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CURSO DO SISTEMA DE APRENDIZAGEM VIVER EM PORTUGUÊS 6655 – A LITERATURA DO NOSSO TEMPO

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CURSO DO SISTEMA DE APRENDIZAGEM

VIVER EM PORTUGUÊS6655 – A LITERATURA DO NOSSO TEMPO

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A literatura do nosso tempo

Índice

Introdução................................................................................................................................2

Resultados da aprendizagem............................................................................................3

1.Conceito de literatura.......................................................................................................4

2.Conceito de texto literário..............................................................................................6

3.A literatura portuguesa do século XX.......................................................................14

4.A relação da literatura portuguesa do século XX com outras formas de expressão artística..............................................................................................................18

5.Os autores e a sua produção literária - que géneros literários e que temáticas................................................................................................................................25

5.1.Agustina Bessa Luís.................................................................................................25

5.2.António Lobo Antunes.............................................................................................28

5.3.David Mourão Ferreira............................................................................................32

5.4.Dinis Machado...........................................................................................................35

5.5.José Cardoso Pires....................................................................................................38

5.6.José Saramago..........................................................................................................42

5.7.Lídia Jorge...................................................................................................................46

5.8.Manuel Alegre............................................................................................................49

5.9.Sophia de Mello Breyner Andersen....................................................................52

5.10.Vergílio Ferreira......................................................................................................55

Propostas de atividade......................................................................................................59

Sugestões de trabalho:..............................................................................................59

Bibliografia.............................................................................................................................62

Formadora: Joana Ribeiro 1

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A literatura do nosso tempo

Introdução

O módulo intitulado ”A literatura do nosso tempo” está pensado segundo perspetivas de informação e de formação.

Pensamos que, no contexto de um segundo nível de formação académica, os formandos não deverão ignorar o que está temporalmente mais próximo de si, em qualquer área do saber, e também ao nível do que em literatura se escreve e de quem o faz.

Os media divulgam, algumas vezes, o que de mais recentemente se publica, mas é importante que paralelamente haja um acompanhamento mais especializado, no sentido de levar cada formando ao melhor aproveitamento possível daquilo que a literatura lhe pode oferecer.

O presente módulo deverá, pois, ser aplicado nesta perspetiva, de molde a que os formandos se tornem cada vez mais atentos à escrita literária, desenvolvam competências de autonomia de leitura, de apreço pela arte e capacidade de retenção de informação, por esta via.

Formadora: Joana Ribeiro 2

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A literatura do nosso tempo

Resultados da aprendizagem

Identificar características genéricas do texto literário. Caracterizar genericamente os diferentes géneros literários. Distinguir os vários géneros literários. Estabelecer relações entre a literatura portuguesa do século XX e

outras formas de expressão artística. Identificar fontes de influência de diferentes correntes ou autores

nacionais e estrangeiros. Reconhecer um conjunto de autores representativos do século XX e

relaciona-os com a sua forma de escrita e principais obras. Desenvolver capacidades de leitura, interpretação, análise crítica e

de apreço pela arte

Formadora: Joana Ribeiro 3

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A literatura do nosso tempo

1.Conceito de literatura

A palavra literatura deriva do termo latim litterae, que faz referência ao conjunto de conhecimentos e competências para escrever e ler bem. O conceito está relacionado com a arte da gramática, da retórica e da poética.

De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, a literatura é a arte de compor obras em que a linguagem é usada esteticamente e em que é usada uma língua como meio de expressão.

Também é usado este termo para definir o conjunto das produções literárias de um país, de uma época ou de um género/sector de conhecimento (como a literatura persa, por exemplo) e o conjunto de obras que tratam sobre uma arte ou uma ciência (literatura desportiva, literatura jurídica, etc.).

A literatura traduz, assim, um conjunto de textos escritos (muitas vezes também fixados na tradição oral), esteticamente elaborados a partir da linguagem comum, que dão conta da especificidade cultural de uma comunidade.

A definição de obra literária poderá variar, mas uma análise histórica salienta os denominados clássicos da literatura, obras que, pela sua importância social e cultural, marcaram determinadas épocas. A obra literária a reconstituição de um acontecimento através da comunicação escrita, sendo que fundamentalmente atendendo a função semiótica, representa a execução do ato primário, comunicar.

Formadora: Joana Ribeiro 4

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A literatura do nosso tempo

Importa valorizar uma visão linguística, cultural e artística da literatura e, particularmente, do ensino da literatura, no sentido de poder garantir conhecimentos, experiências e hábitos fundamentais, necessários aos adolescentes que hoje frequentam a escola, para que possam ser membros de direito de um património comum.

Anualmente, os grandes feitos da literatura vêem-se recompensados com a atribuição do Prémio Nobel, em que os felizes laureados recebem os respetivos prémios pelas mãos da Academia Sueca.

Formadora: Joana Ribeiro 5

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A literatura do nosso tempo

2.Conceito de texto literário

ConceitoA literatura pode ser entendida como uma imitação pela palavra assente na ficcionalidade, que apresenta dois valores nucleares: o valor de significado (semântico) e o valor formal (de expressão linguística). Há manifestamente uma intenção estética, artística, altamente polissémica.

Aquilo que define o texto literário é, “mais do que a vontade de comunicação, a sua capacidade de significar”. Este texto vive “do que a mensagem contém e não do que ela simplesmente diz”. O texto literário emprega as palavras da língua com liberdade, recorrendo ao seu sentido conotativo ou metafórico.

O texto literário é o instrumento essencial no ensino/aprendizagem da língua portuguesa, inserido num programa educativo que valorize a interpretação, a capacidade imaginativa e o poder de análise.

Indubitavelmente, o texto literário projeta ao máximo a multifuncionalidade da língua, conciliando o prazer da leitura ao desenvolvimento da compreensão/expressão escrita. Essa leitura deverá ser atenta, reflexiva, capaz de esmiuçar sentidos, de ensinar a descobrir as potencialidades do português.

Um texto transporta sempre informação nova, novos questionamentos, novos estímulos à reflexão. Essa novidade interage com os conhecimentos, conceitos, ideias pré-existentes e, dessa interação, resulta uma representação única, individual, composta pelos saberes particulares do sujeito, originando a interpretação.

Formadora: Joana Ribeiro 6

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A literatura do nosso tempo

Esta interpretação é subjetiva e motiva uma discussão produtiva e uma troca de ideias que partem de uma base comum, o texto, mas cuja significação difere de indivíduo para indivíduo já que, cada um, de acordo com os seus esquemas conceptuais, constrói as suas próprias representações.

Ao ler um texto, o leitor apropria-se da sua informação básica e elabora, sobre este, uma representação individual que se distinguirá de qualquer outra porque é moldada pelo seu conhecimento do mundo. Ao elaborar a sua própria representação individual do texto, o leitor está a construir um modelo interpretativo, ou seja, um modelo situacional.

A interpretação de um texto exige a sua compreensão prévia, isto é, o sujeito tem de estar habilitado a compreender a língua escrita, possuindo conhecimentos específicos acerca do domínio cognitivo no qual se insere a temática do texto, uma vez que o conhecimento do mundo que a leitura proporciona, aumenta a sua competência para a compreensão de novos textos.

Assim, espera-se de quem ensina que seja capaz de conduzir os alunos nesse processo de descoberta, que vai da palavra à frase e da frase ao texto, abrindo trajetos, navegando pelas linhas que desenham o texto escrito. E, da parte de quem quer aprender a gostar de ler, que se interesse, que se deixe surpreender pelas escolhas efetuadas.

Saber ler é, hoje e sempre, mais do que uma condição de sucesso pessoal, escolar, profissional e social. É o fator de sucesso coletivo de uma nação. Por isso, o direito à leitura tornou-se uma questão de justiça social, o que implica que uma das grandes prioridades de qualquer sistema educativo seja o desenvolvimento da competência de leitura para todos os alunos.

Formadora: Joana Ribeiro 7

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A literatura do nosso tempo

Saber ler e gostar de ler são os passos para o desenvolvimento. E quanto mais se gostar de ler, mais se lê e se sabe fazê-lo. Porém, só quem sabe ler, gosta de ler. Para isso a literatura é a mais do que a melhor opção. A literatura é a solução.Géneros literários

Texto narrativo (Romance)No romance há uma regra uma ação central relativamente extensa, eventualmente complicada por ações secundárias dela derivadas. As personagens, normalmente em quantidade e complexidade mais elevadas do que nos restantes géneros narrativos, são atravessadas por conflitos íntimos, traumas e obsessões.

Género por natureza propenso à representação do real, o romance tem no espaço uma categoria com funções particularmente relevantes: o espaço do romance, pela sua amplidão e pormenor de caracterização, revela potencialidades consideráveis de representação económico-social, em conexão estreita com as personagens que o povoam e com o tempo histórico em que vivem.

A este tempo histórico não é estranho, naturalmente, o tempo como fundamental categoria narrativa, com incidências na história e no discurso narrativo do romance (o tempo da historia pode ser objetivamente calculado, mas é reelaborado pelo modo como é representado na narrativa), e com aspetos muito diversificados: enquadramento histórico propriamente dito, implicações psicológicas (tempo filtrado por vivências das personagens), alusões sociais.

