a bíblia sagrada de graciliano...

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leituras Livro 95 E m entrevista publicada no jornal Folha da Manhã, em 25 de setembro de 1949, o escritor Graciliano Ramos rebaixava todas as suas obras e dizia que, na literatura mundial, o livro de maior valor artístico não seria de literatura, mas sim a Bíblia 1 . Três anos depois, em nova palestra, agora à revista Manchete, torna a ma- nifestar sua admiração pelas Sagradas Escrituras: “É um livro que fez um povo. Sem ele, os judeus não mais existiriam hoje. Basta lembrar o que sucedeu aos moabitas, aos fenícios e a outros mais: desapareceram. Ficou o judeu, porque tinha um monumento escrito” 2 . A princípio, tal defe- rência à Bíblia, por mais que se funde em aspectos históricos e literários, soa estranha na boca de um ateu convicto como o autor de Vidas Secas. Aos 22 anos, em carta ao pai, datada de 24 de maio de 1915, o então jovem Graciliano afirmava enfaticamente que sempre fora “ateu, graças a Deus”. E continuava sua argumentação em tom zombeteiro: “Deus está morto, coitado! Ainda insepulto, mas morto a valer, como os infernais hereges da atualidade afirmam. Mas eu respeito essa velha forjadora de embustes daqueles bons tempos em que a humanidade, para andar, precisava de freio na boca e sela no dorso” 3 . Assim, se rejeitava a religião católica e, por conseguinte, a Bíblia, como propiciadoras de algum conforto espiritual e regramento moral, uma vez que Deus estaria morto, não deixava de ter consideração, ainda que em chave irônica, pela “velha forjadora de embus- tes”. Ao julgar que a religião se funda no logro dos fiéis, Graciliano adota em relação a ela uma postura a um só tempo desmistificadora (de denúncia 1. Graciliano Ramos, Conversas, organização de Thiago Mio Salla e Ieda Lebensztayn, Rio de Janeiro, Record, 2014, p. 220. 2. Idem, p. 251. 3. Graciliano Ramos, Cartas, 8. ed., Rio de Janeiro, Record, 2011, p. 71. A BÍBLIA SAGRADA DE GRACILIANO RAMOS A leitura e a glosa do texto religioso realizadas pelo autor de Vidas Secas Thiago Mio Salla

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Em entrevista publicada no jornal Folha da Manhã, em 25 de setembro de 1949, o escritor Graciliano Ramos rebaixava todas as suas obras e dizia que, na literatura mundial, o livro de maior valor artístico não seria de literatura, mas sim a Bíblia1.

Três anos depois, em nova palestra, agora à revista Manchete, torna a ma-nifestar sua admiração pelas Sagradas Escrituras: “É um livro que fez um povo. Sem ele, os judeus não mais existiriam hoje. Basta lembrar o que sucedeu aos moabitas, aos fenícios e a outros mais: desapareceram. Ficou o judeu, porque tinha um monumento escrito”2. ¶ A princípio, tal defe-rência à Bíblia, por mais que se funde em aspectos históricos e literários, soa estranha na boca de um ateu convicto como o autor de Vidas Secas. Aos 22 anos, em carta ao pai, datada de 24 de maio de 1915, o então jovem Graciliano afirmava enfaticamente que sempre fora “ateu, graças a Deus”. E continuava sua argumentação em tom zombeteiro: “Deus está morto, coitado! Ainda insepulto, mas morto a valer, como os infernais hereges da atualidade afirmam. Mas eu respeito essa velha forjadora de embustes daqueles bons tempos em que a humanidade, para andar, precisava de freio na boca e sela no dorso”3. Assim, se rejeitava a religião católica e, por conseguinte, a Bíblia, como propiciadoras de algum conforto espiritual e regramento moral, uma vez que Deus estaria morto, não deixava de ter consideração, ainda que em chave irônica, pela “velha forjadora de embus-tes”. ¶ Ao julgar que a religião se funda no logro dos fiéis, Graciliano adota em relação a ela uma postura a um só tempo desmistificadora (de denúncia

1. Graciliano Ramos, Conversas, organização de Thiago Mio Salla e Ieda Lebensztayn, Rio de Janeiro, Record, 2014, p. 220.2. Idem, p. 251.3. Graciliano Ramos, Cartas, 8. ed., Rio de Janeiro, Record, 2011, p. 71.

a BíBlia Sagrada dE GRacILIanO RaMOS

A leitura e a glosa do texto religioso realizadas pelo autor de Vidas Secas

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Thiago Mio Salla

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irônica de seus embustes e castrações) e de estudioso (a examinar as estratégias de persua-são utilizadas pelo discurso religioso). Em outras palavras, toma-a tanto como “mentira”, em termos factuais e morais, quanto como “metáfora”, em chave intelectual e ficcional. Dessa última posição, adviria seu respeito pelo texto bíblico, visto enquanto repositório linguístico e material literário, ou seja, fonte de estudos e fabulação capaz de unir o útil e o deleitável, em que avulta o hábil manuseio de recursos retórico-estilísticos com o fito de seduzir os leitores.

Em certo sentido, esses dois vetores de leitura do texto religioso que aparecem nas cartas escritas pelo jovem Graciliano po-dem também ser percebidos nos primeiros romances do escritor alagoano quando ele se refere à Bíblia. Em Caetés (1933), o narrador--protagonista João Valério utilizava o Ecle-siastes, para guardar suas economias. Por um lado, essa imagem-síntese do livro sagrado como “cofre” insinua a riqueza da obra: a frase lapidar “nada de novo sob o sol”4 do Eclesiastes orientará a trajetória de Valério, que, ao fim, se reconhece como um índio caeté, ou seja, um selvagem com uma cama-da de verniz por fora, movido pela mesma e imperativa vaidade, responsável por igualar todos os homens no caminho para a mor-te5. Por outro lado, tal uso da Bíblia como caixa-forte reforça explicitamente a lógica do dinheiro que governa as ações do per-sonagem em seu desejo de ascender social e economicamente para além de qualquer ensinamento religioso. Nesse último caso, o livro sagrado se convertia num disfarce para despistar larápios, de modo análogo aos

4. Eclesiastes, Português, em Bíblia Sagrada, 67. ed., tradução do Centro Bíblico Católico, São Paulo, Ave Maria, 1989, cap. 1, vers. 9, p. 816.5. Ieda Lebensztayn, Graciliano Ramos e a Novidade: o Astrônomo do Inferno e os Meninos Impossíveis, São Paulo, Hedra, 2010, pp. 291-292.

outros embustes utilizados por Valério para mascarar seu arrivismo leviano.

Já o protagonista de S. Bernardo (1934), Paulo Honório, aprendeu a ler numa Bíblia protestante, “de capa preta, dos bodes”6, mas, em sua escalada de acúmulo de capital, pou-co se preocupava com o “outro mundo”. Na verdade, adaptara a religião a seus interesses patronais: “Admito Deus, pagador celeste dos meus trabalhadores, mal remunerados cá na terra, e admito o Diabo, futuro carrasco do ladrão que me furtou uma vaca de raça”7. De acordo com tal leitura pragmática, a metáfora religiosa funcionaria como ilusão a perpetuar a um só tempo a dominação dos senhores e a alienação das classes mais baixas.

Em diferentes passagens de seus fluxos de consciência, o funcionário público e in-telectual frustrado Luís da Silva de Angústia (1936) repete a frase “o espírito de Deus boia-va sobre as águas” (com algumas variantes), retomando o início do livro do Gênesis8. Mais especificamente, em outro trecho do romance, diante da litografia de uma “santi-nha bonita”, o protagonista retoma o Deus vingativo e violento do Antigo Testamento, “que incendiava cidades”, como meio de questionar o quanto a humanidade estaria se tornando “pulha” e, em certo sentido, justifi-car o impulso primitivo do assassinato que vi-ria a cometer9. Portanto, se conhecia e fazia uso do texto e de imagens da Bíblia, Luís da

6. Graciliano Ramos, S. Bernardo, 5. ed., Rio de Janei-ro, José Olympio, 1953, p. 108.7. Idem, p. 136.8. Referência à frase “e o espírito de Deus pairava sobre as águas” (Gênesis, 1, 2). Na Bíblia que pertenceu a Graciliano, esse mesmo trecho fora traduzido como “e o Espírito de Deus era levado sobre as águas” (Gênesis, Português, em Bíblia Sagrada, tradução de António Pereira de Figueiredo, Rio de Janeiro, B. L. Garnier, [1864], t. 1, cap. 1, vers. 2, p. 65). Esta última redação também aparece ipsis litteris em Angústia (Graciliano Ramos, Angústia, 6. ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1953, p. 113). 9. Graciliano Ramos, op. cit., p. 184.

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Silva recusava a religião como “sustentáculo da ordem, uma necessidade social”10, recor-rendo ao crime como meio de tentar apagar seus recalques e sua dor.

Se essa postura de estudioso e conhecedor do texto bíblico correlata à de ferino desmis-tificador do discurso religioso encontra-se tanto na correspondência íntima do então jovem Graciliano quanto na produção do romancista consagrado depois de seus três romances iniciais, o mesmo se observa nas marcas de leitura que deixou num objeto que o acompanhou por toda a vida: sua edi-ção da Bíblia Sagrada.

Segundo Ricardo Ramos, filho de Graci-liano, seu pai conhecia a Bíblia de cor e sal-

10. Idem, p. 46.

1. Capa do exemplar de Graciliano Ramos do segundo tomo da Bíblia Sagrada editada pela Garnier em 1864. ieb/usp.

teada (contos e novelas, poemas, provérbios e parábolas), mais por interesse literário. “O seu exemplar do livro sagrado, uma edição da Garnier (1864), está cheio de anotações. Em letra miúda, à margem, ele opina, glosa, divaga. Com toda a irreverência de que era capaz”11. Clara Ramos, filha mais nova do escritor alagoano, também enfatizava que a Bíblia era o livro de cabeceira do Velho Graça. Segundo ela, Graciliano possuía uma bela edição das Sagradas Escrituras “com ilustrações de [Gustave] Doré, já estragada pelo tempo e as observações jocosas que o leitor, este de fato irreverente, não se coíbe de fazer às margens do Novo Testamento”12. Fernando Alves Cristóvão, renomado pes-quisador português, autor de Graciliano Ramos: Estruturas e Valores de um Modo de Narrar (1975), destacava que, repetidas vezes, o autor de Vidas Secas tratou do uso dos pronomes em língua portuguesa. E o aprendizado dessa matéria por parte do ro-mancista teria sido penoso, “como se pode verificar pelas notas marginais da sua Bíblia, que ainda se conserva. Esse exemplar [...] tem as margens cheias de anotações sobre o emprego dos pronomes, juntamente com outros comentários”13.

