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A arte medieval: o bizantino, o gótico e o românico

1. Características gerais

A arte medieval pode ser abordada em pelo menos três grandes fases: arte bizantina,

arte românica e arte gótica pré-Giotto (século XIII). Todas apresentam um eixo em comum que

as diferenciam da arte clássica (grega e romana) e da arte pós-Giotto. Em primeiro lugar, elas

correspondem a uma reação à tridimensionalidade e ao “realismo” formal, bem como à

volumetria da arte clássica. Em segundo lugar, elas são profundamente marcadas pelas

convenções religiosas em formação no período. Apresentam-se, assim, intimamente

vinculadas aos preceitos dos Padres da Igreja e compartilham a idéia de que o divino se

manifesta na LUZ, não na Matéria. Não poderia se manifestar como matéria, muito menos

como homem, pois Ele transcende a todas as formas específicas, o que, portanto não levaria à

redução de sua essência.

Em terceiro lugar a arte se orienta pelo esmero – idéia presente nas três fases – em

não fazer o espectador se apaixonar pela forma em si, pelo Belo em si, pela Beleza Fim. Deve,

outrossim, propiciar um meio, um caminho (Beleza Meio) de se chegar à Beleza de Deus.

Neste esquema cultural, a cor e a luz são elementos fundamentais, compondo jogos

cromáticos e efeitos de luz que proporcionem o êxtase místico do encontro com Deus (efeito

fusional). Imagine-se o fiel, ajoelhado em prece à procura do perdão, tocado por um feixe de

luz colorida filtrada pelos vitrais e rosáceas de uma catedral gótica. Temos aí um exemplo do

chamado efeito fusional, isto é, um amálgama luminescente entre o criador, representado pela

luz (ente imaterial) e a criatura (ente material).

Veremos mais adiante, como o pintor italiano Giotto de Bondone rompe pela primeira

vez com o primeiro elemento medieval (recusa da tridimensionalide) e incorpora novas funções

teológicas à criação artística.

2. Pintura Bizantina

O Império Bizantino formou-se no século V a partir do desmembramento da porção

oriental do Império Romano, em meio às ondas de invasões bárbaras. Tendo como capital a

cidade de Constantinopla (antiga colônia grega chamada Bizâncio, atual Istambul), o Império

Bizantino agregou características culturais das fortes civilizações adjacentes. Seu idioma oficial

foi o grego e seu modelo político foi moldado na teocracia egípcia. Da convalescente cidade de

Roma, herdou o sistema jurídico e a religião cristã, que paulatinamente assumiria

características muito peculiares até a ruptura com a Santa Sé formalizada no Cisma do Oriente

do século X, primeira divisão oficial da família cristã, da qual se originou a chamada Igreja

Ortodoxa Grega.

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A arte bizantina passou por diversas fases, mas foi no seu primeiro período de auge,

nos tempos do Imperador Justiniano (527-565), que o desenvolvimento econômico e artístico

deixou marcas profundas no antigo lado ocidental. O Império Bizantino operou efêmera uma

reunificação entre Ocidente e Oriente, na tentativa de reconstrução do gigantesco Império

Romano, mas com a capital em pólo invertido, no lado oriental. Neste período os bizantinos

fundaram a cidade de Ravena, no norte da Itália, que se transformaria em base de divulgação

da pintura de ícones bizantinos, de grande influência na arte românica e na arte gótica,

predominantes no lado ocidental.

A pintura bizantina tinha como função retratar tanto a majestade da família real quanto

a sacralidade das passagens bíblicas. Em seus mosaicos e ícones observa-se ainda uma

rígida composição frontal e hierática, de inspiração egípcia, associada aos efeitos luminosos da

arquitetura, como vemos na monumental Igreja de Santa Sofia. Não raro os imperadores, como

Justiniano e a sua esposa Teodora, aparecem retratados com auréolas, assim como os

principais personagens bíblicos, como Jesus e Maria, são representados com insígnias reais.