Texto Dramático (Teatro)

Formadora: Joana Ribeiro 8

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A literatura do nosso tempo

Entender-se-á por drama toda a representação direta de uma ação consumada num tempo relativamente concentrado.

O facto de essa representação ser direta implica não só a sua concretização perante um público, mas também a ausência de narrador; por outro lado, o facto de o drama ser sobretudo ação faz com que os acontecimentos sejam apresentados quase sempre de forma muito viva, processando-se os avanços bruscos no tempo com o auxílio de artifícios específicos (por exemplo a mudança de ato ou cenário).Isto significa que a representação dramática afirma -se como resultado da interação de recursos de três naturezas: literários, humanos e técnicos.

Assim, os recursos literários são constituídos, como se disse, pelo discurso das personagens e, de um modo geral, pela articulação da ação e das figuras que lhe dão vida enquanto componentes de um universo de ficção particular.

Por sua vez, os recursos humanos serão sobretudo os autores que dão vida e interpretação à fala das personagens, sem os quais o texto dramático não pode ser ativado.

Finalmente, aos recursos técnicos correspondem todos os instrumentos que participam direta ou indiretamente na constituição da ilusão dramática: iluminação, guarda-roupa, efeitos sonoros, cenários, etc.

Texto Lírico (poesia)A poesia lírica não se enraíza no anseio ou na necessidade de descrever a realidade empírica, física e social, nem no desejo de representar sujeitos independentes do Eu, ou de contar uma ação. A poesia lírica enraíza-se sim, na revelação e no aprofundamento do Eu lírico, tendendo sempre esta manifestação a interrogar e a revelar a identidade do homem e do ser.

Formadora: Joana Ribeiro 9

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A literatura do nosso tempo

O mundo exterior, as coisas, os seres, a sociedade e os eventos históricos não constituem um domínio alheio ao poeta lírico. No entanto, o acontecimento exterior, quando está presente num texto lírico, tem sempre como função predominante evocar ou contextualizar uma atitude e um estado íntimo, suscitados por tal episódio ou tal circunstância na subjetividade do poeta.

O texto lírico não comporta descrições semelhantes às de um texto narrativo; através dos elementos descritivos projetam -se simbolicamente as emoções, os estados íntimos do Eu. Assim, no texto lírico, quer os elementos narrativos, quer os elementos descritivos, revelam a interioridade do Eu.

O texto lírico é alheio ao fluir do tempo - Nos textos líricos, a temporalidade, quando é representada, é como um elemento do mundo interior do Eu, concorrendo para a representação do que é central no universo lírico: uma ideia, uma emoção, uma sensação, etc.

O texto lírico é marcado pela concentração emotiva e expressiva - A grande maioria dos textos líricos tem uma extensão relativamente reduzida.

O texto lírico realiza, de modo singular, a simbiose da língua falada e da língua escrita - Se as características do texto lírico referidas pressupõem a performance oral do poema - mesmo que processada apenas interiormente através de uma leitura silenciosa - os aspetos relativos à forma impressa do texto pressupõem a compreensão e a fruição do poema como texto escrito, como objeto espacial de natureza visual.

Como fazer um comentário a um texto literário

Formadora: Joana Ribeiro 10

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A literatura do nosso tempo

Ao abordares um texto literário, com vista à sua análise, deverás ter em conta um pressuposto fundamental:

Analisar um texto não é resumi-lo; Analisar um texto não é parafraseá-lo.

1. Em primeiro lugar, deverás lembrar-te que uma primeira leitura pode ser insuficiente. Um texto literário é um sistema complexo de relações entre palavras e ideias. O que, à primeira vista, parece evidente pode não sê-lo. Compreender um texto envolve um trabalho lento de aproximação e, por vezes, a primeira leitura revela-nos apenas uma impressão geral nem sempre correspondente à essência do texto. É preciso, pois, ler o texto tantas vezes quantas as necessárias para que a mensagem comece a tornar-se explícita. E se o texto é um tecido composto por malhas que se entrelaçam (as palavras nas suas múltiplas relações) é necessário desfazer a teia (analisar palavras, frases, conjuntos de frases) para compreender a lógica interna que presidiu à sua construção. No desfazer dessa teia têm cabimento todas as operações que possam contribuir para uma melhor compreensão do texto:

Procurar saber o significado de todas as palavras, mesmo as mais incomuns;

Procurar interpretar as várias conotações de que as palavras e as expressões se revestem; - agrupar palavras e expressões em campos semânticos (sobretudo se verificares que no texto se insiste neste ou naquele campo de significação);

Fazer o levantamento de classes de palavras que, por vezes, imprimem uma determinada dimensão ao texto (repara, por exemplo, no valor expressivo de muitos adjetivos);

Formadora: Joana Ribeiro 11

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A literatura do nosso tempo

Reparar na pontuação utilizada (muitas vezes, um simples ponto de exclamação ou umas reticências vêm dar a uma expressão um sentido novo);

Ter em conta (sobretudo no texto poético) o valor fónico de algumas palavras, uma vez que a insistência em determinados sons e as combinações sonoras (a rima, por exemplo) podem ter um papel importante;

Analisar a organização estrutural do texto.

Enfim, fazer o levantamento dos vários recursos estilísticos que foram usados no texto a nível fónico, morfossintático e semântico.

2. Depois desse trabalho de análise, ser-te-á fácil tirar algumas conclusões. Terás, com certeza, compreendido qual o tema do texto e poderás passar, então, a uma 2ª fase do teu trabalho - a elaboração escrita da análise interpretativa. Trata-se, agora, de escrever o teu texto sobre o texto.

A redação do teu comentário poderá obedecer ao seguinte plano:

A Introdução Geralmente breve, poderá apresentar informações sobre os seguintes aspetos:

Tipo de texto, género literário a que pertence; Período literário em que está inserido; Integração na obra (se for um excerto); Tema.

O Desenvolvimento A parte mais importante, não apenas pela sua extensão, mas porque deverá corresponder a uma explicitação das várias etapas de análise e interpretação do texto. Contemplará todos os aspetos referidos

Formadora: Joana Ribeiro 12

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A literatura do nosso tempo

anteriormente e que serão ordenados agora consoante o que te parecer mais eficaz para a desmontagem do texto.

Deverás referir todos os elementos que te pareçam pertinentes a nível estrutural e temático, pois só assim te será possível aproximares-te da mensagem expressa, descodificar as ideias, as emoções, os sentimentos, tendo sempre presente que, em relação a um texto literário «não basta perceber o que diz mas também como o diz».

Se no pedido de comentário, num teste, forem explicitados os tópicos a desenvolver, deverás fazê-lo articuladamente, fundamentando sempre as tuas afirmações.

Com todos estes elementos, poderás agora reconstituir o texto, confirmar o que disseste quando enunciaste o tema. É como se tivesses andado à roda das palavras até concluíres o círculo.

A Conclusão Nunca muito longa, deverá ser uma espécie de balanço (resumido, claro) do anteriormente exposto.

Poderá também apresentar dois outros aspetos: Relação (breve) do texto com os outros textos do mesmo autor ou da

mesma época; Opinião pessoal sobre o texto (apenas quando tal te for pedido).

A análise textual é pois um fator formativo e valorativo do indivíduo e implica acima de tudo escrever com correção.

Formadora: Joana Ribeiro 13

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3.A literatura portuguesa do século XX

A literatura portuguesa desenvolve, nas suas origens, um lirismo de intenso fulgor, com a poesia trovadoresca, e muito particularmente com as cantigas de amigo, que se prolonga na lírica camoniana e clássica de uma maneira geral, renovando-se a partir do Romantismo, com personalidades destacadas:

Garrett e o nacionalismo romântico de expressão amorosa; Cesário Verde e o quotidiano urbano simultaneamente idealizado e

banal; Antero de Quental e a dilaceração do pensamento implicado na

existência concreta; Camilo Pessanha e o sonho da perfeição verbal na corrosão do tempo

humano

E um grande número de poetas contemporâneos.

Luís de Camões (séc. XVI) e Fernando Pessoa (séc. XX) são, no entanto, considerados os maiores escritores da literatura portuguesa; de facto, o Modernismo encontra em Pessoa (fundador da revista Orpheu) uma expressão complexa e personalizada, já que a galáxia dos seus heterónimos (nomes de personalidades diferenciadas com as quais compôs a sua obra) constitui um fenómeno marcante na sua composição literária e na experiência humana correspondente, com resultados literários surpreendentes, que configuram uma autêntica ficção da arte de escrever. Mas a ficção (especialmente o romance) conhece também particular brilho na literatura portuguesa.

Formadora: Joana Ribeiro 14

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Desde Bernardim Ribeiro (séc. XVI), mas sobretudo a partir do Romantismo e do Realismo, aumenta a produção literária deste género, com crescente interesse do público e da crítica, e acentuando os aspetos diversos que a prosa narrativa tem incessantemente criado a partir da relação indivíduo-sociedade que caracteriza centralmente o apogeu do romance no século XIX:

Construção da intriga, Acentuação da personagem, Dominância social, Problemática da existência, Conflitos subjetivos, Fluxo temporal, Exercício de escrita, Hibridismo de géneros, Reescritas paródicas e Desconstrução do relato discursivo.