Para além dos testemunhos de terceiros, sempre tive interesse em consultar a edição da Bíblia Sagrada que pertenceu a Graci-liano. Todavia, uma pergunta elementar não encontrava resposta: onde o livro se encontrava? Teria se perdido? Continuou com a família do escritor? Ou foi doado por sua viúva, Heloísa Ramos, ao Instituto de

11. Ricardo Ramos, Retrato Fragmentado, São Paulo, Globo, 2011, p. 120.12. Clara Ramos, Mestre Graciliano: Confirmação Humana de uma Obra, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979, p. 156.13. Fernando Alves Cristóvão, Graciliano Ramos: Es-trutura e Valores de um Modo de Narrar, Rio de Janei-ro, Ed. Brasília/Rio, 1977, p. 135.

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Estudos Brasileiros (ieb/usp), juntamente com todo o material (manuscritos, recortes, fotografias etc.) que hoje compõem o Arqui-vo Graciliano Ramos?

¶ a Bíblia de Graciliano Ramos: edições da Garnier

A última opção, em princípio a mais óbvia de todas, acabou se comprovando. Recente-mente, depois de um trabalho de recatalo-gação de todo o Arquivo Graciliano Ramos,

2. Contracapa e lombada da Bíblia Sagrada (Rio de Janeiro, Garnier, t. 2, 1864) pertencente a Graciliano Ramos. ieb/usp.

pertencente ao ieb/usp, encontrou-se uma edição em dois tomos da Bíblia Sagrada que pertenceu ao autor de Vidas Secas. Trata--se de uma versão do texto traduzida para o português segundo a Vulgata Latina pelo padre português António Pereira de Figuei-redo (1725-1797) e publicada no Brasil pela Garnier em 1864 (ano da primeira edição). Além de contar com notas produzidas pelo cônego Delaunay (cura de Saint-Étienne--du-Mont) e rico conteúdo pré-textual (pre-

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fácios e apresentações) e pós-textual (dicio-nários geográfico, histórico e onomástico), o livro, encadernado em Paris, destaca-se pela beleza das ilustrações: mais especifi-camente, gravuras sobre aço realizadas por Ed. Willmann, a partir de obras de Rafael, Leonardo da Vinci, Ticiano, Poussin, entre outros grandes artistas que representaram cenas bíblicas.

Tais informações bibliográficas foram extraídas de fragmentos do frontispício do segundo tomo da Bíblia que pertenceu a Graciliano. Por mais que o miolo de ambos os volumes se encontre conservado (apesar do escurecimento e da fragilidade do papel), perderam-se algumas de suas pré-textuais e pós-textuais; também a lombada, as estampas da capa e a encadernação (de marroquim) apresentam desgastes e diferenças entre o primeiro e o segundo tomos, o que pode

sinalizar que estes pertenceram a edições distintas do livro, publicadas pela Garnier ainda no século xix: a primeira de 1864 e a segunda de 1881. Se por um lado não se pode dirimir essa dúvida, por outro, mediante o co-tejo de ambos os volumes que pertenceram a Graciliano com exemplares inteiramen-te preservados da segunda edição da Bíblia Sagrada publicada pela Garnier em 1881, pode-se afirmar que o escritor alagoano se aventurou pelo mundo bíblico a partir do luxuoso trabalho editorial de B. L. Garnier14.

14. A partir dos dados recolhidos, pode-se conjecturar que, inicialmente, Graciliano foi presenteado com os dois volumes da segunda edição da Bíblia Garnier lançada em 1881. Desse conjunto, observa-se a deterio-ração do segundo tomo, cuja encadernação se perdeu e quase a totalidade de suas páginas se esfarelaram ou desapareceram (faltam dele, ao todo, 474 páginas, que abrangem desde o segundo livro de Macabeus, última parte do Antigo Testamento, até o Apocalipse, ou seja,

3. Gravura sobre aço da tela O Inverno ou O Dilúvio (1660-1664, Paris, Museu do Louvre), de Nicolas Poussin, reproduzida na Bíblia Sagrada editada pela Garnier em 1864

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Na abertura do segundo tomo da edição da Garnier de 1864, Dom Manuel Joaquim da Silveira, arcebispo da Bahia e primaz do Brasil, louva a iniciativa do livreiro francês de “proporcionar a todos os católicos d’este Império a lição das Sagradas Escrituras, livre dos erros e das subtracções das Bíblias falsifi-cadas e truncadas que em tanta quantidade correm pelo paiz”15. Em 16 de abril de 1864, o jornal carioca Constitucional celebrava a iniciativa do livreiro francês, que publicava, “a preço módico”16, uma edição “verdadeira” do livro religioso enquanto tantas “falsas”17

o fim do Novo Testamento). Em função de tamanha perda, o escritor alagoano adquirira a posteriori, muito possivelmente num alfarrabista, um novo exemplar deste segundo tomo, o qual integrava a primeira edi-ção da Bíblia de Garnier datada de 1864. É provável que a compra de tal volume tenha se dado quando da primeira permanência de Graciliano no Rio de Janeiro entre 1914 e 1915, pois, como se verá mais adiante, sua correspondência desse período assinala o “mergulho” na leitura do Evangelho de São Mateus. 15. Dom Manuel Joaquim da Silveira, “Mandamento”, em Bíblia Sagrada, tradução de António Pereira de Figueiredo. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, [1864], s.p.16. No Catálogo da Livraria de B. L. Garnier, n. 23, que acompanha o segundo tomo das Obras Poéticas de Manoel Ignacio da Silva Alvarenga (1864), a Bí-blia Sagrada ocupa lugar de destaque: aparece na segunda página, em letras garrafais que reproduzem o frontispício da edição publicada por esta casa edito-rial. Curiosamente, não há a indicação do preço dos volumes. Essa informação foi localizada apenas em anúncio estampado no jornal Publicador Maranhense, em 12 de maio de 1864. Na Livraria do Largo de Palácio de São Luís, cada tomo era vendido por 15$000 réis.17. Referência às edições da mais antiga tradução da Bíblia para o português, feita por João Ferreira d’Almeida. Tal trabalho desse religioso vinculado à Igreja Reformada da Holanda começou a ser publi-cado em 1753, na cidade de Batávia, pela Companhia das Índias Ocidentais (Luiz Antonio Giraldi, História da Bíblia no Brasil, Barueri, SP, Sociedade Bíblica do Brasil, 2008, p. xxxiii). Segundo Dom Manoel da Sil-veira, a Bíblia de João Ferreira d’Almeida apresentava o Antigo Testamento “truncado”, bem como excluía dele, entre outros, os livros de Tobias, Judite, Sabe-doria, Baruc e Eclesiástico (ou Sirácida). O clérigo também destacava que o Novo Testamento, apesar de completo, continha inúmeros erros que teriam levado o protestantismo a condenar várias práticas da

abundavam no mercado. E acrescenta: “a edicção foi feita com luxo e nitidez; as gravu-ras são tiradas de painéis dos melhores mes-tres; de sorte que, além do valor real do livro, o mérito do trabalho material não contribui menos para que todos desejem possuí-lo. O Sr. Garnier é um dos estrangeiros que honra dignamente o paiz que o hospeda”18. Dias depois, o Correio Paulistano, em 3 de maio de 1864, anunciava que tal edição da Bíblia Sagrada estava à venda na Livraria Garraux, bem como recomendava vivamente a aqui-sição desta obra de bom gosto e utilidade, “cujos dous volumes encerram, dentro de uma nítida encadernação de marroquim, a palavra santa da Divindade”19.

Por mais que tenha sido impresso em Pa-ris, tal trabalho de Garnier se notabilizou como a primeira Bíblia completa editada no Brasil. Essa precedência editorial em terras brasileiras comunga com o lugar histórico da versão do texto bíblico eleita pelo livreiro francês em seu lavor de publicar as Sagradas Escrituras: ele optou por editar a primeira tradução completa da Bíblia católica para o português, feita por António Pereira de Figueiredo, teólogo regalista, vinculado ao poder pombalino. Este padre português começou a empreitada de verter a Vulgata Latina para a língua portuguesa em 1772 e terminou-a em 1790, totalizando 23 volumes

Igreja Católica. Cf. Dom Manuel Joaquim da Silveira. Carta Pastoral Premunindo os seus Diocesanos Contra as Mutilações, e as Adulterações da Bíblia Traduzida em Português pelo Padre João Ferreira A. d’Almeida; Contra os Folhetos, e Livretos Contra a Religião, que com a Mesma Bíblia se Tem Espalhado Nesta Cidade; e Contra Alguns Erros, que se Têm Publicado no País, Bahia, Tip. De Camilo de Lellis Masson & C, 1862. Apud. Leonardo Ferreira de Jesus, “‘Folhas Veneno-sas’: a Reação Católica à Difusão de Livros e Bíblias Protestantes na Bahia na Década de 1860”, História.com, ufrb, Cachoeira, BA, ano 1, n. 1, 2013, pp. 8-9.18. Notícias Diversas, Constitucional, Rio de Janeiro, 16 abr. 1864, p. 4.19. Noticiário, Correio Paulistano, São Paulo, 3 maio 1864, p. 3.

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(dezessete do Antigo Testamento e seis do Novo Testamento), publicados pela Regia Officina Typografica20. Em seguida, a versão de Pereira de Figueiredo ganhou uma edição em sete volumes in-quarto, cuja impressão foi iniciada pela oficina de Simão Thaddeo Ferreira em 1794 e terminada pela Academia Real das Sciencias de Lisboa em 1819. Segun-do Rubens Borba de Moraes, essa segunda edição, que conta com portadas gravadas e um retrato Joannes Brasiliae Princeps (Dom João vi, a quem o primeiro volume é dedica-do), seria “a mais procurada” entre as Bíblias católicas vertidas para o português21.

