel classeabastada, pois esta possui algo para conservar e pode perder tudo; essa nunca ser licenciosa. Ao governo, amaior fora possvel. Assim, o governo, os ricos e os burgueses tm interesse em tornar feliz a classe nfimae engrandecer a classe mdia, na qual reside a verdadeira fora dos Estados. Se as pessoas ricas, as fortunashereditrias da Cmara Alta, corrompidas por seu modo de viver, praticam abusos, esses so inseparveisda existncia de toda sociedade; preciso aceit-los com as vantagens que oferecem.

    Para Balzac, este sistema, se no perfeito, parece o menos defeituoso de todos,pois rene as condies boas e filantrpicas de vrios outros; eis por que afirmaem 1830: Nunca abandonarei este sistema e realmente conservou-se fiel a eleat o fim da vida.

    Quando, pouco depois de ter escrito essa carta, Balzac se lembrou de tomar parteativa na poltica, candidatando-se s eleies, procurou o partido cujas ideias maisse assemelhassem s suas e achou-o no Partido Legitimista. No seio deste haviauma ciso. Quando da instalao da Monarquia de Julho, em seguida Revoluode 1830, a maior parte dos deputados e dos pares monarquistas recusou-se a prestarjuramento de fidelidade a um regime que consideravam usurpador; uma minoria,porm, resignou-se ao juramento para poder combater, como oposio ativa, o novogoverno. O duque de Fitz-James era chefe dessa faco, cujas ideias eram expostasno Renovateur, rgo redigido por Laurentie, a cujo convite de colaborao Balzacrespondeu com entusiasmo.

    foroso reconhecer que as ideias expostas na carta acima so as da direita; noentanto, essa profisso de f no coincide de modo preciso com a concluso geralque cada leitor desprevenido tira naturalmente de A comdia humana. Balzac faz-sepaladino do sistema poltico e social vigente em seu tempo e da predominncia daIgreja Catlica, mas seus livros constituem, com poucas excees, outros tantosgolpes demolidores assestados aos alicerces do edifcio social e religioso de seutempo. Apesar de vrias tentativas da crtica monarquista e conservadora francesa(Barbey dAurevilly, Bourget etc.) para demonstrar a coerncia entre o pensamentopoltico e a obra literria de romancista, parece que Victor Hugo teve mais razo aoafirmar, na poderosa orao pronunciada sobre o tmulo de Balzac, que este,quisesse ou no, pertencia forte raa dos escritores revolucionrios.

    Nas pginas de A comdia humana opinies conservadoras so manifestadas a

  • cada passo, ora atribudas a personagens das altas classes sociais, ora nasfrequentes interrupes da narrativa, como palavras do prprio autor. Apesar disso,a obra literria de Balzac essencialmente imparcial, pois suas convices polticasnunca levam o escritor a alterar seja o que for no que ele considera a observao e aexpresso da realidade. Cumpre citar a esse respeito uma das justificaes com queo poltico Balzac procura afastar o ressentimento de leitores conservadores contra oescritor Balzac por ter este apresentado um fidalgo degenerado num dos captulosde Modesta Mignon. Quando as grandes coisas humanas se vo, deixam migalhas[...] e a nobreza francesa mostra-nos, neste sculo, demasiados restos. No hdvida de que, nesta longa histria de costumes que A comdia humana, nem oclero nem a nobreza tm de que se queixar. Essas duas grandes e magnficasnecessidades sociais acham-se nela bem representadas; mas no ser imparcial, nomostrar aqui a degenerescncia da raa, no equivaleria a renunciar ao belo ttulode historiador? Este belo ttulo nunca lhe foi contestado pelos intelectuais daesquerda. O prprio Marx lia-o com entusiasmo, e Engels prestou-lhe homenagemneste significativo trecho de carta:

    Balzac [...] nos d, em A comdia humana, a histria mais maravilhosamente realista da socit francesa[...] descrevendo sob forma de crnica de costumes, quase de ano em ano, de 1816 a 1848, a presso cadavez maior que a burguesia ascendente exercia sobre a nobreza que se reconstitura depois de 1815 e que,tant bien que mal, na medida do possvel, levantava outra vez a bandeira da vielle politesse franaise.Descreve como os ltimos restos dessa sociedade, para ele exemplar, sucumbiram aos poucos em face daintruso do parvenu vulgar da finana, ou foram por este corrompidos; como a grande dama cujasinfidelidades conjugais no eram seno um meio perfeito de se adaptar maneira como se dispunha dela nocasamento, cedeu lugar burguesa que procura um marido para ter dinheiro ou toilettes; em volta dessequadro central agrupa toda a histria da sociedade francesa, onde eu aprendi mais, mesmo no que concerneaos pormenores econmicos (por exemplo, a redistribuio da propriedade real e pessoal depois daRevoluo) do que em todos os livros dos historiadores, economistas e estatsticos profissionais da poca,todos juntos. Sem dvida, Balzac era legitimista na poltica; sua grande obra uma elegia perptua quedeplora a irremedivel decomposio da alta sociedade; suas simpatias vo para a classe condenada amorrer. Mas, apesar de tudo isso, sua stira nunca mais incisiva, sua ironia mais amarga do que quandofaz agir esses aristocratas, esses mesmos homens e mulheres pelos quais experimentava to profundasimpatia. E [...] os nicos homens de quem fala com admirao no dissimulada so seus adversriospolticos mais encarniados, os heris republicanos da rue de Clotre-Saint-Merry [cenrio da insurreiopopular de 5 e 6 de junho de 1832], os homens que nessa poca representavam realmente as massaspopulares.[2]