Escritores como Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Raul Brandão, Aquilino Ribeiro e, mais recentemente, Vergílio Ferreira, Agustina Bessa-Luís, José Cardoso Pires, José Saramago e António Lobo Antunes são algumas das figuras mais emergentes neste capítulo, onde os contemporâneos se destacam pelo seu número e qualidade.

De entre os contemporâneos, salientam-se figuras de obra numerosa e repartida por diferentes géneros, especialmente a poesia, o romance e o conto, mas, em certos casos, também o teatro, crítica, ensaio e escrita autobiográfica e diarística.

Estão neste caso escritores já desaparecidos, mas que até há pouco tempo marcaram a cena intelectual portuguesa, com as suas personalidades

Formadora: Joana Ribeiro 15

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multímodas e com a força diversificada do seu talento, de uma maneira geral empenhado em praticar uma aliança, porventura conflituosa, entre o trabalho poético e a existência concreta, e em afirmar a capacidade lúcida (isto é: inteligente e radiosa) da literatura para entender o real.

Principais nomes: Miguel Torga, Vitorino Nemésio, Jorge de Sena, Carlos de Oliveira e David Mourão-Ferreira. Também nesse sentido se afirmam os corifeus da poesia contemporânea (cultores embora de outras formas de expressão literária), de entre os quais se destacam António Ramos Rosa, Sophia de Mello Breyner Andresen, Eugénio de Andrade e Herberto Helder.

Na prosa, dedicados a um tipo de ficção que reelabora a novelística tradicional para a aproximar de outros géneros (crónica, poema em prosa, e outros tipos de escrita estranhos à convenção literária), e praticando novas modalidades de articulação no discurso narrativo, emergem figuras femininas centrais: Maria Judite de Carvalho, Maria Velho da Costa e Maria Gabriela Llansol.

A divulgação da literatura nas escolas tem sido alvo de amplo debate, sendo praticamente impossível chegar-se a uma conclusão sobre que autores incluir nas cadeiras ligadas à língua e cultura portuguesa.

Os hábitos de leitura nunca foram grandes (e, sobretudo, nunca foram devidamente fomentados) entre os Portugueses, embora haja aumentado o número de bibliotecas, e novas formas de ocupação dos tempos livres mostram-se, de certo modo, adversárias da literatura, pelo menos na sua forma mais tradicional.

Alguns jovens autores, muito em especial na área da poesia, como, por exemplo, José Luís Peixoto ou Jacinto Lucas Pires (também com incursões no teatro), têm sido bem-sucedidos na aceitação dos seus trabalhos, não

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descurando uma linguagem mais próxima da que é usada no dia-a-dia pelas camadas mais jovens e procurando formas atuais (especialmente no primeiro caso) de divulgação das suas obras.

A transição do século XX para o século XXI testemunha também o aparecimento duma literatura leve (é frequentemente chamada de “light”), fenómeno algo recente em Portugal mas desde há décadas bastante comum noutras latitudes (com designações como, por exemplo, “literatura de aeroporto”) e que, se bem que recebida, no mínimo, com reticências por parte dos círculos mais literatos, trouxe, pelo menos, a vantagem de ter conseguido atingir assinaláveis volumes de vendas.

Se os recém-conquistados leitores decidirão “atravessar a ponte” e alcançar uma outra margem literária, formal e ideologicamente mais complexa, é uma questão que fica em aberto para o novo século.

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4.A relação da literatura portuguesa do século XX com outras formas de expressão artística

ModernismoAmbiência estética cosmopolita que define as artes e a cultura europeia e internacional na viragem do século, e, muito em especial, durante as suas primeiras duas ou três décadas.

Em Portugal, está ligada às figuras de Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros e muitos outros, e polariza-se em tomo da revista Orpheu (1.º número, 1915).

Estética por excelência da diversidade (patente em outras estéticas adjacentes e movimentos de vanguarda - sensacionismo, paulismo, intersecionismo, etc.), da questionação dos valores estabelecidos ética e literariamente, da euforia face às invenções da técnica, da libertação da escrita literária de todas as convenções e de todas as regras, o modernismo marcou o século XX de um modo muito agudo, a tal ponto que com ele se articulam constantemente as teorias e as polémicas em torno de outras duas noções histórico-literárias e estéticas relativamente indeterminadas (modernidade e pós-modernismo), que só a sua matriz pode ajudar a explicitar.

Na literatura portuguesa, a revista Presença (de José Régio e João Gaspar Simões) é por uns entendida como «a contrarrevolução do modernismo» (Eduardo Lourenço), e, por outros, como «um segundo modernismo».

A arte moderna surgiu em rutura com o séc. XIX: rompe-se com os códigos, com a perspetiva, com o conceito de belo, etc.

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A pintura modernista misturou as delicadas e elegantes formas do gótico com o simbolismo romântico, tendo como resultado uma pintura de um grande erotismo e naturalidade.

Enumeram-se o cubismo, o abstracionismo, o futurismo e o surrealismo como alguns dos mais importantes movimentos modernistas na pintura. O modernismo não tardou a chegar a Portugal. Destacam-se nomes como Amadeo de Souza-Cardoso; Almada Negreiros e Santa-Rita pintor.

Amadeo de Souza-Cardoso, Entrada, 1917

NeorrealismoCorrente literária de influência italiana que anexa algumas componentes da literatura brasileira, nomeadamente a da denúncia das injustiças sociais do romance nordestino. Quer na poesia, quer na prosa, o neorrealismo assume uma dimensão de intervenção social, agudizada pelo pós-guerra e pela sedução dos sistemas socialistas que o clima português de ditadura mitifica.

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A sua matriz poética concentra-se no grupo do Novo Cancioneiro, coleção de poesia, com Sidónio Muralha, João José Cochofel, Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, Mário Dionísio, Fernando Namora e outros.

No romance, Soeiro Pereira Gomes, com Esteiros, e Alves Redol, com Gaibéus, de 1940, inauguraram, na ficção, uma obra extensa e representativa, que também muitos dos outros poetas mencionados (sobretudo os quatro primeiros) contribuíram para enriquecer.

O romance neorrealista reativa os mecanismos da representação narrativa, inspirando-se das categorias marxistas de consciência de classe e de luta de classes, fundando-se nos conflitos sociais que põem sobretudo em cena camponeses, operários, patrões e senhores da terra, mas os melhores dos seus textos analisam de forma acutilante as facetas diversas dessas diversas entidades.

Aderindo às propostas do Neorrealismo literário, alguns pintores lançam uma pintura Neorrealista, fundada no figurativismo e numa crítica social de raiz Marxista, retratando as condições de vida das classes mais desfavorecidas e do operariado industrial.

Em Portugal, destacam-se Augusto Gomes, Júlio Pomar, Manuel Filipe, M. Ribeiro de Pavia, Lima de Freitas, Cipriano Dourado, Vespeira, Rogério Ribeiro, Querubim Lapa, Alice Jorge ou José Dias Coelho

Sobre a forte influência do Neorrealismo nas artes em Portugal ver o texto sobre o Modernismo. Em Portugal o Neorrealismo surge no mesmo período que o Surrealismo e o Abstracionismo, gerando-se entre estes movimentos acesa polémica sobre a natureza e o papel das artes.

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Augusto Gomes, Os pescadores, 1962

ModernidadeNão é uma corrente estética, mas uma noção, muito frequente, com a qual se qualifica muitas vezes, e em termos positivos, a qualidade de uma obra. Desligada semanticamente do conceito de modernismo, evoca outros momentos históricos de renovação estética e cultural.

Em nosso entender, Pessoa é um grande poeta porque, através da diversidade dos seus heterónimos, está mais ligado a uma noção de modernidade do que ao conceito de modernismo, assim como Almada Negreiros; António Boto e Irene Lisboa, presencistas imperfeitos, são-no na medida em que elaboram também a sua quota-parte de modernidade.

A renovação do romance praticada na segunda metade deste século (a partir de Agustina Bessa-Luís, em A Sibila, 1954, e a sua obra posterior, assim como os romances de Vergílio Ferreira, e vários outros autores, ex. José Cardoso Pires, Augusto Abelaira), assim como a obra de alguns poetas (António Ramos Rosa, Eugénio de Andrade, Herberto Helder), configuram uma modernidade indistinta, diferenciada e recorrente no vocabulário crítico que, a despeito de definir de facto um universo idêntico, provoca

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algumas confusões, sobretudo na medida em que, em certos casos, se confunde com a noção entretanto posta em voga de pós-modernismo.

Vieira da Silva, 25 de Abril

Pós-modernismoEtiqueta polémica que se apõe a vária da produção literária contemporânea, vulgarizada pelas controvérsias filosóficas, mas do ponto de vista literário seriamente encarada por grupos e autores americanos e canonizada por inúmeros trabalhos científicos e teses em universidades dos EUA e da Europa do Norte.

Em Portugal, o seu funcionamento na literatura é não só temido mas ainda denegado e recalcado.