Conforme levantamento feito na Biblio-teca Nacional de Portugal, antes da edição brasileira da Garnier, a tradução integral de Pereira de Figueiredo ainda foi impressa pelas oficinas inglesas B. Bensley (1821), Ba-gster e Thoms (1828), G. Watts (1850) e Spot-tiswoode (1858). Em Portugal, destaque para a edição conjunta feita pela Tipografia de José Carlos de Aguiar Vianna e pela Tipogra-fia Universal de Thomaz Quintino Antunes (1852-1853)22 e para o trabalho da casa Silva & Sousa, que entre 1852 e 1854 publicou a obra em dois volumes. Em meio a esse vasto conjunto bibliográfico, o trabalho de Gar-nier se notabilizou, pois não teria poupado “diligências e despesas para que esta edição excedesse em beleza e elegância a todas as

20. Luiz Antonio Giraldi, op. cit., p. xxxv.21. Rubens Borba de Moraes, O Bibliófilo Aprendiz, 4. ed., Brasília, Briquet de Lemos; Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2005, p. 70.22. Essa edição vinha com o seguinte esclarecimento: “Enriquecida com várias notas do mesmo traduc-tor (excepto aquellas que foram condemnadas em Roma)”. Vale salientar que as notas de rodapé das duas primeiras edições do trabalho de Figueiredo em verter a Vulgata Latina para o português foram condenadas pela Igreja Católica “por defenderem o direito de os reis interferirem nas questões religiosas” (Luiz Antonio Giraldi, A Bíblia no Brasil Império: Como um Livro Proibido durante o Brasil Colônia Tornou-se uma das Obras mais Lidas nos Tempos do Brasil Império, 2. ed., Barueri, SP, Sociedade Bíblica do Brasil, s.d., s.p.).

4. Folha de rosto da segunda edição da tradução da Bíblia Sagrada para o português feita por António Pereira de Figueiredo (Lisboa, Simão Thaddeo Ferreira, 1794, vol. 1).

que até agora se haviam empreen dido e exe-cutado em língua portuguesa, realçando a nitidez do texto com o primor das gravuras”23.

¶ Graciliano e a leitura do texto “sagrado”No primeiro volume da bela Bíblia da

Garnier que pertenceu a Graciliano consta a seguinte dedicatória: “Ao amigo Gracilia-no Ramos Oliveira oferece M. Venâncio”. Descobre-se assim que o livro foi um pre-sente de Mário Venâncio, agente dos Cor-reios e professor de geografia do Internato Alagoano de Viçosa no começo do século xx. Essa malograda figura, que se suicidara em 1º de fevereiro de 1906, depois de inge-rir forte dose de ácido fênico, atuou como

23. Innocencio Francisco da Silva, Diccionario Biblio-graphico Portuguez, 23 vols, Lisboa, Imprensa Nacio-nal, 1867, t. 8, p. 401.

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mentor intelectual de Graciliano quando da entrada deste, então aluno da referida instituição, no mundo das letras entre 1904 e 190624. Guiado pela mão de tal mestre, o futuro romancista das Vidas Secas publi-cou seu primeiro texto ficcional, o conto “Pequeno Pedinte”25, no jornal O Dilú-culo, periódico estudantil idealizado por Venâncio, que, fecundo em palavras raras, também escolheu o “desgraçado” título da publicação26. Ele pressagiava um bom fu-turo literário para o Graciliano aspirante a escritor e via nele sinais de Aluísio Azevedo e Coelho Neto.

Ao mesmo tempo, Mário Venâncio tam-bém procurava seu lugar ao sol como litera-to. Graciliano lhe teria elogiado um conto que assim principiava: “Jerusalém, a deicida, dormia sossegadamente à luz pálida das es-trelas. Sobre as colinas pairava uma tênue

24. Graciliano Ramos, Infância, 3. ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1953, p. 229. 25. G. Ramos, “Pequeno Pedinte”, O Dilúculo, Viçosa, 24 jun. 1904, p. 2. Graciliano dedica este texto a Mário Venâncio.26. Graciliano Ramos, op. cit., p. 225.

neblina, que era como o hálito da grande cidade adormecida. Nos casais dos cabreiros, cães de vigília ululavam lugubremente”27. É irônico observar que o jovem Graciliano tenha sido presenteado com uma Bíblia por um suicida, explicitamente interessado pela temática religiosa, tal como se pode per-ceber pela passagem supracitada, na qual Venâncio se vale de lugares bíblicos para valorizar a narrativa28. Além disso, esse pri-meiro mestre do futuro autor de Angústia declarava-se grande admirador de Coelho Neto, escritor conhecido por tomar as Sagra-das Escrituras como livro de sua alma, fonte para “sua sede de verdades” e “bálsamo para as dores de suas agonias”29.

27. Idem, p. 227. Trata-se do texto “Simão Pedro”, dedicado a “[Graciliano] Ramos de Oliveira” e pu-blicado por Mário Venâncio em O Dilúculo, n. 2, 26 jul. 1904, p. 1. Como o autor de Infância parece citar, de memória, a narrativa, comete alguns deslizes. O trecho original encontra-se recolhido em Fernando Alves Cristóvão, op. cit., 229.28. Idem, ibidem.29. João Neves da Fontoura, Elogio de Coelho Neto: Discurso de Recepção, Rio de Janeiro, Barretto, 1937, p. 43.

5. “Ao amigo Graciliano Ramos Oliveira oferece M. Venâncio”. Dedicatória que consta do primeiro tomo da Bíblia de Graciliano.

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Na contramão dos louvores católicos de Coelho Neto e movido pelo interesse da-queles que se propõem a conhecer o tex-to bíblico, mas, descrentes, debocham de modo mordaz dos preceitos e ensinamentos transmitidos pelas escrituras “sagradas”, Gra-ciliano realizou a leitura da Bíblia segundo três vertentes, identificadas na marginália do exemplar que lhe pertenceu: 1. revisão e análise gramatical das construções linguísti-cas presentes, sobretudo, nos livros do Antigo Testamento; 2. estabelecimento de relações intertextuais entre trechos do Evangelho de São Mateus e algumas obras que lia por volta de 1915, mais especificamente o romance A Relíquia, de Eça de Queiroz, e o estudo A Loucura de Jesus, do Dr. Binet-Sanglé; 3. base para tiradas irônicas em que procurava escarnecer certos dogmas e ensinamentos, sem deixar de apontar incoerências internas e externas que marcariam diversas passagens da Bíblia.

¶ Estudos gramaticais e dessacralização do texto bíblico

Em seu exemplar da Bíblia, Graciliano assinala inúmeras ocorrências em que o ob-jeto direto vem acompanhado de preposição. A primeira delas consta do segundo livro do Gênesis, versículo 7, que apresenta a seguin-te redação: “Formou pois o Senhor Deos ao homem do barro da terra...”30. Ao lado do texto, o escritor destaca: “Objeto direto reg.[ido] de preposição sem necessidade. Não havia no caso philologia(s)”. Percebe-se que Graciliano toma o uso da preposição, nesse caso, como um mero recurso estilístico pas-sível de ser eliminado. Além disso, mencio-na a suposta falta de respaldo filológico da construção. No entanto, conforme ressalta

30. Gênesis, Português, em Bíblia Sagrada, tradução de António Pereira de Figueiredo, Rio de Janeiro, B. L. Garnier, [1864], t. 1, cap. 2, vers. 7, p. 66.

Rocha Lima, o objeto direto antecedido pela preposição “a”, uso “largamente desenvol-vido em espanhol, seria também frequente no galego e apareceria, ainda, de modo es-porádico, no catalão, no sardo e em alguns dialetos provençais e da Itália meridional”31. E segundo lembra Bechara, o filólogo ale-mão Karl Heinz Delille, que se dedicou ao estudo do objeto direto preposicionado em português, mostrou que a maior frequência de emprego da preposição em tal contexto ocorreu no século xvii, “talvez porque nesse período foi mais próxima a união de nosso idioma ao espanhol”32.

Nesse tipo de construção, Bechara ain-da destaca que a preposição quase sempre aparece para evidenciar o contraste entre sujeito e complemento, evitando possíveis confusões interpretativas em enunciados que fogem da ordem direta (sujeito – verbo – complemento). No trecho em questão, tanto o sujeito “Senhor Deus” quanto o objeto direto “o homem” aparecem pospostos ao verbo, o que torna plenamente justificável o uso da preposição “a” para marcar claramen-te o paciente da ação verbal. Assim também preconizava a Grammatica Expositiva (1907) de Eduardo Carlos Pereira, livro que alcan-çou grande aceitação no começo do século xx, quando Graciliano incrementava seus estudos sobre o idioma33.

31. Rocha Lima, Gramática Normativa da Língua Portuguesa, 49. ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 2011, p. 300. 32. Evanildo Bechara, “Emprego Especial da Preposi-ção ‘A’”, O Dia, Rio de Janeiro, 26 dez. 2010.33. “Nestas construcções a preposição indica clara-mente qual o paciente da acção, e a sua ausência traria incerteza entre o agente e o paciente, ou poria este no logar daquele, dando à frase sentido contrário ao que se lhe quer dar” (Eduardo Carlos Pereira, Grammatica Expositiva, São Paulo, Weiszflog Irmãos, 1907, p. 203). Em algumas passagens de sua correspondência data-das do início do século, o escritor alagoano menciona que estudava alguns tratados gramaticais, mas não especifica as obras consultadas. Em carta ao amigo Jo-aquim Pinto da Mota Lima Filho, de fevereiro de 1914,

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6. Página do livro do Gênesis com o seguinte comentário de Graciliano, no alto, à direita: “Objeto direto reg.[ido] de preposição sem necessidade. Não havia no caso philologia(s)”.