Os primeiros criadores de ícones religiosos eram monges e suas funções eram

reguladas pela Igreja Ortodoxa. Tratavam de retratar com cores e linhas o que os Evangelhos

expressavam com palavras. Para os habitantes do Império os ícones eram a própria expressão

de uma fé que experimenta diariamente a intervenção de Deus na sua vida cotidiana.

A importância do Mundo Oriental (bizantino) pode ser averiguada no fato de que os

primeiros Padres da Igreja são todos orientais (século III). Anatólia, Capadócia, Tarso,

Helesponto são regiões de domínio bizantino. Neste período ocorre a depreciação da língua

latina, que se vulgariza. A língua culta passa a ser o grego (o copta, ou grego caipira). A

codificação para representar deus vem do Oriente. O próprio cristianismo nasce no Oriente.

Assim, os intelectuais do século VI ditam as regras para representar Cristo. Tudo se passa

como se Roma e Grécia sobrevivessem no cristianismo.

A nova iconografia, portanto, é influenciada por intelectuais como Santo Antão (Egito),

que vive isolado em uma caverna no Sinai (1ª experiência mística do cristianismo); São

Atanásio (biógrafo de Santo Antão) e São Gerônimo, que completa tradução da Bíblia para o

latim. Há ainda Santo Agostinho (século V, norte da África). Além dos filósofos cristãos há os

neoplatônicos, como Plotino. Portanto, surge um saber cristão, com doutrinadores que

influenciam a burocracia da Igreja Católica.

3. A pintura românica

A arte românica se desenvolveu nos séculos XI e XII, na Europa Ocidental, a partir da

obra de artesãos da corte de Carlos Magno (século IX )e recebe este nome porque representa,

ainda na Idade Média, um retorno à tradição cultural e artística do mundo greco-romano.

A pintura românica se caracteriza pelo uso de cores primárias homogêneas, sem meios

tons ou jogos de luz e sombra, pois não havia a menor intenção de imitar a natureza, mas sim

de evocar, isto é, convocar a presença da divindade pela imagem. Evocar em lugar de

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representar se constituía também em outro elemento comum entre os mosaicos bizantinos, a

pintura românica e as primeiras fases da pintura gótica pré-giotto. Assim os corpos não

guardam qualquer proporção anatômica e as faces apresentam-se padronizadas e desprovidas

de qualquer emoção ou traço individualizado. As figuras não tinham nenhuma plasticidade, e

as formas do corpo apenas se insinuavam nas rígidas dobras dos mantos e túnicas. Os traços

faciais eram acentuados por contornos de traços grossos e escuros. No entanto é possível

observar alguns requintes de técnica pictórica, como os elaborados contornos, como motivos

vegetais, ou até mesmo alguns traços de escorço.

O românico é por excelência a arte da mentalidade feudal, sob o predomínio dos

valores da Igreja Católica. Em uma sociedade analfabeta, a pintura românica tem função

pedagógica e ideológica, pois retrata a extrema reverência aos ensinamentos bíblicos e à

submissão social dos camponeses na estrutura imóvel e trifuncional sociedade feudal

(guerreiros, oradores e trabalhadores).

A igreja é, portanto, o local da evocação e da pedagogia pela imagem. Assim, a pintura

associa-se necessariamente à arquitetura, que contribui decisivamente para o ambiente de

êxtase místico. A arquitetura românica denota a monumentalidade de suas igrejas em uma

sociedade de escassa concentração demográfica. Muitas vezes, as igrejas românicas,

verdadeiras fortalezas de pedra em um mundo empobrecido e rural, serviram de abrigo e

parada obrigatória na intensa peregrinação medieval aos lugares santos (Jerusalém, Roma e

Santiago de Compostela, na Espanha)

4. Pintura Gótica

O estilo gótico é identificado com o período do renascimento comercial e a construção

das grandes catedrais da Europa Ocidental, do século XII até ao XV. A palavra gótico, que faz

referência aos godos ou bárbaros do norte, foi escolhida pejorativamente pelos italianos do

renascimento. A verticalidade das formas, a pureza das linhas e o recato da ornamentação na

arquitetura foram transportados também para a pintura e a escultura.