De qualquer modo, a indiferenciação de modalidades narrativas, o gosto da reescrita e da paródia, a sedução pela alteração e correção dos acontecimentos do passado, o gosto do fantástico, a recusa das axiologias e a tendência para o aleatório podem entrever-se em textos tão diversos quanto Finisterra, de Carlos de Oliveira, Alexandra Alpha, de José Cardoso Pires, Paixão do Conde de Fróis, de Mário de Carvalho, História do Cerco de Lisboa, de José Saramago, Contos do Mal Errante, de Maria Gabriela Llansol,

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Os Guarda-Chuvas Cintilantes, de Teolinda Gersão ou Olhos Verdes, de Luísa Costa Gomes.

Sendo a pós-modernidade uma época de inovações técnicas, sociais, artísticas, literárias e políticas, entre outras, opõe-se naturalmente ao Modernismo ou à Modernidade, sendo que o declínio das vanguardas deste mesmo Modernismo marca a transição entre estes dois períodos. Um destes aspetos foi a progressiva implantação do abstracionismo na figuração, no que se refere à arte, por exemplo, impondo-se progressivamente a "crise da representação”.

José de Guimarães, Homenagem a Magritte, 1984

SurrealismoMuito tardio, na literatura portuguesa, é representado por grandes poetas (António Pedro, Manuel de Lima, Mário-Henrique Leiria, Mário Cesariny) e tem grande impacto na configuração do discurso poético da modernidade, de Herberto Helder ao grupo de escritores da publicação Poesia-61 (Gastão Cruz, Fiama Hasse Pais Brandão, Luiza Neto Jorge, Maria Teresa Horta), não esquecendo Ruy Belo, Casimiro de Brito e João Rui de Sousa.

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A literatura do nosso tempo

Favorece as associações vocabulares livres, as relações semânticas insólitas, e estabelece o primado da imaginação.Salienta-se de novo que o surrealismo teve uma forte expressão noutros campos artísticos para além da Literatura, nomeadamente nas artes visuais - pintura, escultura, fotografia. Em Portugal, Mário Cesariny, António Dacosta e Cruzeiro Seixas, por exemplo, destacam-se não só na literatura mas também na pintura.

António Dacosta, Melancolia, 1942

ExperimentalismoCorresponde a um modo de intervenção estética, assumido como vanguarda, de poetas aliás muitas vezes ligados a outros movimentos, nomeadamente ao neorrealismo e ao surrealismo, e tem como expoentes principais, que se mantém fiéis a esse modo desde há quatro décadas, E. M. de Melo e Castro e Ana Hatherly (esta também autora de uma novela importante de tipo surrealista, O Mestre).

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Mário Botas, Pietá

5.Os autores e a sua produção literária - que géneros literários e que temáticas

5.1.Agustina Bessa Luís

Vila Meã, Amarante, 1922

Agustina Bessa-Luís nasceu a 15 de Outubro de 1922, em Vila Meã, Amarante. Dela António José Saraiva afirma ser, depois de Fernando Pessoa, o segundo milagre do século XX português, referindo-se à originalidade e densidade literária da sua obra romanesca, constituída por mais de quatro

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dezenas de títulos, a que se somam peças de teatro, biografias, ensaios, livros de viagens e de crónicas.

Da sua obra de ficção narrativa para adultos, refiram-se apenas alguns títulos como A sibila (1954), As pessoas felizes (1975), Fanny Owen (1979), O mosteiro (1980), Os meninos de ouro (1983), Vale Abraão (1991), Ordens menores (1992), Um cão que sonha (1997), entre muitos outros que poderiam ser mencionados.

Com obras traduzidas em vários países e algumas adaptadas quer à linguagem cinematográfica (por Manoel de Oliveira, por exemplo), quer à linguagem teatral, também produziu textos expressamente destinados a crianças.

As características omniscientes e demiúrgicas dos seus narradores contribuem para uma quebra da organização canónica do texto, em que vários espaços e tempos se entrecruzam na tentativa de explicação dos comportamentos assumidos pelas personagens.

Estas, por sua vez, caracterizam-se por uma força vital assombrosa ou, pelo contrário, por uma fragilidade, uma impotência perante a vida, que ainda vem reforçar as características das personalidades dominadoras. É essa força telúrica que transforma as suas personagens em personagens mágicas que reorganizam o mundo à volta delas.

Os seus textos narrativos são construídos através da integração de longos momentos descritivos em que a autoridade do saber do narrador se impõe, como se as suas caracterizações físicas, psicológicas ou sociais ultrapassassem, transcendessem os atributos possíveis de cada personagem ou de cada espaço.

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Nos contos para crianças, o carácter sentencioso da sua escrita parece suavizar-se pela diminuição dos argumentos utilizados, mas reaparece através das características de um discurso formado por frases mais curtas e incisivas. As metáforas e imagens utilizadas também ora estão próximas do mundo da infância e assumem o humor impiedoso das crianças, ora denunciam a crítica mordaz que se esconde por detrás da experiência adulta.

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"E, bruscamente, Germa começou a falar de Quina.Era em Setembro, e a casa, temporariamente habitada expulsava o seu carácter de abandono e de ruína, com aquele calor de vozes e de passos que amarrotam folhelhos amontoados em todos os sobrados. O tempo estava morno, impregnado dessa quietude de natureza exaurida que se encontra num baque ondulante de folha ou na água que corre inutilmente pela terra eriçada de canas donde a bandeira de milho foi cortada. Desde a morte de Quina, nunca mais a casa tivera aquela emanação de mistério grotesco ou ingénuo; e Germa não encontrava mais sabor nos serões ao boralho, mexendo as achas, fazendo rodinhas de fogo-preso com o atiçador esbraseado, ou catando nos escanos o rapa do Natal, em cujas faces as letras tinham sido desenhadas com tinta venenosa de bagominhas. Ah, Quina, tão estranha, difícil, mas que não era possível recordar sem uma saudade ansiada, quem fora ela?Joaquina Augusta nascera nessa mesma casa da Vessada, setenta e seis anos antes. Era uma menina de aspeto pouco viável, roxa, moribunda, e que apresentava no pulso esquerdo uma mancha cor de sépia, motivada pelo facto de sua mãe ter sido salpicada de fígado de porco, por ocasião de uma matança, estando ela nos primeiros tempos da gravidez."

Agustina Bessa-Luís, in A Sibila, 1953

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5.2.António Lobo Antunes

Lisboa, 1942

António Lobo Antunes nasceu em Lisboa, em 1942. Psiquiatra de profissão, iniciou a publicação da sua obra literária, para adultos, em 1979, com Memória de elefante, a que se seguiram mais de vinte romances – como Fado alexandrino (1983), As naus (1988), Não entres tão depressa nessa noite escura (2000), O arquipélago da insónia (2008), Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? (2009), Sôbolos rios que vão (2010) –, além de livros de crónicas.

As vivências da Guerra Colonial (que presenciou em Angola, durante dois anos) constituem parte do substrato temático dos seus romances. Atualmente, é um dos autores portugueses mais traduzidos no estrangeiro e a sua obra tem sido muitas vezes premiada.

António Lobo Antunes começou por utilizar o material psíquico que tinha marcado toda uma geração: os enredos das crises conjugais, as contradições revolucionárias de uma burguesia empolgada ou agredida pelo 25 de Abril, os traumas profundos da guerra colonial e o regresso dos colonizadores à pátria primitiva. Isto permitiu-lhe, de imediato, obter um

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reconhecimento junto dos leitores, que, no entanto, não foi suficientemente acompanhado pelo lado da crítica.

As desconfianças em relação a um estranho que se intrometia no meio literário, a pouca adesão a um estilo excessivo que rapidamente foi classificado de «gongórico» e o próprio sucesso de público, contribuíram para alguns desentendimentos persistentes que se começaram a desvanecer com a repercussão internacional (em particular em França) que a obra de António Lobo Antunes obteve.

Ultrapassado este jogo de equívocos, António Lobo Antunes tornou-se um dos escritores portugueses mais lidos, vendidos e traduzidos em todo o mundo. Pouco a pouco, a sua escrita concentrou-se, adensou-se, ganhou espessura e eficácia narrativa. De um modo impiedoso e obstinado, esta obra traça um dos quadros mais exaustivos e sociologicamente pertinentes do Portugal do século XX.

A sua obra prosseguiu numa contínua renovação linguística, tendo os seus romances seguintes (Exortação aos Crocodilos, Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura, Que Farei Quando Tudo Arde? Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo), bem recebidos pela crítica, marcado definitivamente a ficção portuguesa dos últimos anos.