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Todavia, considerando-se as restrições se-mânticas do contexto, não seria imperativo marcar “o homem” como objeto, pois, no âmbito do texto religioso do Gênesis, outro não seria o papel do ser humano, que não o de figurar como ente criado pelo sujeito onipotente “Senhor Deus”. Em casos seme-lhantes, Camões prescindia do objeto direto preposicionado. No canto ii, de Os Lusíadas, é possível encontrar a seguinte construção: “... quando Augusto/ Nas civis Áctias guerras, animoso,/ O Capitão venceu”34. Observe-se que o autor pressupõe o conhecimento do fato histórico para se depreenderem o agen-te e o paciente da ação, ou seja, Otaviano Augusto venceu ao capitão (Marco Antônio) na batalha de Ácio. Como Camões foi uma figura muito marcante para o jovem Graci-liano35, pode-se imaginar que seu comentário pudesse levar em conta o português quinhen-tista da monumental epopeia do povo luso.

Para além das escolhas gramaticais do autor alagoano em questões controversas, avulta sua perspectiva dessacralizada de lei-tura do texto religioso. Ele deixa de lado o peso da “Palavra de Deus” para privilegiar tão somente a palavra, ou seja, o estudo, em chave gramatical, das construções linguísti-cas da Bíblia vertida para o português. Nesse processo, sobressai seu olhar de revisor. Ain-

por exemplo, o então jovem escritor alagoano comenta que juntamente com A Origem das Espécies e com O Capital estava lendo uma “infinidade de gramáticas e outras cacetadas” (Graciliano Ramos, Cartas, 8. ed., Rio de Janeiro, Record, 2011, p. 24).34. Luís de Camões, Obra Completa, organização, Introdução, Comentário e Anotações do Prof. An-tônio Salgado Júnior, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2008, p. 46.35. Em entrevista, já no final da vida, Graciliano desta-ca: “Eu tinha sete anos quando me meteram Camões nas mãos e me fizeram decorar Os Lusíadas. Ficou-me o gosto da lírica do épico e o canto V com o Velho do Restelo, o Adamastor…” (Marques Gastão, “Gracilia-no Ramos”, em Às Portas do Mundo, Lisboa, Comp. Nacional Editora, 1952. p. 323. Texto recolhido em Graciliano Ramos, Conversas, op. cit., pp. 255-260).

da sobre a questão do uso ou não do objeto direto preposicionado, ele não deixa de assi-nalar a falta de uniformidade em passagens semelhantes. Por exemplo, no Evangelho de São Mateus, capítulo cinco, tem-se no versículo 44: “Amai a vossos inimigos”36; e no versículo 46: “Porque se vós não amais senão os que vos amão”37. Ao sublinhar tal discrepância na marcação do complemento de um mesmo verbo (“amar”), Graciliano explicitaria a oscilação de critério presente no texto, algo que deporia não só contra a tradução de António Pereira de Figueiredo, mas contra o discurso religioso de um modo geral. Como se verá, um de seus passatem-pos favoritos relacionados à leitura da Bíblia parece ser o de apontar-lhe incoerências.

Ainda no capítulo cinco do Evangelho de São Mateus, consta no versículo 39: “Eu porém digo-vos que não resistais ao que vos fizer mal; mas se alguém te ferir na tua face direita, oferece-lhe também a outra”38. Na margem do texto, Graciliano reclama: “Que mixórdia de pronomes!”. De fato, falta aí uniformidade de tratamento uma vez que o evangelista inicia o enunciado com a se-gunda pessoa do plural (“digo-vos”) e depois a substitui pela segunda pessoa do singular (“alguém te ferir”), procedimento repudiado pela norma-padrão e pelo tradicionalismo do escritor. Algo semelhante acontece também em Mateus, 6, 1-2, e o autor alagoano torna a comentar: “Não compreendo esta mudança de pronomes”. Mais do que abdicar de ver qualquer razão aparente em tal oscilação, Graciliano rebaixa esse procedimento como algo confuso (“mixórdia”), a mostrar certo ca-ráter dúbio de Cristo que começa a se referir

36. Evangelho de São Mateus, Português, em Bíblia Sagrada, tradução de António Pereira de Figueiredo. Rio de Janeiro, B. L. Garnier, [1864], t. 2, cap. 5, vers. 44, p. 351.37. Idem, ibidem.38. Idem, ibidem.

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a seus discípulos em registro elevado e ceri-monioso, e depois os trata de modo familiar.

Graciliano utilizou a Bíblia para estudar outras questões gramaticais. Movido pelo mesmo fito de apontar discrepâncias e a carência de harmonia estrutural do texto sagrado, o escritor alagoano sinalizou a falta de paralelismo em Mateus, 6, 25. Tome-se o trecho da tradução de Antônio Figueiredo: “Não andeis cuidadosos da vossa vida que comereis, nem para o corpo que vestireis”39. Graciliano registra a ausência de simetria na marcação da regência dos complementos nominais de “cuidadoso” (primeiro “da”, e depois “para”), procedimento que deixaria de intensificar o sentido da mensagem trans-mitida pelo evangelho40.

Algumas marcações de Graciliano tra-tam de problemas relacionados à sintaxe de colocação. Em Mateus 19, 25, por exemplo, Graciliano sinaliza a ambiguidade decorren-te da posposição da palavra “logo” na frase “Quem poderá logo salvar-se?” – “(Posp.)”. Do modo como foi redigida a sentença, o termo em questão pode ser lido como uma conjunção coordenada, mas também como um advérbio temporal. Mediante tal sobre-posição, o que deveria ser uma pergunta enfática endereçada pelos apóstolos a Cris-to, sobre aqueles passíveis de conseguirem o reino de Deus (na qual “logo” se apre-senta enquanto uma conjunção conclusiva marcadora de ênfase que, anaforicamente, retoma a dificuldade enunciada por Jesus de se chegar ao Céu; algo pretendido pelo texto), torna-se também um questionamento a respeito de quem poderia não só alcançar a salvação, mas conseguir isso num futuro próximo (“logo” como advérbio que circuns-creve a urgência da demanda). Graciliano,

39. Evangelho de São Mateus, op. cit., t. 2, cap. 6, vers. 25, p. 352.40. José Luiz Fiorin, Figuras de Retórica, São Paulo, Contexto, 2014, p. 138.

bom revisor, não deixa de sinalizar mais esse ruído no texto.

Quanto a questões do âmbito da morfo-logia e da semântica, Graciliano sublinha algumas palavras que lhe causaram estra-nhamento por se tratar, em geral, de ter-mos de menor ocorrência quando de suas leituras do Antigo e do Novo Testamento. Por exemplo, em Gênesis, 9, 22-23, o escritor marca a palavra “desnudez”, que aparece em três oportunidades para configurar a si-tuação na qual Noé apareceu nu diante dos filhos, depois de se embriagar de vinho. En-quanto Sem e Jafet se valem de subterfúgios para não olhar as “vergonhas” do pai, Cam, o caçula, vê o herói bíblico completamente despido de suas vestes e, em função disso, torna-se alvo de severa maldição paterna41. Nesse contexto, longe de indicar afasta-mento, separação ou oposição (significa-dos mais comuns), o prefixo “des-” assume caráter reforçativo do substantivo “nudez”, assim como “desaliviar” intensifica o verbo “aliviar”42. Todavia, vale acrescentar que a palavra “desnudez”, típica do espanhol, mas utilizada em português desde o século xvii, consta do Diccionario Contemporaneo da Lingua Portuguesa, de Caldas Aulete. Graciliano tinha um exemplar da primeira edição da obra, dividida em dois tomos e datada de 188143. Nela, o verbete referente

41. “Maldito seja Chanaan [filho de Cam]: elle será escravo dos escravos de seus irmãos” (Gênesis, Portu-guês, em Bíblia Sagrada, tradução de António Pereira de Figueiredo, Rio de Janeiro, B. L. Garnier, [1864], t. 1, cap. 9, vers. 25, p. 72).42. Mário Barreto, Novíssimos Estudos da Língua Por-tuguesa, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1924, p. 57.43. Francisco Júlio Caldas Aulete, Diccionario Con-temporaneo da Lingua Portugueza, 2 vols., Lisboa, Imprensa Nacional, 1881 (exemplar pertencente ao Acervo Graciliano Ramos da ufmg). Em carta de 8 de dezembro de 1914, Graciliano diz à irmã Leonor que estava prestes a fazer duas despesas extraordinárias: a compra de um terno e de um dicionário. Este foi adquirido num sebo por 24$, menos da metade de seu

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7. Página de apresentação do exemplar de Graciliano Ramos do Diccionario Contemporaneo da Lingua Portugueza, de Caldas Aulete, vol. 1, 1881. Centro de Estudos Literários e Culturais/ufmg

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a este vocábulo registra o seguinte: “estado de uma pessoa nua; nudez”. Há, portanto, uma equiparação entre “desnudez” e “nu-dez”, como se o afixo “des-” tivesse apenas caráter puramente expletivo e, assim, pu-desse ser eliminado sem qualquer prejuízo à compreensão da ideia transmitida pelo tema. Segundo essa diretriz, portanto, o autor alagoano poderia estar rebaixando a tradução de António Pereira de Figueiredo e reforçando seu posicionamento crítico e dessacralizador em relação ao texto bíblico.

Ainda havia mais. No anedotário construí-do em torno de Graciliano, são conhecidos os impropérios que ele teria dirigido a alguns redatores incautos. Como revisor da revista getulista Cultura Política, o autor de Vidas Secas copidescou uma parte considerável da literatura ideológica do Estado Novo. Ao re-cuperar esse período específico da trajetória do velho Graça, o poeta Lêdo Ivo relembra o caso de um articulista qualquer que, na ânsia de bajular o governo, teria abusado das conjunções adversativas: “Mas, no entan-to, contudo, todavia, o Estado Nacional...”. Diante dessa construção “balofa”, caracteri-zada pelo acúmulo de elementos sintatica-mente equivalentes a reforçar, por contraste, o regime autoritário, Graciliano não teria se contido. “Fez uma alusão bastante desprimo-rosa à genitora daquele cientista político e disse-me baixando a voz: ‘Vou deixar apenas uma’”44. No capítulo dezenove, versículo vinte, do livro do Levítico de sua Bíblia, o escritor alagoano não deixa de assinalar um período que padecia, em menor escala, do mesmo mal: “Se um homem dormir com uma mulher para abusar d’ella, que seja escrava e estiver desposada, mas comtudo

valor costumeiro (50$) (Graciliano Ramos, Cartas, 8. ed., Rio de Janeiro, Record, p. 49).44. Lêdo Ivo, “O Mundo Concentracionário de Gra-ciliano Ramos”, Teoria e Celebração: Ensaios, São Paulo, Duas Cidades, p. 96.

não fôr resgatada nem posta em liberdade, serão ambos açoutados...”45. Na marginália, não faz nenhuma referência grosseira à mãe de Moisés (ao qual se atribui a autoria do Pentateuco), entretanto, a própria marcação das duas conjunções justapostas sinaliza sua contrariedade quanto à redação do trecho. De modo análogo, na luta contra ruídos e adiposidades textuais, incomodava-se com o dito pleonasmo vicioso. Em diferentes passagens da Bíblia Sagrada traduzida por António Pereira de Figueiredo, sinaliza tal deslize, como em Gênesis, 4, 8, quando Caim diz a seu irmão Abel: “Saíamos fóra”46.