A pintura gótica surge aproximadamente cinqüenta anos depois das primeiras catedrais

e esculturas góticas. A transição entre o românico e o gótico é muito imprecisa, mas ocorre

primeiro na Inglaterra e França em torno de ano de 1200, na Alemanha em 1220 e na Itália em

torno de 1300. Podemos identificar três fases no interior do movimento gótico. A primeira, nos

séculos XII e XIII, ainda revela o padrão bizantino de composição das figuras em um fundo

monocromático. O realismo levemente insinuado na primeira fase se desenvolve na segunda

fase (início do século XIV), marcada pela obra de Giotto e pelo naturalismo intrínseco à

sensibilidade do franciscanismo. Na a terceira fase(final do século XIV) surge o gótico

internacional, com padrões de composição mais complexos que serviriam de base para o

renascimento do século XV.

A pintura de todo o período gótico é executada sobre quatro tipos de bases materiais:

afrescos, telas, vitrais e iluminuras. No sul da Europa o suporte material predominante foram os

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afrescos criados nas paredes laterais das Igrejas. No norte o grande destaque foram os vitrais

até o século XV. No início do século XV surge a primeira fase de pinturas holandesas

(flamengas) que ainda apresentam um estilo gótico, mas pode ser considerada como parte da

formação do Renascimento nórdico.

A mudança essencial entre a primeira fase do gótico em relação ao românico está na

representação das figuras humanas, que se tornam mais vivas e com certa expressão facial.

Além disso, os personagens retratados passam a ocupar um espaço menor em relação ao

fundo da cena, se comparado ao românico.

Na execução românica de uma “madona” não há qualquer princípio de comunicação

entre mãe e filho. Sem diálogo, sem afeto, a imagem se eleva além das relações humanas. Já,

na execução gótica ocorre a busca do naturalismo e do humanismo. Há uma tendência à

humanização e individualização dos rostos (ainda sem o recurso de um modelo vivo ou mesmo

de uma pessoa real). Passa a existir variação cromática e nos tecidos a tradição gráfica é

substituída pelo drapejado. A cena assim construída tende a uma relação de afeto maternal,

associado a uma interação entre a Virgem e o observador. O ícone bizantino ainda está

presente, mas apenas como modelo, como paradigma iconográfico. Ver “Maestá” (1308) de

Duccio (1255-1319).

Na segunda fase do gótico, já no final do século XIII e início do século XIV, esta

tendência naturalista se acentua, como podemos notar nas obras de Giotto, que teve como

mestre o pintor Cimabue (1240-1302). Evidencia-se a vontade de representar o corpo no

espaço, através de um efeito de claro-escuro que cria a leve ilusão de arredondamento dos

corpos, isto é, de volumetria. Segundo afirmou no século XVI o primeiro historiador da arte,

Giorgio Vasari, “Cimabue é o começo e Miquelângelo é ponto de chegada na história de arte”.

Inicia-se assim uma reação à tradicional estética medieval. Giotto di Bondone (1270-

1337) é o primeiro a retomar a tridimensionalidade, quando afresca a igreja de São Francisco

de Assis. Para Vasari, a arte italiana até Michelangelo é o renascimento do naturalismo greco-

romano. Clássico significa exemplar, padrão, a única arte racional. Mas Giotto já retoma o

naturalismo antes do renascimento, diferente do que pensa Vasari. No entanto, Giotto retoma a

natureza de forma diferente dos gregos, uma vez que estes se concentravam na construção do

corpo, enquanto Giotto se centra na construção do espaço.

Giotto rompe com estética medieval e faz do corpo humano o suporte da ação. A obra

de Giotto, assim como todo o imaginário social da Baixa Idade Média Ocidental sofre um

profundo impacto do franciscanismo, do Cisma do Ocidente (Avignon, 1333) e da disputa entre

França e Itália pelo controle do papado. São Francisco traz a idéia de que a Igreja está velha e

busca sua renovação pelo voto de pobreza, pela castidade e principalmente pelo reencontro

com a Natureza, encarada como obra e dádiva de Deus aos homens.

São Francisco (1181-1226) é filho de comerciante. Vivencia um “abalo” místico em que

São Damião lhe aparece e lhe diz para reformar a Igreja de Assis, o que inicialmente toma em

sentido literal. Logo se dá conta que a verdadeira reforma se opera no coração de cada um.