    Pode-se lamentar, pois, que Balzac tenha professado um credo reacionrio, mas

  • isso no lhe altera nem a imparcialidade nem o valor da obra, e h nisso mais umaprova de seu gnio. Ainda hoje, Paul Louis, historiador do socialismo francs, aoprocurar reconstruir os tipos sociais do perodo do capitalismo nascente, recorre aomonumental inventrio feito pelo monarquista e catlico Balzac.

    Retomando a vida de Balzac no ponto onde a deixamos, observemos que oescritor, para o bem da literatura, no fora eleito deputado nem em 1831, nem em1832, nem mais tarde, a despeito do apoio que lhe fora prometido pelo duque deFitz-James. Dir-se-ia que o partido monarquista no se empenhava muito emajudar um aliado to perigoso. Por outro lado, Balzac, premido por seuscompromissos literrios e acossado pelos credores, no dispunha do temponecessrio a uma campanha eleitoral. Mantendo embora as mesmas ideias, afastou-se progressivamente do partido, cujos jornais em seguida o agrediriam mais de umavez por suas teorias, insuficientemente ortodoxas, e por sua pretensa imoralidade.

    INTERMEZZO SENTIMENTAL

    Querendo saber por que cargas dgua Balzac chegou a ter relaes com o duque deFitz-James, um dos chefes do Partido Legitimista, passamos inadvertidamente dodomnio poltico para o sentimental.

    Fizemos j uma aluso s cartas femininas que assinalavam o sucesso cada vezmaior do romancista entre as leitoras. Nessa poca, recebe ele, em mdia, trs ouquatro cartas por dia, e o melhor conhecedor de sua vida, o visconde Spoelberch deLovenjoul, calcula em 12 mil o nmero total que lhe pode ter chegado entre 1830 e1850. Uma pequena parte dessas mensagens foi publicada em Paris e ofereceinteressante amostra do que poderia ser o conjunto. So solteironas protestandocontra o retrato da solteirona, impiedosamente traado; louras tomando as dorespor alguma herona loura, maltratada num romance; senhoras reclamando contraconceitos injuriosos acerca das mulheres casadas; esposas incompreendidastrazendo a sua prpria histria para dar assunto ao romancista e quase todaspedindo encontro para demonstrar pessoalmente quanto Balzac se enganara aopronunciar este ou aquele julgamento a respeito do sexo feminino. O escritor lia,entre lisonjeado e aborrecido, os bilhetes de todas essas mulheres s vezesapaixonadas, mais comumente, porm, apenas curiosas e pervertidas; no podiaresponder sequer dcima parte, mas de vez em quando escolhia uma ou outra que

  • cheirava a mistrio, trazia um perfume aristocrtico ou uma promessa de aventurapicante.

    Aconteceu-lhe, assim, responder, em outubro de 1831, a uma annima quecensurara o cinismo de certas afirmaes da Fisiologia do casamento. Balzacdesculpou-se, declarou que havia um mal-entendido e fez a apologia das mulheres.Em fevereiro de 1832 a desconhecida despiu o anonimato; no era nada menos quea marquesa (mais tarde duquesa) de Castries, filha do duque de Maill, sobrinha doduque de Fitz-James, uma das grandes damas mais admiradas do Faubourg Saint-Germain, de quem se falava muito a propsito da ligao que tinha com o duqueVictor de Metternich, filho do chanceler, falecido inesperadamente pouco antes, ecuja morte ela chorava publicamente. Balzac viu realizar-se o mais ardente dos seussonhos: abriam-se diante dele as portas de um dos sales aristocrticos e, o que mais importante, sob os melhores auspcios possveis. Atendeu, pois,imediatamente ao convite com o risco de perder muito, quando for conhecidopessoalmente.

    1832 foi, alis, o ano em cujo comeo Balzac e a sra. de Berny, bastanteenvelhecida, concordaram em transformar a sua ligao amorosa em simplesamizade. O escritor, cujas exigncias amorosas, segundo ele mesmo o confessa,at ento nunca foram plenamente satisfeitas, andava justamente procura deuma paixo. A sra. de Castries parecia objeto indicado para isso. Com trinta anosfeitos, a aurola de uma grande paixo tragicamente interrompida e a melancolia deuma enfermidade contrada numa queda de cavalo, e que lhe fazia receber deitadaos hspedes de seu salo, recebeu-o com faceirice, e tudo fez para lig-lo sua roda.Ele trazia-lhe uma admirao que a lisonjeava e uma pena que podia prestar osmelhores servios boa causa, a do legitimismo, evidentemente. O romancistatomou as manifestaes de gentileza que se lhe dispensavam por sinais de paixo, equando a sra. de Castries ou o duque de Fit