A atenção de Graciliano também recaía sobre a macroestrutura do texto. Em Gêne-sis, 1, 24, Deus diz: “Produza a terra animais viventes, segundo o seu genero; animais do-mesticos, reptis e bestas da terra, segundo as suas especies. E assim se fez”47. Trata-se do início do sexto dia da criação, no qual são concebidos os diferentes tipos de animais e o homem, respectivamente. Na lateral desse versículo e do seguinte, Graciliano adverte: “Animais domésticos feitos antes de existir o homem...”. Considerando tão só o encadea-mento do texto, bem como o conhecimento de mundo em torno do conceito de domesti-cação, que pressupõe a adaptação e a seleção de seres vivos ao sabor de certas necessidades humanas, o autor alagoano escancara a in-coerência narrativa sobre a qual se fundaria o percurso discursivo da fala divina. Nesse sentido, centrado apenas na materialidade do texto bíblico, parece abdicar da suposta onipotência do criador para justificar tal apa-rente incongruência48.

45. Levítico, Português, em Bíblia Sagrada, tradução de António Pereira de Figueiredo, Rio de Janeiro, B. L. Garnier, [1864], t. 1, cap. 19, vers. 20, p. 172.46. Gênesis, op. cit., t. 1, cap. 4, vers. 8, p. 68.47. Gênesis, op. cit., t. 1, cap. 1, vers. 24-25, p. 65.48. Convém destacar que essa crítica de Graciliano se restringe apenas ao primeiro relato da criação do mundo recolhido no Gênesis. Como se sabe, há ainda

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¶ O diálogo intertextual presente na Bíblia de Graciliano

Em agosto de 1914, com o propósito de encontrar alguma atividade na imprensa, Graciliano abandona o trabalho como co-merciante em Palmeira dos Índios e viaja para o Rio de Janeiro. Já no ano seguinte, após trabalhar como suplente de revisor e revisor de alguns periódicos, além de colabo-rar como cronista nos semanários Parayba do Sul, da cidade fluminense de mesmo nome, e Jornal de Alagoas, abandona o universo letrado carioca. Na correspondência que tro-cou com parentes e amigos nesse período de afastamento de seu Estado natal, relata per-calços, descobertas, conquistas e desilusões em seu tímido contato com a vida literária da então capital federal. Nesses relatos missivís-ticos, não deixa de mencionar os trabalhos em andamento, sobretudo contos e crônicas, e os livros que vinha lendo. Em carta enviada à mãe em 2 de abril de 1915, ele destaca:

Hoje, sexta-feira santa. Soube-o anteontem, pelo cartaz de um cinema. Grande dia. Dia em que a cristandade chora alegremente a morte de Deus, e a d. Helena nos obriga a jejum, surripiando-nos piedosamente o almoço e o jantar. [...] Uma maçada. Ontem e hoje tenho vivido mergulhado na leitura de A Relíquia de Eça de Queiroz, de A Loucura de Jesus e do Evangelho de S. Mateus – coisas muito sérias [que] narram circunstancialmente o suplício de N. S. Jesus Cristo.

A Bíblia de Graciliano atesta que, de fato, o escritor degustou esse cardápio de leitu-ras na Semana Santa do ano de 1915. Na

um segundo (Gên., 2, 5-25) no qual se enfoca, sobretu-do, o modo por meio do qual Deus concebeu os seres humanos. Segundo tal versão, o homem fora feito de barro, e a mulher, modelada a partir de sua costela. Os animais, por sua vez, teriam sido gerados apenas depois de Adão, a quem coube a tarefa de nomeá-los.

marginália do Evangelho de São Mateus do exemplar que lhe pertenceu, o então jovem artista escreveu “A Relíquia – Eça” ao lado de alguns versículos, para indicar a relação entre tais passagens e o romance de Eça de Queiroz que conta a história do interesseiro narrador-personagem Teodorico Raposo. Pa-ralelamente, Graciliano fez as notações “A Loucura de Jesus” ou “Dr. Sanglé” junto de trechos do mencionado evangelho os quais foram utilizados pelo médico francês Binet--Sanglé para embasar o estudo clínico que este dedicou à figura de Jesus.

A identificação de tais relações intertex-tuais entre as três obras mencionadas por Graciliano reforça a leitura dessacraliza-da que ele empreendeu do texto bíblico. Percebe-se que, naquele momento de sua juventude, o escritor recupera o texto do Evangelho de São Mateus a partir da leitura de um romance do “grande ímpio portu-guês” e da obra sacrílega de um psicopa-tologista interessado em estudar a figura do “filho de Deus” à luz do cientificismo oitocentista. Se no tópico visto anterior-mente avultava o Graciliano estudioso de gramática e revisor impiedoso, que não se furtava a apontar equívocos na tradução de António Pereira de Figueiredo, aqui ganha destaque o literato afeito ao realismo/natu-ralismo, descrente de qualquer explicação religiosa do mundo.

Na Bíblia de Graciliano, a referência a A Relíquia aparece no capítulo 21, versículos de doze a quatorze, do Evangelho de São Mateus. Trata-se mais especificamente do trecho sobre a entrada de Jesus no templo e da consequente expulsão dos vendilhões que ali realizavam todo tipo de comércio. No ro-mance de Eça, a referência a tais mercadores ganha espaço no terceiro capítulo da obra, no qual se narra a experiência fantástica do protagonista em sua viagem a Jerusalém dos tempos da Paixão de Cristo. Já na Terra San-

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ta, depois de dormir em um acampamento, após uma de suas excursões aos caminhos sagrados, Teodorico é acordado pelo arqueó-logo alemão Topsius e percebe que se en-contra no século I da era cristã e se coloca como testemunha ocular da prisão, suplício e morte de Jesus. Trata-se de um delírio apa-rentemente digressivo, mas revelador dos profundos mecanismos da alma da perso-nagem. Nesse contexto, ele se arrepende de seus pecados ao se deparar com Jesus Cristo, figura que, até então, falsamente adorava nas

missas; porém, ao se perceber diante de um momento único na história da humanidade, imagina-se como “São Teodorico Evangelis-ta”, dando vazão, de modo vaidoso, a seus sonhos de grandeza49.

Dessa posição de espectador in loco da Paixão de Cristo, percebe que entre aqueles que pediam a crucificação de Jesus estavam

49. Fernando Marcílio L. Couto, “Apresentação”, em Eça de Queiroz, A Relíquia, São Paulo, Ateliê, 2001, p. 25.

8. “Dor Sanglé. Pag 189”. Anotação de Graciliano na lateral de Mateus, 8, 24-25, que faz referência ao livro La Folie de Jésus (1908) do médico francês Binet-Sanglé.

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justamente os ditos vendilhões. Como tive-ram sua atividade prejudicada pela atuação radical e violenta do Messias, reivindicavam a punição dele como meio de compensar os prejuízos que lhes foram causados. Teodori-co palestra com um velhinho, cujo sustento da família miserável dependia exclusivamen-te da venda de pedras raras no templo. O co-mércio de tais artigos fora a única atividade que lhe restara, pois, após ficar doente, não tinha mais forças para exercer sua função de pedreiro. Assim, aquilo que, aos olhos cris-tãos, parecia uma atitude correta de Jesus, acabava por semear, segundo outro ponto de vista, a pobreza deste velhote e de tantos outros que teriam sido vítimas da ira e do arbítrio do dito filho de Deus.

Tal passagem ilustra bem a relatividade dos valores que caracteriza a poética de Eça de Queiroz. O autor duvidava de toda verdade estabelecida, fazendo com que sua crítica atingisse a religião, a arte, a ciência ou quaisquer outras práticas e discursos so-cialmente instituídos. Esse posicionamento desmistificador fascinou o jovem Graciliano, que, em março de 1915, ou seja, um mês antes da carta em que explicita a leitura de A Relíquia, publica uma crônica em louvor ao romancista português. Nela, depois de repudiar o ato “sacrílego” de apedrejamento e destruição do monumento dedicado a Eça em Lisboa, pontua:

Eça é grande em tudo – na forma própria, única, estupendamente original, de dizer as coi-sas; na maneira de descrever a sociedade, estu-dando de preferência os seus lados grotescos, ridicularizando-a, caricaturando-a […]. Eça era um ateu, um homem que não respeitava nada, que não tomava as coisas a sério. Pintou ministros estúpidos, padres devassos, jornalistas vendidos, condessas adúlteras; escarneceu a literatura de sua pátria, a política, as respeitáveis cinzas dos brutos e gloriosos antepassados dos vencedores

dos mouros; troçou a burguesia, a religião, o hino da carta50.

Nesse movimento de exaltação do autor de A Relíquia, gesto que, segundo o próprio cronista, “chegava às raias do fanatismo”, Graciliano se vale da analogia e do sarcasmo para assemelhar Eça, “o grande ímpio”, a um profeta digno de culto e de adoração num templo todo feito de mármore. Segun-do o jovem literato alagoano, em conformi-dade com tal isotopia zombeteiro-religiosa, o “monstro da ironia” teria “mais ou menos as proporções de um dos antigos reformadores religiosos que a humanidade venera”51. Tal equiparação reforça não só o lugar canônico do romancista luso no rol de referências de Graciliano52, como também iguala a prosa realista de Eça à suposta verdade transmitida pelos evangelhos, com evidente privilégio para a primeira.