Doa tudo o que tem e forma um grupo de seguidores, lançando-se à tarefa de reaproximação

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com o povo. Defende a idéia de que a alegria deve substituir o martírio. A alegria de viver e de

sentir as pequenas coisas, idéia panteísta, é uma nova forma de contato com Deus. “Nós

somos a Natureza”, afirma Francisco. Funda a Ordem dos Frades Menores (para diferenciar

dos Agostinianos e outras “maiores”). O Papa Honório III oficializa a Ordem e ao final de sua

vida Francisco recebe os estigmas de Cristo, o que o converte numa espécie de Cristo redivivo.

Voltar à simplicidade paleo-cristã é sua mensagem essencial. Ironicamente, após a

morte de Francisco, a Ordem se transforma na mais rica da Europa. A ordem encomenda a

Giotto a decoração da Basílica de São Francisco de Assis, o que veicula internacionalmente a

nova composição pictórica da arte ocidental. Não haveria como retratar a vida de Francisco

sem levar em conta os detalhes visuais de cada objeto da natureza.

Na terceira fase do gótico, entre o final do século XIV e início do XV o realismo da

pintura se torna mais complexo, passando a ser denominado gótico internacional. Podemos

observar nesta fase a representação de ambientes e paisagens mais próximas da realidade

visual, através de um paciente trabalho de reprodução de detalhes sobre detalhes e também

de certa idéia de tridimensionalidade. No norte da Europa o uso da técnica da pintura a óleo,

mais tarde copiada na Itália, favorece o trabalho de detalhamento dos objetos (flores, folhas,

animais etc..), que revela, de certa forma, a habilidade dos artesãos das iluminuras. Ver

“Anunciação com Santos” (1333) de Simone Martini (1284-1344).

O período gótico chega a conviver, neste último período, com o ressurgimento da

devoção a Maria (“Devotio Moderna”), na qual as artes visuais têm um papel essencial.

Tomadas a partir do modelo bizantino, hierático e frontal, as imagens de Maria tornam-se mais

humanas e com certo intimismo. As novas práticas devocionais são representadas em temas

como O Sofrimento de Cristo, o Cristo Pensativo e a Pietá, todos enfatizando a humanidade, o

sofrimento humano, a fraqueza e a vulnerabilidade de Cristo.

A “Devotio Moderna” advogava no início do século XV um humanismo cristão. Tendo

como contexto o crescimento das cidades medievais, das universidades, do comércio e da

nova classe da burguesia, as novas práticas devocionais apresentavam-se como uma forma

mais pessoal de relação entre o fiel e Deus, o que teria grande influência no fenômeno do

luteranismo e do calvinismo, no século seguinte. As novas necessidades espirituais do

contexto social do final da Idade Média, marcado pelo crescimento econômico e por novas

relações de classe, imprimiram na arte uma forte dose de individualização e de realismo.

A expansão da obra de Giotto e também do gótico internacional revelam uma nova

concepção da arte cristã. Seu caráter pedagógico continua sendo o sentido principal da pintura,

“a bíblia dos analfabetos”. A forma de cumprir sua tarefa espiritual não é mais pela evocação,

mas sim pela representação da realidade. Mais do que evocar, agora o objetivo é narrar uma

passagem bíblica e comover pelo exemplo.

Assim podemos perceber claramente que a primeira geração do renascimento italiano,

na primeira metade do século XV, pode trilhar um caminho já aberto pelo gótico internacional e

pelo giottismo em direção à cópia da natureza divina e à concretização de um novo conceito de

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beleza, através de uma refinada herança iconográfica, técnica e teológica, além de, como

veremos, um fecundo ambiente político e econômico

A riqueza dos grandes empreendimentos comerciais e das Grandes Navegações não

levou o homem ao puro materialismo e ao distanciamento de Deus, mas, ao contrário, criaram

novas sensibilidades religiosas. Se na sociedade feudal a fé se manifesta pelo predomínio do

coletivismo e de uma idéia de Deus distante, na nova sociedade, logo identificada pelo nome

de renascentista, a fé se individualiza e Deus majestoso conversa com cada fiel em seu

momento de oração. Permanecem o medo da condenação eterna e a ânsia pela salvação da

alma.