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«Nada a não ser de tempos a tempos um arrepio nas árvores e cada folha uma boca numa linguagem sem relação com as outras, ao princípio faziam cerimónia, hesitavam, pediam desculpa, e a seguir palavras que se destinavam a ela e de que se negava a entender o sentido, há quantos anos me atormentam vocês, não tenho satisfações a dar-vos, larguem-me, isto em criança, em África, e depois em Lisboa, a mãe chegava-se ao armário da cozinha onde guardava os remédios– São as vozes Cristina?aqui na Clínica silêncio, com as injeções as coisas desinteressam-se de mim, uma frase, às vezes, mas sem ameaças nem zangas, o nome apenas– Cristinauma amabilidade pressurosa– Como estás Cristina?ou uma queixa– Nunca mais nos ligastea cama, a mesa e as cadeiras quase objetos de novo, embora se perceba um ressentimento à espera, não se atrevia a tocar-lhes, deitava-se pesando o menos possível na esperança que a almofada ou os lençóis não a sentissem e pode ser que se distraiam e não sintam, não devem sentir porque nenhum– Como estás Cristina?desde há semanas, tirando as folhas num capricho do vento e as bocas de regresso um instante, o que me incomodam as bocas, o diretor da Clínica– Ando a pensar dar-lhe uns dias de licença na condição de tomar os comprimidosnão havia a sombra de uma sugestão, um conselho, a ordem

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– Tens de matar o teu pai com a facagraças a Deus ausente, quase paz se houvesse paz e não há, há pretos a correrem em Luanda, camionetas de soldados, tiros, gritos numa ambulância a arder na praia, sob pássaros que se escapavam, e ao terminar de arder nenhum grito, o pai foi padre, não era padre já e a mãe zangada– Quem te contou isso miúda? (…)»

António Lobo Antunes, Comissão das Lágrimas, 2011

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5.3.David Mourão Ferreira

Lisboa, 1927 - Lisboa, 1996

Poeta, ficcionista, ensaísta, crítico literário, dramaturgo, tradutor e professor universitário.

Depois de frequentar o Colégio Moderno, onde foi aluno de Álvaro Salema e colega de Mário Soares, licenciou-se em Filologia Românica, em 1951, com uma tese sobre Sá de Miranda, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, aí tendo tido como mestres Hernâni Cidade, Vitorino Nemésio, Jacinto do Prado Coelho, Maria de Lourdes Belchior e como colegas Sebastião da Gama e Lindley Cintra, entre outras personalidades da cultura portuguesa contemporânea de quem foi amigo e que muito o marcaram na sua formação pessoal e académica.

Entre 1957 e 1963 foi assistente da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde foi readmitido, como professor auxiliar, em 1970. Aí marcou várias gerações de estudantes na regência das cadeiras de Teoria da Literatura e de Literatura Portuguesa e numa prática da docência onde o tom às vezes retórico do discurso não inibia a capacidade de diálogo e

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parecia corresponder antes, na abordagem teórica da literatura e no gosto da sua partilha, à mesma exigência de rigor formal que punha na escrita, ao mesmo gosto de articular palavras e de as organizar em versos como quem nelas articula os seus mais antigos arquétipos culturais.

Ao publicar nos últimos anos de vida recolhas poéticas de inequívoca tematização do erotismo (O Corpo Iluminado e Música de Cama), David Mourão-Ferreira expôs-se, «entre o estuar dos sentidos e o desencanto do nada» (Urbano Tavares Rodrigues, «Don Juan e o donjuanismo: na literatura portuguesa», in Dicionário de Literatura dirigido por Jacinto do Prado Coelho, 1978), a análises injustamente redutoras da sua obra poética.

E no entanto parece tão fácil reconhecer que, nessa escrita, ora lúdica, ora dramática, Das sílabas a espátula/ começa pouco a pouco/ a modelar-te em alma/ o que era apenas corpo/ [ ...] e O que era apenas alma/ volve-se agora corpo («Corpoema»), tão insignificante é do ponto de vista poético a diferença.

Um Monumento de Palavras (1996) é simultaneamente reconstituição de um percurso íntimo e testamento poético, numa curiosa cronologia sentimental e poética que, já elegíaca, mas lucida, tranquilamente se enuncia e antologicamente se organiza em disco pela voz do Poeta.

Poucas vezes um escritor terá visto a sua morte tão publicamente anunciada, tão mediática, mas sinceramente, chorada.

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E POR VEZES

E por vezes as noites duram mesesE por vezes os meses oceanosE por vezes os braços que apertamosNunca mais são os mesmos E por vezes

Encontramos de nós em poucos mesesO que a noite nos fez em muitos anosE por vezes fingimos que lembramosE por vezes lembramos que por vezes

Ao tomarmos o gosto aos oceanosSó o sarro das noites não dos mesesLá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramosE por vezes por vezes ah por vezesNum segundo se envolam tantos anos.

David Mourão-Ferreira, Obra poética 1948-1988

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5.4.Dinis Machado

Lisboa, 1930 - Lisboa, 2008

Escritor. Iniciou a sua carreira como jornalista desportivo e crítico de cinema. Trabalhou nos jornais Record, Norte Desportivo, Diário Ilustrado e Diário de Lisboa. Organizou nos princípios dos anos sessenta os primeiros Ciclos de Cinema da Casa da Imprensa e fez crítica cinematográfica na revista Filme.

Nos anos setenta foi diretor, com António Ramos, da edição portuguesa da revista de banda desenhada, Spirou. Sob o pseudónimo de Dennis McShade deu a lume três romances policiais. Traduziu, com Rita Alves Machado, Truman Capote (Um Natal, 1983).

Sobre o seu romance O Que Diz Molero – grande êxito editorial, traduzido em várias línguas e objeto de uma versão teatral de Nuno Artur Silva – afirmou Eduardo Lourenço tratar-se «de um livro-chave do nosso tempo».

António Mega Ferreira considerou-o o «mais importante texto de ficção que se publicou em Portugal nos últimos anos [...] páginas miraculosamente

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repletas de sinais da mais bela, inteligente e emocionada escrita produzida por um escritor português na década de 70.»

E Luiz Pacheco fala de «uma cavalgada furiosa de episódios, uma feira, um tropel de gente, uma festa popular de malucos e malucas, tudo chalado, uma alegria enorme quase insensata, o sentimento nos momentos doloridos mas tudo tão próximo de nós e tão naturalmente reproduzido na escrita.»

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“Chegou uma esquadra”, disse Austin, “e aqueles a quem chamavam os camones invadiram a cidade, tingindo-a com a brancura das suas fardas. Meia dúzia deles enfiou pela rua acima, passou pelos Vai ou Racha, estes cuspiram para o chão em sinal de desprezo, o Zuca foi atrás deles de braço estendido, esfregando o dedo polegar no indicador, eh, camone, money, money, um camone atirou um monte de moedas ao ar e a miudagem lutou bravamente para apanhar o dinheiro”. “essas excursões a bairros desconhecidos desvendam mundos novos”, interrompeu Mister DeLuxe. “fiz duas ou três desse género e tirei excelentes fotografias”. Austin sorriu. “bem”, disse ele, “os camones continuaram a subir a rua, pararam junto ao Ângelo, que estava sentado no seu banco de madeira a experimentar a harmónica, um deles aproximou-se e disse girls, e fez com o braço o movimento respetivo, we want girls, o Ângelo disse girl é a tua mãezinha, estás a perceber ou precisas de explicador?, sim, a tua mãezinha, o camone riu-se para os outros, um deles avançou e fez uma espécie de passe à Fred Astaire, conta quem sabe, e de repente o Ângelo já tinha guardado os óculos e a harmónica no bolso, começou a despachar os camones, enfiou um pela loja de móveis do Ventura, outro foi cair numa das cadeiras da Barbearia Hollywood, exatamente em cima do Pimentel, que estava a ser escanhoado pelo Joaquim Navalhinhas, um terceiro mergulhou no tanque de roupa da Miquelina Fortes, outro ainda foi também remetido para a loja do Ventura, encontrou o primeiro no caminho, vinha de regresso, e estatelaram-se os dois numa cama de casal, o Ângelo com os pés, com as mãos, com a cabeça, vai disto, os camones enfiavam por tudo quanto era porta, positivamente distribuídos ao

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domicílio, o Zuca diria mais tarde que Ricardito entre Chamas e Bandidos, a sua fita número um, ao pé daquilo não era nada.

Dinis Machado, O que diz Molero, 1977

5.5.José Cardoso Pires

S. João do Peso/Castelo Branco, 1925 - Lisboa, 1998

Vem viver para Lisboa muito jovem. Após concluído o liceu, frequenta o curso de Matemáticas Superiores da Faculdade de Ciências, que abandona para se alistar na Marinha Mercante como praticante de piloto sem curso. Viaja então por toda a costa de África, até ser forçado ao abandono dessa atividade.

Desde então, a sua atividade profissional centrou-se em torno da literatura e do jornalismo cultural, tendo sido diretor literário de várias editoras, diretor da revista Almanaque (cuja redação era constituída por Luís de Sttau Monteiro, Alexandre O'Neill, Vasco Pulido Valente, Augusto Abelaira e o escultor José Cutileiro e que contava com a direção gráfica de Sebastião

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Rodrigues), diretor-adjunto do jornal Diário de Lisboa (1974), redator da Gazeta Musical e de Todas as Artes e crítico literário da revista Afinidades.

Autor vário, do romance à sátira política, passando pelo teatro e pela crónica, José Cardoso Pires é considerado um dos maiores e melhores prosadores e contadores de histórias da literatura portuguesa contemporânea, tendo obras traduzidas numa quinzena de línguas.