Na trama intertextual passível de ser iden-tificada na Bíblia de Graciliano, a referên-cia ao livro La Folie de Jésus (A Loucura de Jesus), do Dr. Binet-Sanglé, mostra-se mais

50. Graciliano Ramos, Linhas Tortas, Rio de Janeiro, Record, 2005, pp. 23-24.51. Idem, ibidem.52. A admiração por Eça permeia toda a trajetória intelectual de Graciliano. Em sua primeira entrevista à imprensa, publicada no Jornal de Alagoas, em 18 de setembro de 1910, Graciliano já assinalava que havia predominado sobre ele “a linguagem sarcástica de Eça de Queiroz” (Graciliano Ramos, Conversas, Organi-zação de Thiago Mio Salla e Ieda Lebensztayn, Rio de Janeiro, Record, 2014, p. 52). Ainda nesse mesmo texto, para exaltar a supremacia da escola realista ante as demais, recupera a frase que serve de pórtico para A Relíquia: Antes a “nudez forte da verdade” que o “manto diáfano da fantasia” (Idem, p. 55). Os louvores públicos a Eça continuaram na fase adulta. Em entrevista estampada na revista Dom Casmurro, em 23 de dezembro de 1937, Graciliano menciona: “o escritor português que me deixou maior influência foi, em parte, francês: Eça de Queiroz. O seu ritmo, a sua construção, o seu riso — tudo teve o seu berço sob o solo de Paris, muito embora ele construísse os seus volumes num hotel de Londres ou mesmo na ambiência sossegada de Leiria” (Idem, p. 282).

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recorrente. Ao todo, o autor alagoano justa-põe a indicação de tal obra a seis diferentes passagens do Evangelho de São Mateus. Em linhas gerais, por meio desse procedimento, procura sinalizar alguns versículos deste li-vro bíblico que foram utilizados pelo médico francês para documentar a teomegalomania, a ira e a impotência sexual de Cristo, entre outros aspectos clínicos supostamente con-dizentes com o quadro de degenerescência física e psíquica do “Messias”.

Os quatro tomos da obra La Folie de Jésus foram publicados entre 1908 e 1915. Os três primeiros saíram pela casa editorial pari-siense Maloine, e o quarto e último volume, pela argelina Chez l’Auteur53. Nessa extensa e polêmica obra, o médico Binet-Sanglé, professor da Escola de Psicologia de Paris, procura analisar a figura de Jesus Cristo à luz das ciências naturais oitocentistas. Para tanto, parte do pressuposto de que o homem seria produto de sua hereditariedade e do meio onde vive, bem como considera que os fenômenos fisiológicos e psicológicos po-deriam ser tão rigorosamente determinados como os fenômenos físicos e químicos54. Seguindo esse receituário, elege os quatro evangelhos canônicos como sua base docu-mental e, a partir deles, propõe-se a recu-perar a ancestralidade de Jesus, os espaços onde ele nasceu e viveu, bem como analisa

53. Binet-Sanglé, La Folie de Jésus. Son Hérédité. Sa Constitution. Sa Physiologie, Paris, Maloine, t. 1, 1908, 294 p.; La Folie de Jésus. Ses Connaissances. Ses Idées. Son Délire. Ses Hallucinations, Paris, Maloine, t. 2, 1910, 516 p; La Folie de Jésus. Ses Facultés Intelectuelles. Ses Sentiments. Son Procès. Paris, Maloine, t. 3, 1912, 537 p.; e La Folie de Jésus. Sa Morale. Son Activité. Diagnostic de sa Folie, Alger, Chez l’Auteur, 1915, 489 p. Para o português, tem-se notícia apenas da tradução do pri-meiro tomo da obra, em trabalho realizado por Manuel Ribeiro e publicado pela editora lisboeta Guimarães & Cia, em 1908, ou seja, no mesmo ano em que o livro foi lançado em Paris.54. Binet-Sanglé, La Folie de Jésus, 4 vols., Paris, Ma-loine, t. 1, 1908, p. 3.

a constituição e a fisiologia de Cristo, discor-rendo minuciosamente sobre os aparelhos digestivo, vasomotor, respiratório e genital de seu paciente.

Por meio desse método, ao escolher a figu-ra de Jesus como um caso clínico a ser inves-tigado, Binet-Sanglé procurava especificar a tese central que defendera em seu trabalho anterior: Les Lois Psycho-physiologiques du Développement des Religions (Paris, Maloi-ne, 1907). Nessa obra, afirma que indivíduos física e mentalmente bem-constituídos se-riam terrenos impróprios ao florescimento de ideias religiosas, ainda que estivessem mergulhados num meio místico. Por outro lado, psicopatas hereditários, passíveis de serem enquadrados na mesma categoria de

9. Folha de rosto da tradução de La Folie de Jésus, de Binet-Sanglé, realizada por Manuel Ribeiro e publicada pela editora lisboeta Guimarães & Cia em 1908.

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Jesus, seriam mais suscetíveis à religião, ain-da que vivessem em ambiente intelectual55.

Tendo em vista tais balizas, Binet-Sanglé pontua que o meio onde Cristo cresceu na Galileia seria marcado pelo isolamento e pelo obscurantismo, o que favorecia o mis-ticismo religioso. Especificamente em Naza-ré, terra de vinhos bons e fortes, grassaria o alcoolismo desenfreado, o que corroboraria a degenerescência mental das tribos judaicas que ali viviam56. Com relação mais especi-ficamente à hereditariedade do “Messias”, pontua que, dos trezes membros da família de Jesus, sete eram devotos e, destes, três poderiam ser colocados num patamar mais elevado de loucura mística57.

Tal carga genética nefasta justificaria o quadro clínico de demência teomaníaca de Cristo. Partindo do pressuposto de que have-ria uma correlação entre debilidade física e debilidade mental, Binet-Sanglé destaca que seu paciente tinha baixa estatura e, conse-quentemente, baixa capacidade intelectual58. Não por acaso, Jesus apresentaria uma inteli-gência desprovida de regras, cheia de lacunas e lapsos, que procurava explicar tudo pelo “maravilhoso”59. A partir do relato da saída de água e sangue do peito de Jesus, que fora perfurado por uma lança depois de sua cruci-ficação e morte, conclui que Cristo sofria de tuberculose, doença diretamente associada ao quadro de loucura dos alienados, sobretudo daqueles que manifestavam ideia fixa da mor-te, desconfiança, caráter sombrio, mania de perseguição, depressão, irritabilidade, entre

55. Binet-Sanglé, Les Lois Psycho-physiologiques du Développement des Religions, Paris, Maloine, 1907, pp. 394-395.56. Binet-Sanglé, La Folie de Jésus, 4 vols., Paris, Ma-loine, t. 1, 1908, pp. 63-70.57. Idem, p. 176.58. Binet-Sanglé, La Folie de Jésus, 4 vols., Alger, Chez l’Auteur, t. 4, 1915, p. 451.59. Binet-Sanglé, La Folie de Jésus, 4 vols., Paris, Ma-loine, t. 1, 1908, p. 182.

outros sintomas psíquicos60. Paralelamente, aponta que a atitude de Jesus ante as mulhe-res não seria a de um macho, em decorrência de sua impotência sexual aliada à falta de virilidade e ao desejo de automutilação61.

O estudo de Binet-Sanglé não se apre-sentava como algo novo, pois se enquadrava em certa tradição francesa de aplicação das ideias científicas do século xix à recuperação da suposta psicologia mórbida de Cristo, num contexto de secularização do estudo da religião62. Destaque para Miron, pseu-dônimo de André-Saturnin Morin (1807- -1888), com seu Jésus Réduit à sa Juste Valeur (Genebra, Imprimerei Rationaliste, 1864), e, sobretudo, para Jules Soury (1842-1915), autor de Jésus e les Évangiles (Paris, G. Char-pentier, 1878). Nesta última obra, traduzi-da para o português por Clóvis Bevilaqua, João Alfredo de Freitas e Izidoro Martins Júnior e publicada em 1896 pela casa edi-torial recifense J. J. Alves de Albuquerque, o filho de Deus é apresentado como um judeu fanático, colérico, com acessos de violência, megalomania, frenesi e loucura. Em virtude desse quadro, Soury diagnostica seu “paciente”63 como portador de “demên-cia paralítica” ou “paralisia geral” em de-corrência da inflamação das meninges e do encéfalo (meningoencefalite)64.

No Brasil, as teses e conclusões polêmicas de Binet-Sanglé foram examinadas e dura-

60. Idem, p. 257.61. Idem, pp. 267 e 284-285.62. Robert D. Priest, “’After the God and the Man, the Patient’: Jules Soury’s Psychopathology of Jesus and the Boundaries of the Science of Religions in the Early Third Republic”, French History, Oxford, Oxford University Press, vol. 27, n. 4, abr. 2013, pp. 535-556.63. O autor sinaliza, logo no início do prefácio, que a figura de Cristo seria tratada a partir de tal ponto de vista clínico: “Après le dieu et l’homme, le malade.” (“Depois do deus e do homem, o paciente.”) (Jules Soury, Jésus et les Évangiles, Paris, G. Charpentier, 1878, p. 5). 64. Idem, pp. 15-16.

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mente criticadas pelo diplomata e historia-dor A. G. de Araújo Jorge em um conjunto de textos publicados no Jornal do Commercio e posteriormente recolhidos no livro Jesus (Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1909). De início, o intelectual brasileiro volta-se contra o olhar enviesado do cientista que procurava reduzir todas as “manifestações da inteligência, do sentimento e da vontade humanas” a um desequilíbrio “funccional do cerebro, mania que ameaça transformar a Terra num vasto manicomio” 65. Em oposi-ção a esse movimento voraz e generalizante, recomenda que Binet-Sanglé deveria limitar seu campo de atuação aos degenerados e deixar em paz as grandes figuras históricas da humanidade66. Mais do que se valer de argumentos de cunho religioso para criticar o médico francês, Araújo Jorge, norteando-se pela premissa da coexistência entre loucura e genialidade, procura mostrar a parcialida-de das conclusões do autor de La Folie de Jésus. A “psicologia mórbida” ou “medicina retrospectiva” orientava-se tão somente pelo lado escuro das personalidades, o qual havia sido preterido pelos historiadores, focados em narrar os atos e feitos públicos das dife-rentes individualidades.