Talvez a obra mais representativa desta transição é o tríptico “Jardim das Delícias”

(1500) do misterioso pintor flamengo Hieronimus Bosh. À esquerda, a natureza bela e

verdejante acolhe as criaturas divinas de Adão e Eva, delineados ainda ao gosto gótico. Ao

centro, homens e mulheres em nudez completa, acompanhados por animais e plantas

fantasmagóricas e gigantescas, figuram em um enredo de luxúria que termina em um drama de

sofrimento oriundo de terríveis torturas no fogo eterno do inferno, à direita. Todos os fantasmas

medievais se corporificam em figuras reais. O real é finalmente representado, mas apenas para

revelar os vícios da alma em um corpo efêmero de prazeres fugazes.

A Polêmica da imagem e da idolatria

Apesar dos proibitivos de ordem teológica e política, a Igreja consegue reintroduzir o

culto das imagens de forma compatível com sua doutrina. Segundo a concepção cristã

medieval, a imagem não representa; a imagem é na verdade uma alusão à realidade

intramundana. A importância não é a verossimilhança, mas apenas a capacidade de evocar A

imagem passa a ser constituída de materiais que aludem à vida sobrenatural: a luz, o ouro, o

vidro; pedras preciosas; há a idéia de que a pedra preciosa inclui a luz que Deus criou.

Para o abade Segier, da Corte de Saint Denis a casa de Deus é mais bem

representada com vitrais e com a luz oriunda das pedras preciosas. É um “teórico” da arte

gótica. A idéia de verossimilhança deriva da tradição do duplo do morto, no Egito. O duplo

perpetua o ser. Para Aristóteles, a boa arte é aquela que imita a realidade. “Arte é mimesis,

imitação da Natureza” (Arte é “techné”) , tendo o corpo como referência. A tradição de

verossimilhança choca-se com a concepção judaica de arte, no século II DC. Neste sentido o

Velho Testamento é um obstáculo à arte da verossimilhança. “ Não farás para ti imagem

esculpida, nem figura alguma do que há em cima no céu, nem em baixo na terra, nem nas

águas debaixo da terra. Não te encurvarás diante delas, nem as servirás; porque eu, o Senhor

teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a iniqüidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta

geração daqueles que me odeiam” (Gn, 22, 4-5).

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A saída doutrinal, com suficiente autoridade política, foi formulada pelo Papa Gregório

VII, no século VI: “Soube que levado por um zelo inconsiderado, tendes destruído a imagem de

santos sob o pretexto de que não devemos adora-las. E vós vos louvamos sinceramente por

não permitir que sejam adoradas...Pois uma coisa é adorar uma imagem, e bem outra é

aprender, a partir de uma história narrada por imagens, aquilo que se deve adorar. O que um

livro é para aqueles que sabem ler, uma imagem o é para as pessoas ignorantes que a

contemplam. Porque através da imagem mesmo os iletrados podem ver qual exemplo devem

seguir; por meio de uma imagem, mesmo aqueles que não conhecem o alfabeto podem ler”

(Papa Gregório ao Bispo de Marselha, século VI, citado por Baxandall, página 49)

Além disto, por toda a idade Média difunde-se uma prática devocional que faz um forte

apelo à imagem religiosa. No conhecido “Jardim da Oração“ (1454) podemos verificar a

necessidade das representações interiores no ato de rezar. “É útil e necessário fixar os lugares

e as pessoas em tua mente...pensando em uma cidade que conheces bem (para Jerusalém) e

formar na mente certas pessoas, aquelas que conheces bem para representar os personagens

da Paixão” (Baxandall, página 54) O pintor, portanto, não podia competir com as

particularidades das representações privadas. Como Perugino, pintavam tipos de pessoas

comuns, não caracterizadas. Forneciam uma base, na qual o observador podia impor seu

detalhe pessoal.

João Pedro Ricaldes dos Santos, 2011