Nunca tendo integrado qualquer corrente literária específica – considerava-se a si próprio um «integrado marginal» –, acusa, no entanto, influências várias, desde o neorrealismo, no início da carreira, ao surrealismo, passando por Tchekov e por autores americanos como Poe, Hemingway, Melville.

Resulta daqui um realismo crítico de estilo muito pessoal, caracterizado por grande depuração, tanto ao nível narrativo como sintático e vocabular, uma prosa viva e objetiva que foi tendo na atividade jornalística, desenvolvida ao longo dos anos, a sua oficina permanente.

A ligação do autor ao jornalismo começou na adolescência e manteve-se regularmente, sendo os marcos mais importantes deste percurso as passagens pela revista Almanaque, pelo Jornal do Fundão, pelo Diário de Lisboa e pelo Público.

É também apontado à sua escrita um cariz cinematográfico, de certa forma corroborado pelas várias adaptações de textos seus para o cinema. A mais recente adaptação foi o filme Balada da Praia dos Cães, realizado por José Fonseca e Costa, sobre o romance homónimo de 1982 que valeu a Cardoso Pires o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores.

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O mudo ouvia, modestamente, girando a garrafa de cerveja sobre a mesa. Um artista que tinha ficado conhecido pelo fado do Arsenal e por outros fados de exclusivo não merecia ver-se assim moço de cego, a estender a mão à caridade pública. Os narradores de taberna não só chamavam a atenção dos forasteiros para a injustiça que estavam a presenciar como se olhavam entre si com piedade. Um deles abriu os braços, resignado: «Azares», disse ele. «A gente cá em Portugal chama a isto azares, que é que se há-de fazer?» «Mister, na nossa terra passa-se muita dificuldade», disse outro. Com mais algumas rodadas as tristezas já não pagavam dívidas e, sendo assim, alguém começou a cantar o Hino do Benfica acompanhado à guitarra pelo cego. Depois vieram uns versos ao jocoso, com licença da senhora, e até quadras populares onde a própria Sophia fez coro. Foi então que se ouviram na guitarra as notas do Fado do Arsenal: o bando dos bêbados calou-se imediatamente porque o mudo se tinha posto de pé e levantava a mão a impor silêncio e concentração. Lado a lado, ele e o cego enfrentaram a assistência, a guitarra a aclarar o tom, a afinar. E na altura própria, o mudo abriu as goelas. E pronunciou sem soltar um som a letra do Fado do Arsenal, batendo os lábios ao ritmo do instrumento e com as pausas, as voltas e os arrastados que mandava a regra. Fazia os gestos sentidos do fadista de raça, o meneio dos ombros, o prolongado fechar dos olhos, o peito arrogante na tirada mais funda. Mas sem uma palavra, sem uma nota. Parecia um homem a cantar numa redoma isolada à prova de som. Um por um, segunda surpresa, a assistência de bêbados pôs-se a cantar. Cantava com os olhos no silabar do fadista sem som,

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lendo-lhe a letra nos lábios e seguindo-os pelo ritmo, e era coisa única, disse François Désanti, ouvir um mudo na voz dum coro de bêbados. Um fenómeno dramático e grotesco e quase religioso. Como se fosse um ventríloquo que se fizesse ouvir em várias figuras ao mesmo tempo.

José Cardoso Pires, Alexandra Alpha, 1987

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5.6.José Saramago

Azinhaga/Golegã, 1922 - Lanzarote/ilhas Canárias/Espanha, 2010

Prémio Nobel de Literatura 1998. Nascido no Ribatejo, mas desde muito novo a residir em Lisboa, José Saramago é um caso paradigmático de escritor autodidata: com um curso em serralharia mecânica concluído em 1939, vai, ao longo dos anos, repartir a sua atividade profissional pela tradução, a direção literária e de produção numa casa editora, colaborações várias em jornais e revistas.

Tendo embora iniciado a sua carreira nas letras em 1947, com o livro Terra do Pecado, é em 1980, com o romance Levantado do Chão, história da vida de uma família camponesa do Alentejo desde o início do século até à revolução de Abril e ao advento da reforma agrária, que José Saramago produz aquilo a que já se convencionou chamar o seu «primeiro grande romance».

Primeiro porque a partir daí eles se têm sucedido regularmente como outros tantos «grandes romances», o maior dos quais, por ter constituído um

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autêntico «caso» de celebridade tanto nacional como internacional, com tradução para uma vintena de línguas e adaptação a libretto de ópera, foi sem dúvida Memorial do Convento (1982).

Tudo isto é servido por um estilo que passará a constituir forte marca do autor e que se define, basicamente, pela supressão de alguns sinais de pontuação, nomeadamente pontos finais e travessões para introduzir o diálogo entre as personagens, o que vai resultar num ritmo fluido, marcadamente oral e muito próprio, tanto da escrita como da narrativa.

De romance histórico se tem inevitavelmente falado em relação à produção romanesca de Saramago, embora o próprio autor recuse tal etiqueta aplicada às suas obras.

Se o romance de José Saramago é histórico, pela dimensão histórica, e fantástico, pela dimensão fantástica, ele é principalmente dos homens e das mulheres na história e da sua capacidade de ver e agir sobre o real para além do crível e do evidente. Parte da extraordinária recetividade que as suas obras têm merecido em todo o mundo, e que culminou com a atribuição do Nobel, dever-se-á, sem dúvida, a esse carácter humanista, a esse reduto de confiança e esperança no poder do humano que a sua obra projeta.

De facto, mesmo antes da consagração máxima trazida pelo Nobel, Saramago era já o autor português contemporâneo mais traduzido, com livros editados em todo o mundo, da América do Norte à China, e detinha já um capital de prestígio reconhecido pela atribuição de vários prémios literários internacionais e nacionais.

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Grita o povinho furiosos impropérios aos condenados, guincham as mulheres debruçadas dos peitoris, alanzoam os frades, a procissão é uma serpente enorme que não cabe direita no Rossio e por isso se vai curvando e recurvando como se determinasse chegar a toda a parte ou oferecer o espetáculo edificante a toda a cidade, aquele que ali vai é Simeão de Oliveira e Sousa, sem mester nem benefício, mas que do Santo Ofício declarava ser qualificador, e sendo secular dizia missa, confessava e pregava, e ao mesmo tempo que isto fazia proclamava ser herege e judeu, raro se viu confusão assim, e para ser ela maior tanto se chamava padre Teodoro Pereira de Sousa como frei Manuel da Conceição, ou frei Manuel da Graça, ou ainda Belchior Carneiro, ou Manuel Lencastre, quem sabe que outros nomes teria e todos verdadeiros, porque deveria ser um direito do homem escolher o seu próprio nome e mudá-lo cem vezes ao dia, um nome não é nada, e aquele é Domingos Afonso Lagareiro, natural e morador que foi em Portel, que fingia visões para ser tido por santo, e fazia curas usando de bênçãos, palavras e cruzes, e outras semelhantes superstições, imagine-se, como se tivesse sido ele o primeiro, e aquele é o padre António Teixeira de Sousa, da ilha de S. Jorge, por culpas de solicitar mulheres, maneira canónica de dizer que as apalpava e fornicava, decerto começando na palavra do confessionário e terminando no acto recato da sacristia, enquanto não vai corporalmente acabar em Angola, para onde irá degredado por toda a vida, e esta sou eu, Sebastiana Maria de Jesus, um quarto de cristã-nova, que tenho visões e revelações, mas disseram-me no tribunal que era fingimento, que ouço vozes do céu, mas explicaram-me que era efeito demoníaco, que sei que posso ser santa como os santos o são, ou ainda melhor, pois não alcanço diferença entre mim e eles, mas repreenderam-me

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de que isso é presunção insuportável e orgulho monstruoso, desafio a Deus, aqui vou blasfema, herética, temerária, amordaçada para que não me ouçam as temeridades, as heresias e as blasfémias, condenada a ser açoitada em público e a oito anos de degredo no reino de Angola, e tendo ouvido as sentenças, as minhas e mais de quem comigo vai nesta procissão, não ouvi que se falasse da minha filha, é seu nome Blimunda, onde estará, onde estás Blimunda, se não foste presa depois de mim, aqui hás-de vir saber da tua mãe, e eu te verei se no meio dessa multidão estiveres, que só para te ver quero agora os olhos, a boca me amordaçaram, não os olhos, olhos que não te viram, coração que sente e sentiu, ó coração meu, salta-me no peito se Blimunda aí estiver, entre aquela gente que está cuspindo para mim e atirando cascas de melancia e imundícies, ai como estão enganados, só eu sei que todos poderiam ser santos, assim o quisessem, e não posso gritá-lo, enfim o peito me deu sinal, gemeu profundamente o coração, vou ver Blimunda, vou vê-la, ai, ali está, Blimunda, Blimunda, Blimunda, filha minha, e já me viu, e não pode falar, tem de fingir que me não conhece ou me despreza, mãe feiticeira e marrana ainda que apenas um quarto, já me viu, e ao lado dela está o padre Bartolomeu Lourenço, não fales, Blimunda, olha só, olha com esses teus olhos que tudo são capazes de ver, e aquele homem quem será, tão alto, que está perto de Blimunda e não sabe, ai não sabe não, quem é ele, donde vem, que vai ser deles poder meu, pelas roupas soldado, pelo rosto castigado, pelo pulso cortado, adeus Blimunda que não te verei mais, e Blimunda disse ao padre, Ali vai minha mãe, e depois, voltando-se para o homem alto que lhe estava perto, perguntou, Que nome é o seu, e o homem disse, naturalmente, assim reconhecendo o direito de esta mulher lhe fazer perguntas, Baltasar Mateus, também me chamam Sete-Sóis.