Com relação a esse último ponto, cum-pre ressaltar a perspectiva desistoricizada do estudo clínico proposto por Binet-Sanglé. Os livros bíblicos e casos comparativos uti-lizados por ele apresentam valor histórico--documental questionável, além de levarem a uma leitura do passado tão somente em chave teleológica, ou seja, exclusivamente segundo os parâmetros da ciência do século xix. Além do mais, o médico francês tratava os evangelhos como biografias ingênuas e sinceras de um valor histórico incontestá-

65. A. G. de Araújo, Jesus, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1909, p. 13.66. Idem, p. 17.

vel67. A respeito de tal questão, Araújo Jorge também argumentava sobre a impossibili-dade de se dirimir o que haveria de verda-deiro e de imaginoso nos quatro evangelhos eleitos pela Igreja. Diante dessa constatação, reafirmava que tais textos estariam longe de se apresentarem como fontes indiscutíveis, isentas de dúvidas e incorreções, o que aca-bava por desacreditar o peso da base factual sobre a qual se assentava o diagnóstico de Binet-Sanglé. Continuando nesse diapasão, o diplomata brasileiro conclui que o livro do médico francês, além de desinteressante, seria falso68.

Não se sabe se Graciliano compartilhou dessas críticas feitas naquele momento. Pa-ralelamente, não se tem notícia dos exem-plares que ele utilizou para estudar La Folie de Jésus. Em sua biblioteca, que foi doada ao Instituto de Estudos Brasileiros, não há sinal do livro. Ficaram tão somente a indicação, em carta, de que lera a obra e a confirma-ção dessa leitura por meio das marcações feitas no Evangelho de São Mateus da Bíblia que lhe pertenceu. De qualquer maneira, a descoberta do contato do escritor com o trabalho de Binet-Sanglé deixa evidente seu interesse, na condição de bom autodidata, pelo cientificismo oitocentista, que recebeu grande acolhida no Brasil entre o final do sé-culo xix e o início do xx69. Além do referido médico francês e de sua psicologia mórbida, o autor alagoano viria ainda a ter grande fa-miliaridade com autores do dito positivismo criminológico, com destaque para as figuras de Cesare Lombroso e Enrico Ferri70. Em

67. Binet-Sanglé, op. cit, pp. 49-57. 68. A. G. de Araújo, op. cit, p. 32.69. Benito Bisso Schmidt, “O Deus do Progresso: a Difusão do Cientificismo no Movimento Operário Gaúcho da I República”, Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 21, n. 41, 2001.70. Em crônica na qual recupera a redação dos contos que teriam sido esboços iniciais dos romances S. Ber-nardo e Angústia, Graciliano relembra: “Em 1924, em

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depoimento ao filho Ricardo Ramos, Gra-ciliano pontuava que, sem o estudo de tais pesquisadores, ele jamais teria composto a figura de Luís da Silva71.

Essa afirmação revela a importância de tais estudos científicos para o trabalho fic-cional do escritor que, desde sua primeira entrevista à imprensa, em 1910, declarava--se adepto do realismo, escola marcada, se-gundo ele, pela ruptura da “trama falsa do idealismo” e por apresentar a “verdade nua e crua”72. Para além do reducionismo mecani-cista e da parcialidade absolutizada que lhes seriam inerentes, as teorias cientificistas pro-curaram romper com explicações abstratas e metafísicas da vida, concedendo privilégio à observação empírica do mundo. De certa maneira, tal diretriz se coadunava com a convicção poética valorizada por Graciliano de que o artista deveria colocar-se como testemunha ante os fatos a serem ficcionali-zados. Quando se examina toda a produção cronística e ensaística do autor alagoano, percebe-se que ele considerava missão dos homens de letras realizar o estudo objetivo da “realidade” do país e corroborar o conhe-cimento e a transformação desta última73.

Todavia, como o próprio autor alagoano destacava em sua primeira entrevista, fazen-do referência ao pórtico de A Relíquia de

Palmeira dos Índios, interior de Alagoas, encontrei difi-culdade séria, pus-me a ver inimigos em toda a parte e desejei suicidar-me. Realmente julgo que me suicidei. Talvez isto não seja tão idiota como parece. Abando-nando o contas-correntes, o diário, outros objetos da minha profissão, havia-me embrenhado na sociologia criminal. Que me induziu a isso? Teria querido matar alguns fantasmas que me perseguiam?” (Graciliano Ramos, Garranchos, organização de Thiago Mio Salla, Rio de Janeiro, Record, 2012, p. 272).71. Ricardo Ramos, op. cit., 2011, pp. 137-138.72. Graciliano Ramos, Conversas, organização de Thiago Mio Salla e Ieda Lebensztayn, Rio de Janeiro, Record, 2014, p. 55.73. Thiago Mio Salla, O Fio da Navalha: Graciliano Ramos e a Revista Cultura Política, São Paulo, eca--usp, 2010, p. 128 (Tese de Doutorado).

Eça: “antes a ‘nudez forte da verdade’ que o ‘manto diáfano da fantasia’”74. Se a reali-dade deveria sobrepujar a ficção, o grande artista Graciliano, em sua descida aos po-rões da sociedade brasileira, não poderia prescindir do artifício, muito pelo contrário. Mais do que representar a verdade, cabia ao escritor construir a ideia de verdade. E o que notabilizou o autor de Vidas Secas foi, justamente, a combinação entre rigor formal e tratamento de temas de caráter social que, ainda hoje, marcam o caráter conflitante da realidade brasileira. Dessa mistura entre contenção (formal) e revolta (temática), o escritor encontrou sua força, que o elevou e o distanciou de qualquer esquematismo redutor.

¶ a Bíblia em chave irônicaAo mesmo tempo, a proposta do realismo

crítico de Graciliano não poderia prescindir da prerrogativa de desmistificar e de, até mes-mo, escarnecer verdades supostamente in-contestáveis. O exame em perspectiva da obra do escritor revela o papel fundante exercido pela ironia entre seus postulados poéticos. Em linhas gerais, o procedimento retórico da antífrase viabiliza a promoção de uma relação negativa e não unívoca entre sujeito e mundo, reforçando a atitude questionadora do artista ante os discursos estabelecidos sobre a realidade. Tal estratégia, portanto, visa à captação da conivência do destinatário em novas leituras de velhos episódios, opção que gera dúvidas, causa polêmicas, desmascara aparências e, por sua vez, exige uma postura ativa dos receptores, capaz de ler pelo avesso aquilo que se afirma. Não por acaso, esse ardil acaba por criar sentidos que vão do gracejo até o sarcasmo, passando pelo escárnio, pela zombaria, pelo desprezo75. Em chave poli-

74. Graciliano Ramos, op.cit., p. 55.75. José Luiz Fiorin, op. cit., p. 70.

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fônica, tem-se ainda a apresentação de duas vozes em conflito, uma expressando o inverso do que diz a outra.

Em se tratando de contestar verdades construídas pelo texto religioso, o autor ala-goano lança mão de um humor ferino e irreverente para debochar, nas margens de seu exemplar da Bíblia, de toda sorte de passagens canônicas. Detém-se, sobretudo, no Novo Testamento, com atenção espe-cial para o Evangelho de São Mateus. De modo zombeteiro, não se furta a questionar algumas balizas morais presentes nas pre-gações de Jesus; a apontar deslizes de tal líder religioso; a revelar conteúdos implícitos na tessitura argumentativa dos enunciados bíblicos; e a propor leituras irreverentes de episódios tradicionais.

De início, convém assinalar que Gracilia-no, jocosamente, procura apontar os limites da severidade genérica presente nas mensa-gens proferidas pelo dito filho de Deus. Em Mateus, 5, 22, Cristo anuncia punições aos que se colocarem contra seus irmãos: “Pois eu digo-vos que todo o que se ira contra seu irmão será réo no juízo; e o que disser a seu irmão: Raca, será réo no conselho; e o que lhe disser: És um tolo, será réo do fogo do inferno”76. Junto a tais versículos, o escritor alagoano comenta que, tendo em vista a inviabilidade de se evitarem oposições e de-sentendimentos entre os homens, só restaria um destino a eles: “estão todos no inferno”. Em atitude semelhante, Graciliano debocha do conselho de Jesus expresso em Mateus, 7, 1-2. Nessa passagem, o Messias adverte: “Não queirais julgar, para que não sejais julgados, pois com o juízo com que julgardes sereis julgados, e com a medida com que medirdes

76. Evangelho de São Mateus, Português, em Bíblia Sagrada, tradução de António Pereira de Figueiredo, Rio de Janeiro, B. L. Garnier, [1864], t. 2, cap. 5, vers. 22, p. 350.

vos medirão também a vós”77. Na margem do texto, junto dessa passagem, pode-se ler a seguinte notação: “E a crítica literária, santo Deus!”. A acidez do comentário parece ter alvo duplo: a estreiteza do código moral pro-posto pelo livro religioso e os julgamentos temerários e levianos que caracterizariam, de maneira geral, o papel desempenhado pela crítica literária.

De modo análogo, em Mateus, 5, 27-30, ante a recomendação de Jesus para que os fiéis arrancassem os próprios olhos e as pró-prias mãos com o fito de evitarem o pecado do adultério e da cobiça à mulher do próxi-mo, Graciliano é taxativo: “Ficaria t[o]do maneta e cego”. Na medida em que, por meio da zombaria, escancara a impossibili-dade de se respeitar tal mandamento, acaba por imputar anormalidade não à grande massa de pecadores em vias de serem muti-lados, mas sim a quem justamente propunha limites tão estritos e punições tão exacerba-das. Não por acaso, Binet-Sanglé explorou extensamente essa passagem bíblica quando se propôs a tratar do aparelho genital de Cristo e, mais especificamente, da supos-ta impotência sexual do Messias, que viria acompanhada de apetites sexuais ardentes e do desejo de automutilação. Segundo o médico francês, ao lado do eunuquismo, o oedipismo ou enucleação dos olhos (forma de dar cabo ao órgão que transmite imagens voluptuosas) e a amputação manual (meio de se evitar o onanismo) seriam procedimen-tos recorrentes entre os loucos-místicos.78

O jovem Graciliano, ainda em confor-midade com a leitura de Binet-Sanglé, não deixava de apontar a aparente megaloma-nia de Jesus. Em Mateus, 12, 30, Cristo se mostrava taxativo: “O que não é comigo é

77. Evangelho de São Mateus, op. cit., t. 2, cap. 7, vers. 1-2, p. 352.78. Binet-Sanglé, op. cit., pp. 280-286.

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10. De cima para baixo, à direita: “Estão todos no inferno” e “Ficaria t[o]do maneta e cego.” Comentários irônicos de Graciliano a pregações de Jesus recolhidas no quinto capítulo do Evangelho de São Mateus.

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contra mim, e o que não ajunta comigo desperdiça.”79 A essa afirmação, o autor ala-goano alfineta: “É como o Kaiser”. Apesar do anacronismo de tal paralelo, que preten-dia aproximar a figura do propalado filho de Deus a de um imperador alemão (ou do an-tigo Sacro Império Germânico)80, o escritor procurava desnudar o caráter impositivo de Jesus. Nesse processo de desmistificação, re-velava que a humildade divinal comumente atribuída ao messias cedia espaço ao desejo dele de autoafirmar-se e que, para tanto, Cristo, longe de oferecer a outra face, não poupava o confronto contra quem dele dis-cordasse. E havia mais. Graciliano também comenta outras passagens em que avultaria a suposta mania de grandeza do “filho de Deus”. Por exemplo, quando em Mateus, 12, 41-43, o dito salvador se autoproclama “mais” do que o profeta Jonas e do que o rei Salomão, o romancista das Vidas Secas, irônico, escreve ao lado do trecho: “Modés-tia”. Em tal contexto, a inversão decorrente do uso da antífrase termina por intensificar o deboche ante a postura vaidosa e pretensiosa do “redentor”.

O olhar irônico de Graciliano também não deixa de propor novas leituras de pas-sagens bíblicas tradicionalmente interpre-tadas sob o prisma da religião. Em Mateus, 6, 25-34, Jesus prega que a busca do reino de Deus deveria vir antes de tudo. Qualquer outra preocupação imediata com o futuro

79. Evangelho de São Mateus, op. cit., t. 2, cap. 12, vers. 30, p. 358.80. Muito provavelmente, mediante tal comparação, Graciliano faz referência a Guilherme II, último Kai-ser da Alemanha, que, no começo da Primeira Guer-ra Mundial, teve de enfrentar praticamente sozinho França, Rússia e Inglaterra. Esse personagem histórico também é citado pelo escritor alagoano na crônica “Coisas do Rio”, publicada no período de sua primeira permanência no Rio de Janeiro, entre 1914 e 1915 (Cf. Graciliano Ramos, Garranchos, pp. 32-35), quando se supõe que o referido comentário nas margens de sua Bíblia tenha sido feito.

ficaria, necessariamente, em segundo plano, pois “o dia de á manhãa a si mesmo trará seu cuidado”81. O autor alagoano, diante de tamanha leniência em relação às necessi-dades concretas de sobrevivência, entende tal exortação de Cristo como um “Elogio à preguiça”. Ainda em chave zombeteira, o jovem escritor também não deixa de divisar o lado aparentemente propagandístico dos atos de Cristo. Ao trecho no qual Jesus pede a todos para se guardarem dos falsos profetas (na verdade, lobos travestidos de ovelhas – Mateus 7, 15-17), Graciliano apõe o seguinte comentário: “Pequeno reclamo a seu próprio valor”. De modo semelhante, trata como “Magnífico reclamo”, aquilo que vem ex-presso em Mateus, 9, 29-31. Nessa passagem, informa-se que o filho de Deus havia feito dois cegos tornarem a enxergar. Apesar de ele pedir, severo, para que guardassem segredo do milagre, os dois homens saem espalhando a fama do Messias por toda a região onde se encontravam naquele momento.

A leitura dessacralizada e desmistifica-dora proposta por Graciliano também pri-vilegia a revelação de conteúdos implícitos presentes no texto bíblico. Em Mateus, 1, 25, o evangelista afirma que José não teria “conhecido” Maria antes do nascimento de Jesus. A partir da abertura interpretati-va proporcionada pelo advérbio “antes”, o autor alagoano escancara, na marginália, a informação pressuposta pelo enunciado: “Assim, a virgindade não continuou depois do nascimento de Jesus”. Vale-se, portanto, do próprio texto bíblico para advogar contra o dogma da virgindade perpétua de Maria. Em conformidade com tal questionamento, ante a enumeração dos irmãos de Jesus em Mateus, 13, 54-56, escarnece: “Nunca vi uma virgem parir tanto”.

81. Evangelho de São Mateus, op. cit., t. 2, cap. 6, vers. 25-34, p. 352.

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Passagens bíblicasComentários de Graciliano na marginália de sua Bíblia

Gên., 1, 24-25. Trecho que trata da criação de toda sorte de animais, entre eles os animais domésticos, como penúltima etapa da criação operada por Deus. Em seguida, viria o homem.

“Animais domésticos feitos antes de existir o homem...”

Gên., 29, 21. Fala em que Jacob diz a Labão: “Dá-me minha mulher, pois que já o tempo está completo, para eu entrar nela.”

“Franqueza(?)...”.

Mat., 1, 25. Trecho em que se comenta o fato de José não ter “conhecido” Maria antes do nascimento de Jesus.

“Assim, a virgindade não continuou depois do nascimento de Jesus.”

Mat., 5, 22. Passagem sobre as punições para aquele que se voltasse contra seu irmão e o xingasse de “raca” (idiota).

“Estão todos no inferno.”

Mat., 5, 27-30. Trecho sobre como evitar o adultério e a cobiça à mulher do próximo. Antes de pecar seria melhor arrancar os próprios olhos e as próprias mãos.

“Ficaria t[o]do maneta e cego.”

Mat., 6, 25-34. Pregação na qual Jesus defende que a busca do reino de Deus deveria vir antes de tudo, pois “o dia de amanhã a si mesmo trará seu cuidado”.

“Elogio da preguiça.”

Mat., 7, 1-2. Sermão em que Jesus aconselha: “Não queirais julgar, para que não sejais julgados, pois com o juízo com que julgardes sereis julgados, e com a medida com que medirdes vos medirão também a vós.”

“E a crítica literária, santo Deus!”

Mat., 7, 15-17. Passagem em que Jesus pede para que todos se guardem de falsos profetas.

“Pequeno reclamo a seu próprio valor”.

Mat., 9, 29-31. Jesus faz com que dois cegos tornem a enxergar. Apesar de pedir, severo, para que guardassem segredo do milagre, eles saem espalhando a fama de Cristo pela região.

“Magnífico reclamo.”

Mat., 12, 6-8. Jesus fala da supremacia da misericórdia ante o sacrifício.

“Incoerência?”

Mat., 12, 30. Fala de Cristo: “O que não é comigo é contra mim, e o que não ajunta comigo desperdiça.”

“É como o Kaiser.”

Mat., 12, 41-43. Jesus se coloca acima de Jonas e de Salomão, contrariando o ditado de que elogio em boca própria seria vitupério.

“Modéstia.”

Mat., 13, 54-56. Enumeração dos irmãos de Jesus. “Nunca vi uma virgem parir tanto.”

Mat., 15, 19. Sermão em que Jesus lista os males que saem do coração: maus pensamentos, homicídios, adultérios, fornicações, furtos, falsos testemunhos, blasfêmias.

“Protesto... Adultério não.”

Mat., 14, 20-21. Trecho referente ao milagre da multiplicação dos pães. “Vá pregar esta ao diabo.”

Mat., 20, 1-15. Parábola dos operários da vinha em que se afirma: “os últimos serão os primeiros.”

“Bonita equidade”.

Jo., 9, 9. Dúvida em relação a um milagre divino assinalada por Graciliano: “Não é; mas é outro que se parece com ele” (em referência a um mendigo que teria recuperado a visão).

“Fraude?...”

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11. Graciliano ironiza o dogma da virgindade perpétua de Maria: “Assim, a virgindade não continuou depois do nascimento de Jesus.”

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¶ Vestígios de leitura e lição hermenêutica

Ao longo deste texto, procurou-se recu-perar, categorizar e investigar o mosaico de vestígios da leitura que Graciliano Ramos empreendeu de sua edição da Bíblia Sagra-da, um belíssimo trabalho de B. L. Garnier datado da segunda metade do século xix. Tal processo analítico privilegiou a materia-lidade do suporte em questão, a recuperação de dados históricos e o exame das estratégias

interpretativas mobilizadas pelo escritor ala-goano na apreensão do texto religioso – sem nunca perder de vista o lugar ocupado pela persona literária do autor de Vidas Secas nas letras brasileiras. A articulação desses elementos permitiu surpreender diferen-tes facetas do artista: o revisor cruel, que, sem qualquer pudor religioso, escancarava equívocos e imperfeições da tradução do texto bíblico e, nesse processo, aperfeiçoava seu domínio do idioma; o intelectual afeito ao rea lismo crítico, interessado em estudos científicos, avesso a qualquer tipo de idea-lismo e construtor do sentido como negati-vidade; e, sobretudo, o galhofeiro insolente interessado não apenas em desmistificar, mas também em escarnecer verdades soli-damente estabelecidas ao longo do tempo.

Da correlação de todos esses aspectos, a partir das marcas de leitura deixadas pelo autor alagoano em sua Bíblia, pode-se divi-sar uma lição hermenêutica orientada em duas vertentes intrinsecamente ligadas: de um lado, o cuidado com a palavra escrita, a necessidade de depuração da linguagem como meio de se amenizarem desconfianças, incompreensões e incongruências; de outro, o imperativo da interpretação, a contrapelo, dos discursos sobre o mundo, com ênfase na demolição irreverente de dogmas e lugares--comuns. Tanto a desautomatização da pena quanto a desnaturalização do olhar conver-gem para a apreensão crítica da realidade por meio de uma prosa literária substantiva, mar-cante em toda a obra de Graciliano Ramos.

12. A Crucificação (1822, Paris, Museu do Louvre), de Pierre-Paul Prud’hon, em gravura incluída na Bíblia Sagrada editada pela Garnier (1864).