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José Saramago, Memorial do Convento, 1982

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5.7.Lídia Jorge

Boliqueime, Loulé, 1946

Romancista, contista e autora de uma peça de teatro, Lídia Guerreiro Jorge nasceu em Boliqueime em 1946.

Licenciada em Filologia Românica, foi professora liceal em Lisboa e em África – Angola e Moçambique – para onde partiu em 1970. Ali viveu o marcante ambiente da Guerra Colonial, que mais tarde descreveria no romance A Costa dos Murmúrios através da perspetiva de uma personagem feminina, a mulher de um oficial do exército português de serviço em Moçambique.

De regresso a Lisboa continuou a atividade docente e, em 1980, publicou o romance O Dia dos Prodígios, que lhe valeu o Prémio Ricardo Malheiros, da Academia das Ciências de Lisboa.

Esta sua primeira obra publicada deve um impulso à revolução de Abril de 1974: O Dia dos Prodígios constrói-se como uma alegoria do país fechado e

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parado que Portugal era sob a ditadura, permanentemente à espera de uma força que o transformasse. O romance teve grande impacto junto do público e da crítica e Lídia Jorge foi de imediato saudada como uma das mais importantes revelações das letras portuguesas e uma renovadora do nosso imaginário romanesco.

A linguagem narrativa deste romance e do seguinte – O Cais das Merendas – remete para a atmosfera do realismo mágico, sobrepondo vários planos narrativos numa estrutura polifónica de onde se destacam personagens que adquirem uma dimensão metafórica, ou mesmo mítica.

Nos romances de Lídia Jorge, a condição sociocultural das personagens, sobretudo as femininas, reflete-se em diálogos, testemunhos a que não é alheia a atenção que a autora dispensa à tradição oral, em relação direta com a crónica da nossa história recente, antes e depois da revolução.

A par da atividade literária, Lídia Jorge foi professora convidada da Faculdade de Letras de Lisboa, atividade que interrompeu para desempenhar funções na Alta Autoridade para a Comunicação Social, entre 1990 e 1994.

Os seus livros têm-lhe merecido variadíssimos prémios e estão traduzidos para diversas línguas.

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Por entre o barulho que fazia dentro e fora, perguntei-lhe—“Sabe o que significa o seu nome?”Helena de Tróia começou a rir—“Não, não sei.”“Nunca lhe disseram Haec Helena?”“Não, nunca”—disse ela com pestanas inocentes a baterem ao longo dos olhos, afastada agora dos crustáceos e da turquês que lhes quebravam tão bem as eriçadas patas. Quis que Helena soubesse.“Dizer Haec Helena é o mesmo que dizer eis a causa do conflito—gosta?Era uma bela mulher, despida lembrava um pombo, como outras lembram uma rã e outras uma baleia. Não era só a voz que lembrava um pombo, a chamar pelo barco, mas era também a perna, o seio, alguma coisa estava espalhada por ela que pertencia à família das columbinas. Talvez o cabelo vermelho, a pele leitosa.Ela [Helena] pôs uma perna fora do lençol. Os músculos gémeos de Helena não se vêem, por mais que Helena comprima o peito do pé. Tenho a perna de Helena na minha mão, peço-lhe que a curve para ver a atuação dos gémeos.A perna apenas toma um pouco mais de volume e engrossa. Passa-se o mesmo com a coxa. Helena abre e fecha a coxa. O seu slip é tão escasso que melhor fora não o ter. Helena puxa os joelhos, senta-se, levanta o assento, retira o slip, escorrega-o pelas pernas sempre unidas, estende-se.

Lídia Jorge, A costa dos murmúrios, 1988

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5.8.Manuel Alegre

Águeda, 1936

Poeta. Fez os estudos secundários no Porto, altura em que fundou, com José Augusto Seabra, o jornal Prelúdio. Do Liceu Alexandre Herculano, do Porto, passou a Coimbra, em cuja Universidade foi estudante de Direito, de par com uma grande atividade nas áreas da política, da cultura e do desporto.

Em 1962, foi mobilizado para Angola, tendo aí participado numa tentativa de revolta militar, pelo que esteve preso no forte de São Paulo de Luanda, cárcere onde conheceu Luandino Vieira, António Jacinto e António Cardoso. Libertado da cadeia angolana, foi desmobilizado e enviado para Coimbra em regime de residência fixa.

Após o 25 de Abril, regressou a Portugal, passando a dedicar-se à política no seio do Partido Socialista de que é membro da Comissão Política. Fez parte

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do 1º Governo Constitucional e tem sido desde então deputado à Assembleia da República. É também membro do Conselho de Estado, do Conselho das Ordens Nacionais e do Conselho Social da Universidade de Coimbra.

Como poeta, começa a destacar-se nas coletâneas Poemas Livres (1963-1965), publicadas em Coimbra de par com o «Cancioneiro Vértice». Mas o grande reconhecimento dos leitores e da crítica nasce com os seus dois volumes de poemas, Praça da Canção (1965) e O Canto e as Armas (1967), logo apreendidos pelas autoridades, mas com grande circulação nos meios intelectuais.

Começando por tomar por base temática a resistência ao regime, o exílio, a guerra de África, logo a poesia de Manuel Alegre evoluiria num registo épico e lírico que bebe muito em Camões e numa escrita rítmica e melódica que pede ser recitada ou musicada.

Para além das revistas e jornais já citados, Manuel Alegre tem colaboração dispersa por muitos outros jornais e revistas culturais, de que destacamos: A Poesia Útil (Coimbra, 1962), Seara Nova, o suplemento do Diário Popular «Letras e Artes», Cadernos de Literatura (Coimbra, 1978-), Jornal de Poetas e Trovadores (Lisboa, 1980-) e JL: Jornal de Letras, Artes e Ideias.

Está traduzido para alemão, francês, italiano, romeno e castelhano, e incluído em antologias portuguesas e estrangeiras. Poesia sua, declamada por Mário Viegas, foi gravada em disco.

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A RAPARIGA DO PAÍS DE ABRIL

Habito o sol dentro de tidescubro a terra aprendo o marrio acima rio abaixo vou remandopor esse Tejo aberto no teu corpo.

E sou metade camponês metade marinheiroapascento meus sonhos iço as velassobre o teu corpo que de certo modoé um país marítimo com árvores no meio.

Tu és meu vinho. Tu és meu pão.Guitarra e fruta. Melodia.A mesma melodia destas noitesenlouquecidas pela brisa no País de Abril.

E eu procurava-te nas pontes da tristezacantava adivinhando-te cantavaquando o País de Abril se vestia de tie eu perguntava atónito quem eras.

Por ti cheguei ao longe aqui tão pertoe vi um chão puro: algarves de ternura.Quando vieste tudo ficou certoe achei achando-te o País de Abril.

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Manuel Alegre, 30 anos de poesia, 1997

5.9.Sophia de Mello Breyner Andersen

Porto, 1919 - Lisboa, 2004

Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu no Porto, a 6 de Novembro de 1919, e faleceu em Lisboa, a 2 de Julho de 2004.

A sua infância feliz vivida no Porto propicia-lhe imagens e reminiscências que, de uma forma ou de outra, se vão entalhar na sua obra lírica e narrativa, em especial nos contos para crianças: a casa do Campo Alegre e o seu jardim (atual Jardim Botânico do Porto, que inspirou O Rapaz de Bronze, A noite de Natal, A floresta), a praia da Granja (na origem de A menina do mar), as festas de Natal de tradição nórdica (de cuja memória estão imbuídos O Cavaleiro da Dinamarca e A noite de Natal).

Formadora: Joana Ribeiro 55

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Sophia é reconhecidamente uma das vozes maiores da poesia portuguesa de todos os tempos (também autora de contos para adultos, de peças de teatro e de ensaios) e os seus livros infantis tornaram-se verdadeiros clássicos da literatura portuguesa, tendo sido alguns deles traduzidos para outras línguas.

A poesia que publicou foi, por mais que uma vez, distinguida com prémios de prestígio, nacionais e internacionais (Prémio Camões, Prémio Pessoa e outros), o mesmo acontecendo com a sua obra destinada aos mais novos, a que foi atribuído o Grande Prémio Calouste Gulbenkian de Literatura para Crianças.

Inúmeras vezes reeditados, tanto O Rapaz de Bronze (1956), A fada Oriana (1958), A menina do mar (1958) e A noite de Natal (1960) como O Cavaleiro da Dinamarca (1964), A floresta (1968), O Anjo de Timor (2004) e os recontos que é possível ler em A árvore (1985), a par da breve peça teatral O Bojador (1.ª ed., [1961]; 2.ª ed., 2000), representam, na sua maioria, momentos altos da história da literatura portuguesa para crianças.

Sem se assumirem declaradamente como obras moralistas, não restam dúvidas de que a sua inteligente urdidura aponta para um dever ser, em que surgem valorizados a Natureza, a harmonia, o equilíbrio e a justiça.

À condenação do egocentrismo e do artificialismo, da hipocrisia e da perversão originada pelo apego aos bens materiais, opõem-se a amizade, o amor, a paz e a generosidade, bem como (assim o assinalou Clara Rocha) a exaltação do humanismo cristão, do valor social e ético da obra de arte e da fidelidade a princípios antigos e universais.

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POEMA

A minha vida é o mar o Abril a ruaO meu interior é uma atenção voltada para foraO meu viver escutaA frase que de coisa em coisa silabadaGrava no espaço e no tempo a sua escrita

Não trago Deus em mim mas no mundo o procuroSabendo que o real o mostrará

Não tenho explicaçõesOlho e confrontoE por método é nu meu pensamento

A terra o sol o vento o marSão a minha biografia e são meu rosto

Por isso não me peçam cartão de identidadePois nenhum outro senão o mundo tenhoNão me peçam opiniões nem entrevistasNão me perguntem datas nem moradasDe tudo quanto vejo me acrescento

Formadora: Joana Ribeiro 57

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E a hora da minha morte aflora lentamenteCada dia preparada

Sophia de Mello Breyner Andresen, Cem poemas portugueses no feminino, 2005

5.10.Vergílio Ferreira

Gouveia, 1916 - Lisboa, 1996

Vergílio António Ferreira nasceu em Melo (Gouveia), a 26 de Janeiro de 1916, e faleceu em Lisboa, a 1 de Março de 1996.

Em 1940, conclui a licenciatura em Filologia Clássica, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Tendo sido professor do ensino secundário, foi como escritor que se distinguiu no panorama da literatura portuguesa a partir dos anos quarenta do século XX.

Formadora: Joana Ribeiro 58

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Com uma Obra que se inscreve no modo narrativo, e se situa entre, por um lado, o Neorrealismo (constituindo Manhã submersa, de 1955, um exemplo modelar da apropriação do romance presencista da adolescência pelos neorrealistas, segundo alguma crítica) e, por outro lado, o Existencialismo (principalmente a partir de Aparição, de 1959), cultivou intensamente o romance, o ensaio e o diário, mas também o conto, ainda que de forma mais marginal.

Claro que há ainda romance, e até na sua dimensão mais consensual e acidentalmente romanesca, que é a da história de amor. Mas se, na sequência da tradição, também aqui o amor é aquilo que só se sabe depois, diferentemente dela, este depois não é a origem reencontrada mas um frágil presente que se sustenta apenas da escrita do nome amado, como em Cartas a Sandra.

Neste presente, que é a perda serena de todas as estórias, desenha-se com nitidez a dificuldade contemporânea do fazer sentido. É dessa crise (de cultura e de civilização), das suas várias alíneas polemizantes (marxismo, estruturalismo, filosofia da linguagem), mas também daquilo que cria a esperança de um depois dela (a arte, os autores que se amam, a insistência do pensamento), que falam os inúmeros ensaios que V. F. também escreveu, com muito particular acerto Carta ao Futuro (1958), Invocação ao Meu Corpo (1969) e Pensar (1992).

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Pela última vez, durmo na casa do Alto. É uma noite sem lua mas com um céu vivo de estrelas. Mas a minha atenção prende-se à cidade, à planície. Para os lados da estrada de Viana descubro um espetáculo extraordinário que me alvoroça, que me fascina: numa vasta extensão de terreno, um incêndio lavra interminavelmente, iluminando a noite. É uma "queimada", suponho, o incêndio do restolho para a renovação da terra. Alinhadas pelos sulcos, as chamas avançam como um flagelo inexorável. E aos meus olhos saqueados é como se uma cidade ardesse, uma cidade fantástica, aberta de quarteirões, de praças, de sonhos. Cidade, minha cidade... Que a terra tenha razão sobre ti, que essa força que mal sei te absorva, te revele em cinzas, tire delas outra fecundação e outro ignorado recomeço - que me importa? A minha vida é "a" vida, só existe o que sou: não se imagina quem se não é..Acendo um cigarro, fico-me a olhar o incêndio.

Lembra-me imagens da guerra, de cidades bombardeadas. Alguém deve ir pegando o fogo por sectores, estabelecendo linhas de chamas que o vento vai impelindo. O campo arde vastamente, como uma destruição universal. Quase ouço o crepitar das chamas como o fervor final de uma inundação. Sinto-me só e nu, escapando ao desastre.

Mas esta nudez que eu algum dia julguei possivelmente coberta pela compreensão dos outros, esta redução extrema às minhas raízes, esta solidão inicial de quem não pode esquecer a sua pobre condição é o sinal humilde e amigo de que à vida que me deram a não repudiei, de que cuidei dela, a não perdi, a levo comigo nesta viagem breve, a aceito ao meu olhar de fraternidade e perdão... A

Formadora: Joana Ribeiro 60

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noite avança, a minha cidade arde sempre. Vou fundar outra noutro lado. Mas não sabia eu que ela devia arder? Acaso será possível construir uma cidade como a imagino, a cidade do Homem? Acaso não dura ela em mim, no meu sonho, apenas porque a penso sem consequências, a imagino, a não vivo, lhe não exijo responsabilidades? Não o sei, não o sei...

Mas o que sei é que o homem deve construir o seu reino, achar o seu lugar na verdade da vida, da terra, dos astros, o que sei é que a morte não deve ter razão contra a vida nem os deuses voltar a tê-la contra os homens, o que sei é que esta evidência inicial nos espera no fim de todas as conquistas para que o ciclo se feche - o ciclo, a viagem mais perfeita.

Vergílio Ferreira, Aparição, 1959

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Propostas de atividade

A literatura deverá chegar aos formandos de uma forma menos académica e mais em função de aspetos que possam despertar o seu interesse.

Assim, o formador poderá motivar os seus formandos para as diferentes obras e autores, fazendo apresentações diversificadas:

Leitura de textos previamente selecionados e gravados por uma voz exterior à sala de aula; (um ator de teatro local, um amigo, um familiar...)

Referência à obra através da temática que lhe é central, ou da biografia do autor;

Passagem de um programa televisivo onde se tenha falado de literatura;

Levar à aula alguém do exterior, que goste de ler e saiba captar a atenção dos formandos;

Comentário a um artigo, de jornal ou revista, que se refira à problemática literária, a uma qualquer obra ou autor

Ao longo do trabalho dos diferentes textos, irão sendo apresentados os elementos caracterizadores dos vários géneros literários, a possível adaptação a outras formas de arte, a presença, ou não, de elementos biográficos do autor, etc, etc.

Sugestões de trabalho:

1.Formandos e formador farão a análise comparativa de um texto jornalístico e de um texto de autor contemporâneo conhecido, (Saramago,

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Cardoso Pires, Manuel Alegre,...) tendo em atenção :

A linguagem informativa A linguagem estética A forma/estrutura e o conteúdo

O formador chegará, com a colaboração dos formandos, à organização de um quadro- síntese, que contenha as diferenças anteriormente encontradas.

2.Apresentação de obras ilustradas por artistas plásticos

Ex: do escultor Francisco Simões na obra poética de David Mourão Ferreira: ”Jogo de Espelhos”

Leitura/interpretação de alguns poemas Leitura/interpretação das imagens da capa e contracapa da obra

referida 3.Apresentação de obras traduzidas em teatro

Ex:”O que diz Molero ”de Diniz Machado.

Na impossibilidade de ver a peça, seria Importante levar um dos seus atores à conversa com os formandos. 4.Apresentação de obras traduzidas para o cinema

Ex: “A Manhã Submersa” de Vergílio Ferreira.

5.O formador apresentará uma lista de autores contemporâneos e os formandos pesquisarão, durante 2/3 semanas, no sentido de conhecerem:

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A biografia do autor O verdadeiro nome e/ou o pseudónimo As obras que escreveu, com que temática(s) e em que género(s)

6.O formador pedirá a cada formando que, durante 2/3 semanas, faça uma recolha de todas as referências feitas a autores de literatura portuguesa contemporânea:

Em jornais diários e outros Em jornais da especialidade Em programas televisivo Em folhetos culturais Em publicações locais

Cada formando fará a apresentação oral do autor pesquisado, através de: Compilação de textos recolhidos Texto elaborado pelo formando Imagens(fotografia, postal...) e Texto.

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Bibliografia

AA VV. Programa de Português: Ensino Secundário, Ed. DGIDC – Ministério da Educação

Cardoso, Ana, et al. Contextos: Português 12º ano, Manual do professor, Ed. Asa

Magalhães, Olga, et al., Português claro, Manuais de Português: Ensino Profissional, Ed. Porto Editora

Sites Consultados

Centro de investigação para as tecnologias educativas – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboahttp://www.citi.pt/

Dicionário de autores – Instituto Português do Livro e das Bibliotecashttp://www.iplb.pt/

Formadora: Joana Ribeiro 65

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Instituto Camões – Centro Virtual Camõeshttp://cvc.instituto-camoes.pt/

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